01 não traias meu coração

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Não traias meu coração Johanna Lindsey DISPONIBILIZAÇÃO E PRÉ-FORMATAÇÃO: SORYU TRADUÇÃO E PRÉ-REVISÃO: DANI-P REVISÃO INICIAL: Marcia O² REVISÃO FINAL: Iluska FORMATAÇÃO: BEA C. MENDES


Não traias meu coração

Johanna Lindsey

Série Medieval I

Série Medieval Livro 01 – Não traias meu coração (Distribuído) Livro 02 – A fúria do amor (Em revisão)

Resumo Inglaterra, 1192. Lady Reina de Champeney olhava com desprezo certo gigante louro que apareceu repentinamente a sua frente. Este gigante era de fato o cavaleiro Ranulf Fitz Hugh, o seu seqüestrador, que se comprometeu a entregá-la para o pior tipo de escravidão: O casamento com o Senhor Craven Rothwell. Mas Reina era uma lutadora uma guerreira e não ia se curvar a esse destino. Para salvar-se de tal situação, ela propôs a Ranulf uma troca: ser sua esposa – Em troca de sua proteção, o faria um grande senhor. E a cama nupcial fazia parte do negócio. Mas Reina acredita que ela não é o tipo de mulher que seu marido desejasse. Uma paixão violenta floresce em seus corações e esta não pode ser negada; apesar do grave perigo, um amor turbulento os espera.

COMPLEMENTO DO RESUMO: Este romance conta a história de um guerreiro mercenário duro, filho bastardo de um senhor importante, e uma jovem herdeira, a quem Ranulf tem que seqüestrar para entregá-la a um senhor de idade. Após varias discussões a jovem Reina convence Ranulf a se casarem, e ele esquece o seqüestro. Ranulf depois de várias decepções, não acredita nas mulheres, e desconfia de todas elas; com o passar do tempo, um amor verdadeiro vai nascendo no coração dos protagonistas.

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C apítulo 1 Castelo Claydon, Inglaterra, 1192

Bang! Uma e outra vez: Bang! O ruído do aríete se impunha sobre a confusão que reinava nas muralhas interiores, os gritos de agonia no recinto exterior, iam aumentando a já ensurdecedora enxaqueca que pulsava na cabeça de Reina de Champeney. Bang! Outra vez. O ataque ocorreu de surpresa. Reina foi despertada de seu sonho pelo grito de "às armas!”, encontrou o recinto exterior já tomado à mercê de uma ardilosa artimanha. O falso peregrino a quem deu amparo na noite anterior tinha aberto o portão da muralha exterior ao amanhecer, permitindo a entrada de um pequeno exército. Graças a Deus, não havia permitido que o canalha dormisse no pátio interior nem no torreão, do contrário ela não estaria dirigindo a defesa das ameias, por cima da guarida da guarda interior. Mas isso era tudo o que havia para agradecer. O exército atacante provavelmente não superava uma centena de homens, mas Clydon estava nesse instante muito abaixo da guarnição correspondente a um castelo de seu tamanho. Desde que seu pai teve que dizimar o exército para organizar aquele que levaria consigo as Cruzadas, só ficaram cinqüenta e cinco homens. E nem todos estavam presentes. Havia ali vinte homens de arma e dez arqueiros. Mas ao menos seis deles haviam morrido ou estavam presos nas muralhas exteriores, que os atacantes nem se quer se incomodavam em reforçar, posto que lá não houvesse arqueiros destros que pudessem danificar seus flancos. -Atirem mais combustível a esse fogo!- gritou Reina a um de seus servos, os quais haviam sido recrutados para colaborar com a defesa. - Necessito dessa água fervendo agora, não quando as portas tenham cedido! Inclinou-se por cima do parapeito e viu cair uma grossa rocha a um metro do Pégasus Lançamentos

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aríete em movimento, para rolar inofensivamente ao fosso seco que rodeava a muralha. Lançou um olhar assassino a Theodric, seu servo de grande confiança. O desajeitado rapaz, de dezoito anos, insistia em ajudar, ainda que Reina houvesse tratado de enviálo para baixo, uma vez ele trouxe sua armadura, feita a medida, para que a colocasse ali mesmo, nas ameias das muralhas. -Idiota! - espetou, esgotada. - Supõe-se que deve quebrar a grossa cobertura do aríete em vez de sacudir o pó a seus pés! -É que as pedras são pesadas - replicou Theodric, de mau humor, como se isso pudesse desculpar o desperdício de projéteis. -Se não tiver músculos para levantá-las, vá fazer o que pode Theo. Necessitamos mais água para ferver imediatamente. E também outro fogo. O tempo está acabando. Virou-se antes de ver se ele engolia seu sensível orgulho e fazia o que ela ordenava. E ao voltar-se quase derrubou o pequeno Aylmer, que estava junto a ela. O menino de sete anos a segurou por uma perna com os bracinhos esticados para não cair, mas Reina sentiu seu coração vir à garganta, pois a queda poderia despedaçá-lo da muralha: seu pé estropiado não tinha equilíbrio nem destreza suficiente para salválo. -O que faz aqui? -gritou Reina, furiosa pelo susto que tinha levado. Nos olhos pardos que a olhavam se formaram lágrimas, provocando outro tanto nos da jovem. Nunca antes havia gritado com ele; nunca havia tido senão palavras amáveis para ele e um ombro suave aonde o menino podia chorar suas penas. Órfão como era e não desejado pelos aldeãos por seu pé aleijado, ela era o mais parecido a uma mãe para ele. O pequeno era só um servo, mas Reina o havia ajudado a superar tantas enfermidades infantis que o considerava algo seu ao menos quando se tratava de cuidar e protegê-lo. -Quero ajudar, senhora - respondeu Aylmer. Reina se ajoelhou para limpar a umidade das bochechas, com a esperança de que um sorriso apagasse o rastro de sua severidade anterior. Pégasus Lançamentos

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- Me alegro de que tenha vindo Aylmer - mentiu, enquanto interpunha suas costas, protegida pela cota de malha, entre o menino e as flechas que pudessem superar a muralha. - Subi tão depressa que não tive tempo de indicar as minhas damas o que é necessário fazer dentro do torreão. Vá dizer lady Alicia que corte bandagens e se prepare para atender aos feridos. Fica com ela e com dama Hilary, para ajudá-las em tudo o que possa. - E adicionou, com um sorriso forçado- E diga às mais jovens que ainda não há motivo para alarmar-se. Já sabe quão tolas são. -Sim, senhora. São só moças. “E você é só um menino”, pensou ela com ternura, enquanto o via mancar para a escada; seu orgulho, ao menos, estava intacto. Se pudesse tirar Theodric com a mesma facilidade! Viu-o a ponto de ajudar outro homem a inclinar o grande caldeirão de água fervendo sobre a muralha. Tentou gritar que se afastasse, mas nesse momento uma flecha passou quase lhe roçando a bochecha. Um segundo depois se viu jogada no chão por Aubert Malfed. -Jesus, senhora, quase... -Se afaste caipira, imbecil - grunhiu ela contra o rosto cinzento de Aubert. -Mas, senhora... Ela interrompeu seus protestos: -Preferiria não estar aqui. Mas como Sir William caiu ontem à noite de cama, sem dúvida, envenenado por esse falso peregrino, tenho que dirigir a defesa. -Posso fazê-lo. -Não pode - disse ela, mais serena. Bem queria ela que fosse possível, mas o escudeiro de Sir William tinha só quinze anos. Era a ela a quem William havia levado até esse lugar, apenas na semana anterior, para uma lição de defesa rápida e completa; não Aubert-. É a mim que procuram, e serei eu que defenderei meu próprio destino. Se me capturam será por minha culpa, de ninguém mais. -Pelo menos se afaste da muralha - suplicou-o, enquanto a ajudava a levantar-se. -Sim, eu...Theo! Seu chiado fez com que ambos os moços dessem um coice. Theodric devolveu Pégasus Lançamentos

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um olhar de indignação para ela, depois de ter dado um salto atrás para evitar a água que estava a ponto de lhe queimar os pés. Ao vê-lo, Reina perdeu os estribos por completo: -Ao diabo com seu orgulho, Theo. Vá lá para baixo... Agora mesmo. Quero-te muito para vê-lo chamuscado ou ferido, só por que acha que pode fazer coisas de homens com esses palitos secos que tem por braços. - Como ele não obedeceu imediatamente, Reina gritou- Agora mesmo, Theo, ou Por Deus que te farei encadear dentro do castelo! E você também irá, Aubert. Aqui necessito trabalhadores, não bebês que se enredem entre os pés. De nada te servirá a espada, a menos que tragam escadas para subir pelas muralhas ou rompam as portas. Vão, vão agora, e sem uma palavra mais. Aubert ruborizou ante a repreensão, pois sabia que Reina tinha razão: suas habilidades seriam inúteis se não tivesse o inimigo ante si. Theo, em troca, sorriu ao passar junto a ela, a caminho da escada. Sem aquilo de “te quero muito...” teria se sentido dolorosamente ofendido, mas desse modo podia retirar-se com graça e dignidade. Embora tivesse um ano mais que Reina, teria desmaiado à vista da primeira gota de sangue, e os dois sabiam. Reina suspirou ao vê-los partir; logo voltou sua atenção à água fervente que, por fim, caía da muralha. Ouviram-se novos gritos lá abaixo, mas ao cabo de poucos segundos, outro forte estrondo. Malditos, malditos! Provavelmente haviam matado animais de Clydon para conseguir as peles molhadas com que se protegiam, formando uma “tartaruga” para atacar o portão. As peles cruas resistiam tanto ao fogo como à água, mas os respingos ferventes teriam alcançado algumas panturrilhas descobertas. A ponte sobre o fosso era uma parede arrancada da ferraria. Compreendeu que estavam usando uma das carretas do recinto para sustentar um grande tronco de árvore, com o qual golpeavam o portão. Uma árvore que também teriam cortado dos bosques de Clydon. - Senhora? Virou-se. Gilbert Kempe, seu mordomo, oferecia-lhe um pedaço de pão, queijo e Pégasus Lançamentos

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uma taça de vinho. Tinha a jaqueta ensopada, pois tinha ajudado a molhar com água o portão e os edifícios do recinto interior, mesmo que os atacantes não houvessem arrojado ainda nenhuma flecha incendiária. -Obrigado, Gilbert - disse, com um sorriso, enquanto pegava o alimento. Entretanto, tinha um nó no estômago para comer algo. Ele fez uma careta ao ouvir o ruído do aríete a tão curta distancia. -Sabe quem são? -perguntou. -Homens de Sir Falkes - respondeu ela. Gilbert, que não havia pensado nisso, alarmou-se. -Mas não usam suas cores - assinalou- Tampouco há cavalheiros entre eles. E não vieram preparados para nos sitiar. -Sim, acreditaram que poderiam entrar facilmente no torreão, posto que tinham um homem dentro que lhes abriria caminho. E estiveram a ponto de fazê-lo. Se alguém não tivesse visto o que fazia o falso peregrino, se o alarme não tivesse sido dado a tempo, não teríamos sido capazes de inserir os homens no recinto exterior para garantir este portão. Mas que outro homem, Gilbert, atrever-se-ia a me atacar? -A moça adicionou com voz baixa-: Que outro sabe que meu pai está morto? Gilbert meneou a cabeça. -A estas horas qualquer um pode saber. Passou-se quase um ano, ainda que nós tenhamos ficado sabendo da morte de lorde Roger faz quatro meses. Pensou por acaso que, dos que acompanham o rei Ricardo, só seu pai escrevia a seu lar? E o conde informou a seu castelão, aqui em Shefford, da perda de seu vassalo, tal como nos informou. Não há maneira de saber a quem o disse o castelão de Shefford nestes últimos meses, adicionando também que vocês ainda não estão casados. Por acaso não voltou a escrever faz apenas uma semana, perguntando pela data de suas bodas? Tudo isso era certo, embora Reina se chateasse em admiti-lo. Ainda lhe custava falar da morte de seu pai e do dilema que esse falecimento a expos. Desfeita pela dor tinha deixado passar quase um mês antes de escrever as cartas que assegurariam seu futuro. E esse mês tinha custado muito caro, como podia testemunhar Clydon, agora Pégasus Lançamentos

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atacado. Mas mesmo assim não tinha dúvidas de que esses homens tratavam de chegar a ela por ordens de Falkes de Rochefort, e lembrou a Gilbert o motivo. -Seja como for, esquece a visita que nos fez De Rochefort faz quinze dias. Não me pediu que casasse com ele? E como me neguei não se deslizou em meu quarto aquela noite, para me violar e obter sua vontade com aquele sujo estratagema? Se Theo não tivesse ouvido meus gritos... -Por favor, senhora, para que mencionar essa noite desafortunada? A verdade, isto poderia ser obra de Sir Falkes, desejoso também de vingança, por ter sido arrojado ao fosso de Clydon. Mas não é o único senhor disposto a arriscar muito para desposá-la. -Não sou uma herdeira tão valiosa, Gilbert - disse Reina, exasperada. Ele franziu o cenho. -Para tentar um conde, talvez não. Mas com tantos cavalheiros como os que devem tributo, sobra com o que tentar aos pequenos barões do reino, e também a outros não tão pequenos. Bastaria Clydon para tentá-los. Ela sabia, mas uma vez mais a chateava admiti-lo. Poderia ter se casado dois meses atrás se não tivesse demorado tanto em escrever essas cartas. Sabia o vulnerável de sua posição: seu senhor feudal, o conde de Shefford, estava nas cruzadas, e com ele, a metade dos vassalos de Clydon, dos quais três haviam morrido com seu pai. E aquele ataque havia ocorrido de maneira tão imediata que ela não tinha podido chamar por Simon Fitz Osbern, seu vassalo mais próximo, para que a socorresse. -Até poderia ser esses malditos proscritos que vivem em nossos bosques continuou Gilbert. Reina teve que conter uma gargalhada para não irritar Gilbert, mas isso aliviou seu medo por um instante. -Esses míseros ratos do bosque não se atreveriam a tanto. -Lá em baixo não há cavalheiros, senhora. Não há um só homem com cota de malha - lembrou-lhe ele. Pégasus Lançamentos

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-Sim. De Rochefort é muito mesquinho para equipar devidamente seus homens. Em todo caso, não importa quem está à nossa porta, e sim que impeçamos sua entrada. Ele não disse nada mais, nem em seus sonhos teria se atrevido a discutir com ela. Quando se afastou, Reina novamente sentiu medo. Não obstante, se Clydon fosse submetido a um sitio, ela poderia resistir durante meses. E Simon viria em seu auxílio antes que passasse tanto tempo. E lorde John de Lascelles devia apresentar-se em algum momento da semana seguinte, em resposta a suas cartas. Entretanto, esses caipiras de baixo deviam saber que ela tinha um escasso número de homens. De que outro modo teriam se atrevido a atacar imediatamente, depois de sua negativa de rendição? Estavam decididos a levá-la e obter a vitória antes que chegasse ajuda, pois não eram numerosos, ainda que superassem em muito os defensores do castelo. Reina fez tudo o possível, considerando que a batalha estava meio perdida. Sua maior defesa, a muralha exterior, com um fosso largo e profundo para que qualquer ponte levasse dias de construção, já havia sido franqueada. Não havia homens suficientes para a muralha tão larga, pois Clydon não era um castelo pequeno, mas o inimigo tinha perdido muitos atacantes na tentativa de tomá-la e até era possível que tivesse renunciado. A muralha interior não era tão longa; encerrava só a quarta parte de toda a área, com o torreão em um canto; era mais fácil de defender; contava com quatro fortes torres, incluindo uma segunda guarida para os guarda, frente ao recinto exterior, na qual o inimigo concentrava seus esforços. Teve tempo de preparar-se, depois de escutar as exigências desde a muralha e responder com uma negativa. Enquanto eles conseguiam o aríete, desarmavam suas construções para protegê-los das flechas e fazer uma nova ponte para cruzar a sarjeta seca, e sacrificavam seus animais para usá-los como escudo contra os defensores, ela havia posto em prática tudo o que Sir William havia lhe ensinado: deixou as armas preparadas, água e areia quentes para jogar da muralha e varas para abater as escadas; também molhou tudo que era inflamável. Ante a escassez de homens, todos os servos foram recrutados, com o qual dobrou seu número. Os criados não sabiam lutar, mas podiam jogar pedras, empurrar as escadas dos invasores e Pégasus Lançamentos

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carregar as molas de suspensão para quem soubesse usar. Mas de pouco serviriam uma vez que o aríete cumprisse com sua missão. Então a Reina só restaria retirar-se ao castelo, sua última defesa... Se ainda tivesse tempo de fazê-lo.

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C apítulo 2 Ele despertou com o miado que Lady Ella informava seu desgosto pelo atraso da refeição matinal. Ranulf Fitz Hugh estirou um longo braço sem abrir os olhos e recolheu o vulto de pêlo espaçado para deixá-lo cair no centro de seu amplo peito. -Suponho que é hora de levantar - murmurou à gata, sonolento. E obteve mais resposta do que esperava: -Sim, meu senhor! Ranulf deu um coice, lembrando que na véspera tinha levado à cama algo mais que sua gata mimada. A rameira, uma das seis que prestavam serviços entre seus homens, esfregou uma perna nua contra a dele. Ranulf não se interessou. A prostituta tinha sido útil a noite anterior, para saciar seu desejo, mas já era de amanhã e não gostava que o importunassem quando tinha muito que fazer. Levantando-se, deu-lhe uma forte palmada nas nádegas; depois a acariciou para que seu rechaço fosse menos grosseiro. -Vá, moça. Ela fez uma careta que não o impressionou. Era a mais bonita do grupo, mas as belas iam a ele com prontidão. Nem sequer lembrava seu nome, embora não fosse a primeira vez que lhe esquentava a cama. Chamava-se Mae. Enquanto ele lhe jogava uma moeda, compreendeu que havia sido esquecida. Dele não se podia dizer o mesmo. Resultava impossível não pensar nesse homem cem vezes ao dia, quanto menos, pois Mae havia cometido o engano de permitir que suas emoções interviessem em seu ofício, algo cuja desvantagem conhecia bem, ainda que já fosse muito tarde. Já estava apaixonada... Como todas as mulheres que haviam colocado os olhos nele, inclusive suas companheiras, que tinham rancor por ele só pedir por ela. Não a teriam invejado tanto se soubessem que ele enviava seus escudeiros em busca da "loira”, que representava Pégasus Lançamentos

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tão pouco para Ranulf que não lembrava sequer seu nome. Para ele não era senão uma rameira, um objeto, nada mais. Viu-o sair nu da tenda para fazer suas necessidades e suspirou. Como a maioria dos homens, não tinha melindres em andar nu, sempre que não tivesse damas presente. As prostitutas não contavam. Mas Mae pensou que às damas não incomodaria dar uma olhada em Ranulf Fitz Hugh. Poucos homens tinham sua estatura e suas formas magníficas. Má sorte para as senhoras, pois Sir Ranulf as evitava tanto quanto a uma latrina transbordante. Mae afogou uma exclamação ao advertir que estava atrasando-se em reflexões. Sir Ranulf havia despertado com seu habitual mau humor matutino, mas se ao retornar à tenda a encontrasse ainda ali, seu mau humor podia piorar bastante. Na realidade, essa manhã Ranulf estava de um humor muito agradável, para seu modo de ser; um verdadeiro milagre no que concernia a Lanzo Shepherd. Em vez de despertá-lo com um chute no traseiro, alvoroçou-lhe o cabelo vermelho e deixou cair em seu colo Lady Ella, para que a alimentasse. - Será que Mae o brindou com uma noite melhor que as de costume? -perguntou Lanzo a Kenric, o outro escudeiro, que já estava enrolando suas mantas. O mais velho meneou a cabeça, enquanto observava Ranulf, que se afastava para as erva daninhas. - Não, ela sempre o atende melhor que a nós - comentou Kenric, sem rancor. Como os outros homens, ambos os moços estavam habituados a que as mulheres os considerassem invisíveis quando Ranulf estava nas cercanias. E Lanzo, que só tinha quatorze anos, ainda não tinha muita experiência, de modo que não se importava. - Só está contente por terminar com este trabalho - continuou Kenric, voltando para Lanzo seus olhos cor turquesa. - O velho Brun disse que seria muito simples, mas já sabe que Ranulf detesta tratar com damas. - Sim. Searle disse que nem sequer aceitaria o trabalho. -Bom na realidade não o aceitou. Ao menos, ainda não aceitou o pagamento de lorde Rothwell, embora tenha permitido que os homens de Rothwell viessem conosco. Pégasus Lançamentos

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- Só serviram para nos atrasar. Mas não compreendo por que... -Outra vez mexericando como mulherzinhas? - Lanzo, ruborizado, levantou-se de um salto, mas Kenric se limitou a sorrir amplamente a Searle e Eric. Ambos haviam sido armados cavalheiros, por um acordo entre Ranulf e o último senhor para o qual trabalharam, em troca de seu pagamento. Ele mesmo poderia tê-los nomeados cavalheiros, mas queria que desfrutassem da cerimônia e de outras testemunhas, além de seus companheiros. Ambos tinham dezoito anos. Searle de Totnes era mais alto e loiro, de olhos cinza, alegres e luminosos. Eric Fitzstephen tinha o cabelo tão negro quanto Kenric e grande olhos avelã, que lhe davam sempre um aspecto sonolento. Acompanhavam Ranulf e Sir Walter de Breaute fazia muito mais tempo que Lanzo e Kenric; entretanto, os quatro tinham muito em comum: eram bastardos, nascidos na aldeia ou na cozinha do castelo e rechaçados por seus elevados pais. Portanto, não tinham esperança de melhorar sua sorte. Eram meio plebeus, meio nobres, e ambas as classes sociais os rechaçavam. Se Ranulf, ao reconhecer seu valor, não tivesse comprado sua liberdade, teriam seguido sendo servos atados à propriedade de seus próprios progenitores. Mas cada um reconhece aos de sua espécie: Ranulf também era bastardo. - Perguntávamo-nos por que Ranulf se negou a receber a primeira metade do pagamento por este trabalho - disse Lanzo, em resposta às brincadeiras de Searle. - Se o pensar bem, pequeno Lanzo, achará a resposta. - A única resposta é que pode deixar a tarefa inconclusa. - Exato - replicou Eric. - Mas por quê? Eric riu entre dentes. - Vá, essa resposta não é tão clara. O que pensa você, Searle? Por acaso Ranulf sentiu antipatia por Rothwell? Ou por ventura não acreditou no que disse o senhor sobre um compromisso matrimonial rompido? Searle se encolheu de ombros. - Trabalhou para outros homens que lhe eram antipáticos. E outros mentiram Pégasus Lançamentos

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sem que importasse grande coisa. O dinheiro sempre é dinheiro. - Por fim, só pode ser o caráter deste trabalho, que envolve uma dama. - Talvez seja por isso e pelo resto, tudo em combinação. Mas se já se decidiu... - Chegamos até aqui - assinalou Lanzo - Portanto, deve estar decidido. E não acredito que rechace quinhentos marcos, não é? Ninguém respondeu. Lanzo se virou para seguir a direção de seus olhares: Ranulf se aproximava. Só então o moço notou que ainda tinha Lady Ella em seus braços, pois nesse momento soltou um miado para despertar aos mortos, ou para informar Ranulf que estava morta de fome. Maldita tola! Às vezes o moço sentia vontade de retorcer aquele cangote fraco, mas Ranulf esfolaria vivo quem se atrevesse a arrancar um de seus curtos pêlos pardos. Que animal feio! Como era possível que um homem amasse um animal tão feio? - Ainda não alimentaste minha senhora? - Eh... Não, senhor - admitiu Lanzo. - Não te despertei de todo? - Já ia, senhor, já ia - chiou o moço, estirando uma mão para cobrir seu traseiro ameaçado até ver-se fora do alcance de Ranulf. O cavalheiro riu entre dentes enquanto seu escudeiro se afastava depressa. Logo voltou a sua tenda. Os olhos de Searle se encontraram com os do Eric, ambos sorriram. Searle expressou seus pensamentos ao ouvir aquela risada. - Já está decidido. Levará a rapariga aos braços de seu novo esposo. Lanzo tinha razão. Quinhentos marcos é muito para rechaçá-los, sobre tudo quando representam a diferença entre possuir terras e não as possuir. E ele não pensa em mais nada a não ser em terras. - Possivelmente nunca esteve indeciso. Talvez não tenha se comprometido de todo só para pôr nervoso Rothwell. - Sim, é possível. Esse velho lorde pareceu muito antipático. Deveríamos ter perguntado a Sir Walter... Pégasus Lançamentos

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- O que querem perguntar a Sir Walter? - inquiriu o renomado em voz baixa, a costas deles. Os três jovens se voltaram para enfrentar o irmão de armas de Ranulf, mas o abafado lhes ocorreu ao notar que seus olhos pardos refulgiam. Não existiam dois homens tão diferentes quanto Ranulf Fitz Hugh e Walter de Breaute, tanto em temperamento quanto em aspecto. Entretanto, queriam-se como verdadeiros irmãos desde o dia em que se conheceram. Walter, com seu impressionante metro e oitenta de estatura, era mais alto que a grande maioria dos homens. Ranulf o superava ainda em quinze centímetros: um gigante entre seus pares. Walter era à noite: pele morena e cabelo castanho escuro; Ranulf, o sol: pele dourada e cabelos de ouro. Ranulf bradava mesmo que estivesse de bom humor. Walter tinha uma voz tão amena que às vezes era preciso esforçar-se para ouvi-lo. Walter festejava com risadas a pior piada. Ranulf muito raramente ria. Walter era de ânimo despreocupado. Por ser o terceiro filho varão de um nobre de pouca riqueza, carecia de terras tanto como Ranulf, a diferença estava em que não se importava. Sentia-se igualmente feliz vinculado com um grande senhor como com um pequeno proprietário... Ou com nenhum. Isso lhe interessava pouco. Não tinha ambições, não experimentava a necessidade de criar um nome, de adquirir riquezas nem poder. Como seus irmãos mais velhos o amavam, sempre teria um lar que o acolhesse em caso de necessidade. Ranulf nem sequer tinha esse respaldo. Embora seu pai fosse um grande senhor, mesmo que o tivesse tirado da aldeia onde seu padrasto o havia criado durante os nove primeiros anos de sua vida, embora tivesse achado um lar onde o adestrou para cavalheiro, Ranulf odiava a esse homem. Jamais lhe pediria nada, ainda que sua vida dependesse disso. Ranulf não tinha lar, mas sua ambição era corrigir essa carência. Era sua única meta, o que o consumia. Tão somente por isso trabalhava, vendendo seus serviços a qualquer um, sem perguntar pela tarefa a realizar, as dificuldades ou sua própria opinião a respeito. Sua ambição não permitia escrúpulos. Havia arrancado castelos de Pégasus Lançamentos

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outros senhores, liberado guerras por eles. Nunca fracassava no que empreendia. Com isso tinha ganhado uma verdadeira reputação; por isso já não se podia contratá-lo por pouco dinheiro. E por isso lorde Rothwell havia aceitado pagar a exorbitante soma de quinhentos marcos em troca de que a mulher a quem desejava por esposa lhe fosse entregue. - E bem? - Walter sorriu ao ver que ninguém respondia a sua pergunta - Por acaso Lady Ella lhes comeu a língua? Foi Kenric quem respondeu. A curiosidade de um moço de quinze anos não permite muita sutileza. - Sir Ranulf fala com você. Conhece seus pensamentos e seus sentimentos melhor que ninguém. Se não aceitou o dinheiro de lorde Rothwell para nos comprometer nesta missão, foi só porque o senhor lhe inspira uma profunda aversão? - Não disse a lorde Rothwell que não o faria. -Tampouco lhe disse que o faria - observou Eric. Isso fez Walter rir. - Sim. Esse “logo veremos” me pareceu muito eloqüente, provindo de um homem tão azedo quanto Ranulf. - Pensam que por isso Rothwell insistiu em que viéssemos com cinqüenta de seus homens? - Certamente. As pessoas como ele não são propensas à confiança, sobre tudo quando se trata de algo importante. Esse ancião não confia nem em seus próprios vassalos, do contrário não teria tido necessidade de nos contratar, não é? Estaria aqui pessoalmente, se não fosse pela gota que o mantêm prostrado. Sem dúvida pensa que seus homens, ao formar um grupo mais numeroso que o nosso, serão incentivo suficiente para que a missão se cumpra. - Nesse caso não conhece Ranulf - exclamou Searle, com uma gargalhada. - Não, não o conhece - concordou Walter, sorrindo também. - Mas que rechaça Ranulf nesse homem? - quis saber Eric - Parece bastante inofensivo, ainda que um pouco ladino. Pégasus Lançamentos

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- Inofensivo? - soprou Walter - Deveria conversar com seus homens para saber que tipo de pessoa é. - Você o fez? - Não, mas vi o mesmo que Ranulf: que é como o lorde de Montfort, com quem ambos cumprimos nossa aprendizagem. Montfort nos pegou como seus escudeiros em vez de nos ceder a um de seus cavalheiros. Se vocês pensarem que Ranulf foi um amo difícil, não sabem o que é o verdadeiro inferno. Pura crueldade: isso é o que Ranulf percebeu e rechaçou em Rothwell. - Mas o que há no trabalho? - perguntou Kenric. - Absolutamente cai fora do normal, mesmo que nunca nos tenha contratado antes para levar a uma noiva relutante ante seu prometido. Sentia Sir Ranulf verdadeira relutância a fazer isso? Ou não estava disposto a assegurar a lorde Rothwell que o cumpriríamos? A risada acendeu faíscas nos olhos pardos de Walter. - Se lhes dissesse isso, meninos, o que ficaria para mexericar? Searle e Eric avermelharam ao ouvir tratá-los de meninos, considerando que Walter só tinha vinte e quatro anos. Mas o grunhido de Kenric distraiu sua atenção: Ranulf saía de sua tenda com a armadura completa. - Que Deus nos proteja. Lanzo trabalhou muito rápido esta amanhã - disse Walter - Vergonha para ti, Kenric: deixa-me aqui, em roupa de baixo, tagarelando como as mulheres. Se mova, chato, se não quiser que vá sem nós! Havia a possibilidade de que assim fosse. E assim teria sido, a não ser porque Lady Ella tinha desdenhado o oferecimento de Lanzo de ir por sua própria comida. Como Ranulf não estava certo de que a gata soubesse achar o lugar ao qual se dirigiam que estava a menos de uma hora de viagem, todos tiveram que esperar que o felino retornasse com seu rato e ficasse, na carreta das provisões, a desfrutar de seu café da manhã.

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C apítulo 3 Reina tentou segurar o ferido, mas como pesava muito para ela, ambos caíram ao chão. Ele havia arrancado a flecha do ombro antes que ela pudesse impedi-lo agora havia ali uma ferida aberta, e Reina não tinha nada para deter a hemorragia. Nem sequer sabia quem era, pois o homem estava coberto de cinzas e fumaça, por ter estado cuidando do fogo. Não parecia muito resistente à dor, pois em seguida desmaiou. E ela não podia deixar que sangrasse. - Aubert preciso de um pedaço de pano, qualquer coisa... Aubert não prestava atenção ou não podia ouvi-la por conta do estrondo do aríete. A ponte levadiça, fechada, havia sido destroçada, assim como a primeira das duas grades que fechavam a entrada por dentro. Os homens que manipulavam o aríete já estavam dentro da guarida; já não era possível alcançá-los com água ou areia quente, mas tinha que manter as fogueiras acesas, para voltar a jogar água quando o inimigo avançasse. Era hora de retroceder para o castelo. Os que haviam cuidado do fogo estavam exaustos, derrubados contra as muralhas. Os soldados ainda disparavam suas flechas quando algum objetivo se separava do lugar coberto. O resto dos assaltantes esperava com paciência que o aríete fizesse o seu trabalho, e de vez em quando disparavam alguma flecha por cima das ameias. - Aubert! Estava junto a ela, olhando para o pátio, mas ainda não a ouvia. Quando aquilo terminasse, fosse capturada ou não, ajustaria contas com Aubert Malfed por lhe provocado quase tanta exasperação quanto os atacantes. Tocou sua perna para lhe chamar a atenção. - Me dê sua faca... Ou sua espada. Ela não trazia arma alguma, pois não tinha sentido adicioná-las à armadura se Pégasus Lançamentos

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não sabia utilizá-las; além disso, sua cota de malha já pesava bastante sem acrescentar o peso de uma espada (no total só pesava sete quilos). A idéia de William não havia sido que ela combatesse, mas sim protegê-la e disfarçá-la para que pudesse negociar das muralhas em caso necessário. Havia tido essa idéia apenas dois dias antes, preocupado porque ela tinha despachado mensageiros com recados aos outros dois cavalheiros do castelo, restando somente ele para se ocupar da defesa. E mesmo que Reina tivesse aceitado a sugestão a contra gosto, só para agradá-lo, o fez pensando que não haveria oportunidade de usar a armadura. Entretanto, aquele disfarce, por muito que odiasse, estava dando muito bom resultado desde a manhã. Havia negociado com os atacantes como se fosse um cavalheiro que falasse em nome de sua senhora. Posto que sua cabeça estivesse coberta por uma touca e um elmo, ninguém adivinhava que ela fosse a mesma mulher cuja rendição exigiam. Os olhos verdes de Aubert aumentaram ao vê-la meio sepultada pelo homem caído. - Minha senhora! - Uma faca, estúpido! - foi tudo que ela pôde gritar. Ele lhe entregou a adaga que levava no cinturão, sem pensar, mas Reina tinha as mãos tão encharcadas de sangue, por ter ficado apertando a ferida, que a deixou cair. Aubert ordenou seus dispersos pensamentos, o suficiente para recolher a faca e cortar a jaqueta do homem. Logo lhe entregou um farrapo de pano, que ela meteu pelo buraco aberto na peça, por cima da ferida. O moço teve em seguida o bom tino de alertar outro servo, para que ajudasse levar para baixo o ferido, mas seu bom critério não chegou ao ponto de antes ajudá-la a sair de baixo de seu corpo. Chateada, ela não podia libertar-se sem ajuda. E Aubert voltou a distrair-se antes de ter conseguido algo: Reina o ouviu afogar uma exclamação. Seguiu um gemido e logo outro golpe do maldito aríete. - O que? - Jesus! Bom Jesus! Pégasus Lançamentos

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- O que?

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Aubert fez o sinal da cruz antes de gaguejar: - Hã... Receberam reforços, senhora. Pela porta exterior estão entrando homens a cavalo. Jesus, mais de trinta cavaleiros, e mais ainda a pé. E... E cavalheiros. Há cavalheiros que os guiam. Reina sentiu seu sangue gelar. E agora o que fazer? Sir William estava louco se pensava que ela podia dirigir aquela situação, quando o medo quase a impedia de pensar. Se não tivessem perdido as muralhas exteriores, se o inimigo tivesse feito o habitual, instalando-se para um longo cerco, não teria tido problemas. Mas De Rochefort, o mal nascido, esse porco libidinoso, sabia bem que ela não tinha homens suficientes. Certamente ali estava acreditando que a batalha havia terminado. E não duraria muito tempo mais, se eram cavalheiros os que lideravam o ataque. Umas quantas escadas, que podiam achar no celeiro sem muito procurar, e as muralhas seriam tomadas em poucos minutos. E ali estava ela, cravada ao chão, com os braços tão cansados de sustentar as mangas da cota de malha que nem sequer podia tirar aquele peso das costas. Nem sequer podia ordenar a retirada. - Aubert! - tentou outra vez - Me ajude a levantar! Mas ele seguia hipnotizado pela cena do pátio. Seguia narrando o que ela não desejava ouvir. - Seguem chegando; setenta... Oitenta... Duplicaram seu número e há mais ainda... Esperem! Jesus! - O que? - E como ele não respondesse imediatamente - Maldito seja, Aubert! O que acontece? Ele baixou o olhar e lhe dedicou um amplo sorriso. - Os reforços são para nós, minha senhora! Estamos salvos! Então ela mesma o ouviu: entrechocar de espadas, gritos e felicitações de sua própria gente, disseminada pela muralha. Aubert continuou, rindo: - Os assaltantes não os ouviram chegar e agora é muito tarde. Estão fugindo. Pégasus Lançamentos

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Vejam como correm os muito covardes!

