Revista Livro Zero numero 1 - Forum do Campo Lacaniano SP

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assim em marco Aurélio, que distingue as coisas, que não tocam a alma, das palavras que assim o fazem. É assim ainda em Hegel para quem: Assim como o homem é externamente, ou seja, em suas ações (por certo não somente na sua exterioridade somente corpórea), também é interno; e quando ele é interno – virtuoso, moral, só em intenções e disposições – e o seu exterior não é idêntico a tudo isso, então um é tão vazio quanto o outro (HEGEL, 1830, p. 261).

Ou seja, não se presume uma diferença ontológica ou epistemológica entre interior e exterior, não há qualquer substância em jogo aqui; a oposição reflete, no fundo, apenas modos distintos de apropriação e de responsabilização que alguém pode ter moralmente pelas paixões que o acometem. Que sejam próprias ou alheias, que sejam de seu corpo ou de sua alma, que sejam psicológicas ou biológicas, tudo isso se declina na gramática moral das decisões e das escolhas, não na semântica dos estados do ser. Daí que as paixões da alma sejam, antes e depois da utilidade do termo alma, paixões do ser. Se as paixões do ser (ódio, amor e ignorância) procedem da tradição teológico política e as paixões da alma (tragédia, comédia, dor de existir) procedem do domínio antro pológico-linguístico, podemos dizer que as paixões do ser se manifestam e as paixões da alma se expressam. As paixões do ser se manifestam sob a forma de mal-estar, assim como as paixões da alma se expressam em formas de vida insuficientemente reconhecidas. Compreende-se assim como há, no que toca ao tema da eticidade das paixões, e portanto da corporeidade em Lacan, um intenso debate sobre a passagem do pré-moderno ao moderno. Há uma mutação na economia dos prazeres que seria preciso pensar como condição arqueológica para a forma de corpo na qual a psicanálise depende em sua constituição como prática social. Este é o caso na recuperação da tragédia grega, mas também nos inúmeros pensadores do século XVI evocados por Lacan, desde a tradição mística cristã, incluindo Santa Thereza e Juan de La Cruz, à poesia de Donne, Baltasar de Gracian. A emergência de uma teoria dos afetos deve ser pensada contra o fundo desta problemática. É claro que aqui as referências se alteram e podemos resumi-las a três figuras principais: Aristóteles, Kant e o Utilitarismo. É a partir da formação do campo dos afetos como campo homólogo ao campo do patológico, segundo certa associação entre Aristóteles e Kant, que Lacan coloca a pergunta central de seu programa ético: Agiste em

Uma distinção preliminar a toda teoria da corporeidade em Lacan: paixões e afetos

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