Forum Democratico nº 93-94

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cultura

r e f l e x ã o

Luis Maffei

Uns diabos novos

R

ecebi um panfleto na saída de certo concerto de rock, ano

do clamoroso êxito, seja de conjuntos de rock, seja de desodoran-

passado. O homem que distribuía o papelzinho, pelo que a

tes: o mercado. Assim, é uma mercadoria o conjunto, outra o deso-

penumbra do lugar me permitiu ver, aparentava relativa dignidade e

dorante. Pobre Lúcifer roqueiro: “vê-se, claramente, estar o rock a

nenhuma indignação no modo de postar-se ou oferecer o que tinha

serviço de Satanás”; não: vê-se, claramente, estar quase tudo o que

a oferecer. Lembrou-me outro senhor, que distribuía, na saída da

gira nossa sociedade a serviço da lógica do mercado. Não direi que o mercado (ou

também folhetos. Este, nem sei

coisa semelhante) é o diabo, nem

se ainda vive, pois não tomo

o Diabo, pois não o é. Tampouco

metrô desde que os vagões

direi que o mercado é Deus. Mas,

tornaram-se ofensas; não es-

metaforicamente, o mercado

colho ser ofendido. O homem

é satânico, pois transforma as

da Uruguaiana alertava-nos dos

pessoas em mercadoria – acabo

efeitos nocivos do tabaco. O

de parafrasear Zygmunt Bauman.

homem da entrada do concerto

Por outro lado, também metafo-

alertava-nos da aliança entre o

ricamente, o mercado é divino,

rock e Satanás.

pois é a norma a que devemos

Fragmento do panfleto: “Quan-

obediência. E agora? Agora, não

do de sua rebelião no Céu, Lúci-

há conflito entre Deus e Satanás,

fer arrastou consigo a terça parte

(quase) ninguém oferece sua alma

dos anjos. Entretanto, insatisfei-

ao Diabo, todos se divertem e há

to, arre-banha [sic], agora, os

pouca diferença entre lá e cá.

homens, brandindo a mesma

O panfleto assim termina:

arma: a música degenerada,

“Procure uma igreja mais próxima

assassina”. Pelo visto, o rock é

de sua casa. Jesus quer te libertar

invenção direta de Satanás, e foi

antes que o diabo ceife [sic] a sua

pelo rock que as almas angélicas foram roubadas. Não julgo necessário dizer que se trata de um delírio fanático, apenas

Ilustração: Ana Maria Moura

estação Uruguaiana do metrô,

lamento que esse delírio não

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vida”. Há aí concreta ingenuidade: não nos é dito para procurar esta ou aquela igreja, desta ou daquela vertente, mas a mais próxima de casa. O autor do texto talvez

tenha fundo algum, pois seria muito mais bonito o mundo se o rock

creia mesmo no que está dizendo, pois não especifica que estabe-

fosse mesmo uma invenção diabólica e se o combate entre Deus e

lecimento comercial será privilegiado, ou se, pelo contrário, alguma

o Diabo representasse um contínuo fim dos tempos.

igreja de verdade será a visitada pelo roqueiro arrependido. Num

Explico-me, pelo simbólico: um dos dramas de nosso tempo é

rasgo de ingenuidade meu, poderia pensar na transgressora imagem

o vazio, e esse vazio atende (como o Demônio, aliás) por vários

de Satanás fumando, já que os homens dos panfletos se misturam

nomes. Um deles é diversão. Diversão equivale, hoje em dia, a

em minha mente. Mas se eu penso que cigarro enriquece alguém

falta de comprometimento. Diversão e falta de comprometimento

que não é Satanás nem nenhum de seus seguidores, bem, é preciso

conspiram, em grande medida, com o verdadeiro agente por trás

inventar novos tipos de transgressão.

f o r u mDEMOCRATICO

Maio/Junho 10


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