- Como quer que olhe idiota? - protestou ela, embora agora sorrisse. O rosto do jovem se pôs quase tão alaranjado quanto seu cabelo ao vê-la imobilizada. Imediatamente afastou o homem inconsciente e a ajudou a levantar-se. Quando Reina viu a batalha que estava acontecendo embaixo, os cavalheiros abatendo inimigos com cada golpe de espada e os novos soldados perseguindo seus atacantes através do recinto, também se pôs a rir. Não houve resistência. Os recém chegados eliminaram o inimigo com tanta rapidez e tão pouco esforço que tudo terminou muito cedo. Ela, já aliviada, até perdoou Aubert pela “ajuda” que havia prestado aquela manhã. - Os faça entrar assim que a animação tenha terminado Aubert. Jesus devo me trocar. Não posso recebê-los neste estado! Fez uma careta ao olhar seu traje masculino; seu rosto avermelhou ante a idéia de que alguém alheio ao seu castelo a visse assim. - Recebe-os como merecem Aubert! - adicionou, encaminhando-se para a escada. - Mas quem são minha senhora? - O que importa, se acabam de salvar Clydon?

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C apítulo 4 Ranulf retirou o elmo depois de entrar no Grande Salão e comprovar que ali só havia mulheres e meninos. Não obstante, sentia-se intranqüilo; o lugar era muito grande e quase não havia homens. Intuía que em algum lugar havia um exército de soldados escondidos, tratando de decidir se ele era amigo ou inimigo antes de apresentar-se. Pelo que tinha visto, ali havia mais servos que soldados, o que explicava a patética defesa que havia presenciado a sua chegada. O castelo havia estado a ponto de cair, embora os atacantes fossem ridiculamente poucos e nem sequer houvesse um cavalheiro entre eles. Mas mesmo assim, levaram semanas só para franquear as muralhas exteriores, empregando todas as maquinarias e artefatos para o cerco. Quem quer estivesse a cargo da defesa devia ser um imbecil ou, astutamente, havia estado perdendo a batalha de propósito. - Se... Se esperarem aqui, meu senhor... A senhora... Lady Reina, não demorará para lhes dar as boas-vindas. Ranulf jogou uma olhada ao jovem; parecia ter a idade de Kenric. O moço se apresentou como Aubert Malfed, escudeiro de Sir William Folville, fosse quem fosse. Malfed tinha saído ao seu encontro no pátio interior, para conduzi-lo com seus homens diretamente ao castelo, sem formular uma só pergunta. Ranulf estava habituado a intimidar os homens, mas aquilo era ridículo; ardia por dar ao moço seu castigo pela tolice de lhes entregar o castelo. Mas isso ia contra seus próprios interesses. Sua intenção tinha sido perguntar por Roger de Champeney, lorde de Clydon, como se ignorasse que este estava morto. Podia ter negócios pendentes com o cavalheiro, e isso teria impedido que a senhora suspeitasse o verdadeiro motivo de sua presença. Mas para isso devia chegar só, com poucos homens como escolta, tal como Pégasus Lançamentos

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havia planejado.

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Entretanto, ao encontrar Clydon em meio a um ataque, tudo mudou. Viu-se obrigado a trazer seus trinta soldados e os cinqüenta de Rothwell. Agora, se não quisesse assustar a dama ao extremo de induzi-la a esconder-se, necessitaria uma boa desculpa para justificar sua presença. No momento haviam dado uma calorosa boas-vindas, posto que houvessem despachado os atacantes. Mas não podia dizer que, ao passar por ali, havia ido em defesa de Clydon por puro espírito de aventura. Os cavalheiros não viajavam com tantos homens sem uma finalidade militar. Tampouco participavam de qualquer batalha com a que tropeçassem. O escudeiro estava muito nervoso, divagava a respeito de certo vizinho, chamado De Rochefort, a quem supunha vinculado com alguns proscritos que viviam nos bosques de Clydon e que, provavelmente, havia sido o atacante. Ao que parecia tentava ganhar tempo: falava sem pausa, como para que ninguém pudesse fazer perguntas. A senhora do castelo deveria estar ali, no salão, para recebê-los. Ranulf se perguntou por que não era assim. E se nesse momento a estavam levando longe de seu alcance? Por fim, Ranulf levantou uma mão para sossegar o escudeiro. - Onde está sua senhora, cavalheiro? Eu gostaria de me assegurar de que está sã e salva. - Eh... Está sã e salva. A última vez que a vi... Eh... Não sei com certeza onde se encontra agora. Esta resposta não aliviou as preocupações de Ranulf, o carrancudo gesto aterrorizou o pobre Aubert, que se apressou a acrescentar: - Irei procurá-la. E praticamente fugiu do salão a toda. - O que acha Ranulf? - perguntou Walter, pensativo, enquanto o escudeiro desaparecia por uma escada, em uma torre do canto - Parece-te que as habitações da dama podem estar aí acima? - Este castelo é tão grande que não se pode saber onde está cada coisa. Não Pégasus Lançamentos

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perca essa escada de vista.

Ranulf passeou o olhar pelo salão, inspecionando brevemente as mulheres. Detectou uma especialmente bonita e a deixou para uma posterior análise. Logo se voltou para seus acompanhantes. - Eric, vê a... Eric! -Teve que golpear o jovem nas costelas para que afastasse os olhos da loira deslumbrante que Ranulf acabava de descobrir - Não é hora de devorar as moças com os olhos - grunhiu o cavalheiro, com voz grave. - Sim, mas pelos cravos de Cristo! Viu alguma vez algo semelhante...? - Eric se interrompeu com um grunhido ante a cotovelada que recebeu de Searle. Por fim viu o cenho de Ranulf, cada vez mais escuro - E... Sim, senhor? - Vá postar um homem em cada porta. Não quero que nenhuma mulher abandone o castelo. Nenhuma absolutamente. - Enquanto Eric partia, Ranulf se voltou para Kenric - Você pergunta aos servos onde está a senhora. - Mas como o moço se encaminhou diretamente à bela loira, Ranulf adicionou em voz alta - Me dê uma desculpa para que lhe corte e verá se não o faço. O trabalho está antes que os prazeres. Kenric empalideceu, levando uma mão para a virilha; logo assentiu e pôs-se a andar outra vez. Walter e Searle puseram-se a rir ao ver que descrevia um grande rodeio em volta da loira. - Vem, Ranulf. Se for preciso esperar, ao menos sentamos - sugeriu Walter. Empurrando um dos tamboretes, para frente da chaminé, para Ranulf, antes de ocupar outro - Lanzo trate de localizar o mordomo ou a qualquer que possa nos trazer um pouco de cerveja. Viria-me bem um gole depois do exercício, mas todo mundo está intimidado por nosso chefe, como de costume, e ninguém é capaz de aproximar-se com lanches. - Walter sorriu ante o azedo olhar que Ranulf lhe dirigiu - Sabe que é certo irmão. Certo que as mulheres se jogam em cima quando comprovam que não é tão perigoso como parece, mas só depois de comprová-lo. - É uma loucura provocá-lo agora, Walter - sussurrou Searle. Entretanto, Ranulf se sentou. Pégasus Lançamentos

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- Não se preocupe - replicou Walter, em voz igualmente baixa - Se não o fizer, perderá a paciência esperando a dama. E nesse caso, Deus a ajude! - A julgar por sua expressão, já perdeu a paciência. - Não, ainda não - sorriu Walter -. Mas será melhor que ela apareça quanto antes.

Por desgraça, Kenric voltou dizendo que ninguém havia visto a Reina de Champeney desde o amanhecer. Então Ranulf explodiu. - Pelos pregos de Cristo! Fugiu antes que se iniciasse o ataque. Escapou! - Não, Ranulf, se acalme. O mais provável é que se escondeu prudentemente. Sem dúvida ninguém lhe disse ainda que possa sair sem perigo. - Sim - adicionou Searle - suas damas têm que saber onde está. Deveríamos ter perguntado a elas. Procurarei uma e... Pelo amor de Deus! Aqui está a senhora, Ranulf. Ranulf se virou. Aubert Malfed vinha acompanhado por uma jovenzinha que era toda uma dama, sem lugar a dúvidas: vestida de ricos tecidos azuis; seu cabelo acobreado estava pulcramente oculto sob um véu branco. Era bem mais jovem do que ele esperava; não parecia ter mais de doze ou treze anos. Mas como quase todas as herdeiras se casavam a essa idade, só experimentou um leve desagrado ante a perspectiva de capturá-la em nome de Rothwell. Não apenas porque era muito jovem, mas também, encantadora. Ocorria com freqüência que os velhos Lordes desposassem meninas, e ele já havia discutido com sua consciência pelo fato de levar qualquer esposa às mãos de alguém como Rothwell. Mas um homem em sua situação não podia permitir o luxo de julgar o correto e o incorreto. Se ele não a levasse ao ancião, algum outro o faria. Assim por que renunciar a seus quinhentos marcos? Só porque Rothwell lhe causava repulsão? Toda sua relutância em se encarregar do assunto se devia só a que não gostava de ter que tratar com uma “dama”. A experiência tinha mostrado que essas jovens não eram o que pareciam. Também aquela, em que pese seu aspecto de doce inocência e nervosismo, podia Pégasus Lançamentos

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ser tão cruel e viciosa quanto todas as que ele tinha conhecido. Ao lembrar-se, Ranulf apertou os dentes. Por pura perversidade, não se pôs de pé, como exigia o cavalheirismo, sobre tudo tratando de uma dama cuja classe estava tão acima da sua. As damas sempre o tratavam de bruto e grosseiro, só porque ele não dissimulava o desprezo que lhe inspiravam. Mas como com aquela sim, devia tratar, impôs a suas feições um relaxamento que dissimulava seus verdadeiros sentimentos. Na verdade, foi ela quem fez uma reverência. Bem, por que não? Ranulf estava habituado a ser chamado “lorde” pelos servos e quem quer ignorasse que era só um cavalheiro sem terras, indigno desse título. - Dou as boas-vindas a Clydon - disse ela, com voz suave e um pouco vacilante pelo nervosismo - Perdoem-nos por não saudá-los antes, mas todas pensávamos que nossa senhora tinha saído ao encontro em... - Sua senhora? Não é Reina de Champeney? - Oh, não, milorde. Sou Elaine Fitz Osbern de Forthwick. Tenho a honra de ser educada aqui, em Clydon, pela senhora de meu pai. - Bom Ranulf... - Começou Walter, ao ver que a expressão de seu amigo se obscurecia perigosamente. Mas já era muito tarde. - Pelo sagrado sangue de Cristo! - uivou Ranulf - Quero saber por que a senhora não me recebe, e quero sabê-lo agora mesmo. Você, Malfed, foi enviado... - Por Deus, milorde! -gritou Aubert, retrocedendo temerosamente igual a Elaine Fitz Osbern - Minha senhora não estava onde eu acreditei encontrá-la, mas juro que seu desejo é que se sintam a vontade! - Cinco minutos, senhor, ou Por Deus... Não foi necessário que concluísse, Aubert se virou e pôs-se a correr outra vez, agora para o pátio. Ranulf fixou então os olhos em Lady Elaine, que começou a gaguejar. - Posso... Posso lhes oferecer...? Com uma inaudível exclamação, abandonou o esforço e fugiu também. Pégasus Lançamentos

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- Bom, aí vai nosso lanche, muitíssimo obrigado - grunhiu Walter - Com esse trovão assustaste a todos. Suponho que poderia procurar a cozinha por minha própria conta, mas pelos cravos de Cristo! Em um lugar como este pode demorar dias inteiros até achá-la. A resposta de Ranulf foi breve e concisa: - Searle: se este homem disser uma palavra mais, lhe cubra a boca.

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C apítulo 5 Aubert esteve a ponto de rolar Reina nas escadas pelas quais ela subia com Theodric. Se Theo não a tivesse contido, a moça teria caído. Entretanto, o escudeiro estava tão agitado que nem sequer se desculpou. - Veio, senhora, graças a Deus! Ao que parece, o senhor se sente insultado pelo fato de que não o recebeste. Acaba de dar um susto de morte em Lady Elaine e... - E também a ti, pelo que vejo - espetou Reina impaciente - Por Deus, Aubert, disse que se encarregasse de atendê-lo. Ofereça-lhe bebidas, ocupou de que ficasse cômodo? - Eu... Não acreditei que demoraria tanto e... E é um monstro, senhora. Nunca vi ninguém tão... - Néscio! Quer dizer que em todo este tempo ninguém os atendeu? - Esperava que você mesma descesse. - Eu não estava lá em cima! Havia feridos que necessitavam atenção imediata e... Oh, não importa! Deixa-me farta Aubert, se desaparecer durante uma semana não sentirei sua falta, juro. Quer fazer algo útil? Ajude-me a descer por estas escadas. Estou mortalmente cansada e, graças a ti, nem sequer poderei passar às escondidas junto a eles para subir a minha alcova, como pensava. Não fique aí como um idiota, Theo. Ajude-me! - Admitirá, minha senhora, que não é freqüente vê-la tão zangada. - Theo, rindo entre dentes, pegou-a de um braço, enquanto Aubert a agarrava do outro, para descer pelos últimos degraus - Resulta muito novo e esclarecedor. Bom, pode se arrumar sozinha agora? - perguntou, do alto da escada. - Sim, e você se encontrará relegado às cozinhas, se tiver que seguir suportando suas amostras de humor. Ultrapassa, como sempre. E agora não tenho ânimos para te tolerar. Onde demônios se foram todos? Pégasus Lançamentos

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Reina passeou o olhar pelo salão. Estava deserto, descontando a alguns poucos homens sentados junto a lareira, ao outro lado. - Disse que era temível - insistiu Aubert, indignado. - O que disse foi “monstruoso”. Por acaso este senhor atemorizou a todos até o extremo de fazer que se escondessem? - Não sei por que estava muito ocupado fugindo, senhora, mas fizeram o prudente ao esconder-se. Ele não é normal, Lady Reina. E ande depressa. - Tenho motivos para temer, Aubert? -perguntou ela com seriedade. - Não, ele só quer se assegurar de que está a salvo. Não acreditou quando lhe disse que estava bem. Talvez imagine coisas porque vós não aparecestes ainda. Quanto mais espere, mais desconfiará. - Bom, se adiante e lhe diga que me achaste. Eu não posso me apressar, Aubert, nem para salvar a alma. Está armadura pesa tanto como um cavalo. - Por favor, minha senhora. Esse homem torcerá meu pescoço antes que consiga pronunciar uma palavra se não estiver ao meu lado. Vamos, vamos. Ela obedeceu com um suspiro. Os jovens a flanqueavam, mas Reina notou, desgostada, que o faziam um par de metros mais atrás. Que covardes! Teria se sentido mais segura rodeada de suas damas, ainda que em sua maioria fossem meninas. Com os ombros encurvados e a cabeça dolorida pelo esgotamento, sentindo o corpo como se tivesse recebido uma surra (e assim havia sido quando o ferido caiu sobre ela), Reina se apresentou a seu “salvador”. Quis fazer uma reverência de cortesia (sem estar segura de podia levantar-se depois), mas de repente se encontrou levantada no ar. - Estou farto de desculpa, demoras e evasivas. Se tiver vindo me dizer que não sabe onde está a senhora do castelo, se dê por morto. Reina ficou boquiaberta e sem poder pronunciar palavra. Tinha a voz presa e era improvável que surgisse tão cedo. Ele a mantinha no alto, com o punho obstinado em sua cota de malha, justo por cima dos seios. Um punho, um só punho a sustentava no ar com sua maldita armadura, a mais de trinta centímetros do chão, com o qual seu rosto Pégasus Lançamentos

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ficava à altura da do cavalheiro. Tudo isso comprovou com uma olhada; também comprovou que ele não tinha subido sobre nada que justificasse sua estatura. Monstruoso havia dito Aubert? Por Deus, aquele homem era um gigante! Tão largo como alto (bom isso sim era um exagero); a amplitude de seus ombros e seu peito era notável e mais fácil de apreciar desde sua posição atual, que lhe permitia olhá-lo de cima. Não se podia dizer que fosse um junco, mas sim um urso. E de urso era seu rugido. Não foi ela a única que ficou estupefata. Também Theodric e Aubert se viram emudecidos ao ver que o gigante se atrevia a tratá-la assim, a lhe falar daquele modo. E não só isso: além disso, a sacudia! Ao não obter resposta com a prontidão necessária, voltou a sacudi-la. Aubert foi o primeiro em recuperar os sentidos, só para perdê-los outra vez ao pensar que ele podia fazer algo. Em vez de informar ao gigante de seu engano, o tolo moço escolheu esse momento para mostrar, por fim, coragem. Saltou para as costas do gigante, que o sacudiu como a um esquilo chato, mas foi o bastante para sacudir Reina com mais força ainda. Nesse momento Reina ouviu uma voz extremamente razoável, que surgia com secura: - Talvez se o deixar no chão, Ranulf, esse mocinho recuperará o uso da língua. Mas foi Theodric quem o recuperou, o suficiente para dizer: - É Lady Reina a quem está sacudindo, senhor. Oh, maldito moço! Como podia ser tão idiota? O gigante, em sua surpresa, a deixou cair. Limitou-se a soltá-la e Reina se chocou contra o chão, a seus pés. Todos permaneciam de pé a seu redor: três muito altos cavalheiros, muito estupefatos para mover-se e muito menos para falar, que a olhavam com expressão absurda. Se Reina não estivesse tão dolorida, teria se posto a rir. Na verdade, era o final perfeito para um dia nefasto desde o começo. Mas chegou a apreciar o lado humorístico. Mais tarde se sentiria mortificada. - Bom este é um modo como qualquer outro de averiguar se é preciso mudar os Pégasus Lançamentos

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juncos do piso.

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Nada teria embaraçado tanto o gigante. Seu rosto estava tão vermelho que parecia a ponto de explodir em chamas. Reina se sentiu um pouco melhor, até que tratou de levantar-se e só conseguiu se colocar a quatro patas. Por Deus, tinha que tirar aquela armadura imediatamente. Nunca tinha se sentido tão esgotada e sem graça. Assim que a tirasse a jogaria no fogo. Duas mãos se deslizaram sob seus braços e a deixaram outra vez suspensa. Um segundo depois estava de pé. Ante seus olhos tinha agora o peito do gigante. Reina se recusou a olhar mais à frente até que pôde retroceder um par de metros, a fim de não ver-se obrigada a estirar o pescoço. E então experimentou sua própria surpresa. Até então aquele rosto havia sido um borrão dourado, mas agora apreciava com claridade suas feições. Sobrancelhas douradas, grossas e retas, mais escuras que o cabelo claro, que chegava aos imensos ombros. Nariz bem formado entre largas maçãs do rosto, cuja pele mostrava o beijo do sol. Lábios firmes sobre uma mandíbula quadrada, obscurecida por uma incipiente barba bronze. Aquele rosto, duro em sua masculinidade, era também incrivelmente bonito. E tinha os olhos violeta, penetrantes; nesse momento se entreabriam ante o olhar fixo de Reina. Violeta! Ranulf sentiu que sua irritação renascia e se centrava unicamente na dama, se por acaso fosse uma dama. A havia tomado por homem; miúdo, sim, mas homem ao fim. Quem não se equivocaria, vendo aquela camisa de malha sem formas, que chegavam aos joelhos, meias de malha nas pernas e até uma touca de malha aderida à cabeça, deixando à vista só um pequeno rosto oval. A touca lhe cobria até as sobrancelhas e o queixo. Além disso, tinha sangue seco nas mãos e nas mangas. Ainda que não levasse espada nem arma alguma, não se parecia em nada a uma mulher, salvo na voz, suave e melodiosa. Mas ele a tinha ouvido muito tarde para evitar o ridículo. Nem sequer tinha o alívio de vê-la reagir ante ele como a maioria das mulheres. Se a surpreendeu, a surpresa não durou mais de um segundo. Os grandes Pégasus Lançamentos

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olhos azuis, pálidos como o céu matinal, não expressavam nem admiração nem arroubo ao contemplá-lo. Olhavam-no diretamente, sem medo, com um muito leve sotaque de curiosidade. - Obrigada - ouviu-a dizer, em resposta a sua ajuda. - Não, devo lhe rogar que me perdoe. Era sua própria voz a que falava, ainda que ele só desejasse lhe arrancar essa touca da cabeça para determinar se era menina ou mulher. Não gostava dessa incerteza. E então ela o surpreendeu, assumindo toda a culpa por esse engano, embora tivesse todo o direito de cobri-lo de impropérios. - Não, meu senhor, sou eu quem deve lhe pedir perdão por recebê-lo nestas condições e provocar sua confusão. Minha intenção era me trocar antes, mas Aubert me informou que estava... Impaciente... Por se assegurar de que eu estivesse ilesa. O homem moreno que acompanhava o gigante dourado soltou uma súbita gargalhada. - E ilesa estava, moça, até que se aproximaste de meu amigo. Permita-me lhe apresentar a este aturdido camarada, que se sente muito confuso: Ranulf Fitz Hugh. E nosso jovem amigo Searle de Totnes. - E você é...? - Walter de Breaute, ao seu serviço. Ela saudou com a cabeça a cada um, enquanto aguardava que o gigante voltasse a falar. Ele não o fez. Limitou-se a fulminar com o olhar Walter de Breaute por tomar a leve seu embaraço. Haviam dado seus nomes, sim, mas Reina tinha perfeita consciência de que, na realidade, não diziam quem eram. Em todo caso, a cortesia mandava. - Eu sou Reina de Champeney, e lhes dou as boas-vindas a Clydon. Sua chegada foi muito oportuna, como sem dúvida notastes. Walter se apressou a interromper aquela mostra de gratidão. - Durante quanto tempo ficaram sob sítio? Pégasus Lançamentos

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- Não houve sítio algum. Atacaram ao amanhecer. Um homem enviado por eles passou a noite conosco e lhes abriu as portas exteriores. - E vocês saíram pessoalmente a combater? Por fim se ouvia outra vez a voz do gigante. Seu desprezo era inequívoco. Reina teria preferido que ele mantivesse a boca fechada. - A combater não, senhor. Sir William, meu cavalheiro, estava doente e na cama, não havia outro capaz de fazer-se cargo. - Mandaram pedir ajuda? - Não houve tempo - respondeu Reina impulsivamente. E imediatamente empalideceu ao compreender que havia cometido a tolice de brindar informação sem saber com que propósitos eles estavam ali. Ele a havia salvo de um perigo, mas bem podia representar outro. E ela teria jurado que a resposta o aliviou que seus lábios se distenderam que sua postura relaxou. - Por que não têm...? Reina o interrompeu. - Ainda não sei a que viestes a Clydon. - Envia-nos seu senhor. Reina afrouxou sua tensão. Era uma estranha maneira de dizer que os enviava Guy de Shefford, mas esse homem era estranho. Sem dúvida lhes tinha pedido que entregassem outra carta do castelão do conde, ao passar por Clydon, posto que ela ainda não houvesse respondido à anterior, onde lhe perguntava a data de seu casamento. Tampouco agora poderia responder, ao menos não até que chegasse John de Lascelles, à semana seguinte, e ela soubesse se estava disposto a desposá-la ou não. Lorde Richard, com quem teria preferido casar-se, ainda estava na Irlanda, segundo a última resposta de seu castelão, visitando as terras de seu pai naquele país. O castelão não soube lhe dizer quando retornaria. Mas esses problemas teriam que esperar. Posto que os homens fossem vassalos de Shefford, igual a ela Reina tinha Pégasus Lançamentos

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direito a solicitar sua ajuda, de modo que não se sentiu em dívida. De qualquer modo, mereciam boas-vindas, ainda que só fossem servidores de Shefford. - Perdoe minha brutalidade, Sir Ranulf. Devo confessar que os acontecimentos desta manhã me alteraram. Responderei a todas suas perguntas, mas permita-me primeiro, por favor, atender a sua comodidade. Ante o relutante assentimento do visitante, ela suspirou de alívio e se voltou para Aubert, que nesse momento estava sacudindo a roupa, depois do recente susto. Por sua parte, Reina estava muito fatigada para se ocupar da sua. - Faça que os servos preparem as mesas para comer. Logo envie meu mordomo para que lhe dê as ordens pertinentes, ele se encarregará dos homens de Sir Ranulf. Você se apresente lady Margaret. Quero saber como está Sir William. Theo procure Lady Hilary e faça que prepare vários quartos, com banhos em cada um, e vinho. Não se esqueça do vinho. E diga a lady Elaine que se ocupe dos feridos. Eu me ocupei dos mais necessitados, mas ainda restam algumas suturas a realizar, e é hora de que ela aprenda a aplicar sua agulha à carne. Depois poderá se ocupar de mim. Walter a observou, enquanto ela se afastava, e sacudiu a cabeça. - Quase não pode manter-se em pé, muito menos chegar a seu quarto, e... Viu como se encarregou de tudo, sendo tão miúda? Talvez deva ajudá-la... Sua voz apagou: Ranulf acabava de abandoná-lo. Ficou boquiaberto ao ver que partia atrás da senhora. Ranulf a alcançou em três longos passos e a elevou nos braços. Walter ouviu que a moça deixava escapar uma exclamação, mas ele não se alterou. A levava a caminho das escadas para as quais ela se dirigia. - Não deveria usar armadura, se não pode suportar seu peso - foi tudo o que disse. Bem sabia ela, mas não o disse; naquele momento temia as intenções do homem. Mas esse medo durou só o tempo que ele demorou em subir as escadas: apenas segundos, embora a escada do canto leste se elevasse dois pisos do Grande Salão até o terceiro andar do castelo. Já no alto, deixou-a no chão e, com uma seca saudação de Pégasus Lançamentos

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cabeça, retornou para baixo.

“Que cavalheiresco!”, disse-se ela. E não voltou a pensar nele.

Lá estava a porta dos aposentos do lorde; a escada continuava até as ameias que rodeavam o telhado. Reina avançou lentamente pelo estreito corredor que atravessava o grosso muro do castelo, iluminado por várias janelas estreitas. Passou pelos quartos das mulheres, onde dormiam quase todas suas damas, em uma alcova nos fundos; diante estava o quarto de teares e costura, onde descansavam as criadas. Por fim chegou a sua pequena alcova, na torre do norte. Teria podido mudar-se para os amplos quartos do senhor, mas a dor a impedia. Depois de casar-se teria oportunidade de ocupá-los. Seu quarto estava vazio, como sempre a essa hora da manhã. Reina se apoiou contra a porta, soltando um suspiro de fatiga. Não tinha forças nem para cobrir os poucos metros que a separavam da cama. Nem sequer podia pensar no resto do dia: atender aos visitantes e responder a suas perguntas como havia prometido. Resultava muito difícil falar com eles, sem saber quanto dizer quem estava informado de suas circunstâncias e quem não. O pior era mentir. E era seu pai quem tinha iniciado tudo, acreditando fazer o que ela desejava. Se lorde Raymond não tivesse morrido, ela teria podido casar-se antes que seu pai partisse para as cruzadas, dois anos antes, seguindo o rei Ricardo. Ela havia sido prometida em casamento a Raymond quando só tinha três anos. Nunca lhe ocorreu opor-se à aliança, embora mal o conhecesse: não o havia visto mais de cinco ou seis vezes em sua vida. Mas quando chegou o momento das bodas, ele se converteu no favorito da corte de Ricardo; o velho rei o empregava muito, o enviando de um lado a outro com distintos recados. Ao que parecia, Raymond não tinha tempo de mandar buscá-la nem de apresentar-se em Clydon, para que ambos pudessem pronunciar seus votos. E ao fim recebeu a notícia de que ele havia morrido ao cruzar o canal, afogado ao tentar salvar um menino que havia caído pela amurada. A notícia entristeceu Reina, mas não o conhecia tanto para chorá-lo. Pégasus Lançamentos

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Entretanto, essa morte a colocava em um apuro: seu pai já havia dado sua palavra de acompanhar nas cruzadas a seu senhor feudal, lorde Guy, e a Ricardo Coração de Leão, o novo rei. Assim, Reina ficou solteira aos quinze anos e com seu pai a ponto de partir para Terra Santa, sem tempo de lhe buscar outro marido. Por isso lhe pediu que procurasse candidatos por sua conta e os submetesse a sua aprovação. Ela seguiu a indicação, mas sua primeira carta não chegou às mãos do pai. Antes chegou uma de Champeney, contando que haviam se detido para conquistar Chipre e que o rei tinha se casado ali com Berengaria de Navarra. Um dos quatro vassalos que o acompanhavam tinha morrido em Chipre de febre. Acompanhava a carta um coche cheio de tesouros, mas lhe pareceu inapropriado vender alguma peça, ainda que necessitasse do dinheiro: por provir das cruzadas, lhe pareciam quase sagradas. A segunda carta de Reina chegou quando seu pai ainda estava em Chipre, pois o rei se atrasou longamente ali. Ele respondeu, aprovando a dois dos candidatos que ela havia proposto: lorde John de Lascelles, um dos servidores de Champeney até que, à morte de seu irmão mais velho, herdou as terras da família em Gales, e Richard de Arcourt, herdeiro de Lyonsford, que já possuía o castelo e a cidade de Warhurst, a poucas horas de Clydon. Reina conhecia bem a ambos e lhes tinha simpatia; estava segura de poder entender-se bem com qualquer um deles como esposo. Ambos eram jovens e de bom porte. Richard possuía um fino humor e sabia fazê-la rir; John era bondoso e amável. Com qualquer deles seria feliz, mas suas preferências se inclinavam por Richard. Seu pai morreu no cerco de Acre, apenas um mês depois de ter escrito essa última carta, de modo que nunca soube das preferências de sua filha. O conde, na carta em que informava a Reina de seu falecimento, também mencionava que Roger havia falado de um novo compromisso matrimonial da moça. Ao que parecia, no delírio da agonia, não havia mencionado quem era seu prometido. “Estou absolutamente seguro de que, quem quer que seja o homem que Roger escolheu para você, será aceitável para mim e estará disposto a me render comemoração. Seu pai me apreciava tanto como eu Pégasus Lançamentos

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a ele, teria sido incapaz de colocar um inimigo meu à frente de Clydon. Por fim, a presente é para lhe outorgar oficialmente minha permissão e minha bênção quanto a suas bodas.” Mas o conde dizia que, em bem da própria moça, desejava que a cerimônia se celebrasse no curso de poucos meses e que lhe enviassem notícias dela. Reina se sentiu confusa, mas ao fim compreendeu o que seu pai havia feito: havia mentido a seu amigo e senhor para que Reina pudesse escolher entre os dois candidatos aprovados por ele. De outro modo, lorde Guy, que passava ser seu tutor à morte de seu pai, tinha direito a lhe escolher um esposo e até a vender sua tutela, mantendo-a solteira, embora isso não fosse provável. Embora o conde sempre a tivesse tratado com carinho e amabilidade, porque apreciava seu pai, essas coisas não se tinham em conta ao acordar um matrimônio. E sem permissão do conde, sem que ele aprovasse a seu esposo, ela podia perder sua herança. Por isso havia escrito a Richard, lhe pedindo que viesse a Clydon. Não esclareceu o porquê, pois não estava disposta a propor uma aliança em uma carta, mas sim lhe disse que era urgente. Foi difícil localizar Richard. Transcorreu um mês sem notícias dele e Reina escreveu então a John. A essas alturas estava disposta a casarse com qualquer deles, sobretudo porque o castelão do conde a apressava para saber a data das bodas. Depois do acontecido naquela manhã, depois dos esforços de Rochefort por se apoderar dela, a urgência era muito mais crítica. Podia considerar-se afortunada pelo fato de que, nos últimos meses, Rochefort tivesse sido o único que havia tentado. Reina começou a se afastar da porta, mas nesse instante alguém a abriu. Seu grito impediu que Theodric a golpeasse com a folha. - Reina, deve ver essa prostituta de Eadwina, como meneava o traseiro no nariz dele. - disse Theo, descontente - E dama Hilary teimou em banhá-lo ela mesma. Deixa que eu dele me ocupe, Reina, por favor. A Eadwina sempre encarregam... - Que te ocupe de quem? Ele emitiu um suspiro dramático. - Do gigante dourado. De quem, se não ele? Pégasus Lançamentos

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Reina recobrou a compostura.

- De acordo. Vá, se encarregue. Não me importa. - E agitou a mão. Logo adicionou - Espera! Antes me tire isto de cima. Maldita armadura! Ele obedeceu. Despiu-a com mais rapidez que nunca. Reina esteve a ponto de deitar-se a rir ao vê-lo tão impaciente. E ele chamava Eadwina de prostituta? Quando se viu apenas com a roupa de baixo, a suarenta camisa e as calcinhas deixou-se cair na cama. - Ocupaste ao menos de que me enviassem o banho? - É obvio - replicou ele, indignado, enquanto colocava a armadura em um canto. - Então me envie a Wenda. Espera Theo! - levantou-se sobre os cotovelos para lhe advertir - Se seu “gigante” não tiver interesse, será melhor que saia de sua presença o quanto antes. O moço assentiu com um amplo sorriso e partiu.

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C apítulo 6 Lorde Rothwell não merecia tanta sorte. Havia obtido seus extensos territórios casando-se sucessivamente com cinco esposas ricas, e agora voltaria a fazê-lo: aumentaria sua grande fortuna com Clydon. Ranulf não sabia se a propriedade incluía outros feudos, mas Clydon, por si só, era uma magnífica herdade para qualquer um. Ele havia visto os numerosos campos semeados ao aproximar-se do castelo: uma grande aldeia, onde deviam viver ao menos duzentos plebeus, em sólidas cabanas de madeira; um arroio que corria por detrás, sob as sombras de carvalhos gigantescos. À distância, um moinho de água, uma casa solar e uma imensa extensão de bosques, onde ele e seus homens haviam acampado na véspera, para deixar lá as carretas com as provisões e as pessoas que seguiam a seu pequeno exército. Mas o mais espetacular era o castelo. Nem sequer o castelo de lorde Montfort nem o do pai de Ranulf eram tão grandes. O pátio exterior media uns quantos hectares, protegidos pela grossa muralha, da qual se sobressaíam muitas torres a intervalos regulares. Contra as muralhas, dentro do recinto, levantavam-se muitas edificações: um estábulo grande, um celeiro com teto de palha e currais a cada lado, uma ferraria, uma cervejaria e vários depósitos. À esquerda havia um lago para peixes, além de um grande pombal; o setor da direita estava livre, para servir como pátio de exercícios. Os estábulos estavam no pátio interior, assim como um celeiro, um estábulo menor e vários depósitos. Ali também se achavam a cozinha e um pomar a que nada faltava, nem colméias. Entretanto, dentro do castelo tinha sido acrescentada uma cozinha nova, seguindo o exemplo de castelos construídos em tempos recentes, para que a comida chegasse quente à mesa. O castelo caiado, de muros extremamente grossos, elevava-se pelo menos Pégasus Lançamentos

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trinta metros. As torres dos cantos adicionavam outros três andares e meio. A construção estava dividida por um muro transversal, que servia de suporte a tanta altura; contava com três andares e porão. Os alojamentos para a guarnição e o cabeçal do poço cediam agora espaço à nova cozinha, no segundo andar; o Grande Salão ocupava a terceira. Entrava-se no castelo através de uma considerável extensão edificada à esquerda, cuja altura também era de três andares; a escada exterior que conduzia à segunda estava protegida, no batente, por uma ponte levadiça. Na última, junto ao salão grande, achava-se a capela. Ranulf havia visto grande parte de tudo isto. O escudeiro Aubert lhe forneceu mais detalhes em seu entrecortado discurso, enquanto conduzia os visitantes até o Grande Salão. Também o servo a quem a senhora chamava Theo era uma fonte de informação, pois respondia a todas as perguntas de Ranulf. Foi só por esse motivo que Ranulf se deixou atender por ele durante seu banho, despachando Lanzo para que fosse limpar sua espada e sua armadura ensangüentadas. Geralmente, todo convidado era assistido em seu banho por uma mulher do serviço. Se o hóspede fosse muito importante, encarregava-se a própria senhora, quer dizer: a esposa do lorde; raramente, sua filha. Ranulf, que não tinha tanta importância, nunca havia sido atendido pela senhora da casa, o qual agradecia: as melhores criadas disputavam a honra de ocupar-se dele, e ele lembrava muitas horas agradáveis dedicadas a algo mais que a higiene. No fundo, esperava ver em sua alcova a loira do Grande Salão. Em troca, quem chegou ao quarto que lhe tinha sido atribuído foi o moço, acompanhado pelos servos que levavam a tina grande e a água quente, uma bandeja com vinho, queijo e pão branco de trigo, para saciar seu apetite até que se servisse o jantar. Também traziam uma muda de roupas, coisa que habitualmente não ofereciam devido a seu tamanho, mas também porque não o considerava hóspede importante. Ranulf reconheceu que a senhora de Clydon devia considerá-lo importante, não só porque ele tinha se apresentado como enviado de seu senhor (indubitavelmente, ela não pensava que se tratasse de Rothwell, mas sim de outro), mas também porque havia salvado Clydon, de Pégasus Lançamentos

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quaisquer pessoas que fossem os atacantes.

