cultura
r e f l e x ã o
Luis Maffei
Uns diabos novos
R
ecebi um panfleto na saída de certo concerto de rock, ano
do clamoroso êxito, seja de conjuntos de rock, seja de desodoran-
passado. O homem que distribuía o papelzinho, pelo que a
tes: o mercado. Assim, é uma mercadoria o conjunto, outra o deso-
penumbra do lugar me permitiu ver, aparentava relativa dignidade e
dorante. Pobre Lúcifer roqueiro: “vê-se, claramente, estar o rock a
nenhuma indignação no modo de postar-se ou oferecer o que tinha
serviço de Satanás”; não: vê-se, claramente, estar quase tudo o que
a oferecer. Lembrou-me outro senhor, que distribuía, na saída da
gira nossa sociedade a serviço da lógica do mercado. Não direi que o mercado (ou
também folhetos. Este, nem sei
coisa semelhante) é o diabo, nem
se ainda vive, pois não tomo
o Diabo, pois não o é. Tampouco
metrô desde que os vagões
direi que o mercado é Deus. Mas,
tornaram-se ofensas; não es-
metaforicamente, o mercado
colho ser ofendido. O homem
é satânico, pois transforma as
da Uruguaiana alertava-nos dos
pessoas em mercadoria – acabo
efeitos nocivos do tabaco. O
de parafrasear Zygmunt Bauman.
homem da entrada do concerto
Por outro lado, também metafo-
alertava-nos da aliança entre o
ricamente, o mercado é divino,
rock e Satanás.
pois é a norma a que devemos
Fragmento do panfleto: “Quan-
obediência. E agora? Agora, não
do de sua rebelião no Céu, Lúci-
há conflito entre Deus e Satanás,
fer arrastou consigo a terça parte
(quase) ninguém oferece sua alma
dos anjos. Entretanto, insatisfei-
ao Diabo, todos se divertem e há
to, arre-banha [sic], agora, os
pouca diferença entre lá e cá.
homens, brandindo a mesma
O panfleto assim termina:
arma: a música degenerada,
“Procure uma igreja mais próxima
assassina”. Pelo visto, o rock é
de sua casa. Jesus quer te libertar
invenção direta de Satanás, e foi
antes que o diabo ceife [sic] a sua
pelo rock que as almas angélicas foram roubadas. Não julgo necessário dizer que se trata de um delírio fanático, apenas
Ilustração: Ana Maria Moura
estação Uruguaiana do metrô,
lamento que esse delírio não
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vida”. Há aí concreta ingenuidade: não nos é dito para procurar esta ou aquela igreja, desta ou daquela vertente, mas a mais próxima de casa. O autor do texto talvez
tenha fundo algum, pois seria muito mais bonito o mundo se o rock
creia mesmo no que está dizendo, pois não especifica que estabe-
fosse mesmo uma invenção diabólica e se o combate entre Deus e
lecimento comercial será privilegiado, ou se, pelo contrário, alguma
o Diabo representasse um contínuo fim dos tempos.
igreja de verdade será a visitada pelo roqueiro arrependido. Num
Explico-me, pelo simbólico: um dos dramas de nosso tempo é
rasgo de ingenuidade meu, poderia pensar na transgressora imagem
o vazio, e esse vazio atende (como o Demônio, aliás) por vários
de Satanás fumando, já que os homens dos panfletos se misturam
nomes. Um deles é diversão. Diversão equivale, hoje em dia, a
em minha mente. Mas se eu penso que cigarro enriquece alguém
falta de comprometimento. Diversão e falta de comprometimento
que não é Satanás nem nenhum de seus seguidores, bem, é preciso
conspiram, em grande medida, com o verdadeiro agente por trás
inventar novos tipos de transgressão.
f o r u mDEMOCRATICO
Maio/Junho 10