Não importava que não fosse uma mulher quem o assistisse. Depois de seus gozos da noite anterior, não necessitava outra. Entretanto, a presença de Theo o intrigava. O moço, que ainda não havia alcançado o pleno desenvolvimento, era fracote. Em seus movimentos mostrava uma graça lenta, quase feminina, que sem dúvida perderia com a maturidade. O cabelo, loiro escuro se frisava ao redor do pescoço e das orelhas; seus olhos pardos eram muito diretos e audazes para tratar-se de um servo. Mas era bonito; ao menos, seria quando seu rosto, ao maturar, perdesse aquele ar ambíguo. Ranulf havia notado que Lady Reina apoiava uma mão no ombro do jovem ao lhe ministrar ordens. Chamou-lhe a atenção, porque não era usual que uma dama tocasse um servo por nenhum motivo; muito menos, se fosse homem. Também tinha ouvido dizer: “Depois poderá se ocupar de mim”. O significado daquilo lhe resultava inimaginável, mas era óbvio que dirigia ao moço algum afeto especial. Nesse caso, era possível que contasse com a confiança da senhora e recebesse suas confidências. Saberia sobre ela quanto fizesse necessário saber. E se estava na alcova de Ranulf, só podia ser por ordens dela, para obter do visitante alguma informação. Entretanto, ainda não havia feito nenhuma pergunta e, em troca, não vacilava em responder a tudo o que Ranulf desejava saber sobre Clydon. Já nu Ranulf se enfiou na grande tina redonda. Ao sentar-se, o volume de seu corpo elevou a água até o peito. Não reparou no modo em que os olhos de Theo seguiam todos seus movimentos, cintilantes de expectativa. Theodric estava fascinado, mas também assustado. Nunca havia visto um corpo tão belo nem tão grande. Em cada músculo ondulava uma força de ferro. Braços como esses podiam fraturar um osso sem sequer propor resistência. Pernas longuíssimas, traseiro firme e primorosamente curvo, costas que não terminavam nunca, e tudo isso maciço como a rocha e coberto de pele dourada. Aquilo podia lhe custar a vida, mas Theo estava disposto a correr o risco. Claro que não sabia como proceder com uma pessoa assim. Pégasus Lançamentos

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Havia tirado as roupas do cavalheiro, demorando os dedos todo o possível. Mas o homem não reparava em nada. Theo respondia sem pensar, centrava a mente em uma só coisa. Raramente tinha que mostrar-se tão às claras. Bastava com um olhar triste. Mas ao que pareceria isso não era suficiente com aquele homem, que parecia dedicar todo seu interesse a Clydon... Até esse momento. - Que idade tem sua senhora? Theo viu que o cavalheiro estendia a mão para a bucha e o sabão posto em um tamborete, junto à banheira, e se arrojou de cabeça para eles. - Permitam que eu o lave senhor. Ranulf encolheu de ombros, ainda que não esperasse que o moço se prodigalizasse tanto. De qualquer modo, Lanzo e Kenric estavam acostumados a lhe esfregar as costas, de modo que se inclinou para frente para oferecê-la, e insistiu: - Sua senhora, que idade tem? Theo ensaboou o pano, mas vacilou tanto ante a resposta como ante a possibilidade de tocar. - Por que o pergunta? -Porque não vi seios, quadris, nem curva alguma que me ajudará a calcular. Por acaso é só uma menina? Theo teria se ofendido se um desconhecido (qualquer homem, na realidade) tivesse mencionado os seios e os quadris de sua senhora. Em troca, sorriu às escondidas. Reina não era tão curvilínea como a maioria das mulheres, mas tinha o justo para seu tamanho, embora seu tamanho fosse extremamente reduzido. Só quem entrasse em seu quarto e a visse nua, poderia saber que suas pernas eram perfeitas e que tinha o traseiro mais bonito e invejável do mundo, sob costas graciosas e suaves como a seda. Seus seios possivelmente não enchessem a mão, mas eram firmes e erguidos; seus grandes mamilos teriam feito suspirar a qualquer homem... Bom, a quase todos. Theo teve que apagar de sua voz o tom vanglorioso ao responder; ele bem sabia tudo isso, mas aquele cavalheiro nunca saberia. Pégasus Lançamentos

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- Faz muitos anos que minha senhora deixou de ser menina. Mesmo que não pareça, é uma mulher perfeitamente desenvolvida. Ranulf notou que não tinha respondido a sua pergunta sobre a idade. Se o moço não estava disposto a falar de sua senhora, em seguida o averiguaria: - Se faz tanto que superou a infância, por que não se casou? Theo deslizou o pano, acariciando, sobre a pele dourada. Custava-lhe pensar sentindo aquelas costas tão belas e musculosas sob sua mão. - Estava prometida, mas ele morreu faz dois anos. - E não a prometeram outra vez? Theo franziu o cenho, tratando de concentrar-se. O assunto se tornava perigoso. Aquele homem provinha de Shefford e, portanto, acreditava que Reina estava prometida em casamento, quando na realidade não era assim. A que vinha essa pergunta? - Está prometida, por certo. Por acaso Sir Henry não lhe envia para saber a data das bodas? O castelão de lorde Guy virá a presenciá-la e receber, em nome do conde, a comemoração do novo lorde de Clydon. Ranulf agradeceu que brindasse com tanta facilidade uma desculpa para sua visita ao castelo. E era óbvio que Rothwell tinha razão em uma coisa, ao menos: se existia uma promessa matrimonial, a senhora estava ignorando para casar-se com outro. - Isso significa que a data está... fixada, por fim? - perguntou Ranulf. Theo aproveitou a distração do gigante para aproximar-se um pouco mais e levar a bucha até seu peito. - Só minha senhora pode responder a isso. - E quem é o afortunado esposo? Theo não sabia, pois Reina estava acostumada esquivar essas perguntas. Como dizer que seu prometido era De Lascelles, se Reina estava decidida a casar-se com De Arcourt em caso de que este, milagrosamente, apresentasse-se primeiro? Decidiu apostar que Ranulf Fitz Hugh não soubesse que a coisa ainda não Pégasus Lançamentos

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estava decidida e a que não estivesse disposto a admitir que seu senhor não lhe havia confiado o dado. - Não é algo que todo o mundo saiba, mas sem dúvida Sir Henry terá lhe informado. Ranulf grunhiu. O moço se mostrou outra vez evasivo, e isso ele não gostou. Se as núpcias se celebrariam logo (e a dama o quereria assim, sem dúvida, depois de ter corrido tanto perigo aquela mesma manhã), por que guardava em segredo o nome de quem a desposaria em lugar de Rothwell? O homem não podia ter sido escolhido por seu pai, se Rothwell dizia a verdade. Portanto, devia ser decisão do conde de Shefford depois da morte de Roger de Champeney. Nenhuma mulher se atreveria a consertar sua própria aliança nem a quebrar um compromisso. O desdenhado, sem dúvida alguma, enviaria atrás dela um exército ou um mercenário, tal como fazia Rothwell. Nesse caso, por que o conde a havia deixado desprotegida durante tanto tempo? Se desejava entregá-la a outro, era preciso fazê-lo imediatamente, pois ela estava a mercê de qualquer um enquanto não se celebrasse a cerimônia. Na realidade, não lhe interessava resolver esse enigma. Sua missão consistia em levar a dama a Rothwell e assim o faria. Pouco lhe importava quem se apoderasse de Clydon através dela. Cabia invejar ao que se elevasse com o tesouro, pois Clydon era magnífico. Sua única desvantagem era vir acompanhada de uma mulher-menina, miúda e dada a repartir ordens como um general. Mas isso não tinha maior importância: ainda gibosa e entrevada teria sido desejável enquanto Clydon fosse seu. Ruminando esses pensamentos, Ranulf não havia prestado atenção em Theo nem ao que fazia por isso se sobressaltou ao descobrir que o moço havia passado ao lado oposto e tinha o braço submerso na água, por diante dele; sua mão, armada da bucha, movia-se pela face interior da grossa coxa de Ranulf. Incrédulo resistiu à suspeita que lhe saltou à mente. Esse mocinho não podia ser tão suicida. Mas ao lhe outorgar o benefício da dúvida piorou as coisas, pois a mão se adiantou. No mesmo instante em que tocou Ranulf ali onde nada devia fazer o cavalheiro lhe cravou um olhar assassino. Sua reação foi instantânea. Pégasus Lançamentos

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Um uivo de ira sacudiu as vigas. Com um gesto do braço enviou Theo ao outro lado do quarto, dando um tombo neste. - Pelos cravos de Cristo! Essa mulher enviou um efeminado! Theo se levantou trabalhosamente, e contrariado, disse: - Teria sido suficiente que dissesse não. - Que não? -gritou Ranulf, incrédulo - Pequeno rato mal nascido! Agradeça que não te arranque o pênis para afundá-lo na bunda! Desaparece antes que mude de idéia! Ranulf, jogando fogo pelos olhos, vigiou Theo, que saiu a toda carreira da alcova. Devia ter percebido por conta da atitude feminina do jovem e ter se mantido alerta, mas como havia sido enviado pela senhora, Ranulf só suspeitou que viesse em busca de informação. Por todos os demônios acreditaria ela que tinha em seu castelo um condenado sodomita? Por acaso tinha aspecto de sê-lo? Claro que o aspecto não significava nada. Ao admiti-lo, seu mau gênio desceu a um escuro mau humor. Até o rei, intrépido guerreiro e gigante entre os homens preferia levar moços a sua cama, segundo os rumores. A alguns dava igual um sexo que o outro. E a julgar pelos permanentes sermões do clero, restava supor que essa perversão abundava. Mas aquela era a primeira vez que ocorria a Ranulf. Até então, ninguém tinha se atrevido. Esse efeminado Theo podia dar as graças de que Ranulf não o tivesse partido em dois.

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C apítulo 7 Reina raramente usava o tamborete que estava acostumado a ser colocado no centro da grande tina forrada de tecido; tampouco agora o usou. Precisava afundar-se profundamente na água quente, para aliviar seus músculos doloridos, mas como era tão miúda lhe bastava pouca água. A seu banho foi agregado óleo de mirra, cuja delicada e exótica fragrância a relaxou; era sua essência favorita desde que a descobriu na carreta de tesouros enviados por seu pai. A porta se abriu e ela se levantou na tina, surpreendida, posto que Wenda já houvesse trazido toda a água aquecida ao fogo da lareira, na alcova do senhor. Voltou a reclinar-se quando viu que era Theodric.

O ouviu se despedir de Wenda e se

perguntou por que voltava tão cedo, mas preferiu esperar a que ele mesmo o dissesse. Pressentia que não gostaria; por isso não tinha pressa alguma por inteirar-se. Já havia falado com seu mordomo e estava segura de que, lá embaixo, as coisas voltaram para a normalidade. Mesmo assim, era incorreto atrasar-se em seu quarto havendo hóspedes no castelo.

Seu quarto era o único lugar onde podia gozar de

intimidade, sem que ninguém esperasse nada dela. E isso era exatamente o que necessitava naquele momento. Ninguém, além de Theo ou Wenda, entraria jamais sem sua permissão. Quando estava ali (coisa que ocorria raramente) todos sabiam que não queria ser incomodada. Essas regras haviam sido impostas por causa de Theo. Suas damas sabiam que o moço estava a serviço de Reina, mas ignoravam que tipo de trabalho executava para ela. Ainda que fosse óbvio que as mulheres não o atraíam, a maioria das damas era ainda muito jovem para compreender se, ao entrar na alcova, vissem o jovem presente enquanto ela se banhava. Ethelinda, a irmã gêmea de Theodric, havia sido a criada de Reina desde os doze anos. O fato de que os gêmeos fossem inseparáveis fez com que Reina se Pégasus Lançamentos

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acostumasse à presença de Theo em seu quarto. No começo, ele se ocupava só das tarefas atribuídas aos servidores masculinos, mas cedo pegou a seu encargo algumas funções de Ethelinda, quando esta se encontrava ocupada. Tinha mãos mais suaves; por isso superava a sua irmã quando se tratava de pentear Reina e de manter sua roupa limpa; odiava a sujeira e conservava o quarto mais limpo. Aos quatorze anos, Theodric teve sua primeira aventura amorosa. Embora Reina tenha se assombrado que fosse com um homem, não demorou para habituar-se também a isso. Acabou por não procurar com o que cobrir sua nudez quando ele entrava inesperadamente. O jovem se converteu simplesmente em Theo: homem, mas sem nada ameaçador em sua condição masculina. Por isso lhe pareceu natural que Theo assumisse todas as funções de uma criada quando Ethelinda morreu em um trágico acidente, pouco depois da partida de seu pai para a Terra Santa. Reina tinha tanto afeto por ele como por sua irmã. Ambos se consolaram mutuamente pela perda de Ethelinda, estreitando e consolidando sua relação. Theo não era só seu servente, mas também seu amigo; por isso tomava com ela liberdades que ninguém teria se atrevido a tomar. Mas como o pai de Reina não teria permitido semelhante situação, pois nenhum homem o entenderia, só Wenda sabia que ele era, na realidade, sua «criada»: que a banhava, a vestia e se ocupava de todas suas necessidades. O segredo foi necessário nos primeiros anos, sobretudo para preservar o pudor das damas mais jovens. Mas agora Reina tinha autoridade por si mesma e não se importava quem se inteirasse do caso, pois ninguém se atreveria a criticá-la. Nem sequer seu esposo poderia impedir de escolher seus servos pessoais, considerando tudo o que ela contribuía ao matrimônio e, especialmente, depois de conhecer as circunstâncias. Em último caso, ela o faria incluir no contrato matrimonial. Theo seguia guardando silêncio e a água do banho começava a esfriar. - E bem? -inquiriu ela, afundada na tina. - E bem o que? Ante essa mal-humorada resposta, ela se levantou e apoiou os braços no beiral. Pégasus Lançamentos

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Levou um instante para localizar Theo, que estava sentado em um canto, no chão; com ar abatido, apoiava o queixo nos joelhos e abraçava suas pernas. Não precisava perguntar, mas ela o fez com suavidade: - Ele não mostrou interesse? - Nenhum interesse. - O que te ocorre, Theo? Não é habitual que tome um rechaço tão a sério. Ele levantou bruscamente a cabeça. - Diz por que não o viu, Reina. Todo pele dourada e tão belo... - Economize os elogios, Theo - interrompeu ela com secura - O mesmo diz cada vez que encontra uma linda cara nova. E nunca se detém pensando o que fará seu amante da vez se o descobrir. Não freqüenta agora a um de meus homens de arma? Eu não gostaria de ter que afastá-lo do castelo como ao anterior, que o golpeou por sua infidelidade. - Que culpa tenho eu se os homens são tão possessivos? Reina pôs-se a rir diante da resignação de sua voz. - Se quer ser como Edwina, que passa de um homem a outro, ao menos não se comprometa com um só. - Vai me comparar com essa prostituta, que conhece todas as camas do castelo? - acusou ele, indignado - É tão estúpida que quase não sabe agradar um homem por um dia. - Mas tem a sagacidade de evitar surras dos ciumentos, coisa que você não pode dizer - lembrou ela - Não me agrada ter que te consolar quando o arrasam. Se não puder ser fiel, Theo, ao menos procura amantes miúdos ou desenvolve seus músculos. - É que me agrada me sentir indefeso, como uma mulher. Preferiria você ser mais forte ... ? - Não se trata de mim - replicou ela, levantando-se - E não sei por que me incomodo em discutir contigo, se fará o de sempre, por muito que eu te diga. Theo se apressou a adiantar-se com uma toalha e a ajudou a sair da tina. Não queria confessar que havia enfurecido o gigante, mas tampouco podia permitir que ela Pégasus Lançamentos

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o enfrentasse sem sabê-lo. Reina voltou a tocar no assunto. - Averiguou, ao menos, a que veio Sir Ranulf?

Envolveu-lhe a cabeleira molhada com um pano; Wenda a havia lavado previamente. - Não tive muitas oportunidades de fazer perguntas, com todas as que ele me fez. Interrogou-me sobre Clydon, como quase todos os que vêm pela primeira vez. Mas também queria saber de ti. - Sobre mim? Theo sorriu ao lembrar. - Sentia curiosidade por sua idade. - Decidiu não repetir as palavras textuais do homem - Perguntou-me quantos anos tinha, quando seria o enlace e quem era seu prometido. - E o que lhe disse? - Nada que pudesse lhe fincar o dente. Certamente lhe perguntará isso... Se conseguir acalmar-se um pouco. Reina se surpreendeu. -Theo, o ofendeste? - Não, certamente... mas... ele poderia opinar ao contrário. - Se explique! O jovem, ruborizado, afastou a vista. - Estava tão distraído que quando o... bom, não me afastei com tanta rapidez como me aconselhou. E ele parecia disposto a me fazer pedaços. Não fiquei para comprovar. - OH, Theo - gemeu Reina - não pôde se dar conta de que não tinha interesse antes de o enfurecer? - Ele estava distraído. - Sua voz se tornou defensiva - Não havia maneira fácil de... - Poderia ter perguntado francamente! Bom Deus, no que pensava eu quando permiti que se aproximasse? Isto é o que me faltava, em cima de todo o resto. - Abriu Pégasus Lançamentos

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a arca de suas roupas e tirou a primeira que encontrou - Bom, não se preocupe. Tenho que me apressar, para não deixá-lo esperando pela segunda vez. Pelo menos enviou Edwina para que acabasse de banhá-lo? Theo passou uma camisa de linho pela cabeça. - Ela estava ocupada com outro. - E a quem o enviou? - A Amabel. - Theo! A gorda Amabel? Como te ocorreu? - O que tem de mau? - replicou ele, com toda inocência, enquanto lhe atava os laços da camisa - Ela estava desocupada. Reina o fulminou com o olhar e sentiu vontade de esbofeteá-lo. - A estas horas deve estar furioso. Juro-te que se seu tolo rancor me provocar dificuldades com ele, eu mesma te esfolarei e cravarei sua pele na parede. Theo protestou: - Ele tem muito no que pensar e não se interessa em divertir-se com ninguém. Nem sequer olhará Amabel. - Oxalá tenha razão. OH, céus, ainda tem que secar o cabelo! Se apresse, Theo. Quero estar no salão quando ele descer.

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C apítulo 8 Ao descer pela escada da torre, Ranulf encontrou Walter sentado no último degrau, esperando-o. - Começava a me perguntar se teria te perdido lá em cima. E eu temia ser o último a voltar para o salão, por culpa dessa deslumbrante loira que me atendeu! Não podia ter dito nada pior, considerando que Ranulf havia se demorado deliberadamente no quarto para que lhe esfriasse o ânimo.

Primeiro enviava um

efeminado; depois, a uma mulher tão volumosa que nem sequer Ranulf teria podido rodeá-la com seus braços... Coisa que não lhe ocorreu, por certo. - Como foi com ela? -perguntou secamente. - Precisa perguntar? O loiro grunhiu por baixo antes de perguntar: - A senhora já desceu? - Sim, faz um tempo - respondeu Walter, com um olhar de curiosidade- E a ti, o que te ocorre? - Nada que ela não possa solucionar - replicou Ranulf, enquanto atravessava a arcada que dava ao Grande Salão. Quase sufocado pelo aborrecimento, encaminhou-se diretamente para a plataforma, em cujo centro ardia uma grande lareira. Searle e Eric estavam ali com um grupo de damas. Nem sequer a idéia de mesclar-se com tantas «senhoras» o sobressaltou. Mas diminuiu o passo, bem aplacado, ao rodear a larga mesa, já coberta de uma toalha de linho branca para o jantar: acabava de perceber, tardiamente, que não saberia distinguir Reina de Champeney. Eram quatro mulheres maiores: a jovem Elaine, a quem ele havia assustado antes, e outras três, que aparentavam doze ou treze anos. Resultava impossível determinar qual era Lady de Clydon, pois ainda a mais velha não podia ter senão uns trinta anos. Pégasus Lançamentos

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A mais jovem das quatro se separou de suas companheiras para saudá-lo. Como as outras, mantinha os olhos castamente baixos, com o qual Ranulf seguiu às escuras: pelo menos, teria podido reconhecer os olhos azuis e verde mar que havia visto antes. - Sir Ranulf, permita-me apresentar Lady Margaret, a esposa de Sir William Folville, que ainda está na cama e não pode reunir-se conosco. Lady Margaret era a mais velha. Faltavam três mulheres. - Lady Elaine diz que já o conhece. - Era censura o que se percebia em sua voz? - E a senhora é Lady Alicia, a filha de Sir William. Uma bonita moça de doze anos. Pelo visto, as apresentações se estavam efetuando por classe. - As damas Hilary e Florette ficaram viúvas - continuou a que falava - Seus maridos eram cavalheiros de Clydon, que pereceram com meu pai na Terra Santa. Isso sim exigia uma resposta, embora agora já soubesse qual era a dama com quem desejava trocar umas palavras. Lady Hilary era uma corpulenta mulher de uns vinte e cinco anos; lady Florette, uma atraente morena de olhos verdes, que o espiava com timidez. Portanto, só restava a que ele tinha a seu lado. - Lamento me inteirar dessas perdas - disse Ranulf às duas viúvas e recebeu como resposta um sorriso de circunstância e um gesto da cabeça. - Os pais de Cecília e Eleanor também foram às Cruzadas com o meu. Confiamos em que estes cavalheiros retornem com lorde Guy, sãos e salvos. As nomeadas eram as duas jovenzinhas restantes, muito tímidas ou intimidadas para olhá-lo. - É uma grande honra - murmurou Ranulf, inclinando-se diante de todas. Logo Ranulf enviou a cortesia ao diabo. Virou-se para Lady Reina com intenção de levá-la a algum canto e lhe dizer na cara o que pensava dela. Mas ela foi a primeira a falar. Apoiando em seu braço uma mão diminuta, inclinou-se para ele para lhe dizer, por meio de sussurros: - Me acompanhe Sir Ranulf, por favor. Eu gostaria de falar em privado com você, antes que nos sentemos à mesa. Pégasus Lançamentos

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Apesar do «por favor», aquilo soava a uma ordem. Era o mesmo que Ranulf ia propor, embora com menos gentileza. Mesmo assim, isso não mudava o fato de que uma mulher estivesse lhe dando ordens, coisa que não gostou. De qualquer modo, ela não aguardou sua resposta. Segura de que ele não se negaria, afastou-se das outras. Sua mão já não descansava no braço de Ranulf, mas sim o segurava com força, como se pretendesse arrastá-lo atrás de si. Coisa impossível, se ele se negasse. Mas a seguiu, só porque ele também desejava trocar umas palavras em privado. Lady Reina o conduziu ao vão de uma janela, a um lado do salão, entre dois muros que pareciam alcovas. Havia dois degraus para subir a esse espaço em arco, que media um metro e meio de largura e tinha a profundidade dos muros. Dois bancos recolhiam a brilhante luz da tarde. Ela entrou primeiro e ocupou o banco da esquerda, para dar as costas ao estrado. Ranulf se sentou no outro, embora desse modo ficasse ao pleno olhar de quem seguia reunido ante a lareira. Isso não o impediria de ventilar sua irritação, mas uma vez mais a mulher não lhe deu oportunidade de pronunciar palavra. - Obrigado, senhor, por me permitir lhe pedir desculpas em privado. O incidente que minha falta de atenção provocou me resulta tão vergonhoso como a você, de modo que serei breve. Não foi minha intenção lhe insultar lhe enviando meu servo pessoal. Não pensei claramente quando me deixei convencer de que ele o atendesse. Theodric não está acostumado a ser tão torpe para insultar, mas neste caso me disse que assim o fez, e por isso lhe peço perdão, em meu nome e no dele. Não há desculpas para Theo... Mas estava tão deslumbrado que... OH, Jesus, isto é mais vergonhoso do que eu pensava. Reina se moveu no assento, incômoda, com as bochechas em chamas. O homem não a ajudava a pôr fim à situação. Ainda que não pudesse olhá-lo nos olhos durante sua argumentação, estava segura de que ele a olhava fixamente, ruborizado também, esperando para ver o que mais dizia. E o que mais podia dizer? Prosseguiu, com um suspiro. - Basta olhá-lo, Sir Ranulf, para saber que não é... Bom, a estas horas terá se Pégasus Lançamentos

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dado conta de que Theo é diferente, de que só lhe atraem... - Não pôde seguir nessa veia - Na realidade, estou me enredando mais e mais. - Sim, é certo. Reina ficou rígida por ouvir, por fim, seu azedo murmúrio. De maneira que seguia zangado. Olhou-o nos olhos; não gostou do que via em suas profundidades, agora obscurecidas até o índigo. Fria e ofendida pelo fato de que ele não se mostrasse magnânimo depois de suas desculpas, disse: - O engano foi meu. Theo não pode evitar ser como é, mas faz já cinco anos que está comigo e me é querido. Já o castiguei e me encarregarei de que não volte a lembrar este incidente em sua presença. Mas se lhe resultar impossível esquecer este assunto e deseja abandonar o castelo, compreenderei. Esquecer ou abandonar o castelo? Ranulf teve que morder a língua para não replicar a esse ultimato. Ela o obrigava a deixar tudo assim, lhe negando a oportunidade de dar rédea solta a sua fúria, agora que havia expressado as coisas a seu modo. Ranulf não partiria, é obvio, enquanto não se fizesse de noite e pudesse levá-la consigo. Mas Por Deus! Ela tinha se encarregado de eliminar todo receio quanto a entregá-la o mais breve possível a Rothwell. Esses dois se mereciam mutuamente. Com dificuldade, Ranulf conseguiu pronunciar: - Tal como dizem, o assunto fica esquecido. - Em que pese a tudo, não posso dizer que me sinta perdoada, Sir Ranulf. Quer me sacudir outra vez? Serviria isso? Ele a fulminou com o olhar por lembrá-lo aquele engano. Sem dúvida o aviso era deliberado. Ela teve a audácia de lhe sorrir, descobrindo uma fileira de dentes brancos. Tampouco esperou resposta. Estendeu uma mão pelo estreito espaço que os separava e a apoiou no joelho. Logo a retirou, como se lembrasse que não havia entre eles tanta familiaridade para tocá-lo. E sorriu. - Esse oferecimento não ia a sério, sabe? Ninguém brinca com você? Pégasus Lançamentos

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- Walter arrisca muitas vezes sua vida por fazê-lo.

- Se isso é certo, deveria ter vergonha - disse ela, soltando uma risada agradável - Espero que seja só o ventre vazio o que lhe põe tão áspero, pois isso posso solucionar. Ranulf se ruborizou. A dama seguia brincando, mas se ele não abandonasse imediatamente seu mau humor, exigiria que se fosse sem sequer lhe dar a oportunidade de fazê-lo por sua própria vontade. - Perdoe senhorita. Suas boas vindas serão bem recebidas, por certo. - Nesse caso, não lhe farei esperar. Venha. Compartilhará um banco comigo. Pelos cravos de Cristo, era preciso isso? Compartilhar sua mesa era uma honra, mas ele não o considerava assim. Sentar-se junto a ela o obrigaria a observar todas as regras da cortesia: servir-lhe as melhores porções, lhe cortar a carne, assegurar de que seu copo não estivesse nunca vazio e fazer tudo o necessário para agradá-la. Um homem faminto tinha direito a comer em paz, mas como era possível fazê-lo na presença de damas que queriam ser servidas e entretidas? Ranulf fechou os olhos com um grunhido, mas os abriu imediatamente para contemplar Reina, que voltava para o estrado; uma vez mais, parecia dar por certo que ele a seguiria. Cravou os olhos em seus estreitos quadris, que meneava suavemente ao caminhar... Ou ao deslizar. Que idade tinha, afinal? Quinze, dezesseis? Pequena como era, não podia ter mais que isso. Mas os dois montículos de seu busto eram bem visíveis. Sentado em frente a ela, havia tido uma boa oportunidade de estudá-la, ao menos enquanto ela mantivesse os olhos baixos. Em seu rosto não havia nada infantil. Era pequeno, mas claramente definido: rosto de mulher. As sobrancelhas oblíquas ficavam quase ocultas por uma franja de grossos cachos de cabelo. Olhos amendoados, nariz reto, boca larga, de lábio inferior grosso, e um queixo pequeno completavam o quadro. Não era uma face bela em sentido estrito, mas sim interessante, graças ao carnudo lábio inferior e à cútis cuja brancura pedia ser tocada. Mas o estranho, o impressionante nela era o contraste entre seus olhos claros e seu cabelo negro; as Pégasus Lançamentos

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sobrancelhas e os cílios eram ainda mais pretos. Não era bela, não, mas tampouco feia. Entretanto, não o atraía absolutamente. As mulheres que fascinavam Ranulf eram moças fortes e robustas, capazes de suportar uma boa trepada, que era tudo que lhe interessava. Jovenzinhas pequenas e delicadas lhe provocavam pavor. E em se tratando de damas, pior ainda, só pelo fato de sê-lo. Quanto a essa dama em particular, gostava menos que nenhuma, pelo insulto que lhe tinha feito agüentar. E acabava de adicionar suas brincadeiras à lista de queixa que Ranulf tinha contra ela. De Walter podia tolerar esse chateio, mas dela não. Ao ver que Walter lhe sorria, pôs-se de pé. Era melhor terminar com aquilo. Quanto antes pudesse traçar planos para a partida, melhor. Soou um gongo, chamando as pessoas do castelo às mesas de cavalete, instaladas debaixo da plataforma. Ranulf quase não pôde dar crédito ao pequeno número de soldados que entravam alguns feridos. Uma propriedade desse tamanho, tão obviamente rica, podia manter uma guarnição de várias centenas. Onde estavam os homens necessários para protegê-la? Ardia por sabê-lo, mas era preciso esperar. Decidiu não interrogar ali a dama, onde se veria obrigado a dominar seu mau gênio. Ela o chateava muito com seu ar autoritário; quanto menos lhe dirigisse a palavra, melhor. Teria tempo para lhe fazer perguntas quando estivessem longe de Clydon. Então ela não se mostraria tão altiva. Por isso deixou que Walter atuasse segundo seu caráter, monopolizando a conversa com seu humor jocoso, ainda que algumas brincadeiras fossem à custa de Ranulf. Assim mantinha entretida Lady Reina e distraía sua atenção, evitando que Ranulf tivesse que sofrer seu olhar direto, salvo uma ou duas vezes. Ao terminar a comida, pôde escapar com a desculpa de despachar a maioria de seus homens. Ela não se opôs, por certo, pois esse grupo numeroso de soldados a intranqüilizava, e com razão. Ranulf teria podido se apoderar dela, simplesmente, mas isso teria provocado uma matança desnecessária da guarnição do castelo, coisa que podia evitar utilizando o sigilo.

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C apítulo 9 - O que averiguaste Walter? - A alcova da senhorita está na torre norte, mas só se pode chegar a ela pela escada desta torre, a que subiu está manhã, levando-a nos braços. Ranulf se afastou da estreita janela por onde havia observado a atividade do pátio interior. - Sim, recordo ter visto um longo corredor que atravessava diretamente o muro, como na galeria que há por cima do salão. Mencionou sua informante o que mais há lá em cima? - A alcova do senhor e os alojamentos das mulheres, onde dormem suas damas e as criadas. - Nesse caso não podemos cometer enganos nem fazer ruído que as desperte. Essa carreta de provisões que vi em frente a um dos depósitos é nossa? - Sim - respondeu Searle - Eric ordenou aos homens de Rothwell que voltassem para o acampamento e que alguém se encarregasse da carreta. Já foi carregada com os cereais que Walter comprou. - Espero que não esteja cheia de todo. - Não. Resta lugar suficiente para a dama. Ranulf assentiu com a cabeça, logo olhou Kenric e Lanzo. - Decidistes quem de vós irá com ela? - Lanzo - respondeu Kenric -, posto que é menor e ocupará menos espaço na carreta. - Meço só dois centímetros menos - grifou Lanzo - quase não se pode dizer que... - Mas é mais magro - aduziu Kenric, sorrindo. Walter ria entre dentes. Pégasus Lançamentos

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- De maneira que Kenric decidiu que Lanzo se oferecesse como voluntário. Se anime, Lanzo. Sua tarefa será a mais importante. Deve se encarregar de que a dama não sacuda a carreta nem faça nenhum ruído que possa alertar os guardas quando passarmos pelo portão exterior. O que te parece, Ranulf? Será capaz de fazê-lo? Não é muito maior que ela. - Dois centímetros maior - burlou-se Kenric. - Poderá Lanzo? - perguntou Ranulf ao moço - Se fracassares e a dama alertar as sentinelas, teremos que lutar para sair do castelo. Sabe quantas vidas se perderão nesse caso? - Confia em mim - disse Lanzo com firmeza e ansiedade. Logo deu a Kenric um olhar de superioridade, antes de perguntar - Mas que motivos darei para estar na carreta? - Deveria passar despercebido, mas em todo caso diremos que está doente e não pode montar a cavalo. - Alguns gemidos e náuseas fingidas bastarão para convencê-la. Além disso, servirão para dissimular qualquer ruído que faça a senhora - adicionou Walter - E nossos homens irão rodeando a carreta, ainda que não de maneira evidente. Advertiu-lhes que não deviam permitir que ninguém se aproximasse muito. - Alguma pergunta? - inquiriu Ranulf. Como só lhe respondesse o silêncio, concluiu - Pois começaremos a meia-noite. Kenric e eu recolheremos à dama. Searle, você esperará fora, sob a ponte próxima da escada. Enquanto Walter distrai o guarda do edifício dianteiro, eu passarei com a moça. Deverá estar preparado assim que se abra a porta. A colocará na carreta e esperará com ela até que chegue Lanzo para ocupar seu lugar. Cuida de ficar bem escondido quando se abrirem os portões para dar entrada a Eric. Partiremos assim que ele avise que nosso acampamento foi atacado por foragidos. Farei despertar o mordomo para que nos acompanhe fora, a fim de que não haja atrasos. - E se ele quiser despertar a sua senhora? - perguntou Walter. - Nesse caso, terá que usar sua convincente língua para que não o faça. Mas que Pégasus Lançamentos

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necessidade teria de despertá-la? Somos um grupo que se vai, não que deseja entrar. Bem, terminamos. Durmam tudo o que possam antes que chegue a hora, pois Eric já enviou à frente os homens de Rothwell. Nós cavalgaremos o resto da noite e toda a manhã, até que nos reunamos com eles. Bastará que um só homem permaneça em vela para despertar, Searle outros devem estar prontos para partir assim que desperte, de modo que só faça necessário para se ocupar dos cavalos. Kenric despertará aqui, no castelo, para tirar a dama. Voltaremos a deitar para que desperte outra vez à chegada de Eric. - Pois não resta nada que fazer, por agora - disse Walter, despedindo-se dos outros. Ranulf se aproximou da mesa para encher seu copo de vinho. - Obteve pergaminho do capelão para escrever a nota? Walter assentiu e lhe entregou a carta que levava dentro de sua jaqueta. - Será melhor deixá-la na alcova dela. Quem quer que entre para despertá-la pela manhã a encontrará ali. Acha, na verdade, que é necessária? Posto que Sir William ainda está de cama, dificilmente nos perseguirão. - Não sabe que tem outros vassalos? É provável que, depois do ataque desta amanhã, tenha mandado por chamar um ou mais deles. Agora sabe que precisa proteger-se melhor até que se realize as bodas que tem planejada. Não é desatinado que pela manhã chegue uma força considerável. - Sim, compreendo - reconheceu Walter - Mas prestarão atenção a sua advertência? - Não sabem que tipo de homem sou nem do que sou capaz. Como não obedecer? Considera-os capazes de arriscar a vida de sua senhora para recuperá-la, sabendo que ao seu devido tempo lhes será devolvida ilesa? - Ilesa, mas com um marido que nem ela nem seus vassalos desejam. Ranulf se encolheu de ombros. - Isso não nos interessa. A Rothwell corresponde fazer que Shefford e os homens de Clydon o aceitem, uma vez que o fato esteja consumado. Pégasus Lançamentos

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Walter fez girar sua taça, contemplando-a pensativamente. - Em questões como esta, o homem está acostumado a esperar a que haja um bebê a caminho, para fortalecer sua posição. Rothwell é um pouco velho para que reste alguma semente fértil. Talvez possa possuí-la, mas não lhe dará nenhum filho. Shefford saberá que não resta esperar herdeiros; talvez prefira esquecer a dama e reclamar Clydon para si. - Isso tampouco nos concerne. Uma vez que a entregue, nossa missão estará cumprida. Com o dinheiro que me pague Rothwell terei mais que suficiente para cobrir o preço que pede De Millers, ainda que tenha lhe ocorrido subi-lo outra vez. - Ranulf falou com tanto rancor que Walter não pôde senão rir. - Esse homem não sabe o que quer. Pensei que fosse matá-lo quando subiu mil marcos. Talvez desta vez diga que, depois de tudo, decidiu não vender Farring Cross. - Vire essa boca pra lá, Walter. Quero essa propriedade. Quero-a tanto que não posso pensar em outra coisa. - Há outras propriedades à venda - lembrou Walter, razoável. - Sim, mas com terras inúteis ou castelos tão arruinados que seria necessário seguir alugando minha espada por outros dez anos, só para pagar as reparações. Farring Cross tem um castelo pequeno, mas está em boas condições, com fortes defesas. Suas terras não estão esgotadas e seus aldeãos são saudáveis. - Mas não vale o preço que pede De Millers. - Para mim vale Walter. O homem é ambicioso. Por isso esperei ter mil marcos mais, se por acaso o ocorrer voltar a subir o preço. No fim do mês, Farring Cross será minha. - Sim - suspirou Walter - Será agradável poder assentar a cabeça no mesmo lugar noite após noite. Realmente, estou cansado de dormir à intempérie e de ir e vir por esta ilha. - Poderia ter seguido seu caminho em qualquer momento. - lembrou Ranulf. - Não podia te deixar sem ninguém a quem gritar, salvo esses dois jovens que adotou. Pégasus Lançamentos

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- Idiota - bufou Ranulf, embora sua boca tivesse suavizado - Vá e me deixe em paz. E me desculpe ante a dama, pois não participarei do jantar. Diga que levo dois dias sem dormir e que não quer me despertar. Quanto menos a veja, melhor. Walter riu entre dentes. - De maneira que te chateia é? - Não imagina o quanto. -Preferiria que me encarregasse disso, chegado o momento? - Não. O único prazer que obterei deste trabalho é o de atá-la - respondeu Ranulf

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C apítulo 10 Não foi coisa fácil chegar de um extremo do salão ao outro sem despertar as pessoas do castelo que ali dormiam, nem alertar aos poucos sentinelas que estavam ante as arcadas abertas da galeria, da qual se via o salão. A segunda vez que Kenric tropeçou na escuridão com os pés de alguém, Ranulf o levou no alto até a escada. - Por Deus, se tivéssemos uma vela... - Ver-nos-iam melhor - grunhiu Ranulf em voz baixa. Depositou o jovem no chão e começou a subir pela estreita escada. Tiveram sorte que tivesse uma tocha acesa ao final, contra a parede. Kenric a segurou para iluminar o longo corredor. - É esta? -sussurrou, ao chegar à porta do extremo. - Sim, se a garota de Walter tiver informado bem. Bloqueia a luz quando eu abrir a porta. Não quero que a dama desperte antes que eu entre. A porta não estava fechada com chave, mas sim bloqueada por um colchão atravessado. Ranulf fechou outra vez e xingou baixo. - O que aconteceu? -perguntou Kenric. - Uma das criadas dorme frente à porta. Terá que passar pela abertura e se encarregar de que continue dormindo. Os olhos de Kenric se alargaram até converter-se em grandes círculos turquesa. - Refiro-me a dormir, néscio, não a sonhos eternos. Bastará um leve golpe na cabeça com o punho de sua adaga. Mas fica em silencio. Kenric segurou a tocha no suporte do muro, junto à porta, e se deslizou pela abertura. Pouco depois abriu um pouco mais. - Não é mulher, mas sim homem - sussurrou com óbvia surpresa. - Esse moço. - Já adivinho de quem se trata - replicou Ranulf, descontente- Traz as cordas. Pégasus Lançamentos

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Cuidaremos primeiro da dama. Depois poderá atar seu «guarda». - Já está feito. - Diante da sobrancelha arqueada de Ranulf, Kenric se corrigiu, com um sorriso - Só lhe atei as mãos. Disseram que devia ser rápido. Ranulf rosnou. - Em efeito. Terminemos com isto, então. A tocha arrojava um pouco de luz ao interior, mas mal rompia a penumbra do recinto. Entretanto, era suficiente para o que deviam fazer. O quarto não era grande, embora tampouco muito pequeno. Na realidade, era idêntico ao que haviam atribuído a Ranulf. Theo estava caído no chão, ali onde Kenric o havia deixado. A cama estava apoiada contra o centro de uma parede, com as cortinas fechadas ao seu redor. O quarto estava lotado de coisas: mesas e banquinhos, uma arca de madeira aos pés da cama, um grande braseiro que havia tido fogo aceso até pouco antes. Ranulf, com cautela, abriu as cortinas da cama o suficiente para inclinar-se para dentro. Ali estava ela, apenas um montículo sob os cobertores, coroado pelos cachos enegrecidos que se pulverizavam pelo travesseiro. Era ela. Face à escuridão reinante se via a brancura de seu rosto pequeno e enérgico, as sobrancelhas inclinadas, o grosso lábio inferior, que no sonho formava uma careta. Ranulf vacilou por um momento. Se ela despertasse e o visse ali não haveria modo de voltar atrás. Pertencia a Rothwell, para bem ou para mau. E ele sabia que seria só para mau. Mas por sua parte seria o dono de Farring Cross, sua própria terra, ganha com seu trabalho e não por generosidade alheia, como seu meio-irmão menor havia conseguido a sua. Ranulf tinha que trabalhar pelo que desejava, porque sua mãe havia sido só uma moça de aldeia, enquanto a mãe de seu irmão menor era uma dama; embora não estivesse casada com seu pai, era uma dama. Só por isso seu filho, tão bastardo quanto Ranulf e mais jovem que ele, havia sido renomado herdeiro de seu pai e criado com todos os privilégios de um filho da nobreza. Não, Ranulf não podia permitir o luxo de sentir nada por essa dama, que tão inocente dormia em seu casto leito. Eram muito poucos os meios com que um homem Pégasus Lançamentos

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podia ter o dinheiro necessário sem roubá-lo; por isso ele não podia escolher escutar sua consciência. E esta era só uma herdeira mais pela qual combater, até que a levaria o mais forte; Rothwell seria esse homem porque havia contratado a Ranulf. Ela era só um trabalho a mais; o último, com sorte. Assim, não vacilou mais. Ela abriu os olhos, grandes e temerosos, no momento em que Ranulf deslizou a mão sobre sua boca na escuridão. Sentiu a suavidade de seus lábios, mas só por um instante, pois se viu obrigado a pressionar mais quando a mão da moça se elevou para puxar seu braço. Inclinou-se sobre ela para manter o outro braço imobilizado sob as mantas, enquanto trocava sua mão por uma mordaça e a atava com força. A mão livre de Reina não podia detê-lo; era inútil, por muito que retirasse ou empurrasse. Ela gemeu, porque Ranulf tinha puxado o cabelo ao lhe atar a mordaça, mas ele ficou rígido, sem saber o que o havia provocado. Imediatamente se afastou dela. Considerava-se imune frente a esse tipo de mulher, mas aquele som suave o feriu no mais fundo, por isso ficou furioso consigo mesmo, com ela e com a vida em geral. - Kenric! - O moço colocou imediatamente a cabeça pela cortina - Ata os pés e mãos. O jovem não se moveu e Ranulf xingou baixo. Ao baixar a vista comprovou que as mantas se haviam movido o suficiente para revelar que a moça estava nua. - Segure-a. Furioso, foi revolver a arca que havia visto. Retornou com uma camisa sem mangas, que jogou pela cortina. - Quer que a ponha? - chiou Kenric, horrorizado. Ranulf chiou os dentes. - O faça de uma vez e não demore. Kenric dedicou a Reina um olhar de desculpa e passou a camisa pela cabeça. Isso foi tudo o que pôde fazer. A moça tinha agora as duas mãos livres, e ele quase não conseguiu mantê-la no leito. Não era como Ranulf. - Não me permite isso! - anunciou desesperado. Pégasus Lançamentos

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- Permitirá isso, se não quiser que a tiremos daqui nua. Depois disso não voltou a ouvir-se ruído algum detrás da cortina. Ranulf aguardou que a dama estivesse coberta. Logo abriu as cortinas de par em par para arrancar a manta da cama. Enquanto Kenric lutava para atar-lhe os pulsos com tiras de tecido, Ranulf estendeu a colcha no chão. - Ainda não terminaste? - Ela não facilita as coisas - vaiou Kenric, a modo de resposta. Com um grunhido de irritação, Ranulf voltou à cama e segurou as mãos de Reina, as unindo, enquanto Kenric terminava de atar os pulsos. Colocou outro tanto com os pés, ignorando as furiosas olhadas dela. Feito isso, levantou-a da cama. - Agora ata o moço - ordenou Ranulf, antes de depositar a mulher na colcha. Bastou uma mão no seio, por debaixo do busto, para segurá-la ali - Não queremos lhe fazer mal, senhora - disse, quando conseguiu tranqüilizar-se o suficiente- se acalme. Da mordaça brotou um murmúrio confuso, tão audível que ele se aproximou para adicionar: - Se não fizer ruído, ninguém sairá prejudicado. Se chamar atenção, tenha em mente que muitos morrerão. Pensa por acaso que seus poucos homens podem me deter? Como não ouviu mais murmúrios, ficou satisfeito. Ela deixou de retorcer-se sob sua mão. Continuando, Kenric se ajoelhou a seu lado e envolveram Reina na grossa manta. Isso, além de amarrá-la de tudo, ocultava-a e abafaria qualquer ruído que ela pudesse fazer. - Não seria conveniente levar alguma roupa, além dessa camisa? - perguntou Kenric, enquanto Ranulf recolhia o longo vulto para carregar ao ombro. -Pelo que me concerne - assegurou Ranulf-, pode apresentar-se nua ante Rothwell. - Só então lembrou que se passariam vários dias antes que a entregasse a seu senhor - Muito bem - corrigiu depressa, azedo - busca um ou dois vestidos nessa arca e traga-os. Pégasus Lançamentos

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Instantes depois ambos avançavam pelo corredor para a escada. Já abaixo, Kenric se adiantou pronto para utilizar outra vez o punho de sua adaga, se algum dos servos despertasse e os visse. Mas não foi necessário. O trabalho daquelas pessoas havia aumentado muito durante o dia, agora estavam mortos para o mundo. Do outro lado do salão, Walter aguardava junto à escada que descia ao segundo piso e o edifício dianteiro, onde um guarda custodiava a entrada. Com um gesto de assentimento, desceu para distrair a sentinela; um momento depois, Ranulf pôde passar sua carga a Searle, que esperava fora. Novamente acima, aguardaram a volta de Walter, que chegou muito sorridente. - Tiveram problemas com a dama? - Não. Agora só falta que chegue Eric. - Isto foi muito fácil - comentou Kenric -. E se Eric se atrasa ou ... ? - Se cale - replicou Ranulf - Eric chegará antes que passe uma hora. Voltem para a cama, para que possamos «despertar» com sua mensagem. - Só alguns poucos sacos, idiota! Do contrário a esmagaria. Foram as últimas palavras que Reina ouviu durante um longo momento. Não só se sentia esmagada, mas também quase havia sufocado por obra de um saco, que haviam posto diretamente sobre seu rosto sem avisá-la. Se ela não tivesse conseguido torcer a cabeça para um lado, teriam tido uma boa surpresa ao tirá-la. Não necessitava olhar para saber que a haviam carregado na carreta de provisões, camuflada sob os sacos de cereal que Gilbert tinha vendido a eles. Era a única maneira de tirá-la escondido de Clydon e, pelo que ela havia ouvido dizer, essa era obviamente sua intenção. Sabia também outras coisas, sem que ninguém as tivesse dito. Havia visto, certamente, quem era seu seqüestrador. E para isso só podia haver um motivo: o fato de que o seqüestro estava planejado e não era uma simples aventura. Era óbvio pela menção de sua entrega a Rothwell, quem quer fosse.

Esse

estúpido gigante nem sequer a raptava para si. Isso teria sido compreensível: quem a desposasse, fosse um cavalheiro sem terras ou um grande senhor, seria o dono de Pégasus Lançamentos

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Clydon, desde que jurasse lealdade a lorde Guy. Mas dar-se todo esse trabalho por outro! Fitz Hugh devia cobrar uma fortuna por fazê-lo. Não restava outra explicação. Reina também havia compreendido pela atitude de Fitz Hugh, que seguia furioso com ela por causa de Theo. Não havia aceitado suas desculpas. Agora se arrependia de tê-las oferecido. Como se atrevia a zangar-se por uma trivialidade, se enquanto isso havia planejado aquilo? Irritava-a saber, que havia recebido uma serpente em sua casa. Na verdade, ele a tinha salvo em benefício próprio, não para prestar um nobre serviço. Traição, engano, mentiras! Bonito cavalheirismo!

Mas sua própria credulidade já não tinha

remédio. Ainda que o plano fosse descoberto, Fitz Hugh tinha razão: os homens de Clydon não tinham esperança alguma de derrotar os seqüestradores. Só conseguiriam perder a vida na tentativa. E não havia esperança alguma de receber ajuda em vários dias. Antes que chegasse podia estar casada, dependendo da distância que vivesse esse Rothwell. E quem demônios era esse homem? Reina

gemeu ao

sentir um

novo peso sobre

o ventre. Desapareceu

imediatamente, mas o saco não. De maneira que tinha companhia. Sim, decididamente: alguém se movia na carreta, sacudindo-a. E agora se ouviam outros ruídos, ainda que mal perceptíveis. A manta e os sacos colocados para ocultá-la e mantê-la em silêncio abafavam muito os sons. Partiam já ou só montavam guarda, cuidando que não se movesse? Como se pudesse fazê-lo, atada como estava! - Toma Lanzo. Pegue isto. - O que é? - Roupas para ela. Não houve tempo de vesti-la devidamente. - É? - Nem pense. É muito velha para ti. Além disso, já está prometida. - O que tem que a ver a idade, se Rothwell bem poderia ser seu tataravô? - Não exagere. Seu avô, sim. E agora, se cale, que vão abrir o portão interno. Se lembre de gemer se for necessário. - Sei o que devo fazer, Kenric. Será melhor que monte, se não quiser ficar Pégasus Lançamentos

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atrás.

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A carreta começou a avançar, e com bastante rapidez. Reina se perguntava que desculpa teriam dado para partir antes da manhã, mas logo sentiu as sacudidas da ponte nova, que franqueava o poço seco, e não pôde pensar em outra coisa que em seu desconforto. Também o moço se sacudia; em certo instante caiu totalmente sobre ela. O joelho se deslizou entre dois sacos e a golpeou na coxa. - Cristo, senhora! - ouviu responder a seu gemido - Não terá que ficar muito tempo aí embaixo. Reina mordeu o pedaço de tecido que tinha na boca. Esse pequeno trapaceiro, esse e o outro moço, de rosto angelical. Desde o inicio haviam sabido o que iam fazer, mas haviam passado a tarde sorrindo e paquerando suas damas mais jovens, cheios de olhares inocentes. Também os outros, os cavalheiros jovens e Sir Walter, com seus sorrisos, suas brincadeiras e suas maneiras amistosas: todos desprezíveis traidores, com sujos planos já traçados. Ranulf Fitz Hugh havia tido, pelo menos, a decência de evitá-la durante o resto do dia. Ou fosse por seu aborrecimento, ou porque não podia fingir com tanta facilidade como os outros, ao menos isso revelava alguma honestidade... Mas não suficiente para que Reina estivesse avisada nem para que servisse de algo.

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C apítulo 11

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- Pelos cravos de Cristo, nunca vi tantas caras zangadas! - comentou Walter enquanto entravam lentamente no novo acampamento, passada uma hora do amanhecer -. Por acaso todas as rameiras se foram ontem à noite, Eric? - Com o que nos cobram por uma noite? -soprou Eric- Dificilmente. - O que aconteceu, pois, com os homens de Rothwell? - Não pergunte. Walter franziu o cenho, embora sorridente, ao ver que Eric meneava a cabeça. Mas algo o distraiu: - Cuidado! - gritou a quem o rodeava -. Ela viu seu dono! Um brilho pardo correu através do acampamento e saltou sobre o corcel de Ranulf. O enorme cavalo nem sequer soprou, pois já estava habituado a sua presença, mas os outros cavalos se elevaram das mãos e puxaram das rédeas, Foram necessários alguns instantes para dominá-los. As maldições voaram por toda parte, mas ao fim Ranulf sorria, de modo que ninguém levantou a voz. E a besta causadora da comoção não tinha consciência de que ocorresse nada, já havia se instalado em seu lugar favorito, sobre o largo ombro de Ranulf, meio envolta a seu pescoço. - O que dizia Eric? - perguntou o chefe, à direita de Eric. - Eu dizia algo? - Sobre os homens de Rothwell. - Eh... -Eric se sentiu irritado pelo fato de que o tivesse surpreendido chateando Walter. Nem ele um nem o outro haviam caído na conta de que Ranulf estava escutando - Talvez devesse falar com seu mestre de arma. - Dificilmente acreditariam nisso. - Conte-me. Com aquele tom não se discutia. Pégasus Lançamentos

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-Tal como entendo a questão, se tivéssemos nos demorado um dia em capturar a dama, teríamos tido que combater com os homens de Rothwell e com os dela, além disso. - Como é? - Amanhã concluem o ano de serviço que devem a Rothwell. - E bem? - Não tinham intenção de retornar para ele. Se hoje tivessem estado em Clydon, teriam oferecido seus serviços à senhora. - Lhe revelando nossos planos? -exclamou Walter, indignado. - Sim. Ao que parece odeiam Rothwell, mas como este lhes pagou adiantado, não podiam deixar de lhe servir. Até terminar o período de serviço lhe foram leais. Walter assobiou baixo. - É incrível. Umas poucas horas representaram a diferença entre o êxito e o fracasso, só porque esses mercenários respeitaram seu contrato ao pé da letra. Isso é levar um pouco longe uma lealdade mal merecida, sobre tudo considerando que a dama teria estado eternamente agradecida se tivessem se unido; e eles, sem dúvida, não o ignoravam. Eric assentiu. - Aí tem o motivo de tantas caras azedas esta amanhã. - Foi o mestre Scot quem lhe contou isso? - perguntou Ranulf. - Sim. - Acha que ainda será capaz de oferecer-se à senhora? Eric meneou a cabeça. - Como agora a tem em seu poder, já não está em situação de contratar ninguém. Eles nos superam só em quatorze homens, e nós contamos com quatro cavalheiros para compensar a diferença. Podem ser estúpidos, mas nem tanto. - Querem trabalhar para nós? - perguntou Walter. - Sim, e de bom grado. - Então, por que desejavam se por a serviço da dama? - estranhou Ranulf. Pégasus Lançamentos

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Eric riu entre dentes.

- Por vingança. Odeiam tanto Rothwell que não querem ver em suas mãos essa rica fortuna. Mas como perderam a oportunidade e o sabem, agora querem ocupar de si mesmos. Ranulf grunhiu, satisfeito no momento. De qualquer modo, teria uma conversa pessoal com esse mestre de arma. - Farring Cross não é tão grande para empregar a todos, além de meus próprios homens, e ainda nem sequer sou seu proprietário. Talvez possa contratar vinte... Digam ao mestre Scot que chegaremos a um acordo; que deva falar comigo esta noite, depois de que montemos o acampamento. Agora libertem a dama. Terei que escutar seus gritos e suas reclamações enquanto me dure a paciência. Dentro de uma hora continuaremos a marcha. -A senhora não passará muito tempo sem mordaça - predisse Eric, enquanto Ranulf se dirigia para a carreta de provisões. - Talvez - disse Walter, pensativo. - Mas você não passou tanto tempo com ela como nós. Não viu a facilidade com que essa mulher assume o comando de tudo. Faz tempo que está atada a seus próprios recursos; leva quase dois anos sem que nenhum homem tenha autoridade sobre ela.

Se Ranulf se vê obrigado a negociar,

provavelmente será ele quem caia em gritos e reclamações. - O fará, de um modo ou outro, qualquer seja a reação da dama - riu Eric. De algum modo, Reina tinha se composto para dormir durante o resto da noite. Se não podia mover-se, ver e nem fazer nada que a permitisse fugir, não restava outra coisa que dormir, sobre tudo porque estava ainda bastante esgotada por aquela jornada, uma das mais horríveis de sua vida. Posto que a grossa manta e os sacos amortecessem os tombos da carreta, o trajeto não foi tão incômodo para mantê-la desperta. Nem sequer despertou quando retiraram sua coberta de sacos. Mas qualquer um acorda quando se sente bruscamente levantado, por mais profundo que tenha sido o sono. Um par de fortes braços a levava, mas não soube a quem pertenciam. Não havia Pégasus Lançamentos

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conseguido distinguir uma só palavra, ainda que a rodeassem numerosos ruídos, que soavam difusos e longínquos entre os grossos sacos. Iriam já apresentá-la a esse Rothwell? Ao menos, se dignariam a desembrulhála? Sentiu-se depositada no chão e alguém a desenrolou, lateralmente, tirando da manta; Reina rodou um par de metros. Ficou de barriga para baixo, com o nariz enterrado na espessa erva, cujo forte aroma esteve a ponto de sufocá-la. Bom, que outra coisa restava esperar? Fitz Hugh havia dito que não se importava apresentá-la a Rothwell nua. Fazê-la rodar desse modo, quase sem roupas, não era menos.

Mas

quando conseguiu ficar de lado e usar os pulsos atados e um cotovelo para levantar-se, descobriu que só estavam ali o gigante e seu escudeiro mais jovem. Encontrou-se no interior de uma tenda, não muito grande e quase vazia, ainda que em um ou dois lugares se visse a erva aplanada, como se algum objeto tivesse sido retirado dali pouco antes. Era o acampamento de Fitz Hugh, certamente, mas onde estava o resto de seus homens? A luz que se filtrava pelo tecido revelava que era de manhã. Reina supôs que não passariam muito tempo ali. Lanzo, o moço, estava de pé em frente ao gigante, bastante sobressaltado, como se esse trato brusco aplicado a uma dama o pegasse de surpresa. Tinha uma braçada de roupas numa das mãos e um tamborete na outra. Por fim se lembrou dele e o pôs no chão. Seu dono permanecia de cócoras, provavelmente para não ver-se obrigado a curvar as costas naquela tenda, muito baixa para sua estatura. Não parecia mais cordial que de costume: franzia as sobrancelhas douradas, os lábios tensos sobre seus dentes apertados. Pelo visto, teria preferido manter-se longe dela, embora por algum motivo se sentisse obrigado a tratar com ela pessoalmente. Para demonstrar que a primeira hipótese era a acertada, ele se levantou para aproximar-se, mas não pôde erguer as costas. Voltou a ficar de cócoras e estendeu as mãos para os pulsos atados, que ela mantinha no regaço. - Se ocupe de seus pés, Lanzo - ordenou sem olhar o moço - Não podemos ficar aqui todo o dia. Pégasus Lançamentos

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Não havia dito uma palavra, não a tinha olhado. E tampouco o fazia agora; mantinha a vista cravada no nó que tentava desatar. Lanzo tinha se ajoelhado junto a suas pernas. Ela aproximou os pés, sem esperar que pedisse. Por desgraça, isso a fez perder o equilíbrio e um ombro se inclinou por debaixo do outro, fazendo que o frouxo tecido de sua camisa se torcesse, deslizando-se até a metade do braço. O frio do ar contra a pele nua a fez ruborizar. Não teria se horrorizado tanto de ter estado completamente nua, pois isso teria sido intencional, planejado para humilhá-la e colocá-la em desvantagem. Esse acidente era muito mais vergonhoso, pois não deveria ter acontecido absolutamente, ainda que ninguém tivesse reparado ainda nele. Mas quando tratou de levantar as mãos para voltar a colocar o tecido em seu ombro, antes que a situação fosse percebida, aquele estúpido gigante se negou a lhe soltar as pulsos. Provavelmente pensava que ela tratava de resistir a seus esforços por libertá-la, embora resultasse impossível encontrar um motivo para tal atitude. Bastou um olhar de soslaio para comprovar que o moço era mais observador. Estava paralisado, com os olhos enormes e a boca aberta olhando-a fixamente. Reina se disse que era só um menino mesmo assim seu rubor se acentuou. O que desejava evitar eram os olhos do gigante. Entretanto, endireitar o ombro não foi solução: só conseguiu descobrir outro pouco de pele. Desesperada, tentou outra vez levantar as mãos... Só para que o horror se descobrisse, por fim. Fitz Hugh levantou o olhar, cheio de irritação, mas não mais quando teve à sua frente um seio nu ante seus olhos. Reina grunhiu sob a mordaça, mas ninguém pareceu inteirar-se. Fitz Hugh, em sua surpresa, apertava ainda mais os nós de seus pulsos, mesmo que seus dedos permanecessem imóveis. A jovem sem poder levantar as mãos e ele se limitando a olhar seu seio, com tanta atenção quanto o moço, como se nunca tivessem visto nada parecido. Reina nem sequer podia levantar-se para lhes voltar as costas. Mesmo que o homem tivesse soltado seus pulsos, ao levantar de joelhos não teria feito senão plantar o busto um pouco mais perto da cara. Talvez isso o arrancasse de seu estado hipnótico, mas ela preferiu não tentá-lo. Alguns homens interpretavam esse tipo de Pégasus Lançamentos

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coisas como uma insinuação. E se aquele pensasse algo assim... Por fim Lanzo foi em seu resgate, embora pareceu sofrer ao fazê-lo. A cor tinha subido às bochechas, furioso, ao compreender que a dama não podia corrigir por si mesma o problema. Ergueu uma mão vacilante, com o polegar e o índice estendidos, trêmulos. Com cuidado, como se pudesse morrer pelo simples contato com aquela pele, segurou o tecido e voltou a colocá-lo no ombro. O decote da camisa se enroscou no mamilo, enrugando-o antes de cobri-lo, mas só teve importância para o homem que seguia com a vista cravada nele. Para Reina foi um alívio tornar a ficar mais ou menos apresentável. Nem sequer aqueles olhos violeta, que se cruzaram com os seus por um breve segundo antes de voltar para seus pulsos, puderam alterá-la outra vez. O dano estava feito. Era melhor esquecê-lo, tal como ele parecia disposto a fazê-lo. Mas o que representava o cenho franzido durante o breve momento em que levantou a vista? Se Ranulf Fitz Hugh era bonito quando estava zangado, em estado de assombro resultava irresistível. Era preferível o cenho franzido. Custava menos respirar quando esse homem era apenas bonito, ainda que o porquê não estivesse claro. E como desatá-la estava resultando difícil, o cenho retornou. Finalmente tirou a adaga; embora ficasse pouco espaço entre seus pulsos, cortou os nós sem perda de tempo. Um toque em seus pés e em sua bochecha e o resto das ataduras caiu também. “Por que não o fez assim desde o inicio?” - pensou Reina. Desse modo teria economizado aquele vergonhoso incidente. Ainda que tivesse todo o direito de protestar a gritos pelo que havia feito, naquele momento só desejava que ele se fosse. Mas ele não se foi. Aproximou o banquinho e se sentou frente a ela. Que não oferecesse assento à dama era lógico, depois de tudo: aquele homem era o cavalheiro menos cavalheiresco que Reina havia conhecido. Se pensava que ela permaneceria sentada naquela humilhante posição, ao seus pés, estava louco. Por um momento não lhe prestou atenção; cuspiu os trapos que tinha na boca e flexionou a mandíbula para aliviar a rigidez. Tomou seu tempo para esfregar os pulsos; logo se levantou com lentidão. Com tanta dignidade quanto pôde, considerando que sua Pégasus Lançamentos

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cabeleira era uma massa enredada e que a camisa só a cobria até os joelhos, caminhou até o lugar onde ele havia atirado a colcha, a um lado da tenda, e se envolveu nela como um manto. Só então se dignou a enfrentar-se seu captor. - Muito bem, senhor cavalheiro - começou com voz enganosamente agradável- se tiver algo mais que me dizer, agradecerei que o faça imediatamente. Não poderei suportar sua presença por muito tempo mais. Isso o feriu o bastante para fazê-lo levantar como um raio, esquecendo que não tinha espaço suficiente na tenda. Reina esteve a ponto de deitar-se a rir ante sua expressão ao golpear a cabeça acima, sacudindo tanto a tenda que a pôs em perigo de cair. Viu-se obrigado a sentar-se outra vez, e seu aborrecimento não deixou de ser intimidador, mas menos do que se estivesse erguido ante ela. - Vejo que ambos sentimos o mesmo - disse Reina, antes que ele pudesse abrir a boca; desse modo sossegou o trovão e fez que sua expressão se obscurecesse ainda mais - Pelo menos temos isso em comum. Bem, se tiver uma língua que saiba dizer algo, além de mentiras, utilize-a de uma vez. Viu que ele empregava todo seu domínio para permanecer sentado, mas ao menos recuperou o uso de sua voz. Uma vez mais, dirigiu-se a Lanzo: - Amordaça-a! Reina ficou rígida e virou para o inofensivo jovenzinho antes que pudesse dar um passo para ela. - Me ponha uma mão em cima, menino, e te darei tal cabeçada nas orelhas que ouvirá sinos durante uma semana. Se ele é muito covarde para escutar o que vou dizer, que me amordace pessoalmente. Faz isso com tanta suavidade... E seus olhos verde mar pareceram clarear ainda mais ao assentar-se sobre o cavalheiro, desafiando-o. - Covarde senhora? Pouco me importa o que pensa de mim, mas esbanjam o tempo... - Sim – a interrompeu, com uma careta zombadora - Um cavalheiro vulgar não se importaria, e suas maneiras indicam que é isso que é. Pégasus Lançamentos

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- Acertou - falou ele.

Resultava amargurado que um pretendido insulto se convertesse na verdade. Talvez estivesse abusando de sua sorte ao lhe provocar deliberadamente. Naquele momento ele parecia a ponto de explodir, seu corpo estava tenso, como se fosse difícil não estrangulá-la. Bem, ao menos havia deixado clara sua opinião e seu desdém. Era melhor dar ouvidos ao que ele tivesse para dizer. - Bem - disse com um suspiro- não percamos mais tempo, para poder nos separarmos o quanto antes. - Mas não pôde deixar de acrescentar - O que obtivestes com sua hipocrisia? - Fala muito de mentiras e hipocrisias, senhora, mas foi você que me abriu as portas. - Porque fingiram vir em meu auxílio! - E a auxiliei, sim. O que não fiz foi massacrar o resto de sua gente para lhe tirar de Clydon, o qual poderia ter feito com maior facilidade; se sua dignidade mal entendida vale mais que essas vidas, diga. Isso a desarmou sem mais. Ela sabia muito bem que para capturá-la de outra maneira teria sido imprescindível deixar atrás incontáveis cadáveres. -Isso não apaga o fato de que não tinha direito algum de me seqüestrar - disse, em tom mais sereno, ainda que não menos amargo - Não vinha em nome de meu senhor, como o asseguraram. - Nisso se equivoca, senhora. - Era um prazer dizer. - Lorde Rothwell é seu senhor, por ser seu prometido, e atuo em nome dele. Em efeito, tem direito de capturá-la e obrigá-la a respeitar seu compromisso matrimonial. Não me importa se descartá-lo foi sua idéia ou de Shefford. Ele não quer ficar de lado. Reina o escutou com muita calma, e depois o confundiu com um sorriso. - Se acredita nessa tolice, foi enganado. Meu prometido morreu faz dois anos, justo antes que meu pai partisse para Terra Santa. Como não teve tempo de acordar outra aliança, encarregou-me pessoalmente do assunto. Através de correspondência Pégasus Lançamentos

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aprovou a dois dos candidatos que lhe propus; com um deles devia me casar no curso de uma semana. - Com quem? - Isso não lhe diz respeito, mas lhe asseguro que esse Rothwell que menciona não é um deles.

Nem sequer ouvi seu nome. Se ele disser que tem um contrato

matrimonial, mente. - Quem mente é você. Reina elevou bruscamente o queixo. - Tenho as cartas de meu pai para demonstrar o que digo. - Mostre-me isso então. - Idiota! - sussurrou ela, exasperada -. Essas cartas estão em Clydon. - Isso deseja me fazer acreditar, mas idiota seria se acreditasse na palavra de uma dama - bufou ele. Reina entreabriu os olhos ante aquele insulto. - Ainda pensa me levar a seu senhor? - Não queria fazê-lo, mas por quinhentos marcos a levarei a ele, decididamente. O que quero saber é por que facilitou tanto a missão. Por que estava tão mal protegida? A cabeça de Reina ainda dava voltas pela irrisória soma oferecida para lhe arruinar a vida. Quanto a que ele pretendesse respostas a suas perguntas... -Vá para o inferno, Fritz Hugh. Estou farta de falar com alguém tão injustificadamente teimoso. Mais ainda: estou farta de sua presença. E empreendeu a fuga. Não foi difícil, posto que não houvesse ninguém para se interpor entre ela e a entrada da tenda. Ao sair se encontrou no meio do acampamento, mas isso a deteve só por um instante. O rugido ensurdecedor que se ouvia a suas costas foi incentivo suficiente para acelerar o passo. Correu em linha reta para o cavalo mais próximo, elevando uma palavra de agradecimento pelo fato de que se tratasse de um cavalo castrado e não de um animal de combate; além disso, estava selado. Os homens que vadiavam a seu redor, Pégasus Lançamentos

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sob as árvores e frente às fogueiras, limitaram-se a olhá-la, boquiabertos, muito surpreendidos para agir. Estava fazendo muito bem, considerando que não havia planejado essa fuga. Agora que já estava junto ao cavalo, até começava a pensar que se sairia bem. Teve que soltar a colcha para subir à cela de montar, mas valia à pena esse pequeno sacrifício. O cavalo não era tão alto; uma vez que pôde pôr o pé no estribo, tentou dar impulso para elevar-se. Mas ali começaram os problemas, o menor dos quais era que a camisa subia até a metade da coxa ao montar escarranchado. O cavalo não gostou daquele peso leve no lombo e depressa se fez saber, mas esse tampouco era o pior de seus problemas, pois não carecia de experiência com animais. A maior dificuldade consistia em que agora todos os homens do acampamento estavam ao seu redor e bem conscientes do que ela estava a ponto de fazer. Uma sólida muralha de corpos bloqueava as três direções pelas quais devia galopar, se desejava afastar-se do enfurecido cavalheiro, e estavam muito perto: não poderia tomar velocidade suficiente para franquear a barreira. A única saída era retornar por onde havia vindo cruzando pelo centro do acampamento. Enquanto pudesse ganhar velocidade para derrubar a quem tentasse detê-la, ainda restava uma possibilidade. Não perdeu mais tempo em pensar: fez que o cavalo girasse e lhe cravou os calcanhares nus. O animal, desdenhoso, não obedeceu. Reina furiosa, o golpeou com as rédeas que sustentava no punho; o animal saiu disparado, com o que ficou a ponto de derrubá-la. Mas essa era a velocidade necessária. Os poucos homens que se atreveram a cruzar em seu caminho se jogaram de lado ao ver que ela estava disposta a atropelálos. Por desgraça, quanto mais se aproximava do limite do acampamento, mais se aventuravam eles: estendiam a mão para as rédeas, e se chocavam contra seus joelhos ao fracassar, ou tratavam de assustar ao cavalo movendo os braços em gestos grotescos. Um conseguiu aferrar de seu braço, mas ela o desprendeu com um giro brusco, antes que pudesse fazê-la perder o equilíbrio. E então viu Walter de Breaute Pégasus Lançamentos

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que vinha para ela, mais alto que os outros, em melhores condições para alcançá-la, graças a sua maior estatura. Ela virou para afastar-se, só para encontrar de frente a Fitz Hugh, que estava do outro lado. Muito tarde. Bastou estender um braço para arrancá-la do cavalo. O animal continuou sua marcha sem cavaleiro, e ela pareceu ter se estatelado contra um muro de pedra. Perdeu o fôlego ante o impacto daquele braço no ventre. Braço que continuou espremendo-a para fixá-la a seu lado, coisa que não facilitou a recuperar a respiração. Mas uma vez conseguindo encher os pulmões de ar, deixou escapar um chiado de indignação e fúria, por ter sido detida e por ser levada a tenda desse modo, sem que lhe permitisse caminhar. - Desavergonhado! Filho do demônio me deixe. A frase terminou em uma exalação de ar, pois o círculo de ferro que rodeava a cintura voltou a ater-se. Ela se debateu, chutando e golpeando o braço e o ombro que tinha a seu alcance. Fitz Hugh parecia não dar-se conta: continuava caminhando, com ela quase montada em seu quadril e os pés muito longe do chão. Quando a pôs de pé, por fim, foi frente à entrada da tenda. Só então Reina pôde olhá-lo no rosto: era como uma tormenta. - Causa mais dificuldades do que justifica seu preço, senhora - trovejou. Se não tivesse dito isso, a jovem teria podido sentir medo, pois seu semblante era terrível. Mas aquelas palavras a feriram no mais fundo. Além disso, se ele chegasse a golpeá-la com uma das toras que apertava em forma de punho, não ficaria com vida e não teria que preocupar-se com nada mais. - Não. É aí onde se mostra estúpido, Fitz Hugh - disse, com desprezo - O que valho é bem sabido. Junto a meu preço, seus trocados de Judas são uma insignificância. Clydon recebe uma soma quatro vezes maior só em um ano. Seu amigo Rothwell sabe, ainda que você ignore isso. Quanto rirá por ter pago tão pouco em troca de uma fortuna e o poder que esta significa! Recebeu um leve tranco no ombro que a arrojou de costas ao interior da tenda. -Têm cinco minutos para se vestir. Logo a tenda será desmontada. Em dez Pégasus Lançamentos

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minutos partiremos.

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Foi tudo disse... Ou tudo gritou. Não houve comentários sobre o que ela acabava de esclarecer. Simplesmente a ordem de trocar-se antes que a tenda fosse desmontada. Que bestial era aquele homem, tanto em tamanho como em inteligência! Poderia pedir qualquer coisa e ela teria dado, só para sair do apuro. Tinha nas mãos um poder absoluto para negociar com vantagem, posto que ela estava a sua mercê. Mas não se dava conta disso. Só via os quinhentos marcos que cobraria. E por desgraça, era o único que Reina não podia oferecer, posto que seu pai havia esvaziado as arcas para a cruzada do rei Ricardo.

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C apítulo 12 Ranulf tinha a sensação de que, esse dia, a marcha era mais longa que nunca. Avançavam a bom passo, não obstante a lentidão a que os obrigavam os homens de Rothwell, nenhum dos quais montava a cavalo, e as carretas de provisões. Os trinta homens de Ranulf, que já estavam há quatro anos a seu lado (mais, em alguns casos), foram montados em animais que ele havia comprado tempo atrás. Não eram os melhores nem os mais jovens que se podiam conseguir no mercado; tampouco tão caros como os cavalos de combate que havia proporcionado a Searle e a Eric quando foram armados cavalheiros, mas bastavam para suas necessidades. Aqueles trinta cavalos não haviam custado barato: quatro meses de serviço às ordens de um criador do norte, acossado por ladrões escoceses. Mas o fato de que todos seus homens iam montados lhe possibilitava realizar trabalhos nos quais a velocidade era indispensável. Habitualmente, o tempo passado a cavalo transcorria com celeridade para Ranulf; empregava-o em planejar o trabalho que tivesse entre mãos ou o vindouro; também em sonhar com o futuro, com o momento em que obtivesse, por fim, seu objetivo e tivesse seu próprio castelo, ricos campos para mantê-lo e aldeãos dos quais ocupar-se. Havia aprendido tudo o possível sobre cultivo e criação de animais, além de leis feudais, pois não contava com a educação necessária. Ranulf havia passado os nove primeiros anos de sua vida com o ferreiro da aldeia, um homem brutal a quem seu avô havia dado sua mãe como esposa, ao proclamar esta que o filho do senhor havia plantado semente em seu ventre. Como ela morrera um ano depois de nascido o menino, o ferreiro não fez bom negócio: só obteve um bebê para criar, que de nada lhe serviria enquanto não aprendesse o ofício. Isso ocorreu antes do devido, fato que explicava o exagerado desenvolvimento muscular de Ranulf em tenra idade. Ser o filho bastardo do futuro senhor não lhe facilitou a vida; pelo contrário, a fez muito mais difícil, pois os jovens da aldeia o rechaçavam, o ferreiro o Pégasus Lançamentos

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fazia trabalhar inumanamente por ressentimento, e seu pai, que só tinha dezesseis anos ao nascer Ranulf, não se interessava absolutamente por seu destino. De vez em quando aparecia seu senhorial avô, para inspecionar seu crescimento, mas nunca lhe oferecia uma palavra bondosa nem um gesto amável. A seu pai só o via rara vez e de longe. Nem sequer conheceu seu pai até o dia em que o ordenou viajar a Montfort, onde se adestraria como cavalheiro. Provavelmente isso ocorreu porque, depois de cinco anos de matrimônio, seu progenitor não havia tido filhos legítimos. Tinha outro bastardo, ao qual já havia renomado herdeiro em caso de que nunca tivesse um de sua esposa. E assim ocorreu: sua esposa resultou estéril e continuava com vida. Mas então Ranulf ignorava tudo isso. Durante muitos anos pensou que lhe estava educando para herdar. Por isso nunca se queixou da dureza com que o adestrava Montfort; também por isso sofreu um golpe tão duro ao descobrir que seu irmão bastardo herdaria tudo. A educação que lhe brindaram em Montfort se reduziu ao uso das armas, com um toque de cortesia cavalheiresca apenas suficiente, pois o próprio lorde Montfort não se destacava nesse aspecto. Mas Ranulf foi armado cavalheiro. Na verdade, obteve suas esporas no campo de batalha quando só tinha dezesseis anos, durante uma das guerras feudais de Montfort. Continuou ao serviço do nobre por um ano mais foi só porque Walter, um ano maior que ele, devia esperar esse tempo para ser armado cavalheiro, e ambos haviam jurado procurar fortuna juntos. Se suas maneiras revelavam sua origem vulgar, como ela declarava, era em parte conseqüência da «educação» recebida, mas também por decisão própria; a desconfiança que lhe inspiravam as damas tingia sua atitude para com elas. E era a necessidade de tratar com Lady Clydon o que fazia interminável a jornada: em vez de distrair-se com agradáveis pensamentos sobre o futuro, via-se acossado pelo aborrecimento, o desconcerto e o horror pelos acontecimentos da manhã; mais especificamente, pelo que havia sentido ao ver a dama ao lombo de um cavalo. Não se parecia em nada a uma verdadeira dama, com aquela nuvem de cachos negros que ondeavam sobre as costas e os ombros, lhe açoitando os quadris. A camisa, Pégasus Lançamentos

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muito curta, tinha se encurtado ainda mais, deixando expostas pernas que deveriam ser fracas, considerando o estreito de seu corpo. Entretanto, eram assombrosamente bem formadas e mais longas do que ele havia imaginado. Ou era por que se via muito? Mantinha-se sobre os arreios com os ombros fechados para trás e a cabeça em alto: um porte aprendido do berço, sem dúvida. Ao galopar pelo acampamento havia parecido linda, ainda que Ranulf soubesse que não o fosse. O mais assombroso era que tinha lhe despertado a lascívia. Certamente se devia ao fato de ter visto um seio. Não, não era só por isso. Ranulf havia visto muitos seios para que um mais lhe esquentasse o sangue, só por plantar-lhe na cara. Entretanto, aquele globo branco, como a lua, era diferente. Cabia na mão, mas sua forma perfeita não decaía absolutamente, a diferença do que ocorria com mamas maiores. E se algo o fazia inigualável era o rosado mamilo, tão grande para um montículo tão pequeno e tão sensível! Ranulf tinha ficado fascinado vêlo enrugar-se ante o toque do tecido. Depois, aquelas pernas abertas aos lados dos arreios bastaram para lhe inflamar os sentidos. Entretanto, ainda não conseguia compreender por que. Aquela mulher era tudo o que ele detestava. O horrorizava só o fato de que tivesse acontecido. Passou o dia dando olhadas furtivas para a carreta em que ela viajava. Só queria assegurar de que, completamente vestida, não restava nela nada desejável. Assim, coberta dos pés a cabeça, voltava a ser a mesma dama, afetada e rígida, envolta em seu altivo orgulho e disposta a arrojar veneno cada vez que seus olhares se cruzassem. E essa era outra coisa que agravava sua fúria. Por que parecia impossível intimidar essa pequena harpia para que não lhe causasse problemas? Havia feito o possível, por certo. Ante sua ira, os homens mais experientes tremiam como gelatina. Mas ela não. Ela o enchia de insultos ainda que estivesse ao alcance de sua mão. Ninguém, nunca, havia se atrevido até então a isso. - Nos deteremos outra vez na abadia, Ranulf? - perguntou Walter, aproximando o cavalo ao dele - Está muito perto. - Não. Com este general entre nós, não. Pégasus Lançamentos

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- Que gener... ? Ah, ela. Mas podemos deixá-la no acampamento enquanto nós... - Para que se apodere de outro cavalo quando não houver ninguém para impedila. Não, não penso perdê-la de vista nem de ouvido, mesmo que isto me torne louco. Walter riu entre dentes, lembrando o que havia escutado antes que Ranulf jogasse a dama dentro da tenda. - Sabe expressar-se com palavras, sim. - Só ouviste uma pequena amostra. - Sabe a que se referia quando disse que Rothwell roubava uma fortuna? - Assegura que ele não tem direito algum sobre ela, que não há nenhum compromisso matrimonial nem o houve nunca. - Você tinha dúvidas sobre a cobiça de Rothwell, não? - Não importa - replicou Ranulf, teimoso - Não nos paga para decidirmos quem tem direito e quem não. - Mas pelos cravos de Cristo, Ranulf! Te dá conta do que isso significa? Se o velho não tiver direitos sobre ela, por que entregá-la? Está em seu poder. Por que não fica com ela? - Nem te ocorra repetir isso! - bramou Ranulf, horrorizado - Não quero nenhuma dama por esposa! E essa, menos ainda! - Nem sequer por Clydon? Ranulf vacilou por uma fração de segundo. - Não, mesmo que me oferecesse o reino inteiro. - Clydon é igualmente tentador - apontou Walter, com um sorriso. Só obteve um olhar sombrio. Ranulf esporeou seu cavalo e se adiantou, negandose a escutar mais. Mas a idéia havia dado raízes na mente de Walter. Procurou com a vista a Scot, mestre de arma de Rothwell, e pôs seu cavalo ao passo junto a ele. - Como averiguou seu senhor a morte de Roger de Champeney, mestre Scot? - Possivelmente estava na carta que recebeu de seu sobrinho, que foi às cruzadas com o rei. O ouvi mencionar o nome desse cavalheiro depois da chegada do Pégasus Lançamentos

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mensageiro.

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- Soube que estivesse comprometido com Reina de Champeney, antes disso? - Esse compromisso nunca existiu - soprou o homem - Só o ouvi dizer que a menina seria presa fácil, posto que seu grande senhor ainda estava na Terra Santa. - Não lhe parece que deveriam ter mencionado isso antes? - exclamou Walter, irritado. Não havia esperado obter uma confirmação exata, mas sim só mais motivos de duvida para oferecer a Ranulf. O mestre Scot encolheu de ombros. - O que façam os barões não me concerne, mas não sei no que teria isso mudado as coisas, se a vós já pagou para que levem a senhora. - Ah, eis aqui a questão! Sir Ranulf não aceitou esse pagamento. O mestre Scot se deteve. - Nesse caso, por que levamos uma jovem inocente como ela a um demônio como lorde Rothwell? - Boa pergunta - replicou Walter. E se afastou para colocar a seu cavalo a passo junto à carreta de provisões, onde a «inocente» jovem padecia os tombos da marcha. Devido a sua irritação, Ranulf tinha negado permitir que ela viajasse a cavalo. - Me ocorreu que gostaria de ter um pouco de companhia. Ela lhe dedicou um olhar frio e afastou a vista. - Posso prescindir dos amigos desse homem, obrigado. Walter fez uma careta, mas insistiu. - Realmente, Ranulf não é fácil de tratar quando não o conhece bem, mas quando o comparar com seu prometido lhe parecerá um santo. - Não me parece provável, De Breaute. Walter encolheu de ombros e não disse mais, mas continuou marchando junto à carreta. Esperava que a curiosidade feminina se impusesse... A menos que ela tivesse mentido ao dizer que não existia tal compromisso matrimonial. Claro que, ainda sem Pégasus Lançamentos

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compromisso, ela podia conhecer Rothwell e, portanto, não necessitava elucidações. Nesse caso Walter teria que tentar um enfoque diferente para expor sua idéia. Mas a mutreta funcionou. Ela o olhou de soslaio, sua expressão não era tão gélida, ainda que não oferecesse tampouco cordialidade. - Conhece esse... Esse corvo que planeja roubar minha herança? - Conheço-o, sim. Mas me diga uma coisa, senhora: se ele não é seu prometido, com quem irá casar-se? Ela baixou a vista e demorou vários segundos em responder. Por um momento, Walter pensou que não o faria. Por fim, o que disse foi muito diferente do que ele esperava. - Não tenho nenhum prometido. - Significa que o conde Shefford planeja mantê-la como pupila, na sua idade? - Não. Tenho sua bênção para contrair casamento. E teria resolvido o problema em uma semana, se você e seus amigos não tivessem se intrometido. Dominava seu aborrecimento até o ponto de que só um pouco de amargura se filtrava em suas palavras. Mas Walter seguia sem compreender. - Como é possível isso? Se Shefford lhe enviar a um esposo é porque assinou um contrato por você. Portanto, esse homem é seu prometido. - Não. Lorde Guy não enviará ninguém. Embora já não importe meu pai, antes de morrer, disse-lhe que ele se havia encarregado disso, mesmo que na verdade a questão ainda não estivesse resolvida. Walter franziu o cenho, pois ainda não compreendia. - Mas Shefford precisava saber o nome do escolhido para dar sua bênção, assim para assinar o contrato por você, se é que, como dizem seu pai morreu sem fazêlo. Por que assegura que não está prometida e que, não obstante, pensavam casá-la no prazo de uma semana? Reina detestava admitir o inconcebível: que seu pai tinha permitido assinar seu próprio contrato. Fitz Hugh não havia se incomodado em analisar o que havia dito. E agora era seu amigo o que não podia deixar o assunto em paz? Pégasus Lançamentos

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- O que importa por que ou como, Sir Walter? Só importa que me levam a... - Espere! Se não tem prometido, tampouco há contrato. E como Shefford não está aqui, quem assinará por você? Reina suspirou. - Eu mesma. Antes de estalar em chiados, saiba que assim o quis meu pai. Deume a escolha entre dois candidatos que ele aprovava, mas morreu sem saber qual eu preferia. Ao dizer a lorde Guy que ele havia resolvido a questão, assegurou-se de que eu pudesse ainda escolher. Não sabia que seria tão difícil me comunicar com eles para oferecer a aliança, e tampouco que a noticia de sua morte circularia com tanta pressa, tentando a outros homens a me tomar pela força. Walter a olhava, incrédulo. - O que diz vai contra todos os costumes, senhora. Não é comum. - Nestas circunstâncias, faz-se com muita facilidade. Esquece que lorde Guy acredita que o contrato foi estabelecido por meu pai. Por isso me deu permissão para me casar. Sir Henry, o castelão de lorde Guy, devia vir à boda para receber a homenagem de meu esposo a Shefford e levar cópias do contrato matrimonial. Não faltava mais nada para que tudo ficasse resolvido legalmente e sem mais conseqüências. - Não, a meu modo de ver. Acredito que também se necessita seu acordo para evitar conseqüências futuras. Entretanto, Rothwell está decidido a se apropriar de você. Em sua opinião, o que resultaria isto? - Não estou familiarizada com os casamentos forçados, Sir Walter, e não sei o que lhe dizer. Só posso afirmar isto: a menos que Rothwell me mate antes do retorno de lorde Guy, eu me encarregarei de fazer saber que fui obrigada. O que ocorrerá então é questão de homens. Mas também posso dizer que lorde Guy estimava meu pai e me tem afeto. Possivelmente faça a guerra para me recuperar, haja ou não origem deste enlace. Mas isso não o interessa, não é? - adicionou ressentida - Pelo que sei, seu dever consiste só em me entregar a Rothwell. - Mas e se estiver disposta a se casar com Rothwell? - inquiriu Walter. Pégasus Lançamentos

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- Nesse caso quem poderia saber que não era ele que meu pai escolheu para mim? - Por Deus, minha senhora, é uma loucura me dizer isso! Se eu repetisse a Rothwell, ele sim teria motivos para lhe matar antes do retorno de Shefford. -Também terá que matar a todos os próximos meus que conhecem a verdade e, portanto, matar a todos os de Clydon, pois eu morrerei sob tortura antes que lhe revelar nome algum. De um modo ou outro, lorde Guy saberá se me obrigou ou não lhe diga isso também, se pensa dizer algo. E agora, Sir Walter, chegou sua vez de responder perguntas. - Sim, o justo é justo - reconheceu-o. - Me diga se existe alguma possibilidade de que eu possa aceitar sem coerção o casamento com Rothwell. Obviamente, é homem sem honra, mas há algo mais que possa servir de recomendação? - Quer a verdade, senhora? - Seria o melhor - replicou ela secamente. - Quanto a seu caráter, não tem nada recomendável. Apesar disso, que lhe deixe convencer de aceitá-lo depende do que considere importante. É bastante rico, se isso importar. É um grande senhor, com vassalos em abundância, recebidos de seus anteriores matrimônios, para o caso de que isso seja de seu interesse. Se nenhum desses homens o estima nem o respeita se deve a sua maneira de ser, que ofende a todos. Se lhe interessa ter filhos, não terá nenhum dele. Se verá obrigada a esperar a viuvez e um novo matrimônio, e isso só se sua numerosa família estiver disposta a renunciar a alguma parte de sua herança, coisa que me coloco em dúvida. São tão ambiciosos quanto ele. E quanto a... - Acredito que com isso basta, Sir Walter - interrompeu Reina, mais pálida que antes -. Me diga por que não é possível ter filhos com ele. Está aleijado ou incapacitado por algum motivo? - Não, minha senhora, mas é velho. Nem tanto, porém, como para não... Eh... Tentá-lo. Pégasus Lançamentos

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Ela empalideceu ainda mais, tal como ele esperava, mesmo que seus olhos pareceram dispostos a fritá-lo ao replicar. - E a esse homem me vendem? Não resultou fácil, a essa altura, fingir indiferença. - Quem necessita dinheiro não analisa muito o trabalho, e este é nosso meio de vida: vender nossos serviços. Se nós não aceitássemos a missão, Rothwell contrataria outros para o mesmo. Mas seu oferecimento foi muito tentador para passar por alto, sobre tudo considerando que permitia Ranulf comprar o feudo que deseja. - Se deseja terras, eu lhe darei um rico feudo, com a condição de que me leve de volta a Clydon. Walter grunhiu para si mesmo. Ranulf o mataria se chegasse a descobrir o que ele estava rechaçando em seu nome. - Faria necessário mais que isso para fazê-lo mudar de idéia. Tem que manter sua reputação, e demonstrar que nunca deixa de cumprir com a tarefa encomendada. - Isso é tudo? Não deu sua palavra nem aceitou já seu pagamento? - Não, senhora. - É normal trabalhar assim? - Não - admitiu Walter - mas Rothwell o agrada tão pouco quanto agradará a você. - Nesse caso não há um problema. - Há um problema muito grande - refutou ele- A reputação não é nada desdenhável em nossa profissão. - Vale dois feudos? - ofereceu ela. Walter esteve a ponto de sentir um sufoco. Ranulf o mataria se soubesse disso, e com motivos. Mas ele estava decidido a jogar tudo ou nada. -A o que parece, esquece sua situação atual, Lady Reina. O que obrigaria Ranulf a conformar-se com tão pouco, se a tem em suas mãos e poderia apropriar de tudo a desposando ele mesmo? É uma grande pena que não se deixe persuadir a respeito, pois reconhecerá, sem dúvida, que representa o menor de dois males. Pégasus Lançamentos

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Ela recuperou com acréscimo a cor.

-Talvez eu não o aceitasse. Seu amigo é um caipira vulgar, com as maneiras do pior dos aldeãos. -Sim, é verdade. - Walter sorriu - É que não teve muitas relações com senhoras dispostas a corrigir suas maneiras. Por outra parte, é jovem, forte e não carece de meios. Mesmo que agora careça de terras, tem os meios para corrigir essa falta: a pequena fortuna que economizou com esse fim. - Alguns milhares de marcos? -burlou-se ela. - Antes bem, uns quinze mil - corrigiu Walter, com muito prazer. - Como isso é possível? - perguntou ela - Os mercenários não ganham somas tão altas, qualquer que seja sua reputação. E a propósito: por que se mostrou Rothwell disposto a pagar tanto? - Rothwell estava desesperado por contratar Ranulf para essa missão, pois lhe informaram que nunca falhava. Pensava lhe oferecer só cem marcos, o que é bastante para uma tarefa tão simples e que requereria tão pouco tempo. Mas Ranulf rechaçou essa oferta e as posteriores, até que se chegou a quinhentos marcos, cifra tão alta que era impossível recusar o plano. Quanto a sua outra pergunta, é certo que o trabalho de mercenário não paga bem. O maior rendimento está na possibilidade de tomar tesouro e pedir resgate. E nesse aspecto tivemos sorte. Em uma escaramuça, faz vários anos, Ranulf capturou sem ajuda alguma catorze cavalheiros. Os resgates dessas pessoas representam a maior parte do que agora tem. Já vê que não iria ao matrimônio com as mãos vazias. Mas fiz mal em mencionar isto. Como disse, não pode convencê-lo... - Que a ele não se pode convencer...! Tal como vejo as coisas, eu deveria ser a persuadida, para que as coisas se fizessem com a bênção do conde. Se eu não facilitasse as coisas dizendo que é o homem escolhido por meu pai, sua situação seria igual a de lorde Rothwell. E como ousa não deixar-se tentar, se seus quinze mil marcos não podem se comparar nem remotamente, a Clydon e tudo o que a propriedade significa? Pégasus Lançamentos

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- Conforme acredito, ele não vê as coisas com tanta claridade, senhora. Só vê que não lhe atrai... - Em efeito - replicou ela com secura. - Bom, já vê.

Como não se obrigaria a casar com ele, rechaça a idéia por

completo. Não ocorreu pensar que pudesse preferi-lo a Rothwell. - O que preferiria é não me casar com nenhum dos dois De Breaute, e bem sabe. Tampouco tem em conta o fato de que meus vassalos virão por mim, e não ao passo de tartaruga ao que estamos viajando. - Acredita nisso? Ainda se pensassem que você morreria se tentassem recuperá-la? Ela entreabriu os olhos para olhá-lo; eram como brasas azuis. - E por que pensariam isso? - Porque assim indica a advertência deixada por Ranulf em sua alcova. - Seriam capazes de me matar? - Não, mas se arriscariam seus vassalos a averiguá-lo? Ela não respondeu. Durante alguns segundos a fúria a impediu de dizer uma palavra. Ao cabo disse: - Por que se incomoda em dar a entender que posso escolher, se diz ao mesmo tempo em que não há alternativa? Qual é seu propósito, De Breaute? - Faço-o por curiosidade, suponho; eu gostaria de saber o que escolheria se tivesse a possibilidade. E estive me perguntando se poderia convencer Ranulf. Se houver alguém capaz de persuadi-lo, esse sou eu, pois nenhum outro se atreve a desafiá-lo como eu, mesmo que só até certo ponto. Mas não tem sentido tentá-lo se não conto com sua permissão. Como vê tudo se reduz a um jogo de possibilidades. - Poderia ter mentido com respeito a Rothwell - assinalou ela amargamente. - Certo, mas não é preciso que aceite minha palavra. Os homens que partem detrás de nós lhe serviram durante um ano. Pergunte a qualquer deles e provavelmente receberá a mesma opinião. Duvido que tenham a inteligência necessária para mentir, mas tampouco tem motivos para fazê-lo. Cada um deles detesta esse homem por sua Pégasus Lançamentos

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perversidade e suas crueldades.

- Tenho um vizinho que inspira esses mesmos sentimentos a suas pessoas. Cruzaram espadas com alguns de seus homens, ontem pela manhã, coisa pelo que em seu momento lhes estive agradecida. - E já não? Isso não merecia sequer resposta; ao menos, assim o sugeriu a expressão de Reina. - Vejamos se compreendi bem - disse a jovem - se manifesto que me casarei de boa vontade com Fitz Hugh, lhe oferecendo o mesmo contrato que teria oferecido ao homem escolhido por meu pai, você fará o esforço de convencê-lo para que me despose, deixando Rothwell fora do assunto. - Correto. - Quanto tempo me concede para pensar? - Só até que acampemos nesses bosques - disse Walter, assinalando um ponto que estava apenas a dez minutos de marcha - Necessito tempo para persuadir Ranulf, e se ele aceitar, a boda terá que celebrar-se esta mesma noite. - Como? -exclamou ela. - Estes bosques pertencem à abadia que está mais à frente. Se Ranulf estiver de acordo, o bispo ali residente poderá casá-los. Terá que ser esta noite, pois se dermos a Ranulf tempo suficiente para pensar, acabará por mudar de idéia. - Sei que não sou linda, De Breaute, mas também sei que não sou tão horrível. Por que, se o pensar ... ? - Não é nada pessoal contra você, senhora. Ranulf desconfia de todas as damas de linhagem. Teve más experiências. Sendo assim as coisas, utilizarei Clydon para tentá-lo, compreende? Uma vez casados terá tempo suficiente para ganhar sua confiança. - Não fortalece sua causa me dizendo isso, Sir Walter. - Talvez não, mas reconheça senhorita, que Ranulf é jovem e pode mudar sua maneira de ser. Rothwell, em troca, não. Pégasus Lançamentos

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- Se retire, então, que necessito a cada segundo restante para pensar bem.

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C apítulo 13 Walter estava desolado. Fazia quase uma hora que insistia, mas Ranulf não mudava de atitude, mesmo que ainda não tivesse perdido a paciência nem deixasse de escutar seus argumentos. Sentados ante a fogueira, perto da tenda de Ranulf, tragavam pela força os restos da pouco apetitosa comida preparada com celeridade. A dama estava no outro extremo do acampamento, ante outra fogueira; Searle e Eric haviam sido enviados para custodiá-la, sob a desculpa de lhe fazer companhia. Walter notou que Ranulf desviava os olhos para ela repetidas vezes durante a conversa, ainda que ela não os olhasse em nenhum momento. Se algo na dama atraía Ranulf, Walter mudaria de tática. Porém, embora ele achasse a dama bastante bonita, com seus etéreos olhos azuis e suas delicadas feições, sabia que seu a amigo atraíam moças mais chamativas. E mais robustas, por certo. Talvez conviesse mudar de tática. Depois de tudo, ainda ficavam umas quantas coisas por dizer em favor de Clydon, - Não te compreendo, Ranulf. Não conheço um homem que não se precipitasse sobre esta oportunidade. Qualquer um aceitaria casar-se com a dama ainda que pela força. E você pode desposá-la com sua anuência. Não pensaste no poder que obteria com os ganhos anuais de Clydon? O serviço de cem cavalheiros! Imagina quantos feudos tem que ter essa jovem, além do castelo de Clydon, para contar com tantos ganhos? - Surpreende-me que não tenha pedido um inventário completo, aproveitando a oportunidade. Walter avermelhou. Ranulf não havia gostado absolutamente que ele tivesse abordado à dama nesse aspecto, sobre tudo por esses motivos. Walter acabava de relatar tudo o que tinha sido dito por ela, excetuando o Pégasus Lançamentos

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oferecimento de dois feudos se a devolvessem aos seus. De nada servia. Ranulf, simplesmente, não estava interessado. - Dá-se conta de que Clydon equivale às terras de seu pai? - deixou cair Walter. Imediatamente adicionou, antes que Ranulf pudesse reagir ante a menção da riqueza paterna - E tiveste em conta que só deveria jurar fidelidade a Shefford? Como dono de Farring Cross teria que jurar ante o rei Ricardo. É melhor um conde que um rei, sobre tudo se ao rei lhe agrada tanto a guerra. Teria menos exigências... - De meu senhor feudal, sim, talvez. Mas e as exigências de administrar um feudo tão grande? Perguntou-lhe até que ponto está ela a por sua vez enfeudada? Ou a quantos vassalos tem? Por quantas pessoas é responsável? Eu só queria um pequeno feudo para cultivar e no qual me instalar, Walter. Nunca concebi a idéia de obter tanto poder como meu pai. - Porque era uma idéia impossível. Poderia vender sua espada durante o resto de sua vida sem te aproximar jamais à soma necessária para comprar um feudo como Clydon, mas hei aqui que lhe dão de presente isso, sem mais custo que te casar com uma mulher. Nem sequer é preciso lutar por ele. - Não? Acha que Rothwell renunciará sem nos fazer uma visita? Ela também tem vizinhos que chamam a sua porta com aríetes, se por acaso não o lembra. Walter se encolheu de ombros ante esse sarcasmo. - Mas sua força já não seria só de trinta homens, Ranulf. Teria exército próprio e, em caso necessário, poderia pedir outro a Shefford. Algo mais: é mais singelo conseguir ajuda de um conde que de um rei. - De acordo, mas nada poderia compensar as dores de cabeça que me dariam esta dama e suas damas. Pelos pregos de Cristo, Walter, contabilizou todas as que têm a seu cuidado? - É por isso que te opõe? - Oponho-me por ela. Não quero nenhuma dama em minha vida; menos ainda uma anã que acredita medir dois metros de altura e que não sabe quando provoca um homem mais do que o devido. Pégasus Lançamentos

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Walter esteve a ponto de sorrir, pois agora sabia que era possível convencer Ranulf. Só estava ferido pelos insultos que a dama havia descarregado sobre ele. - Talvez seja muito audaz, porque faz tempo que manda sobre tudo que a rodeia. Só necessita um esposo que a coloque no prumo. Como Ranulf grunhiu, optou por seu último argumento: - Não pensava tomar uma esposa uma vez comprasse Farring Cross? - Sim. Uma moça de aldeia, de sangue quente. Walter o olhou por um momento, horrorizado. Mas já tinha as munições que necessitava. - E quem se encarregará de atender sua casa, de tecer o pano, da limpeza e a cozinha? Acha que os servos trabalharão só porque há trabalho a fazer? Que aceitarão ordens de uma igual, só porque você a tenha elevado à condição de esposa? - Se eu o disser... - Ranulf, meu amigo, falas como um idiota teimoso. Além disso... Não, me escute - apressou-se a adicionar, ante o cenho furioso de seu amigo - Pode dar uma espada a um aldeão e dizer que é cavalheiro? - Não seja estúpido - grunhiu Ranulf£ - Claro, para ser cavalheiro se requer anos de aprendizagem. E também se requer anos para ser uma dama. As habilidades não se trazem do berço, Ranulf. Uma senhora se adestra para que cumpra com suas funções, tal como nos adestraram. Quer viver durante anos como os porcos, enquanto sua moça de aldeia aprende a realizar as funções de dama? E quem lhe ensinará, a não ser outra dama? E que dama condescenderia a educá-la por preço algum? - Basta, Walter! - Sim, basta já, De Breaute - disse outra voz. Lady Reina apareceu no círculo delimitado pelo fogo; Searle e Eric a seguiam a pouca distância- . Se não obteve seu assentimento até agora, o mais provável é que não o obtenha. E não necessito que obrigue nenhum homem a me aceitar. Está idéia foi sua não minha... Nem dele, por certo. Aceitei só por um motivo: pintaram um retrato dele melhor que de Rothwell. Pégasus Lançamentos

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Mas parece óbvio que Rothwell é o melhor dos dois. Ao menos, sente-se capaz de ser o lorde de Clydon, enquanto que seu amigo parece colocar em duvida sua própria capacidade de governar um feudo tão grande. Walter emitiu um gemido. Nem querendo poderia a moça ter dito nada pior. Comparar Ranulf com Rothwell já era o bastante, mas dizer que Rothwell era melhor... E, além disso, colocar-se em tela de julgamento não só a capacidade de Ranulf, mas também sua coragem, dando a entender que tinha medo de enfrentar o desafio representado por Clydon... Ranulf se levantou de um salto antes que ela tivesse terminado de falar. Walter não teria se surpreendido que enforcasse a dama por aqueles novos insultos. Estava tão furioso que, de momento, não pôde falar. Fulminava-a com os olhos e ela (que Deus a amparasse) não parecia temer absolutamente. Até se atreveu a provocá-lo ainda mais. - Se me equivoco Fitz Hugh, diga. Ou prefere me fazer acreditar que rechaça Clydon porque lhe dou medo? O ar surgiu sibilante entre os dentes do cavalheiro. - Sele um cavalo, Walter! Agora mesmo iremos à abadia! Enquanto ele partia a procura de seus próprios arreios, Walter a olhou com incredulidade e viu que sorria. - Fez de propósito! Ela se encolheu de ombros. - Pareceu que necessitava um pouco de ajuda. Tal como disse prefiro ele a Rothwell. - Mas dificilmente lhe perdoe o que acaba de insinuar, senhora. Ela voltou a encolher de ombros. - Se é tão estúpido para não compreender que o estimulei para que tomasse a decisão correta, em seu próprio benefício, certamente, o problema é dele. - Pois temo que o problema seja seu - murmurou Searle, a suas costas. Eric se apressou a concordar: Pégasus Lançamentos

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- Está certa de querer se casar com ele, senhora?

- Me pergunte, em troca, se quero Rothwell, a quem estavam tão dispostos a me entregar. Deixou atrás de si aqueles três rostos avermelhadas e foi procura de seu cavalo.

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C apítulo 14 Ranulf sabia perfeitamente que o haviam impulsionado a aquelas bodas, mas estava disposto com a única finalidade de fazer que a dama se arrependesse de tê-lo manipulado assim. Ela aceitava assinar o contrato matrimonial e Ranulf, ainda que não gostasse disso, sabia ser necessário. Mais ainda, esse documento era considerado como o mais importante de todos em quaisquer bodas. Além disso, sendo ela tão ardilosa, teria que prestar muita atenção quando ditasse as condições ao jovem monge que atuava como escrivão. Para a discussão, os fez passar a uma sala pequena. Walter e Searle atuariam como testemunhas de Ranulf; o monge seria a dela. O cavalheiro teria preferido analisar antes as condições em privado, mas ela insistiu em que não o fizesse, pois ele não podia deixar de achar tudo de seu agrado: pensava lhe oferecer o mesmo que teria oferecido a lorde John de Lascelles. (Por fim, Ranulf conhecia o nome do candidato!) Se isso daria certo ou não, restava por ver. Em caso contrário, seria difícil discutir com ela diante do monge. E sem dúvida a dama contava com isso. Só depois de falar com o padre Geoffrey e de que este aceitasse casá-los, Ranulf caiu na conta de que o pequeno plano de Walter poderia lhes explodir na cara: a senhora podia ter pedido santuário ao bispo. Justamente, era a razão pela qual Ranulf não tinha querido levá-la a passar a noite na abadia. Perguntou-se por que não o fazia. A idéia tinha que lhe ter ocorrido, não duvidava. Posto que havia ficado clara a pobre opinião que tinha a respeito dele, era impossível que desejasse casar-se com ele. Entretanto não demonstrou a menor relutância diante do padre Geoffrey. Desde sua chegada à abadia só mostrava um sereno domínio de si. -Antes de estabelecer as condições, Sir Ranulf, tem direito de saber o que irá receber. Ele soprou ao notar que a senhora voltava a falar em termos de cortesia. Reina, Pégasus Lançamentos

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ao precaver disso, dedicou-lhe um sorriso destinado a chateá-lo e continuou: - Como meu pai está morto me deixando como única herdeira não chego a você com um simples dote, mas sim com toda minha herança. Além do castelo de Clydon, com suas terras de cultivo e seu moinho, há outros dois castelos: Torre Brent e Colina Roth. Não são tão grandes, mas tampouco pequenos. Há também outros dois imóveis perto de Colina Roth e três casas solares fortificadas, com seus casarios, perto de Shefford. Ranulf ficou impressionado. Foi Walter quem ocorreu perguntar: - Qual escolhe como dote? - Acreditava haver deixado claro que não contribuo um dote, mas sim tudo o que meu pai possuía. Sendo assim, desejo conservar a metade de minha herança no caso de que aconteça algo a Sir Ranulf antes que nascessem filhos desta união. Se tivesse um filho que herdasse, eu só reclamaria para mim o uso de Clydon até o dia de minha morte, momento no qual passaria a meu filho. Se eu morrer antes que Sir Ranulf, tudo seguiria em poder dele, é obvio, pois não tenho outro familiar que possa reclamar propriedade alguma. - Parece razoável, Ranulf? -perguntou Walter. Era mais que razoável: estava entregando tudo quanto possuía por tanto tempo quanto ele tivesse de vida. Mas Ranulf não confiava nela: em algum lugar havia uma armadilha, só que não conseguia vê-la. Em vez de responder a Walter, dirigiu-se à moça. - Diz que só deseja a metade de sua herança se eu morrer? A quem passaria a outra metade, nesse caso? Ela o olhou como se o achasse idiota. - É habitual que a família do esposo dispute a propriedade quando este morre. Com freqüência tratam de conservá-la toda, embora lorde Guy o impediria, em meu caso. Mas a família de lorde John teria pedido a metade, como a de lorde Richard, se este tivesse respondido antes a meu convite. Portanto, eu estava disposta a dar a metade para formar uma ou outra dessas alianças. Tal como disse, ofereço-lhe as Pégasus Lançamentos

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mesmas condições. Bastará que você faça outro tanto, se comprometendo a me legar a metade de sua posse, soma que me seria dada só em caso de sua morte. Mas acreditava que estávamos de acordo em deixar a análise das condições para mais adiante. - Não terminou? -perguntou Ranulf, franzindo o cenho. Ela meneou a cabeça. - Só mencionei o que está sob meu domínio, não endividado. Entretanto, devo mencionar agora que outros dois feudos voltaram para mim pela morte desses vassalos, um sem herdeiros e o outro com uma filha de muito pouca idade, que agora é minha pupila. Na realidade foram três os vassalos que foram mortos com meu pai nas cruzadas, mas o terceiro tinha três filhos varões, dos quais o mais velho já me jurou vassalagem pela casa solar que agora ocupa. Ranulf passou por alto o grunhido de Walter. Nenhum deles sabia, de momento, que a dama tivesse tantas terras. - Quantos vassalos levou seu pai? - A quatro. William de Bruce continua junto a lorde Guy, como os cavalheiros do castelo, embora já perdemos dois deles, como lhe contei ao apresentar as viúvas. O filho de Sir William já me jurou vassalagem por seu pai, que ocupa uma casa solar e uma ponte com pedágio. Ranulf perguntou, quase com medo: - Isso é tudo? Ela voltou a menear a cabeça. - Tenho outros três vassalos que não partiram com meu pai. Sir John ocupa um imóvel e quatrocentos acres perto de Bedforf. Sir Guiot, um imóvel e um moinho que valem o serviço de três cavalheiros. E lorde Simon, pai de Elaine, que conheceram, ocupa o Castelo Forthwick, um moinho e duas ricas casas solares. Walter deixou escapar um sonoro grunhido. Ranulf já não estava seguro de seus pensamentos.

Clydon não era só igual às propriedades de seu pai, mas sim as

ultrapassava. À falta de algo melhor que dizer, pois estava francamente Pégasus Lançamentos

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sobressaltado, perguntou:

- E quanto deve lorde Simon, como serviço de cavalheiros? - Doze cavalheiros por quarenta dias, se fossem necessários. Mas se o que os interessa é o ingresso, equivale a duzentos e quarenta marcos ao ano. - E os outros? - O serviço de quinze cavalheiros e meio. Ranulf calculou rapidamente e observou, com desconfiança: - Mas isso representa só quinhentos e cinqüenta marcos de ganhos, minha senhora. De onde provém o resto que proclama? Não tem que ser das terras sob seu domínio, sem dúvida. Ela replicou paciente: - Não. As terras não endividadas rendem oitocentos marcos ao ano. A tutela é de dois imóveis com suas aldeias, e soma cento e cinqüenta. Do castelo e a cidade de Birkenham é de onde... - Birkenham! - exclamaram os três homens, ao uníssono. - A cidade de Birkenham é sua? - perguntou Ranulf. - E o castelo que a custodia - completou ela - Conhecem Birkenham, pelo que vejo? - Quem não conhece essa cidade, senhora? É quase tão grande quanto Lincoln! - Em efeito - respondeu ela, sem a menor presunção na voz - Mas como lhes dizia, Birkenham é a mais rica das propriedades; suas contribuições somam quinhentos marcos ao ano. É também o feudo que voltou para mim, mas não averigüei ainda os ganhos adicionais que isso representa nem saberei até o dia de San Miguel. - Mas por que subfeudo seu pai uma propriedade que vale mais que Clydon, se suas contribuições, por si, somam quinhentos marcos ao ano? Por fim ela sorriu. - Nunca tratastes com mercados e irmandades de artesãos, Sir Ranulf? Birkenham é o feudo mais rico, mas também o mais problemático. Além disso, demanda muito tempo para quem não resida ali. Para meu pai foi um alívio colocá-lo em outras Pégasus Lançamentos

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mãos.

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- E agora será meu problema? -grasnou ele. - Não tem por que representar um problema - indicou ela, franzindo o cenho Só deve decidir se quer conservá-lo ou se o entrega a seus homens ou a um dos meus. Outorgue a Sir Walter – burlou - Com sua lábia, pode tratar muito bem com os exigentes mercados. - Por todos os santos, Ranulf! - protestou Walter, horrorizado - Não te ocorra sequer...! - Pois não merece menos, por haver me enredado nisto - grunhiu Ranulf baixo, logo disse a Reina - Agora, se tiverem terminado, voltemos para as condições. O que deseja de mim, senhora? - Possuo terras em abundância e preciosos troféus de Terra Santa, mas na atualidade não há dinheiro algum, tal como sem dúvida notastes. Não o haverá a não ser depois da colheita e as rendas a cobrar no dia de San Miguel. - Como é possível isso? Eles roubaram? Esses foragidos de seus bosques... - Não, nada disso - assegurou-lhe ela - As cruzadas não são baratas, Sir Ranulf. Meu pai levou mais da metade de nossa riqueza em ouro e jóias para manter o grande exército que o acompanhava. Também partiram com ele a maioria de nossos cavalheiros e cinqüenta soldados de Clydon. - Por isso estava tão mal protegida? Isso provocou um olhar do monge e um rubor feminino. - Em parte. Devia substituir a guarnição e os cavalos, mas só repus os homens... E perdi trinta deles em combate. Muito pouco depois de partir meu pai, Forthwick e Brent foram atacados. Em Torre Brent, os semeados e a aldeia foram incendiados antes que meus homens chegassem. Por isso não recebi lucro algum dessas propriedades o ano passado, e em troca me custou muito reconstruir a aldeia e cuidar de que seus habitantes não morressem de fome. Mas lorde Simon foi capturado e me pediu resgate. Nisso empreguei quase todo o dinheiro que me restava. E ao perder trinta homens aos quais acabava de pagar um ano de salários, não foi fácil substituíPégasus Lançamentos

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los, sobre tudo porque os inconvenientes se apresentaram em cadeia para me obrigar a adiá-lo. Durante o resto desse ano, dediquei o que me devia em serviço de cavalheiros para custódia do castelo, embora nunca tenha sido política de meu pai fazê-lo assim. Logo foi possível contratar outros homens para formar uma guarnição de cinqüenta e cinco soldados, ao cobrar as rendas vencidas o ano passado. - É pouco para um castelo tão grande, mas não todos estão ali - lembrou-lhe Ranulf. Cravou-lhe um olhar melancólico antes de responder: - Só nesta última quinzena tornaram a me faltar. A filha casada de Lady Margaret esteve de visita durante o mês anterior e necessitava uma escolta de dez homens para voltar para Londres. Sir Arnulf, outro cavalheiro do castelo, requereu outros dez para que o acompanhassem a Birkenham, onde o enviei em meu nome. E um de meus oficiais solicitou ajuda por certa matança produzida em uma de minhas casas solares, de modo que enviei a um cavalheiro com cinco homens, faz só quatro dias. Havia sido então quando Sir William teve a louca idéia de me ensinar a defender meu próprio castelo e de fazer forjar uma armadura. Sei que o número é escasso – concluiu - Já disse que até agora, há muito tempo, não tive suficiente para mais. - Mas o ano passado cobrou seus direitos. - E este ano sofri mais catástrofes do que quero lembrar. Em um incêndio desapareceram todos os edifícios do recinto de Colina Roth, incluídos os celeiros, que acabavam de encher-se. Também as muralhas necessitavam reparações, que haviam sido iniciadas, mas não concluídas. Roubaram mais de cem ovelhas, o que me impediu de vender alguma, e todas as vacas. Suspeito que Falkes de Rochefort teve algo que ver nisso. Foi imprescindível substituir o gado, assim como os cavalos para a guarnição, embora ainda não tenho suficientes para todos meus homens. E... - Portanto, o que necessitam de mim é dinheiro. - Sim, mas não muito. O suficiente para finalizar as reparações de Colina Roth e para enfrentar qualquer outra emergência que surja antes de San Miguel. Já têm os homens necessários para incrementar a guarnição, embora em Colina Roth e em Torre Brent fariam necessário uns quantos. E vários cavalheiros mais não sobrariam, por Pégasus Lançamentos

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certo. É lhe pedir muito?

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A resposta de Ranulf veio acompanhada de um olhar azedo. - Já sabe quanto tenho. Portanto, não ignora que isto não será penoso absolutamente. Mas o que acontece com o pagamento obrigatório que devem fazer seus vassalos no dia de suas bodas? - Esse pagamento se realiza ao celebrar a bodas da filha mais velha do senhor, mas eu, tecnicamente, já não o sou. Agora sou a senhora feudal, e nada se paga pelas bodas do lorde nem da lady. De qualquer modo, esse dinheiro seria para cobrir os custos das bodas, que não será carga alguma. Nos depósitos de Clydon há provisões em abundância. Nunca corremos perigo de passar fome. Ranulf estava ainda tão insatisfeito que quase não podia suportá-lo. Como era possível que ela oferecesse tudo e pedisse só uma trivialidade em troca? Claro que algum homem deveria receber tudo isso, mas lorde John ou lorde Richard, sem dúvida, teriam contribuído com inexprimíveis riquezas e o poder de suas famílias. Era ali onde a dama estava equivocada. Ele não tinha relações, família que lhe prestasse ajuda nem poder ao qual recorrer se apresentasse a necessidade. Se ela tivesse sabido, não teria proposto que a metade das propriedades passasse à família de seu marido à morte deste. Ranulf ficou tenso ao lembrar isso e o que na verdade significava. Teria que falar com a jovem a respeito, mas não na presença do monge. Olhou ao religioso e perguntou: - Não anotou tudo isto, não é? - Não, milorde. Só o inventário das propriedades da dama, que acontecerão a seu poder com o casamento, dando estipulado se fará à morte de qualquer um de vós e o que hão combinado pagar, por sua parte. Agora só preciso fazer a lista de suas propriedades. Logo poderão voltar ante o padre Geoffrey para pronunciar seus votos. Os termos legais serão entregues mais adiante. As cópias do contrato completo estarão prontas pela manhã. Ranulf não disse nada. Detestava mencionar o pouco que contribuiria a essas Pégasus Lançamentos

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bodas. Mas o monge esperava.

- Sua contribuição ao matrimônio é de sete mil marcos, para dar uma cifra redonda - disse Lady Reina, sem a menor inflexão na voz - A metade de sua riqueza. O monge ficou horrorizado ante o exíguo da soma. - Mas... - Sem mas - interrompeu ela, enérgica. Mas adicionou, com mais moderação Sir Ranulf também se compromete a me dar filhos, a proteger minha gente e minhas propriedades segundo sua capacidade e... e a não me golpear, pois dado seu inusitado tamanho, seu golpe poderia me matar. Todos os olhares se voltaram para Ranulf e gozaram do intenso rubor que inundava seu rosto. Esse último requisito era inaudito, pois todo homem tinha direito a golpear sua esposa, merecesse-o ela ou não. O monge seria o primeiro em dizê-lo assim. Entretanto ela acabava de estabelecer algo que Ranulf não havia tido em conta. Miúda como era ele não se atreveria a lhe levantar a mão, pois na verdade poderia matá-la. Mas os filhos! Fazê-los figurar no contrato, para que ele não pudesse ignorá-la! Por acaso acreditava capaz de tomar tudo quanto ela tinha e logo trancá-la em alguma parte? A idéia era tentadora, mas não o faria jamais. Pelos cravos de Cristo! Com tanto como recebia, sentiria-se obrigado pela honra a tratá-la com o mais terno dos esmeros. - Estão... eh... De acordo nisto, Sir Ranulf? - perguntou o monge, vacilante. - Sim - assentiu ele, mal-humorado - Mas antes de terminar com as condições, preciso trocar umas palavras com a senhora. Levantou-se e pegou Reina pela mão, para levá-la a rastros antes que ela pudesse lhe contradizer. A jovem pensou que sua intenção era castigá-la antes de assinar o contrato. Tinha se atrevido a muito, considerando que não estava em situação de exigir nada. Mas as coisas iam bem. Depois de tudo, Ranulf havia aceitado antes de levá-la para fora da habitação. Quando ele se deteve ante a porta, ela conteve o fôlego. Teria querido fechar os olhos com força, mas não quis aparentar medo. Se ele a castigasse, seria só seu Pégasus Lançamentos

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castigo por ter se decidido a aceitá-lo. Era uma loucura colocar-se sob o domínio daquele homem, um perfeito desconhecido. Não poder impedir que vendesse suas terras, se assim o desejasse. Não ter direito algum, nem sequer de apelar às cortes sem outorgar tanto domínio sobre ela a um homem que parecia a detestaria. Mas que alternativa restava? Casar-se com um velho ambicioso, a quem nada importaria de Clydon, que só queria se aproveitar de suas riquezas. Estremecia-se em apenas pensar em Rothwell, depois do que de lhe haviam contado... Na realidade havia interrogado alguns de seus homens, pois não confiava em Sir Walter. Ranulf se ocuparia das terras pelo menos. O fato de que tinha economizado por tanto tempo para possuir terras próprias o revelava assim. E era amplamente capaz de mandar em Clydon. Este havia sido o fator decisivo e explicava porque Reina não teria tratado de procurar ajuda no monge, que tampouco era realmente, garantia. Nem John nem Richard teriam podido desempenhar-se tão bem como esse gigante quando se tratasse de combater. Dado seu tamanho, era duvidoso que alguém pudesse derrotá-lo. - Que motivos tivestes senhora, para essas ridículas exigências? - inquiriu Ranulf, em um ronrono grave - Pensa por acaso que não sou capaz de cuidar de você e dos seus? Reina suspirou. Esse era o tom mais ameno que jamais havia ouvido, era um bom presságio, pois ao menos não a atropelava. - Absolutamente. Acredito que será muito capaz de proteger Clydon. Ele não estava seguro de ter ouvido bem. Um elogio! Da boca dela? Incrível! - Não foram esses os sentimentos que demonstrou antes, no acampamento lembrou. - Não sejam estúp... - Reina mordeu a língua. Por Deus, teria que aprender a cuidar da língua diante aquele homem - Eh... Peço perdão pelo que disse anteriormente. Estava alterada e não o disse a sério. - Se me acha capaz, por que insiste em ter tudo por escrito? - Esse requisito e o outro foram só uma cortina, por assim dizê-lo, para diminuir Pégasus Lançamentos

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o impacto do último item.

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Ele franziu o cenho. - Com o qual abusara de sua sorte, por certo. - Por certo - reconheceu ela baixando os olhos ao amplo peito que tinha ante si Mas aceitastes. Quanto a mencionar os filhos, já sei que era desnecessário. Deixar-me grávida lhe beneficia, pois fortalece sua situação para o caso de que Rothwell ou qualquer outro projete apoderar-se de mim me deixando viúva. - Fala com muita franqueza das relações íntimas, senhora. Está preparada para elas? Reina compreendeu que ele perguntava só para açoitá-la. E deu resultado. - Sim - sussurrou. - Esta noite? Os olhos da jovem voaram aos dele. - Não é esta cerimônia a que conta! Devemos nos casar de novo em Clydon, ante a presença de meus vassalos e de Sir Henry. Supus que aguardaríamos... - Para voltar para a Clydon sem ter consumado o matrimônio e seus vassalos possam me expulsar?

Não, senhora não terão base alguma para anular o acordo.

Estipulou que eu devia dar filhos, quanto antes nos ocupemos disso, melhor. Ela sentiu que suas bochechas se acaloravam rapidamente e com elas seu mau gênio. Aquele homem atuava assim só para ajustar contas com ela. Reina sabia perfeitamente que não lhe atraía absolutamente, que não desejava deitar-se com ela. Provavelmente não o teria feito jamais se ela não o tivesse envergonhado estabelecendo exigências com respeito a filhos frente a outros. Com os lábios apertados, perguntou: - Isso é tudo? A expressão do jovem se tornou assombrosamente intranqüila. - Na realidade, não foi por isso que lhe pedi que me acompanhasse. Ela teria podido dizer que não existia tal petição, que ele havia se limitado a trazê-la a rastros, mas preferiu não esclarecer o ponto. O que ele desejava dizer, Pégasus Lançamentos

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fosse o que fosse, resultava-lhe obviamente difícil. - Disse que eu era um cavalheiro vulgar.

-E você admitiu que o fosse - concordou ela, surpreendida de que isso o preocupasse. - Sendo assim, por que mencionou minha família, se sabe que sou bastardo? - Suponho que um de seus progenitores tem que ser de linhagem. Do contrário não lhe teria treinado para cavalheiro. E como habitualmente é o homem quem pulveriza sua semente por qualquer parte, sem pensar nem preocupar-se, também suponho que o de origem nobre é seu pai, não sua mãe. Equivoco-me? Ele apertou os lábios e voltou a franzir o cenho. – Não, nisso também acerta. - Por acaso seu pai está morto? - Para mim é como se não existisse. Em toda minha vida só falei duas vezes com ele, senhora. Só quando tinha nove anos se dignou reparar em mim, ainda que devesse conhecer minha existência, posto que nascesse na aldeia do castelo. - Sem dúvida o reconheceu, posto que o fez treinar. - Isso não importa. Tem um herdeiro e não me necessita, nem eu a ele. Ainda que meu meio-irmão morra, eu já não aceitaria nada dele. É muito tarde. - Esse grande rancor deveria envergonhá-lo, senhor - atreveu-se Reina a lhe admoestar - Seu pai não poderia passar por cima a um herdeiro legítimo para nomear você. Faz mal em... - Disse por acaso que o outro fosse um herdeiro legítimo, senhora? Meu meioirmão também é bastardo e, além disso, vários anos mais novo que eu. Sua boa sorte surge do fato de que sua mãe sim fosse uma dama. Uma rameira, mas dama ao fim. Reina não soube o que dizer. Deveria ter deixado as coisas assim, mas não pôde. Ele acabava de fazer uma verdadeira confissão e já não lhe parecia um desconhecido. Jesus, se até se sentia indignada por solidariedade à ele! - Reconheço que isso não é justo; ao que parece, devo lhe pedir perdão outra vez. Na realidade têm motivos para guardar rancor. Se um homem deve escolher um filho natural como herdeiro, não deveria atuar de outro modo do que se estivesse Pégasus Lançamentos

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escolhendo entre seus filhos legítimos: segundo a lei, herda o mais velho. Quem é esse homem? Ranulf ficou desconcertado pela firmeza de sua resposta. Bem sabia ele que isso era injusto, mas resultava inesperado que ela o pensasse assim. Uma dama que não defendia alguém de sua classe? Mas não respondeu a sua pergunta. - Não importa quem é, mas não quero que ele receba nada seu. Se eu morrer, quero que toda sua herança retorne a você. E não só a metade do que é meu, mas também tudo quanto possuo deve ser seu também. Quero que isso seja estabelecido no contrato. Ela o olhou com olhos dilatados pela incredulidade. - Como... Como o deseja? - Fica bem entendido que esta aliança não lhe brindará o auxílio de ninguém a não ser o meu? - Sim. - Ela havia voltado a dominar sua voz - Mas nunca necessitarei outro auxílio que não o seu.

Teremos tudo o que necessitemos de Shefford, se for

necessário. Ranulf se sentiu estranho para ouvir dizer «teremos» desse modo, incluindo-o. Nunca antes havia sido incluído desse modo. E ela estava demonstrando que também sabia ser razoável, ao menos durante esse tipo de discussões. Claro que ele estava passando por alto as estipulações que ela desejava incluir ainda no contrato. E ao lembrar, segurou-a por debaixo dos braços e a levantou sua mesma altura. - Agora estamos de acordo e podemos terminar com este assunto. Mas deve entender algo mais, meu general. Ainda que tenha se protegido contra meu punho, se alguma vez merecer castigo, seu traseiro iniciará relação com a palma de minha mão. Não se sinta com muita liberdade de me provocar. Logo a pôs novamente de pé e a acompanhou ao aposento, onde trocariam os juramentos e o beijo da paz. Paz? Reina se perguntou se alguma vez voltaria a gozar dessa condição.

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C apítulo 15 Resultava difícil a Reina acostumar-se a temer um homem, quando nunca em sua vida havia sentido medo de ninguém. Sempre tinha sido protegida das duras realidades padecidas por outras mulheres, ainda que não as ignorasse. Em seus primeiros anos recebeu amor em abundância de seus pais. Nos últimos seis anos, depois da morte de sua mãe, Roger de Champeney o havia redobrado. Tampouco a enviou a Shefford para que se educasse lá, pois sua mãe não queria se afastar de sua única filha. Aprendeu no lar a usar a agulha e o tear, a ler, a escrever e falar latim, francês e até o inglês, tão pouco usado.

Sabia todo o necessário para administrar um castelo e suas

propriedades circundantes, por dentro e por fora. Até podia tomar decisões financeiras e legais, isso ainda que fosse o mais tedioso e ela reconhecia de bom grado que não tinha muita habilidade para o dinheiro. Sabia o que era o medo, é obvio. Havia sentido ao morrer sua mãe, na partida de seu pai às cruzadas, ao ficar só para cuidar de Clydon, com a única ajuda de seus poucos vassalos, e ao se inteirar da morte de seu pai. O dia em que Falkes de Rochefort enviou seus homens para que a capturassem, teve medo, mas não de Rochefort pessoalmente. Nem sequer havia tido medo naquela noite em que se deslizou em sua alcova para cair sobre ela, com suas sujas intenções. Nesse momento sentiu indignação, tanta que fez jogá-lo no fosso. Claro que se ele tivesse conseguido se apoderar dela e obrigá-la a aceitá-lo por esposo, então talvez tivesse tido medo... Talvez até ao extremo de matá-lo. Seu pai não tinha apreço a ele e ela confiava em seu critério quando se tratava de homens. Por isso não havia prestado a menor atenção à proposta matrimonial de Sir Falkes. Mas outro acabava de se apropriar dela, e este sim lhe inspirava medo, ainda que não albergasse a idéia de matá-lo. O temia tanto que não teria nem tentado... E tampouco desejava fazê-lo. O medo estava ali, mas era diferente e não se devia aos mesmos motivos. Pégasus Lançamentos

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Nesse instante a consumia toda, pois ia para o acampamento, para a cópula prometida. Descontando isso, porém, Ranulf merecia o benefício da dúvida. Ela o havia aceitado. Não era seu candidato preferido, nem sequer o segundo de sua escolha, mas possivelmente teria sido o terceiro, se tivessem proposto em circunstâncias diferentes. Depois de tudo, Fitz Hugh tinha muito a seu favor. Jamais se cansaria de olhá-lo, embora não fosse tola para deixá-lo saber que ela o achava muito atraente. O havia visto usar sua espada com uma habilidade impressionante, e se pudesse acreditar na palavra de seu amigo Walter, era mais que impressionante. Estava habituado a mandar, mas não só isso: seus homens o deixavam mandar com gosto. Não eram muitos os que sabiam inspirar esse tipo de lealdade. Era jovem, era forte, era bondoso para com os animais, tal como ela o havia comprovado graças ao gato pardo que cavalgava em seu ombro. E não tinha outras obrigações. Tanto Lorde John quanto lorde Richard teriam tido que dividir seu tempo entre as propriedades de Reina e as próprias, e talvez até as de suas respectivas famílias. O fato de que Ranulf se dedicasse integralmente a Clydon o convertia no melhor dos candidatos. Sim, tinha muito a favor... mas também muito contra. A preocupação maior e imediata de Reina era seu tamanho: uma arma de por si só. Também seu mau gênio, que ela havia podido apreciar com bastante freqüência. E suas atrozes maneiras. O fato de que desconfiasse das damas e lhes tivesse aversão, tal como Sir Walter explicava, não lhe faria as coisas fáceis. E era imprevisível. Quem teria pensado que pudesse acovardar-se ante a possibilidade de receber uma propriedade como Clydon? Também teria problemas com Theodric, a menos que Ranulf aceitasse esquecer o desventurado incidente entre ambos. E restava por ver como dirigiria aos aldeãos. Provavelmente o que Reina temia (além de seu tamanho) era que aquele homem não tivesse nenhuma consideração com seus sentimentos. Ela o desagradava. Já a havia tratado com rudeza mais de uma vez. E o fato de que agora tivesse o poder de feri-la e ofendê-la à vontade, fazia em pedaços sua paz interior. Entretanto, também nesse aspecto merecia o benefício da dúvida. Só restava esperar que aquele Pégasus Lançamentos

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matrimônio não resultasse o pior engano de sua vida.

Seu cavalo avançava lentamente atrás do dele, retornando ao acampamento. Nenhum dos dois estava com muita pressa. Ela havia tido a esperança de passar a noite na abadia, onde alguém pudesse ouvi-la se gritasse. Mas não foi assim. O padre Geoffrey havia oferecido alojamento, certamente em quartos separados. Seu novo esposo, homem de tantos recursos, teria podido achar o modo de chegar até o dela para fazer amor. Isso teria aliviado seus temores, pelo menos em parte. Mas ele rechaçou o oferecimento. Reina não se sentia casada, mas o estaria antes que acabasse a noite. Seus estremecimentos interiores não cessavam ao pensar nisso. Sabia o que ia acontecer. Havia imaginado com freqüência, com Richard e até com John, mas nunca com um gigante. Até então havia esperado com ânsias a noite de núpcias, pois já estava muito crescida para não ter experimentado ainda o ato de amor. E agora só podia amaldiçoar-se por ter estimulado Ranulf até o ponto de que quisesse possuí-la aquela mesma noite, quando teria podido contar com vários dias para acostumar-se à idéia, se tivesse mantido a boca fechada em vez de mencionar filhos. Mas contou com um pequeno alento. Ao desmontar ante a tenda, Ranulf a assinalou com a cabeça, dizendo: -Faça o que necessitar. Logo me reunirei com você. O «logo» resultou duas horas depois, com o qual ficou demonstrado que ele temia a consumação tanto quanto ela. Precisou animar-se com duas garrafas de vinho que o padre Geoffrey lhes havia obrigado a aceitar, para celebrar a ocasião. Também teria vindo bem um pouco de vinho para ela, mas não tinha mais que água na jarra da grande tenda. Também teve oportunidade de conhecer sua amante: uma moça corpulenta e fornida, quase tão bela quanto Edwina, que não estava exatamente escancarada na cama, mas pouco faltava: sentada na beira, descansava sobre os cotovelos, com os joelhos separados na posição mais provocativa e porca que Reina tinha visto. Pégasus Lançamentos

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O encontro foi uma surpresa para ambas. Era óbvio que a moça não estava ali para ajudar Reina, mas sim esperava a volta de Ranulf. Pelo visto, ninguém tinha revelado o motivo pelo qual seu amante havia abandonado o acampamento. E ali estava esperando que ele entrasse e visse sua inequívoca insinuação. Entretanto, Reina não se horrorizou, sobre tudo porque foi a outra que se espantou. Levantou-se precipitadamente, gaguejando algo como que havia pensado que seus serviços podiam ser necessários.

Logo suplicou a Reina que não revelasse ao

senhor sua presença. Estava claro que ninguém a tinha chamado. Do contrário Ranulf não teria feito com que sua nova esposa entrasse na tenda. Ou sim? «Não, Reina, lhe concedeu o benefício da dúvida.» - Como se chama? - Mae, senhora - disse a moça, depressa - Meu nome é Mae. - Bom, Mae, já que está aqui, pode me ajudar com meus laços, por esta única vez - disse Reina, com descuido - Posto que me casei com o senhor, espero que esta seja a última vez que a veja. Pela manhã voltaremos para Clydon. Saberá compreender se te peço que não se demore aqui. Mae se limitou a assentir; não podia acreditar em sua boa sorte de escapar tão facilmente dadas as circunstâncias. Uma vez havia sido açoitada por ordem de uma dama, que só tinha suspeitas de que seu esposo tinha visitado Mae. Sabia de outras rameiras que haviam desaparecido por obra de senhoras enciumadas. Esse era um dos motivos pelos quais havia se feito mulher de acampamentos. Neles raramente havia damas. Quanto às mulheres dos soldados, não tinham sobre ela poder de vida e morte. Se o senhor tinha se casado, louvado seja Deus, ela não queria saber nada mais dele. Não valia a pena arriscar a vida por amor. Em seguida, as prostitutas de Clydon se encarregariam dele, se aquela dama era tão indiferente quanto parecia. Reina, compadecida da nervosa Mae, despediu-a antes que acabasse de desatar a jaqueta de lã. Ela mesma terminou a tarefa; não foi mais difícil do que havia sido vestir-se sem ajuda.

Sentia-se nua sem as calcinhas e as meias, que Kenric havia

desprezado ao recolher roupas na escuridão. Mas ao menos o moço havia trazido um Pégasus Lançamentos

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par de sapatos. Casar-se descalça teria sido o toque final de um dia verdadeiramente horrível. Na tenda havia várias coisas. Certamente, um mercenário como seu marido devia levar consigo todos os seus pertences. Havia uma caixa forte fechada com chave, uma pequena arca que não podia conter mais que umas poucas roupas e, sobre ele, uma vasilha com água e uma toalha que Reina tinha a intenção de usar. Provavelmente não poderia conseguir um banho ali. Sobre uma mesa baixa havia algumas ferramentas, uma jarra de água, copos e várias velas grossas. O colchão para dormir era, na realidade, um colchão muito grosso, muito longo e de um metro e meio de largura, feito especialmente para o gigante, sem dúvida. Estava coberto por uma manta de lã suave e lençóis de linho, melhores do que ela esperava. Em um canto havia um armário com os instrumentos de seu ofício, junto com várias armas longas, que não cabiam nele; entre elas uma espada como a que Ranulf usava... E um gato pardo. Por um momento Reina ficou surpreendida ante aquela segunda convidada. Os reluzentes olhos amarelos a olhavam com atenção das sombras. Mas até que lhe agradou sua presença. Gostava dos gatos; costumava garantir de que os felinos de Clydon estivessem tão bem alimentados como os cães de caça, pois também cumpriam com uma finalidade: impedir que os roedores proliferassem muito. A presença do gato na tenda de Ranulf provava o que ela havia suspeitado ao vêlo nos ombros do cavalheiro. O animal era uma mascote. O curioso era que um homem tão corpulento e sério escolhesse um animal tão pequeno para mimar. E feio, além disso. Tinha a rabo torto na ponta, provavelmente porque em algum momento havia sido pisado. Sua pelagem era curta e espaçada: necessitava leite fresco e algum ovo de vez em quando. As regiões de pele avermelhada revelavam, sem dúvida, um grande número de pulgas. Com exceção de tudo isso, parecia bastante amistoso, pois se aproximou ante os suaves sons que ela emitiu para atraí-lo e foi esfregar se contra sua perna. Reina se inclinou para lhe coçar as orelhas e obteve um forte ronrono de contente. Sorriu. Pelo Pégasus Lançamentos

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menos, alguém no acampamento parecia gostar dela.

Vestida só com sua camisa, Reina se ocupou de seu acerto pessoal, sem deixar de conversar com o gato, que continuava lhe passando entre as pernas e respondia com seu forte ronrono. Era um som sedativo, e na realidade ela necessitava que a sedassem. Fez tudo o possível para não deitar-se no colchão, até remexeu o arca de Ranulf em busca de um pente. Mas não tinha muito tempo que pudesse dedicar a sua cabeleira, face ao enredada que estava, e logo terminou. Era inútil perguntar-se o que atrasava Ranulf. Viria quando estivesse disposto. Reina teve a idéia de dormir enquanto esperava, mas compreendeu que seria impossível. Por fim, levantou o gato e o pôs no centro da cama, para matar o tempo tirando as pulgas. O animal parecia desfrutar com suas atenções; quando pôs patas acima, prolixo, para lhe facilitar a tarefa, ela descobriu que se tratava de uma fêmea. Absorta na operação, não ouviu entrar em seu esposo... Mas a gata sim. Em um segundo deixou de ronronar e se levantou com um vaio. Reina recebeu um forte arranhão por ter suposto que a gata era cordial. Incrédula, seguiu com o olhar o felino, que se afastou a saltos para lançar-se aos braços de Ranulf. Posto que ele não se surpreendesse, devia ser algo normal. Mas Reina se sentiu um tanto ofendida. Enquanto esfregava o arranhão da coxa, disse-se que nunca mais voltaria a atender aquela traidora. Atrever-se a tratá-la assim, quando havia permitido tirar suas pulgas onde, desde esse momento, era sua cama! Ranulf ainda não a havia olhado, pois estava muito ocupado com sua mascote. Reina tomou um instante para sacudir os lençóis. Um momento depois entrou Kenric e ela se apressou a esconder as pernas sob a manta. Provavelmente teria que acostumar-se a isso. O escudeiro tinha funções a cumprir, como a de desarmar e despir seu esposo. Mas a alcova do senhor, em Clydon, tinha um hall. Talvez conseguisse convencer seu esposo para que se despisse ali. Mas talvez (disse-se, enquanto observava o processo em silêncio), talvez decidisse não tentá-lo. Pégasus Lançamentos

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Bom Deus era autêntico os vultos que se viam sob a jaqueta? Ao desaparecer o objeto emitiu uma leve exclamação. Eram autênticos, sim: grossos músculos que se esticavam e ondulavam com cada movimento. Theo havia dito sem que ela lhe prestasse atenção. Todo pele dourada e tão belo, havia dito, e era verdade. O fato de que Theo o tivesse visto nu lhe inspirou um pouco de inveja, enquanto esperava, contendo o fôlego, que desaparecessem as meias. Ranulf despediu Kenric e se aproximou da terrina, para umedecer com água fria todo o corpo. Só depois de usar a toalha, já umedecida por ela, pareceu lembrar sua presença e se virou bruscamente, para atravessá-la com aqueles olhos violeta. - Não... dormistes? Reina sentiu um pequeno nó de nervosismo, que se enroscava e morria em seu peito. Havia visto com seus próprios olhos que tipo de mulher preferia, e ela não se parecia a elas em absoluto. Certamente, ele havia pensado que ela estaria sonolenta. Arrependia-se de sua promessa? Por que, se não, havia demorado tanto em reunir-se com ela? E por que vinha com passo inseguro e cambaleante? Bem, Reina não ficaria onde ninguém a desejava. A cópula teria que acontecer, algum dia, mas podia ficar para quando ambos se habituarem à idéia. Levantou-se no centro da cama, sentindo algo parecido à desilusão, ainda que só devesse experimentar alívio. -Não, não dormia. Esperava para saber onde deseja que eu durma. Disse-o tranquilamente, embora com o queixo alto, como o desafiando a chamála de mentirosa. Ele não o fez. Limitou-se a olhá-la com atenção, durante um tempo horrivelmente longo. Depois deixou cair a toalha, sem dar-se conta. -Dormirá aí... comigo - disse com voz rouca, surpreendendo-a... e talvez surpreendendo a si mesmo. Mas continuava olhando-a, como se duvidasse do que via. Um instante depois desatou as ataduras de suas meias, as arrancando em sua pressa. Reina dilatou os olhos. Teve a clara sensação de que ele se jogaria sobre seu corpo... E não se Pégasus Lançamentos

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equivocava muito. Ele a estendeu na cama. Reina perdeu o fôlego e, um instante depois, a camisa. - Espere... -É virgem? Não esperou resposta. Ela compreendeu que pouco importava se o fosse ou não, e isso a ofendeu. Pelo visto, aquele homem havia decidido que era preciso terminar quanto antes. Para demonstrá-lo, plantou-lhe a boca nos lábios durante um horrível segundo e logo subiu sobre ela. Bom, ela também assumiria a mesma atitude. O melhor era terminar o quanto antes, para averiguar até que ponto deveria temer a próxima vez... Se houvesse uma próxima vez. Reina se preparou para ser esmagada, mas não foi assim. Em troca, sentiu-o entrar sem rasgá-la; foi suave e fácil. Por acaso apenas em olhá-lo seus fluidos se haviam posto a fluir, sem que ele a tocasse sequer? Ficou surpreendida e experimentou uma ambígua sensação de prazer, diferente de tudo o que conhecia. E então sim, algo a rasgou. O grito saiu entrecortado através daqueles lábios feridos. Não teria podido dizer como se arrumou para beijá-la ao mesmo tempo em que se cravava nela. Talvez porque a maior parte de sua estatura estava em suas longas pernas. Talvez porque tinha as costas curvadas sobre ela, posto que não a esmagava como ela temia. Só lhe esmagava os lábios; nesse aspecto não viriam mal algumas lições. Mas em outros... Bom Deus, o que era o que começava a sentir? Fosse o que fosse, não obteve resposta, porque seu esposo, com um forte bramido, havia terminado com o seu.

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C apítulo 16 Reina se moveu cuidadosamente, fazendo um inventário de si mesma antes de levantar-se. Na realidade, não estava destroçada. Sentia os lábios um tanto machucados e, entre as pernas, uma dor definida. Mas nada havia se quebrado quando Ranulf se derrubou sobre ela alguns instantes depois de alcançar seu prazer. Uma coisa era certa: haviam a induzido a engano. Wenda dizia que era estupendo. Edwina devia pensar o mesmo, posto que o fizesse com tanta freqüência. Reina não diria que essa experiência era maravilhosa, mas tampouco tão terrível como ela temia de um gigante. Uma vez perdida a virgindade, provavelmente não sobrava nada que temer da cópula, mas tampouco tinha nada de recomendável. Vestiu-se depressa, enquanto seu esposo ainda dormia. Vê-lo naquele estado de desamparo não ajudava a pensar com claridade. E tinha muito em que pensar; sobretudo, o que diria a lorde Simon, que provavelmente estaria em Clydon quando eles chegassem. O movimento no acampamento a havia despertado. Ao sair da tenda viu atividade em todas as partes. Quase uma centena de homens tomavam o café da manhã e se preparavam para outro dia de viagem. A jovem procurou alguns arbustos onde fazer suas necessidades, sem que ninguém prestasse atenção. Quando voltou, Lanzo se aproximou com uma jarra de cerveja e um pedaço de pão do dia anterior. Agradeceu-lhe, mas sem sorrir, e o moço partiu veloz. Talvez aprendesse o manejo das armas sob a tutela de Ranulf, mas carecia penosamente de cortesia cavalheiresca. A nenhum dos dois escudeiros faria mal pensar que ela estava desagradada pelo papel que desempenharam em seu seqüestro. Ambos deviam aprender que as artes da guerra não bastavam para converter um homem em cavalheiro. Era imprescindível aprender cortesia e graças sociais, assim como a homenagem devida a uma dama. Sobretudo, deviam aprender como se tratava uma Pégasus Lançamentos

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senhora em qualquer situação, até mesmo durante um seqüestro. A ela não tinham tratado assim. Alguém se aproximou; desta vez, a traidora gata de Ranulf, que voltou a esfregar-se contra as pernas de Reina. -De maneira que assim são as coisas, é? - Reina franziu o cenho- Acha que não adivinho suas intenções? Houve um «miau» por resposta. Logo a criatura se afastou a saltos para Lanzo, que acabava de lhe baixar uma lata de sobras de comida. Reina sacudiu a cabeça; não estava segura de querer brincar com um gato. Provavelmente fosse necessário, se seu esposo tivesse intenções de levar o animal ao castelo. Nesse momento ouviu ruídos na tenda e voltou a ela. Ranulf a olhou entortando os olhos quando ela abriu uma fresta, deixando entrar o sol brilhante de uma bela manhã primaveril. - Onde está Lady Ella? - perguntou, resmungão. Reina ficou rígida. - Não sabia que teria outra senhora no acampamento. - Minha gata - clareou ele. - Como?! - exclamou Rainha, aturdida - Sua gata se chama Lady Ella? - Sim. A jovem viu pela primeira vez uma expressão realmente simpática em seu marido. Não estava segura de que fosse um sorriso, mas era fascinante. -Leva o nome da gata mais ardilosa que conheço - adicionou ele - Por isso é muito adequado. Cabia perguntar quem seria essa outra Ella, mas Reina não o fez. Obviamente, seu esposo não tinha muito boa opinião dela. - Sua Ella... - Lady Ella... - Lady Ella está tomando o café da manhã - disse Reina, chiando os dentes. Era um insulto outorgar um título nobiliário àquela besta mirrada. Seu próprio título, além Pégasus Lançamentos

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disso. Mas não estava disposta a iniciar a primeira rixa com seu novo esposo - Quer que chame seu escudeiro para que o ... ? - Ainda não. Levantou-se ao interrompê-la e a manta caiu no regaço. Reina afastou a vista. Aquela ampla extensão de peito dourado era como um ímã para os olhos, mas resistiu teimosamente à atração. - Tire a roupa. Ela voltou a olhá-lo, com os olhos dilatados de incredulidade. - Acho que o não ouvi bem. - Ouviu perfeitamente. - O tom de Ranulf era doce, apesar de sua gravidade Quero saber se ontem à noite sonhei ou se realmente fiz amor com você. - Bastará olhar os lençóis, a seu lado, para comprovar que na verdade foi assim. Ele o fez, e ante o tamanho da mancha de sangue lançou um juramento. - Por todos os Santos, eu a matei? - Não acredito - replicou Reina, atraindo outra vez aqueles olhos violeta para ela - Pareço morta? Isso provocou um franzir de cenho. - Parece a dama com quem me casei. Mas eu quero saber se sonhei ou se você realmente é como recordo quando está sem roupa. Tire isso imediatamente ou... - Não se mova! -ordenou ela, com sua voz mais autoritária, ao mesmo tempo em que ele tirava a manta. Custava-lhe ficar olhando-o de frente, mas se recompôs. Antes de dizer mais tolices, lembre-se o que devemos fazer hoje. Se não nos colocarmos em marcha quanto antes, deixando que os soldados sem arreios sigam a seu próprio ritmo, não chegaremos a Clydon com luz suficiente para que me reconheçam com facilidade. Já será bastante difícil explicar a lorde Simon, que provavelmente estará lá, por que me casei com meu seqüestrador. Não quero acrescentar a dificuldade de que não me permita entrar em meu próprio castelo, só porque você prefere esbanjar a manhã. Durante alguns instantes ele não disse nada. Olhava-a com atenção. Logo Pégasus Lançamentos

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encolheu de ombros.

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- Muito bem, suponho que posso esperar até a noite. «Isso é o que você pensa», disse-se Reina, enquanto escapava da tenda, aliviada. Tinha a intenção de seguir seu plano original: dormiria em seu próprio quarto até a segunda boda. Enquanto não se casasse na presença de Sir Henry e este aceitasse o juramento de Ranulf para Shefford, ela não se consideraria realmente casada, mesmo que o ato de amor tivesse sido consumado. Reina mudou de idéia a respeito do que diria a Simon Fitz Osbern e a seus outros vassalos. Explicou os motivos a Ranulf durante a viagem. Montava diante dele, em seu cavalo de combate. A tinha impedido de usar outro animal porque ainda não confiava nela, queria tê-la ao alcance da mão, por temor de que voltasse seus homens contra ele. E posto que só os acompanhasse a Clydon os poucos soldados que contavam com arreios, Reina não tentou convencê-lo de que seus temores eram infundados. Teria que descobrir por si mesmo se sua esposa aceitava ou não o matrimônio, se tinha ou não planos para acabar com ele. Quanto a seus vassalos, conseguiu fazer Ranulf compreender sua idéia. Seria mais fácil que acreditassem na boa vontade com que ela aceitara esse enlace se lhes dissesse que o casamento ainda não tinha se consumado. Dizer que ela tinha se casado com ele por própria vontade, em tão breve tempo, quando tudo estava feito e era irremediável, despertaria dúvidas. E ela queria que seus vassalos o aceitassem sem reservas. Isso seria mais provável se os informasse que Ranulf era o homem com quem desejava casar-se e logo celebrassem as bodas. Ele aceitou o que ela disse. A seu modo de ver, tinha cópias do contrato matrimonial para mostrar se ela tentasse algum subterfúgio. Era preciso advertir seus homens, que sabiam que ela havia passado a noite em sua tenda. De qualquer modo, nenhum se negou a fingir que o casamento ainda não havia sido celebrado. Reina acreditava ter todas as probabilidades cobertas, mas não estava segura. Não era fácil pensar com clareza com aqueles braços grossos e firmes a cada lado. Além disso, ainda estava comovida e confusa pelo incidente da manhã. Não Pégasus Lançamentos

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compreendeu por que importava a seu esposo como era ela quando estava nua. Já não tinha possibilidade de repudiá-la se seu corpo resultava desagradável; havia perdido a oportunidade ao lhe tirar a virgindade. A que vinha, pois, esse capricho de embaraçá-la obrigando-a a despir-se? Gostava ou não do que havia visto? Estava por acaso horrorizado? Queria só verificar ou o chateava o não poder lembrá-la? O fato de que ele não soubesse com segurança se havia sonhado ou não com o ato de posse a chateava e considerava isso um insulto. Ainda que para ela não tivesse sido agradável, teria gostado de pensar que se tratava de uma experiência compartilhada. Pelo visto não era assim. Se tivesse sabido que Ranulf, aturdido pela bebida, não sabia o que estava fazendo, talvez tivesse podido adiar a coisa... Mas talvez não. De qualquer maneira, estava feito e era muito tarde para fazer especulações. Só restava pensar e pensar, e assegurar de que, a próxima vez, ele não estivesse bêbado.

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C apítulo 17 Ranulf guardou silêncio durante as múltiplas e efusivas boas-vindas dedicadas a sua esposa. Todas se interrompiam assim que viam que braços a rodeavam. Não gostou de deixar atrás de si tanta gente estupefata ao cruzar as portas, ficando sem possibilidades de retirada, mas isso não tinha remédio. Na realidade, só se inquietou quando chegaram ao pátio interior, onde esperavam mais de cem soldados e quinze cavalheiros. Alguns só levavam espadas, outros, armadura completa. Viam-se outros ainda descendo apressadamente a escada do castelo, como se acabassem de perceber que a senhora retornava. - Fique tranqüilo, senhor - disse Reina, em voz baixa, quando ele deteve seu cavalo frente àquele pequeno exército - São só dois de meus vassalos, com seus cavalheiros e seus homens. Disse que havia mandado chamar por lorde Simon, com notícias do ataque. Sem dúvida, passou por Sir John no trajeto. - Sir John? O homem com quem esperava se casar? - Não. Meu vassalo, John Redford. É um homem teimoso, quase inflexível, de modo que a primeira impressão que forme de você será isso a que guardará sempre. Três destes cavalheiros são seus, e vinte soldados. Os outros são homens de Simon, embora veja que Sir Meyer voltou também. É o cavalheiro do castelo que enviei em ajuda a meu oficial. Ele e Sir Arnulf estão conosco há quase quatro anos. Ambos nos prestaram um serviço excelente, mas como estão sob contrato, a você corresponderá decidir se o renova ou não. - Não quer opinar a respeito? - Eu gostaria que me pedisse opinião sobre qualquer coisa da qual não estivesse seguro - replicou ela - Mas não, a decisão final lhe corresponde. - É seu lorde Simon o que parte para nós com a mão no punho da espada? Reina fez uma careta ante o agressivo de seu tom. Pégasus Lançamentos

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- Sim, mas deixe que eu me encarregue disto. Seria melhor que me deixasse apear e retirasse as mãos de mim.

Do contrário, pensarão que ainda sou sua

prisioneira. - É uma ordem, senhora? - Não cometerei a audácia de lhe dar ordens, senhor. - Ah - grunhiu ele - como não o fez está amanhã, em minha tenda. Ela ruborizou diante do aviso, bem a tempo para que Simon visse o que piorou as coisas. Mas Ranulf desmontou e a deixou em pé frente ao outro. Não voltou a tocá-la, ainda que não fosse muito difícil fazê-lo, pois permanecia muito perto, detrás dela. - Lady Reina, sofrestes danos? -perguntou Simon. - Absolutamente - respondeu ela, com um sorriso - Se quer saber a verdade, Simon, desfrutei de uma verdadeira aventura. Nesse momento, Ranulf se encontrou com os olhos azuis do homem, que ainda não revelavam hostilidade, embora tampouco estivessem tranqüilos. Era de idade média, e constituição robusta, embora sua estatura fosse só intermédia. Isso significava que devia levantar a cabeça para olhar Ranulf, coisa que nenhum homem de classe poderia gostar. Posto que estivesse estudando o loiro cavalheiro, Reina se apressou a apresentá-los: - Permita que lhe apresente a Sir Ranulf Fitz Hugh. Sir Ranulf, meu vassalo, lorde Simon Fitz Osbern. - Mas não é o próprio que ... ? Ela o interrompeu: - Só foi um engano, Simon. Sir Ranulf não me capturou por sua conta, mas sim por ordem de um tal lorde Rothwell, que o tinha enganado. Assegurou que eu era sua prometida e que me negava ao casamento. Naturalmente, assim que informei Sir Ranulf de que nunca havia ouvido mencionar a esse Rothwell, a honra o obrigou a me devolver ao lar. Não foi culpa sua ser confundido por um ambicioso que desejava me possuir a todo custo. Rothwell não se diferencia de Rochefort, e me alegro que Pégasus Lançamentos

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responda tão cedo a minha chamada, pois devemos discutir o que faremos com respeito a meu presunçoso vizinho, ainda que me incline a deixar o assunto assim. De qualquer modo, devo me ocupar de meu casamento... E disso também devemos conversar. Como os olhos do vassalo se voltassem para Ranulf, suspicaz, ela adicionou: - Quando chegaram? - Está amanhã, a tempo para ler a carta que foi deixada aqui - respondeu Simon, azedo. - Ah, a carta - disse ela, forçando um sorriso - Admitirá, Simon, que foi uma artimanha sagaz e que deu resultado, embora nenhuma palavra fosse verdadeira. Olhe este homem. Parece capaz de matar uma mulher indefesa só para evitar uma pequena escaramuça? Se tivesse querido me seguir, eu teria estado perfeitamente a salvo. Mas me alegro de que não o fizessem, pois provavelmente De Rochefort vigia Clydon a procura de outra oportunidade. Dificilmente soubesse que eu estava ausente, posto que fomos depois das preces da manhã. Não posso lhe dizer o muito que me preocupava isso e quanto me tranqüilizava a esperança de que vocês estivessem aqui, preparados para defender o castelo de outro ataque. Essas palavras, apaziguadoras e sedativas, tiveram o efeito esperado, aliviou no cavalheiro a culpa de não ter feito nada para recuperar sua senhora e, além disso, atuaram como elogio por não ter intervindo. - Venha, John, Meyer - chamou a senhora os outros cavalheiros - Quero que conheçam o homem que renunciou a uma fortuna só pela palavra de uma dama. Eis aqui Ranulf Fitz Hugh. E Simon, não tinha por que acreditar sabe? Era só minha palavra contra a de lorde Rothwell. A essas alturas teve que sorrir. Não precisava olhar Ranulf para saber que não gostava do que estava ouvindo. Em sua mente surgiam dúvidas; perguntava-se se não seria ela quem tinha mentido. Reina, travessa, esperou um longo instante para adicionar: - Creio que a estas alturas seria conveniente uma confirmação. Quer algum de Pégasus Lançamentos

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vós aliviar a mente de Sir Ranulf? Alguma vez estive comprometida em matrimônio com alguém chamado lorde Rothwell? Ouviram-se três decididos «Não», mas foi John Redford, que era ainda mais entrado em anos que Simon, quem adicionou de mau humor: - Vai casar-se com John de Lascelles, se o moço souber ainda chegar até Clydon, coisa que está se tornando duvidosa. - Não seja cruel - admoestou Reina, com suavidade - Lorde John teve seus problemas, que até agora o impediram de vir. Mas quanto as minhas bodas, mudei de idéia. Querem vir todos para dentro? Discutiremos o assunto durante o jantar. Mas antes devo comunicar as minhas damas que retornei sã e salva e comprovar se meus servos se tornaram preguiçosos em minha ausência. Assuma minhas funções, Simon, e apresente seus homens a meus hóspedes. Atenda por mim, sim? - Por fim se voltou para Ranulf - Me reunirei com você no salão muito em breve. - E com um sorriso - Pode confiar que meu «em breve» será mais breve que o seu, senhor. Sabia que ele detestava perde-la de vista, mas nada pôde fazer, ela subiu correndo a escada e entrou no castelo. Ranulf ficou de pé entre os homens de Clydon e os outros cavalheiros que, desaparecida a senhora, convergiram para ele. Mas suas preocupações eram desnecessárias. Lorde Simon, informado por ela de que aquele cavalheiro e seus homens eram convidados seus, não necessitou mais nada para esquecer qualquer interrogatório suspicaz. Fez só o que ela havia ordenado: o apresentou aos dois grupos de cavalheiros e depois os conduziu lentamente ao interior do torreão. Falou-se de qualquer coisa, salvo do seqüestro da senhora.

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C apítulo 18 - Theo! O que significa isto? - Reina, graças a Deus! Encontrar o moço amarrado em um canto de seu quarto a deixou estupefata. - Ficaste assim desde que me levaram? - perguntou incrédula. - Não. Wenda me encontrou e me desatou ontem pela manhã. Levamos a carta deixada a Sir William, que ainda está na cama, mas já não delira. Mas quando a leu em voz alta, tive... Tive tanto medo por ti que quis ir te buscar. Sir William me proibiu, mas Aubert, esse caipira traiçoeiro, surpreendeu-me ontem à noite tentando e ordenou que me atassem assim. Quando o pegar, o matarei. - Se acalme - disse Reina, severa. Mas não pôde evitar um sorriso enquanto começava a desatá-lo - O que acreditava poder fazer, tolo? Acha que padeci algum dano em minha pequena aventura? Não sofri nenhum perigo real, e deveria ter se dado conta de que assim seria. Sou muito valiosa para que me matem antes das bodas. - E como poderia eu saber se foi ele quem te seqüestrou? -inquiriu o jovem. - Bom, não é tão terrível, depois de tudo. Por acaso não me trouxe de volta? - Sim, mas casada com ele - grunhiu Theo. - Como sabe? Os olhos do moço se aumentaram. - Só brincava! - Mas eu não. - Reina! –gritou - Como pôde fazer isso comigo? Não sabe o que sinto por ele? - Está com ciúmes, querido? - Bom... Não, acredito que não - admitiu ele pensativo - Se não puder ser para mim, prefiro que seja para ti. Mas com ele, Reina... Era a única alternativa? - Sim, mas foi necessário convencer a alguém, esse alguém foi ele - disse ela Pégasus Lançamentos

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Não me seqüestrou para si, sabe? Mas sim para um velho lorde que o contratou. E não foi fácil persuadí-lo a me desposar em vez de me entregar. - Quer dizer que você o escolheu? - Podia escolher entre ele ou o velho lorde. - Não foi necessário esclarecer mais - Agora me ajude a me vestir, e depressa. Não posso deixá-lo por muito tempo a sós com meus vassalos. - O que disseram deste súbito casamento? - Não sabem nem saberão. Não repita nem uma palavra do que te disse, nem sequer a Wenda. Em todo caso, tínhamos que voltar a nos casar na presença de todos, assim os fiz acreditar que a segunda boda será a primeira. Direi-lhes que Ranulf aceitou minha petição de casamento. Desse modo não albergarão dúvidas sobre meus motivos nem pensarão que fui obrigada. Não quero que desconfiem dele. - Mas se quer se desfazer desse marido, Reina, este é o momento, antes que lorde Simon saiba. - Mas eu o desejo, Theo. Pensei bem. Na realidade, é o melhor para Clydon. Nem John nem Richard poderiam dedicar-se exclusivamente à propriedade; Ranulf Fitz Hugh sim. Não tem terras próprias, nem família que o ate, nem obrigações que o afastem de nós. E não é pobre, se encarregará de custear tudo o que eu não pude fazer. - E então Clydon o amará. E você? Reina afastou o olhar. - Uma vez que se decidiu, assegurou-se de que o compromisso não pudesse ser anulado. Resta por ver se lamentarei minha decisão. - Como foi? -perguntou Theo, muito sorridente. Ela, compreendendo a que se referia, fulminou-o com o olhar. - Isso não é algo que te importe. - Anda, Reina - insistiu ele, alargando o sorriso - Quero saber o que perdi. - Se quer saber, foi rude e rápido. - Oh, agora sim que me sinto ciumento. - E suspirou. Pégasus Lançamentos

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- Idiota! - soprou ela, desdenhosa - Por acaso gosta assim, rápido? E agora deixe de me chatear se não quiser uma cabeçada. Reina queria resplandecer em seu melhor vestido na importante entrevista com Simon e John, mas Theo assinalou que devia reservar o melhor para as bodas. Assim, conformou-se com uma túnica larga de veludo carmesim, com mangas em forma de sino cortados na fronte, para deixar expostas as ajustadas mangas da camisa, de cor amarela intensa, que aparecia também sob o profundo decote e nos lados, onde o vestido se abria até as coxas. O cinturão de elos dourados se abotoava justo debaixo da cintura e pendia até os joelhos. Theo a convenceu que usasse o cabelo trançado sobre os ombros, com as tranças envoltas em fitas amarelas, que o pequeno toucado branco cobria muito pouco. Reina considerava que as tranças lhe davam um aspecto mais juvenil, efeito pouco apropriado naquele momento. Theo se mostrou em desacordo, assegurando que nunca a havia visto tão linda. Ganhou a vaidade, algo que não acontecia com freqüência. Theo lhe fez notar que, já que seus vassalos a conheciam bem e não se deixariam confundir por seu aspecto, na realidade só se estava arrumando para seu flamejante marido. E assim devia ser. Reina não pôde negar que parecia mais bonita. Seu caro espelho de cristal, com sua imagem tão mais clara que o de aço polido, assegurava assim. Theo também. E quem era ela para discutir o antigo adágio segundo o qual era mais fácil tratar com o esposo se este estivesse satisfeito com o aspecto de sua mulher?

Valia à pena

averiguar se era certo, pois Ranulf Fitz Hugh deveria estar muito descontente com sua demora. Encontrou-o consumido em uma discussão sobre rotação dos semeados com Simon e John; o assunto parecia fasciná-lo. Onde estava o desgosto pela ausência de sua esposa? Pelo visto, já não se preocupava por perdê-la de vista. Reina esteve a ponto de partir sem fazer notar sua presença. Havia outras coisas que fazer e era uma tolice atribuir tanta importância à preocupação de um homem. Mas John a viu antes que pudesse escapulir e a saudou. Ela sorriu, antes que os Pégasus Lançamentos

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outros a vissem. Seu esposo não demonstrou reação alguma ante seu aspecto, e isso a deprimiu ainda mais, embora tivesse bastante prática em dissimular seus sentimentos. - Não quero interromper sua conversa, cavalheiros. Só me detenho para lhes fazer saber que não os esqueci. Devo atender algumas coisas mais antes de me reunir a vocês. Ranulf abriu a boca para protestar, mas Simon pegou sua mão. - Por favor, senhorita. Sabe que sou, no geral, um homem paciente, mas não quando despertam minha curiosidade. Diga o que a fez mudar de idéia com respeito ao jovem Lascelles. Ela olhou Ranulf com olhos grandes e inocentes. - Não o disse? Que vergonha, senhor. Acreditava que duvidariam de sua palavra? Depois de ter deixado cair essas insinuações, às quais ele não podia responder, sentiu-se vingada pela desilusão de que ele não tivesse reparado em seu aspecto. Em seguida se voltou para seus vassalos e explicou: - Ainda que minha relação com Sir Ranulf tenha sido muito breve, bastou para me fazer compreender que é o homem mais adequado para Clydon e para mim. - E ele quer casar-se com você? - perguntou John Redford, sem muita surpresa. - Aceitou minha proposta - esclareceu Reina - Na realidade, não foi fácil persuadi-lo. Mostrava-se relutante porque não pode contribuir com terras próprias, embora tenha meios necessários para comprar uma excelente propriedade, se assim o desejar. O que o torna ideal para Clydon é que ainda não tenha jurado fidelidade a nenhum lorde. - De maneira que foi idéia sua. A expressão de Reina fez verdade da mentira. - Minha sim. Depois de estudar todos os aspectos, sem achar nada a que vós pudessem opor, ofereci contrato a Sir Ranulf e ele aceitou. Há, por ventura, algum motivo pelo qual pudessem recusar a aceitá-lo como senhor, sabendo que meu é escolhido? Pégasus Lançamentos

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Assim dita as coisas e naquele tom, se existia alguma objeção não seria expressa nesse momento.

Ambos se apressaram a assegurar que Sir Ranulf lhes

parecia aceitável. - Pensam que meus outros vassalos pensarão o mesmo? - perguntou ela a Simon. - Não vejo por que não. Sabem tão bem quanto nós que é urgente que se case... Com um homem que teria merecido a aprovação de seu pai. - Me alegro, porque já enviei mensageiros com a missão de convocá-los, e também a Sir Henry. As bodas ocorrerão tão logo estejamos todos reunidos. Meu pai teria sentido grande respeito e admiração por Sir Ranulf. Vocês o conheciam bem: sabem quanto valorizava a honestidade, a honra, a força e a capacidade acima de todas as coisas. A força e a capacidade de Sir Ranulf estão além de toda dúvida. Quanto a sua honestidade e seu sentido da honra, pude comprová-lo pessoalmente. Meu pai teria ficado muito satisfeito. Isso acabou de tranqüilizar os cavalheiros. O resto da noite transcorreu com normalidade, sobre tudo porque Reina convidou novamente Sir Walter a compartilhar a mesa principal. Isso pareceu tranqüilizar Ranulf e ajudou a manter uma conversa animada. Àquele homem nunca faltava tema de conversa, por certo. Mas depois da mesa houve um momento em que Simon utilizou para abordá-la com a única preocupação que restava: - Está segura, senhora? Não deixastes esse corpo bonito nublar seu critério? Ela se pôs a rir. - Vamos, Simon! Muito me conhece para pensar assim! Sou capaz de antepor a aparência de um homem à conveniência de Clydon? Não me engano pensando que é minha pessoa que Sir Ranulf cobiça. Sucumbiu às mesmas tentações que teriam convencido John ou Richard, se minha proposta tivesse sido para qualquer um deles. O amor e os caprichos não tem peso algum quando se tem de formar alianças, e nem um nem os outros influíram sobre mim quando escolhi Ranulf. É forte, capaz... - Forte? Esse homem é um gigante, se por acaso não o notastes, minha senhora. Ela riu entre dentes ao ver a expressão sobressaltada de seu vassalo. Pégasus Lançamentos

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- Sim, é certo. Deveriam ter visto como pôs em fuga os homens de Rochefort, e até matou um de cada dois antes que pudessem escapar. Em caso de necessidade, poderão contar com ele, Simon; sobre isso pode estar tranqüilo. Mas o mais importante é que estará disponível quando o necessitem, pois nunca estará fora, visitando outras propriedades que em nada se relacionem com Clydon. Com isso Simon ficou satisfeito. Mas a Reina ainda ficava uma dificuldade: a atribuição de aposentos. Quando finalmente ficou a sós com Ranulf, já não pôde evitála mais. Tinha que alojá-lo no quarto do senhor, posto que Simon sempre utilizasse a alcova da torre oeste e já havia se retirado a ela. As habitações do senhor eram as mais apropriadas para Ranulf. Mas ela ainda não as compartilharia com ele. Certamente, para ele seria um alívio e não uma moléstia. Só cabia suspeitar que pudesse irritar-se, porque aquela manhã, depois de requerer que se despisse, havia dito que isso podia esperar até a noite. Provavelmente ele havia esquecido, mas ela estava preparada, se por acaso não fosse assim. O que a preocupava era se ele aceitaria. Quando Ranulf estava por falar, somente os dois diante da lareira, ela se adiantou: - Acompanhe-me, senhor. Um servo esperava ao pé da escada para iluminar o caminho. Lanzo havia recebido indicações sobre o lugar onde devia pôr a armadura de Ranulf, que havia tirado a sua chegada, deixando a espada.

O jovenzinho aguardava no hall, meio

adormecido em um colchão, mas se agitou assim que entraram. - Verá o que é este lugar, Ranulf! - exclamou entusiasmado - Parece o quarto dos tesouros! Reina, sorrindo, precedeu-os até o quarto maior. Ambos estavam bem acondicionados e iluminados profusamente por vários candelabros. - São alguns dos tesouros que meu pai conquistou no Chipre - explicou ela, assinalando o fino tapete turco que cobria boa parte do chão e duas enormes tapeçarias, com desenhos estrangeiros - Sabiam que o rei se deteve ali para Pégasus Lançamentos

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conquistar triunfalmente a ilha?

- Não - respondeu Ranulf, distraído - O que acontece longe da Inglaterra nunca me interessou muito. Ela sorriu para si mesma, pois o via francamente sobressaltado pelas comodidades que oferecia a alcova. A cama com dossel era enorme, suas cortinas, de rico veludo azul, luziam o brasão dos Champeney. Dentro dos dois grossos muros exteriores havia uma latrina individual, regada por uma cisterna do teto, para reduzir o aroma. Duas profundas janelas cujos parapeitos, cobertos de arminho, serviam de assento, e um armário embutido na parede, onde se guardavam objetos valioso, tão grande que seus pais o haviam utilizado como guarda-roupa para seus trajes de gala. Para a roupa de uso diário havia numerosas arcas, assim como uma grande, com fechadura, para objetos valiosos, que continha os preciosos pratos de ouro, azeites exóticos e cálices com incrustações de pedras preciosas, enviados da Terra Santa por seu pai. Na alcova de Reina havia um parecido, onde ela guardava os documentos importantes da família, a baixela de prata, ricos panos comprados nos mercados de Birkenham, suas custosas especiarias e algumas jóias e moedas. A lareira estava apagada, posto que as tapeçarias e os tapetes reduzissem as correntes de ar. Ante ele havia uma cadeira rara, como as duas que havia abaixo, ante a mesa principal; um grande tapete de corte, vários banquinhos e uma mesa pequena, onde havia uma jarra de vinho. A grande tina de banho havia sido retirada do canto aonde permanecia sempre, oculta atrás de um biombo, e estava cheia de água. Ainda se via elevar o vapor. Em um banquinho próximo esperavam uma grossa toalha e uma barra de sabão importado, de agradável perfume, também comprado nos mercados de Birkenham. - Deseja... deseja minha ajuda para se banhar? Por sorte, sua voz soou o bastante nervosa para que ele meneasse a cabeça, dando oportunidade de retirar-se. - Nesse caso lhe desejo boa noite, senhor. E desapareceu antes que ele compreendesse que essa era sua intenção. Reina Pégasus Lançamentos

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acreditou ter escapado com facilidade, mas se equivocou. Ele a alcançou ante a porta de seu próprio aposento. Sem dúvida sua voz grave despertou às mulheres que dormiam no aposento das damas, entre ambos. - O que significa isto, senhora? Ela esperou que ele a seguisse ao extremo do corredor. Então replicou: - Não acredito que tal explicação seja necessária. Você dorme ali, eu durmo aqui... Enquanto não estejamos casados. - Mas sim estamos casados - lembrou ele franzindo o cenho. - Mas ninguém sabe senhor, e aceitou isso. Quer provocar um alvoroço que manche minha honra, quando dentro de poucos dias voltaremos a nos casar? - E o que será de sua honra quando não houver sangue algum nos lençóis das bodas para que todos vejam? - espetou ele. Reina estava preparada para essa pergunta. Tirou de suas roupas uma diminuta redoma, cheia de um líquido vermelho. - Isto solucionará o problema. Agora volto a lhe desejar boa noite. Quanto teria rido se pudesse ver sua expressão, depois de fechar-lhe a porta na cara! Mas nesse instante temia que ele golpeasse a porta e insistisse em seus direitos maritais; entretanto, não foi assim. Reina se felicitou pela vitória dessa breve trégua. Negava-se a pensar no que ocorreria em poucos dias, quando já não pudesse seguir evitando o rude leito marital que havia estendido para si mesma.

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C apítulo 19 - Venha, Ranulf. Se tanto desejas passear, saiamos a caminhar pelas fortificações - sugeriu Walter. - Neste momento não posso sair. - Nesse caso, ao menos se sente e afasta os olhos dessa porta. Não se abrirá só porque a vigie. E se não se senta, alguém acabará por reparar em sua tensão. Ranulf, suspirando, reuniu-se com Walter à mesa, mas não pôde relaxar. O Grande Salão estava mais lotado que nunca: Sir Henry havia chegado já avançado a tarde, com um cortejo de vinte cavalheiros e outros tantos escudeiros. O número de senhoras também tinha duplicado com as esposas de Simon e John, suas filhas, as mulheres dos outros vassalos e castelãos, que chegavam com suas esposas, e seis damas do grupo de Sir Henry, entre as quais se achavam a esposa e as duas filhas casadas do conde. O ambiente era tão festivo como se as celebrações já houvessem se iniciado, embora as bodas não acontecessem até o dia seguinte. Logo que terminou o jantar retiraram as mesas de baixo. Quase todos os presentes dançavam ao compasso das rítmicas melodias tocadas por um grupo de músicos instalados na galeria. Alguns poucos homens de idade jogavam xadrez, apesar do ruído. Também havia jogo de dados no outro extremo do salão, entre os escudeiros. E os servos serpenteavam entre a multidão, mantendo sempre cheia as taças de cerveja e vinho. Ranulf, por fim, havia se liberado do estreito escrutínio a que tinha sido submetido durante o jantar. Entretanto, ainda restaram algumas damas que não podiam lhe tirar os olhos de cima. Walter tinha razão: estava se mostrando tão nervoso como qualquer noivo e fazendo o papel de tolo, só porque Reina havia se trancado em um dos aposentos contíguos com Sir Henry. Pégasus Lançamentos

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- Ora! - exclamou Walter, interrompendo seus pensamentos - Teria jurado que foi você que tanto resistiu a aceitar este glorioso tesouro! E eis aqui, fazendo de sua aceitação uma questão de vida ou morte. - Você gostaria de uma pequena prática de arma? Walter riu entre dentes. - Tem vontade de me atravessar? Antes me diga o que te pôs a favor de Clydon. - Sabe muito bem que nunca me opus a Clydon. Ao que me opunha era a me casar com uma dama. - Sim, eu sei. Mas ela vem com o tesouro. O que te fez mudar de opinião com respeito a ela? - Não mudei de opinião. Ainda desconfio dela como da peste, mas tal como disse, ela vem com o tesouro. - Até agora respeitou sua parte do trato. - Não me amole, Walter! Seu amigo ignorou audazmente a advertência. - Não é certo, por acaso? Apresentou-te em termos tão favoráveis que todos seus homens estão dispostos a te jurar lealdade. Além disso, gostam dela. Obteve por resposta um olhar tão sombrio que Walter não pode deixar de rir. - E ainda agora trabalha para superar o último obstáculo possível. - Você acha? - Isso é o que o preocupa? A acha capaz de arruinar no último instante o que fez até agora? Não é razoável pensar assim. - Mas as mulheres não pensam como nós, homens. E este é o momento perfeito para lançar a estocada: quando ninguém espera. Sabe onde dorme? Comigo, não. Não se considera devidamente casada. Walter ficou boquiaberto. Em seguida estalou em gargalhadas. - Incrível! Devia ter compreendido que sua inquietação tinha outro motivo. Pelos cravos de Cristo, Ranulf! Se necessitava de uma mulher, por que não tomaste uma? Há dúzias por aí, e bem dispostas a chamar sua atenção. Pégasus Lançamentos

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Ranulf não respondeu. Recusava-se a reconhecer que, irritado como estava pela atitude de sua esposa, havia observado as moças. Mas cada vez que decidia abordar alguma e indicar sutilmente seus desejos de que fosse mais tarde a sua alcova, encontrava-se sob a vigilância de Theodric, aquele condenado mariquinha, quase como se o moço pudesse ler seus pensamentos. Resultava frustrante até o inexprimível, mas ele não estava disposto a arriscar a desagradar sua esposa antes de passar a sê-lo diante os olhos dos seus.

Sem dúvida, seu «donzelo» o estava frustrando

deliberadamente. E quanto mais se via privado de mulher, mais desejava estar com uma. Mas ela o denunciaria como libertino se não se contivesse por alguns dias. E Ranulf não lhe daria esse gosto. As damas adoravam moralizar, ainda que as hipócritas pulassem tanto como seus respectivos maridos. Malditas, todas elas. - Diria que não deseja viver muito tempo, não é, Walter? - Está bem, está bem, não te chatearei mais. Mas ao menos consegui lhe distrair do que ocorre nesse recinto, já vê então que teve utilidade.

- Mas este homem não tem propriedades, Lady Reina, nem sequer um imóvel. Como pôde seu pai tê-lo escolhido acima de todos os cavalheiros latifundiários entre os quais podia escolher? Reina não tinha preocupações com respeito a essa entrevista. Sir Henry era um homem miúdo, não mais alto que ela, com aspecto de escrivão. Entretanto, na ausência de lorde Guy detinha todo o poder de Shefford. Mas não era homem que se vangloriasse desse poder nem se deleitasse com o medo que poderia provocar. Era sensato e inteligente. Bastaria uma explicação razoável para que compreendesse seu ponto de vista. - Um homem carente de outros deveres e interesses importantes fará de Clydon sua principal preocupação – respondeu - Meu pai não tinha interesse em aumentar os domínios de Clydon, mas sim em protegê-los e conservá-los tal como os Pégasus Lançamentos

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deu o conde. Sir Ranulf não terá um senhor feudal que fique em conflito com sua devida lealdade ao conde, como aconteceria com outro lorde. Como pode se opor, se convier aos interesses do conde contar com um homem que só renda tributo a ele, como meu pai em seu tempo? - Não havia pensado nisso, mas têm razão, certamente. Reina sorriu. - Além disso, Sir Henry, ele é rico. É mercenário faz tempo, e já sabe a grande demanda que há deles na atualidade, posto que tantos cavalheiros nobres fossem às cruzadas. - Entregou-lhe a cópia do contrato matrimonial que ele levaria ao castelo de Shefford. Esperou que seus olhos se alargassem ante a parte de Ranulf. Logo adicionou - Poderia ter comprado terras faz muito, mas esteve atarefado em ganhar mais dinheiro. Ainda pode comprar se considerarmos necessário. Ainda lhe parece importante? - Não, absolutamente.

Deveria haver dito antes que goza de tanta

prosperidade. Ela encolheu de ombros. - O que nos interessa é sua capacidade. - Certo, certo - reconheceu ele, distraído, enquanto jogava uma olhada ao resto do contrato. Logo - Devolve-lhe tudo? Como fez teu pai para que aceitasse isso? Os homens tendem lutar para não dar nada, mas ele lhe devolve tudo o que é seu e, além disso, tudo quanto possui passa a você! - Sabe que meu pai era muito generoso para propor algo assim - replicou ela Isso foi proposto pelo próprio Ranulf, pois não deseja que seus familiares se beneficiem com este matrimônio; não os reconhece como família.

Favorece-nos

aceitar essa idiossincrasia. - Por certo - concordou Sir Henry - Nunca vi contrato matrimonial tão vantajoso para a noiva. Lorde Guy ficará muito satisfeito.

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Ranulf sentiu um nó no estômago (ao menos, essa foi sua impressão) ao ver o sorriso vaidoso com que Reina saía da habitação, acompanhada por Sir Henry. - Shefford aceitará com gosto seu juramento, senhor - disse, transformando o sorriso vaidoso em outro muito amplo. Ele não pôde acreditar. Impossível. Era impossível que ela se sentisse feliz por suportá-lo. O golpe baixo ocorreria, sem dúvida, antes da cerimônia nupcial ou durante a cerimônia. Mas ocorreria. Nessa noite, Ranulf se deitou muito pessimista. Estava seguro de que dormia por última vez na alcova do senhor. Clydon, seu? Havia sido uma bonita fantasia, por um tempo muito breve. Pela manhã, como primeira medida, fez que Lanzo afiasse sua espada. Se tivesse que lutar para escapar dali, o faria. Além disso, fez com que o moço indicasse aos outros que ficassem preparados. Walter riu, mas era preferível obedecer a acabar degolado. E não se tratava só do nervosismo de qualquer noivo antes das bodas. Depois de tudo, o que estava a ponto de acontecer era uma simples formalidade. Já estava casado... Mesmo que sua esposa quisesse ignorá-lo. O que ela havia feito era de uma crueldade indescritível. O mais honrado teria sido rechaçá-lo assim que seus homens saíram a seu encontro. Mas não: ela havia decidido esperar até que chegasse o representante de Shefford, com mais soldados ainda, para enganar Ranulf, o deixando pensar que Clydon podia ser seu, que ela o queria como lorde. A única demonstração franca de sentimentos tinha sido sua negativa a compartilhar o leito. Isso deveria servir de indicação a Ranulf, em vez de irritá-lo até a fúria. A chegada de seu traje de núpcias despertou pouco entusiasmo, embora Lanzo estivesse a ponto de desmaiar de admiração. O manto de veludo purpúreo, debruado de arminho branco, era o mais fino que havia possuído em sua vida. Claro que nunca havia sido propenso a gastar dinheiro em roupas, posto que não tivesse a quem impressionar e havia coisas melhores em que investir seu pagamento. A jaqueta, de mangas longas, tinha tantos fios de prata que, de longe, parecia um pano inteiramente Pégasus Lançamentos

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prateado e não fina seda branca.

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Inclusive as meias eram da melhor qualidade;

incluíam um cinturão com fivela de prata, combinando com o broche de seu manto, ambos

decorados

com

pequenas

pedras

purpúreas.

E

tudo

parecia

recém

confeccionado. O talhe perfeito indicava que as roupas haviam sido cortadas especialmente para ele. Mas o ânimo de Ranulf, ainda sombrio, o impedia de prestar atenção. Quase não atendeu aos elogios de seus amigos, que ponderavam seu novo traje; nem sequer reconheceu sua esposa quando ela entrou no salão e quase não se inteirou de que estavam fora do castelo, para a breve cavalgada até a aldeia, em cuja igreja se realizaria a cerimônia. Estimulado pelo sacerdote, conseguiu repetir os termos do contrato matrimonial, o que ele devia contribuir ao casamento, e deu a sua esposa um anel em troca do dote, junto com um presente em moedas de ouro. O anel e o dinheiro representavam o juramento. Logo trocaram seus votos, para que todos os escutassem, e antes que Ranulf pudesse cobrar consciência estavam já entrando na igreja para a missa dos esponsais. Entretanto, durante o longo oficio não chegou a compreender que já estava tudo feito. Havia se casado novamente com sua elevada esposa. Ainda que seus homens estivessem preparados para qualquer eventualidade, ele estava tão aturdido que poderiam derrubá-lo sem que tivesse visto chegar o golpe. Só depois de terminada a missa, quando Sir Henry se aproximou dele para receber seu juramento de fidelidade aos Shefford, começou a suspeitar que houvesse se comportado como um idiota. Terminado esse ato, os vassalos de Clydon se apressaram a imitá-lo e juraram lealdade, o reconhecendo como senhor. Passado o atordoamento, mas não o assombro, Ranulf olhou sua esposa, que ia agarrada a seu braço, enquanto abandonavam juntos a igreja: - Se casou comigo? Ela gorjeou com uma risada suave. Logo se aproximou para sussurrar: - Me alegro de que tenha estado presente em nossa primeira boda, senhor, porque não parece que estivesse muito consciente desta. Pégasus Lançamentos

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As felicitações da multidão que esperava fora caíram sobre um noivo de face muito vermelha.

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C apítulo 20 Se Ranulf pensava que a comida do dia anterior, em honra a Sir Henry, havia sido um verdadeiro festim, seu banquete de núpcias foi digno de um rei. Serviram-se seis pratos: o dobro do acostumado. Cada um consistia em numerosas preparações: carne, ave, peixe, ovos, verduras, sobremesa. O último foi uma sutileza: um preparado de açúcar, massa e gelatina, modelado formando cenas de amor cortesão. Observou a cerimônia completa: o mordomo foi o primeiro a entrar, com o pão e a manteiga, seguido pelo mordomo e seus ajudantes, que levavam o vinho e a cerveja. Os escudeiros se alinharam detrás das mesas para servir a seus respectivos cavalheiros, cortar as carnes e substituir os sucessivos pratos de madeira. Dada semelhante variedade, todos ficaram com o apetite bem satisfeito. Havia assado de vitela, porco selvagem, cordeiro, veado, perdizes e perus reais. Também havia perdizes em molho de mostarda e gengibre ou recheados de ovos e ervas, ou carnes guisadas para quem tivesse dentes frágeis. Para proporcionar diferentes sabores de aves serviram também galos silvestres, patos reais, garças, ventos e cotovias. Para quem preferia o peixe, havia robalo com molho de maçãs azedas e especiarias, ostras sobre um leito de salsinha ensopada com vinagre, eglefim com manteiga de alho, sardinha cozida com molho de menta e canela ou arenque fresco, caranguejos, mexilhões, lampreias e tortas de peixe. As sobremesas eram muitas para enumerá-las, desde frutas especiais até bolos doces com recheios variados. Sua esposa não havia mentido ao dizer que em Clydon não faltavam provisões. Com semelhante abundância, o festim se prolongou durante o resto do dia, é obvio. Os entretenimentos não cessavam: música, piadas e contos proporcionados pelos convidados ou por artistas ambulantes, contratados para a ocasião. Ao voltar da latrina, Ranulf viu que haviam retirado as mesas de baixo para Pégasus Lançamentos

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iniciar o baile. Os dançarinos circulavam cantando e agarrados a mão. Sua senhora estava participando. Ao vê-la rir e cantar com os outros, ele compreendeu que a via realmente pela primeira vez em todo o dia, embora ela não tivesse se afastado muito de seu lado desde que saíram da igreja. A jovem deslumbrava com um encanto especial, que não surgia, por certo, só de seu brilhante traje. Sua camisa era da mesma seda branca que a túnica de Ranulf, entretecida com fios de seda; sua túnica, de seda azul intenso, com a beira bordada de prata; um cinturão que refulgia de pedras preciosas, vermelhas e azuis, rodeava-lhe os quadris. Não usava manto nem véu que ofuscasse a riqueza de suas roupas. O cabelo, negro e lustroso, flutuava livremente a seu redor durante a dança, coroado por um diadema de prata que se inclinava encantadoramente a um lado. Tinha as bochechas avermelhadas e seus adoráveis olhos azuis cintilavam de prazer. Sem prévio aviso, o corpo de Ranulf cobrou vida. A isso seguiu rapidamente o chateio. Retomou a seu assento diante da mesa alta: o assento de honra, sim, a cadeira do senhor, sua cadeira. Não importava que tivessem lhe oferecido o mesmo lugar em todas as refeições anteriores: agora pertencia a ele por direito. Entretanto, quando pensava na tortura das dúvidas que havia levado a sua cama a noite anterior, não conseguia encontrar satisfação alguma. E ela tinha se divertido ao vê-lo tão desconcertado na igreja. O mais provável era que tivesse provocado deliberadamente suas suspeitas, com seu sorriso presunçoso, só para fazê-lo sofrer durante a noite. Era tortuosa, desdenhosa e cruel, como todas as senhoras que ele conhecia. Entretanto, ao vê-la dançar com descuidado abandono, sentiu um desejo lascivo. Sem dúvida havia se tornado louco.

Ela voltou sem fôlego, com os cachos curtos aderidos ao rosto úmido, rindo por uma brincadeira que um nobre havia gritado do outro extremo do salão. Não deu sequer um olhar a Ranulf. Por isso ele deu um coice , arrancado de seus negros Pégasus Lançamentos

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pensamentos, para ouvi-la dizer: - Não dança meu senhor? - Não.

- Eu o faço raramente, mas hoje os convidados esperam que dancemos. Ranulf não estava de humor para conversas tão frívolas. - Quando se retirarão? Quero dizer, demorarão muito suas damas em escoltar para fora do salão? - OH, mas se ainda é cedo. O chateava que Reina não o olhasse. Até chegou a perguntar: - Têm seu pequeno frasco? - Certamente - respondeu ela, distraída. Tampouco isso provocou a reação desejada. Ranulf tinha desejo de sentá-la em seu colo, para ver se isso a fazia reagir. Mas por fim os olhos verde mar giraram para ele, demonstrando que ela havia estado atenta as suas perguntas. Mas interpretava mal seus motivos. - Não têm que se preocupar com a cerimônia do leito - disse, em suave murmúrio - Não pode me repudiar, nem eu a você. Não há necessidade de que nos apresentemos nus frente a todos os convidados, para a inspeção. Ele grunhiu ainda mais vexado. Era possível que não se ruborizasse jamais quando falava desses assuntos? O domínio que tinha sobre suas emoções resultava notável, mas nesse momento o irritava. Por fim ela interpretou corretamente o franzir de cenho: - Não se diverte, meu senhor? Há algo que eu possa ... ? - Pode ir ao leito, senhora, e o quanto antes. Quero terminar com as formalidades do dia. Por fim ela se ruborizou e baixou o olhar ao regaço. Guardou silêncio um longo instante, mas ao fim fez um gesto afirmativo, breve e rígido, e se levantou para retirar-se. Ranulf se inclinou no assento, sentindo que a tensão o abandonava. Não havia se Pégasus Lançamentos

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dado conta do importante que resultava a resposta a receber nesses longos segundos de silêncio. Se ela tivesse tratado de contradizê-lo... Mas não. Havia tomado suas palavras como ordem e obedeceu, deixando uma sensação muito satisfatória, que durou dois minutos. Só então caiu em conta de que, na realidade, ainda era cedo e que sua esposa tinha estado se divertindo bastante, antes que ele impusesse seu humor sombrio. E na realidade não tinha motivo para estar tão carrancudo. Por acaso não era o senhor de tudo quanto via? Não tinha tanto poder como seu próprio pai? Sim, mas o que havia feito para ganhá-lo?

- O que faz isso aqui? Reina viu o «isso» em questão plantado no centro de seu leito nupcial. Tinha mandado cuidar de Lady Ella quando chegaram, mas não sabia que a besta compartilhasse o aposento com seu dono. - É a mascote de Ranulf - respondeu à áspera pergunta de lady Hilary. - Seriamente? - Outra das damas riu infantilmente. Reina também sorriu. Se isso lhe parecia divertido, o que diriam quando vissem aquele feio animal envolto ao pescoço do gigante? - Mas nunca se permitiu entrar animais neste andar - insistiu lady Hilary. Reina encolheu os ombros. - Agora Clydon tem um novo senhor. Se ele deseja ter sua mascote em sua alcova, quem vai contradizê-lo? - Você, senhora. Caramba, que confiança tinham nela. Se tivessem visto a rapidez com que havia se deslocado para buscá-la para que a arrumassem, não pensariam agora que ela podia desfazer de uma gata mirrada.

O aposento era chamado «a alcova do senhor»,

certamente, mas os dormitórios eram, por tradição, domínio da senhora, que podia escolher com quem compartilhá-lo... Enquanto não se tratasse de seu esposo. Pensando nele e no muito que a havia afligido ao grunhir aquela ordem de deitar-se, disse a lady Florette: Pégasus Lançamentos

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- Leve-a a cozinha para que dêem um pouco de leite quente. - Imediatamente lhe ocorreu que o cozinheiro podia desgostar-se e adicionou - Explique ao pessoal da cozinha a quem pertence, para que não a fechem nos estábulos. - Morde? -perguntou a jovem viúva, cautelosa. Hilary pegou Lady Ella pela pele do pescoço e a ofereceu a Florette. - Se a morder, devolva a dentada. Isso provocou uma risada geral e acalmou um pouco o nervosismo de Reina. Já havia passado pela primeira cópula, que era o pior, e não tinha muitos motivos para ficar nervosa... mas estava. Talvez tivesse feito mal em ordenar que aguasse o vinho de seu esposo até reduzi-lo a pouco mais que água colorida. Se estivesse embriagado um pouco, divertindo-se mais, talvez não tivesse tanta pressa de levá-la ao leito. Talvez houvesse feito mal também em provocá-lo. A conduta de Ranulf havia sido estranha durante todo o dia, vacilante entre o desconcerto e a simples a cerimônia. Não era bem humorado para aceitar de bom grado uma brincadeira. O que se podia esperar de um gigante sóbrio e mal-humorado? Outro encontro apressado e rude? Ou rude e longo? Tinha sido uma loucura meter-se nisso! Ou talvez nem sequer houvesse um ato de amor. Essa idéia a animou um pouco. Depois de tudo, havia mostrado a redoma de «sangue» que usaria para manchar os lençóis nupciais. Ranulf não estava obrigado a deitar-se com ela só porque toda Clydon esperava que assim fosse. E só havia dito que desejava concluir com as formalidades, não que tivesse intenções de... Reina havia recuperado todo seu nervosismo, mas esse era o estado em que supostamente devia encontrar-se, de modo que não provocou mais comentários que as brincadeiras usuais na ocasião. Guardou silêncio enquanto lhe tiravam cuidadosamente as roupas para guardálas no armário, mas ao ver a branca camisa nas mãos de Hilary lembrou que seu esposo não havia feito nenhuma menção da roupa nova. Suas damas haviam trabalhado muitas horas, a pedido dela, para terminar a tempo o manto e as meias. Ela mesma tinha costurado a jaqueta, combinando com suas próprias peças, para o qual utilizou outra Pégasus Lançamentos

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peça daquela bela seda com fios prateados que havia estado reservando. Por que havia tomado tantos cuidados? Dificilmente voltaria a fazê-lo, se o homem o agradecia tão pouco. Entretanto luzia bem, muito bonito. Que necessidade havia de receber seu agradecimento, se podia sentir-se tão orgulhosa ao vê-lo com seu esplêndido adorno? Suspirou. Imediatamente lembrou onde estava e ruborizou. Mas ninguém havia ouvido. As mulheres estavam muito ocupadas em festejar com risinhos as brincadeiras que faziam. Lady Margaret tirou um pente e começou a pentear a longa cabeleira de Reina. Ao final de um momento ouviram que os homens se aproximavam e a jovem foi posta na cama com rapidez. Lá devia esperar como a virgem no altar do sacrifício... E assim se sentia. Se alguém supunha que os alegres camaradas de Ranulf o levariam até a soleira, como estava acostumado a ocorrer, Reina podia assegurar que dificilmente ocorreria assim. Quem seria capaz de elevá-lo? E ninguém o tentou. Mas a jovem teria sentido multiplicar-se seus temores se soubesse que ele próprio encabeçava a matilha na escada. As brincadeiras continuaram mais apimentadas que nunca depois da chegada dos homens.

Reina se negou a escutar, tampouco quis ver Walter, que se atrevia a

despojar o noivo de sua jaqueta. Concentrou-se na caçada que havia preparado para a manhã, em que faria preparar para o jantar, se a metade dos convidados ficava a passar o dia todo... E era provável. Pensou na visita que devia aos aldeãos para atender suas enfermidades, coisa que havia descuidado nos últimos dias. Pensou em qualquer coisa que a distraísse. E de repente a porta se fechou, interrompendo sua concentração. Reina engoliu com dificuldade: estava a sós com seu marido. Ele próprio havia fechado a porta e, sem mais perda de tempo, foi diretamente à cama. Ainda usava as calças e as meias, mas nada mais. Reina conteve o fôlego. Saltaria outra vez sobre ela? Desta vez não foi assim. Ranulf arrancou as mantas. Pégasus Lançamentos

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Reina afogou uma exclamação, um som diminuto que só ela percebeu. Ele olhava seu corpo com tanta atenção que, se o teto tivesse caído na sua cabeça, não teria se alterado. A jovem seguia sem respirar, temerosa de mover-se, temerosa até de cobrir-se com as mãos, sem saber o que faria a seguir o imprevisível gigante com quem havia se casado. - De maneira que não era sonho - comentou ele. Os olhos de Reina se moveram cautelosamente até achar os dele, agora obscurecidos até o anil. Ele parecia surpreso pelo que havia descoberto. E expressava outras emoções que ela não pôde determinar. - Isso é bom... Ou ruim? A única resposta foi um grunhido. Por acaso esperava elogios, depois de tudo o que havia feito ele passar? Pois podia esperá-los sentada. Apesar disso, por todos os Santos! Bem se alegrava de que tudo que havia levado na mente nos últimos dias não fosse só um sonho. Agora a lembrava claramente, de pé no centro de sua cama, vestida com uma camisa curta, como uma pequena Valquíria a ponto de batalhar com ele. Isso o havia inflamado outra vez, como ao vê-la escarranchada no cavalo. Mas seu corpo nu! Quem poderia pensar que aquela mulher ocultava formas tão perfeitas sob as roupas? Ainda que fosse de curta estatura, todos seus membros mantinham proporções exatas. Queria permanecer assim, olhando-a. Queria jogar-se sobre ela. O irritante era não poder fazer ambas as coisas ao mesmo tempo. Na vez anterior não havia ficado seguro de nada. Mas agora, embora sua lascívia não fosse menos forte podia dominála... Ou ao menos isso esperava. Pelos cravos de Cristo, estaria sempre em desvantagem com essa senhora? Um joelho desceu sobre a cama; logo, o outro. Ouviu sua exclamação abafada e voltou a olhá-la nos olhos, apreciando o que antes havia passado inadvertido. - Têm medo? -perguntou. O gesto afirmativo o pegou de surpresa, sobre tudo porque lembrava suas Pégasus Lançamentos

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sarcásticas palavras, na manhã posterior às bodas, ao perguntar ele, estupidamente, se a tinha matado: «Por acaso pareço morta?». Começou outra vez: - Sem dúvida sabe que... - Sei. - A que teme, então? Pensa que sou diferente dos outros homens? Ela emitiu um som afogado que produziu em Ranulf um rápido franzir de cenho. Em seguida baixou a vista a seu próprio corpo e reconheceu, a contra gosto: - Sim, um pouco diferente, talvez. O gemido se aguçou, o que o fez juntar as sobrancelhas um pouco mais. - Não é necessário que dê detalhes. E tal como apressou a me dizer, já suportou meu tamanho sem morrer. O que teme agora? - Suponho... suponho que é o desconhecido, o... o não saber por que estava tão impaciente por me ter aqui, a sós. Ele a olhou com incredulidade. - De não saber... Senhora, por que outro motivo poderia mandá-la deitar-se? - Mas sua impaciência... - O que esperava, se a única mulher que deve estar em meu leito não vai a ele? Posso manter a abstinência como qualquer homem, quando é necessário, mas a abstinência forçada não cai bem a meu caráter. Será melhor que saiba a partir de agora: não me agrada que me negue o que desejo. E voltou a franzir o cenho: acabava de compreender que ela, astutamente, o havia feito admitir que a desejava, embora ele só experimentasse uma fugaz lascívia. Porque era só lascívia, não? Por certo. Qualquer fêmea podia satisfazer essas ânsias, ainda que ela as tivesse provocado. Mas nesse caso, por que a obrigou a abandonar os festejos, se teria sido possível escapulir por alguns instantes com qualquer moça de boa aparência, sem que sentissem falta dele? Alguns dedos na testa o sobressaltaram, interrompendo seus pensamentos. - Por que faz isso? -perguntou ela. Pégasus Lançamentos

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- O que?

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- Franzir o cenho com tanta freqüência, sem motivos fundados. Sabe que nunca o vi sorrir? - Se queria sorrisos, deveria ter casado com Walter - replicou ele amargamente. - Sim, ele tem certo encanto alegre... Mas me casei com VOCÊ. - Assim foi, mas por quê? E desta vez quero saber a verdade, senhora, pois não se tratou de que se visse obrigada a escolher entre Rothwell e eu. Teve oportunidade de me desprezar, uma vez que estivesse de volta aqui. - Mas já escutou o que disse a meus vassalos. Era a verdade, Ranulf. Decidi que você era o melhor candidato para Clydon. - E para você? - Clydon está acima de tudo. Havia demorado um momento em responder, e a resposta resultava muito pouco satisfatória. Mas não esperava receber elogios daquela mulher. Nunca havia dado motivos para pensar que o desejava. De quantas mulheres conhecia, era a primeira que não o olhava com algum interesse, sexual ou não. E ele a havia desposado. Estava casado com uma mulher que mostrava medo quando menos correspondia que preferia evitá-lo, sobre tudo na cama, quando outras mulheres disputavam manter-se em seu leito. Bom, ela mesma havia procurado. Gostasse ou não, seria sua. - Ainda têm medo? -perguntou com secura. - Não. - Me alegro, porque já me rechaçou muito tempo com estas tolices. - Não acredito que fossem... - Por todos os Santos, não lhe ocorra discutir agora, senhora! Ela emitiu um som que se pareceu suspeitamente a uma risada, mas Ranulf já não se importava. Havia dominado sua luxúria até então só porque não gostava que o temesse, muito menos, que o temesse na cama. Mas enquanto falava para acalmá-la, aquele arbusto de pêlo entre suas pernas o subjugava; brilho negro contra uma pálida Pégasus Lançamentos

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pele branca era um ímã para seu olhar... E para suas mãos. Por fim, cedeu. Ela aspirou bruscamente ao sentir que um dedo se deslizava dentro de seu corpo, mas não foi isso o que deteve Ranulf, mas sim o fato de encontrá-la seca, sem uma gota de umidade que o incentivasse. Isso nunca havia acontecido até então. Mesmo sabendo o que ia acontecer, ela não estava pronta. Resultava frustrante, considerando que seu desejo não havia diminuído absolutamente. E o que sabia ele de excitar a uma mulher, sobretudo uma dama? Geralmente era ele quem não estava pronto e não o contrário. Mas era de se esperar algo assim de uma mulher que se mostrava tão indiferente. E de repente ocorreu outra idéia. A olhou asperamente, e indagou: - A vez anterior, estava tão pouco disposta quanto agora? Nesse caso, a dor teria sido muito mais intensa, o que explicaria sua atual relutância e seu medo anterior. Entretanto, a resposta foi um rubor que se expandiu até seus adoráveis seios. E ela era uma dama que não se envergonhava de chamar as coisas por seu nome. Teria se equivocado? Por acaso o general não era tão imune a ele como aparentava? No momento em que perguntava, seu dedo foi encharcado por uma umidade quente, embora não o houvesse movido, e o rubor da jovem se acentuou ainda mais. A gargalhada de Ranulf foi espontânea, sentia-se mais que aliviado: encantado. Sua risada surpreendeu Reina que o olhou como se o achasse louco, mas não se importou. - Ocorre... ocorre algo errado, meu senhor? - Não, tudo está bem. Sentou-se na cama para desenredar os cordões, embora não afastou o olhar dela. Não lembrava o que havia feito na ocasião anterior, mas seus dedos impacientes voltaram a romper os laços para tirar o resto da roupa. E estava impaciente outra vez. Ela o desejava. Não havia se casado só pelo bem de Clydon. Já! Aquela pequena bruxa não cederia um pingo, faria qualquer coisa por dissimular a verdade, mas havia coisas Pégasus Lançamentos

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impossíveis de ocultar, e ele acabava de descobri-lo.

- Se sua intenção é... - começou, nervosa. Logo o tentou outra vez - Não fechará primeiro as cortinas? - Depois - disse Ranulf. E impediu qualquer outra pergunta lhe cobrindo a boca com a sua, enquanto a colocava na posição adequada. Que gosto bom tinha essa mulher! Como podia havê-lo esquecido? Atrasou a penetração... Até que as mãozinhas o rodearam no pescoço, vacilantes. Essa pequena resposta foi sua perdição: afundou-se em sua calidez com um grunhido. Que maravilhosa sensação! Como havia esquecido isso também? Era como uma mão suave que o estreitasse, atraindo-o para dentro, cada vez mais fundo. O que até então havia sido só uma necessidade física, igual a comer ou urinar, agora parecia diferente. Quis saborear a sensação, mas o desejar e o conseguir nem sempre se fundem. Nesse momento reconheceu. Seu corpo não estava disposto a conter-se, não podia fazê-lo. E já não importava. Tudo perdeu importância, em meio da culminação mais plena de sua vida. Ouviu vagamente um rugido capaz de estremecer as vigas do teto e não soube que era seu.

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C apítulo 21 O batente da janela estava sombreado e silencioso, com o frescor do ar noturno que emanava dos painéis de vidro. Reina, sentada no assento coberto de peles, com as pernas recolhidas contra o peito e os braços ao redor delas, contemplava pensativamente o céu, que se tornava pouco a pouco à malva, logo à lavanda. Seu esposo ainda dormia. Havia dormido pacificamente durante toda a noite, a partir do momento em que se separou dela. Reina não havia tido tanta sorte. Havia passado longas horas deitada a seu lado, escutando sua respiração suave e uniforme. Teria preferido que ele roncasse a todo pulmão, para ter algo do que queixar-se, posto que não pudesse queixar-se do que na verdade a incomodava. Mas ele não lhe deu mais satisfação nesse sentido que no outro, momentos antes. Reina havia estado muito perto de... Do que? Não estava segura, mas sem dúvida valia a pena, posto que pudesse provocar nele, fosse o que fosse aquele primário rugido de prazer. Esta vez, sem dor, havia sido diferente. Era muito gratificante tê-lo dentro de seu corpo. A sensação era muito estranha, mas não dava medo: a princípio, cálida e lânguida; depois havia aparecido outra vez esse bater de asas em seu ventre. Então o calor se fez mais intenso, a respiração se tornava difícil e algo começava a acumularse em seu interior, centrado em sua virilha; algo muito, mas muito agradável. E de repente tudo terminou, deixando uma frustração tão aguda que havia ficado a ponto de golpear seu marido, instantaneamente adormecido. Mas não cometeu a loucura de fazê-lo. E a frustração tampouco durou tanto. Foram outros pensamentos que a mantiveram desperta: pensamentos provocados pela estranha conversa que haviam mantido. Tudo aquilo, ao relembrar-se, tinha algo de irreal. Nunca teria imaginado que Ranulf podia se preocupar com o nervosismo de sua mulher, mas assim era. E que Pégasus Lançamentos

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divertido havia estado ao assegurar que não se diferenciava dos outros homens, considerando que, além de ser um verdadeiro gigante, era extremamente atraente! E depois, ao dizer que sua impaciência se devia a que ela havia negado o que desejava... Ela? Parecia improvável. Reina sabia que não era linda. Tinha uma boca muito larga e grande para um rosto tão pequeno, seu cabelo era preto e feio. Seus seios, tão miúdos que não valia a pena reparar neles. Tinha boa cútis e isso a salvava. As pessoas pareciam reparar sempre em seus olhos antes de tudo. Em um bom dia podia se passar por bonita, mas já era dizer muito. Entre suas criadas havia mais agraciadas, algumas eram realmente lindas, como Edwina. E ela havia visto com seus próprios olhos o tipo de mulher que atraía Ranulf. Ela não era desse tipo. Por que um homem de aspecto tão estupendo como Ranulf Fitz Hugh podia ter dito semelhante coisa? O valor de Reina residia no que podia contribuir ao matrimônio, não em si mesma, ela sempre soube. Entretanto, ele havia dito aquilo, e Reina havia experimentado um prazer embriagador ao ouvi-lo... antes de lhe subtrair crédito. Depois, seus papéis se inverteram de algum modo. O ouviu duvidar de sua própria valia, isso deu uma pauta do que tanto o havia incomodado nos dias anteriores, não estava convencido de que ela o considerasse o melhor dono para Clydon. O que podia importar o que ela pensasse, ao fim e ao cabo? Isso não tinha sentido algum. Depois, a impaciência do jovem voltou, e ela descobriu que na verdade a desejava. Não fingia.

Se sua tensão contida havia sido evidente desde o inicio, o

motivo ficou à vista quando sua mão procurou o centro da intimidade de Reina. Nesse instante, ela viu por acaso o vulto ereto que se ocultava na cueca. Qualquer fosse o motivo, durante a noite anterior ele havia experimentado um forte desejo... Provavelmente porque ela havia negado e Ranulf não tolerava as negativas. Ainda não chegava a compreender, porém, aquela risada triunfante que tanto a surpreendeu, sobretudo depois da vergonhosa pergunta sobre se a vez anterior havia estado preparada. Obviamente, ele não lembrava nada daquela primeira noite, do contrário não teria sido necessário perguntar. E em apenas recordar quão preparada Pégasus Lançamentos

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havia estado a mesma umidade a esquentou entre as pernas. Então, a gargalhada: a primeira que escutava, transformando-o, fazendo dele um homem completamente diferente, muito menos resmungão, áspero e inabordável. Mas isso não durou. Na segunda oportunidade ele não havia se atirado em cima, mas a sensação foi a mesma, devido a sua afobação em obter dela o que desejava, fosse o que fosse. Ao evocá-lo, Reina voltou a lembrar sua frustração e franziu o cenho. Seria sempre assim, apressado e fugaz? Isso era o normal? Por acaso a falta residia nela, que não era o suficientemente rápida em suas reações? Alguns ruídos na cama lhe chamaram a atenção. Surpreendida, viu que a luz do amanhecer havia feito desaparecer todas as sombras do quarto. A vela solitária que ela havia acendido para colocar a bata e preparar as evidências nos lençóis havia apagado já consumida, mas tampouco fazia falta. Reina não havia pensado nesses lençóis na noite anterior. Por sorte, despertou cedo, com tempo para que «a prova» se secasse antes que chegassem as damas para retirar os lençóis, como indicava a tradição. Seu esposo, duas vezes desposado, estava sentado na cama. A ruga que lhe sulcava a testa não desapareceu de todo ao achá-la, por fim, no canto mais afastado do batente. - Escondida, senhora? - À plena vista, meu senhor? Seu grunhido se ouviu com clareza em toda a alcova. - Por que não me despertou? Ela estirou as pernas e sentiu que haviam intumescido, de modo que demorou um momento em levantar-se. - É cedo, mas talvez queira se vestir agora mesmo. Não há modo de saber quando chegará nossa companhia. - Que companhia? Ah, sim, como pude esquecê-lo. Não era uma pergunta e foi pronunciada com tom seco. Então Ranulf baixou a vista às poucas gotas de sangue que ela havia deixado cair no lençol, a seu lado. Pégasus Lançamentos

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Uma sobrancelha dourada se arqueou.

- Não fazem justiça a minha virilidade, senhora, quando na verdade arrancou um verdadeiro atoleiro de sangue. Possivelmente devesse oferecer à inspeção o verdadeiro lençol. Ela não podia acreditar. Seu resmungão esposo, fazendo brincadeiras? Ou não era brincadeira? Adiantou-se para o leito, a passo lento. - De verdade... de verdade guarda esse lençol? - Sim. Está nessa arca, e eu gostaria que o pegasse. Este engano que levamos a cabo não me senta bem. Quero que seus homens saibam a verdade. Ela aumentou os olhos um momento, mas logo relaxou. Também a incomodava o engano. E agora que o segundo casamento foi realizado, não havia nenhuma necessidade de mantê-lo. - Sim. Agora aceitarão a verdade com melhor disposição. Hoje mesmo direi. Ranulf pareceu se surpreender que ela não discutisse, mas Reina ainda não tinha terminado. - Entretanto, com as mulheres a coisa é diferente. Para não provocar dúvidas e mexericos, elas devem ter a certeza de que você não duvida de minha virtude, e só você pode assegurar isso. Pode solucionar o caso dos lençóis como preferir, mas isso corre por sua conta. Pensou que ele resistiria, a julgar por sua cara de desgosto, mas ele fez um breve indicar de assentimento. Depois de tudo, não era tão difícil convencê-lo, e isso retirou uma preocupação da mente. Mas ainda não havia terminado. - Entretanto, o que disse a Sir Henry deve manter-se. - O que lhe disse? - Que foi o homem escolhido por meu pai para mim. Meu próprio pai iniciou o engano com lorde Guy e não quero que o pontue de mentiroso. - E ele teria me aceito como seu esposo, senhora? - Sim, acredito que sim. - Que seja assim. Pégasus Lançamentos

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- Bem. E já que estamos limpando o ambiente, por assim dizê-lo, não seria hora de começarmos a ser íntimos? Lembra meu nome? - De maneira que voltou o general, e com verdadeiro sarcasmo. Era o que me faltava para despertar. Reina ficou rígida. - Não é esse o nome que me agrada, esposo meu. - O que te agrada não me interessa muito, por agora... Esposa minha. Ela retirou sua conclusão anterior sobre ele ser um homem fácil de tratar. Quase tão fácil de tratar como um porco selvagem. - Não é bom iniciar a jornada com uma briga - disse friamente. - Me cai bem - grunhiu ele, sem dúvida só para contradizê-la. - Seriamente? É o que lhe falta para despertamos, é? - replicou ela, utilizando as palavras de Ranulf - Será melhor que lhe deixe. - Aonde vai? Ela se deteve perto da porta. - Não acredito que lhe incumba... - Aonde? De maneira que sua própria vida já não lhe pertencia. Reina havia previsto que deveria renunciar a isso ao escolhê-lo em vez de Richard ou John, a quem teria podido dirigir com facilidade. Virou-se para ele com um suspiro. - Só trouxe à alcova esta bata - explicou, assinalando o veludo branco que a envolvia - Ia a meu antigo quarto para me vestir e dispor que tragam aqui meus pertences, enquanto saímos em caçada. A menos que tenha mudado de opinião e prefira não compartilhar comigo estes aposentos. Ele franziu o cenho ante a entonação de esperança que se detectava na voz de sua esposa. - Dormirá aqui, como corresponde. O mesmo havia dito a noite anterior. Por que se mostrava tão obstinado, se na verdade não a desejava ali? Com um gesto de aquiescência, não menos rígido que o de Ranulf um instante Pégasus Lançamentos

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antes, Reina continuou seu caminho. Negava-se a pedir permissão para retirar-se. Se fosse necessário fazê-lo, passaria nesse quarto o resto de sua vida. Ele não voltou a detê-la. Isso deveria ter melhorado o humor de Reina, mas não foi assim. E o que menos desejava, por certo, era enfrentar Theo, que a esperava em sua própria alcova para assediá-la com perguntas ansiosas. - E bem? Como foi desta vez? - Quer todos os detalhes mórbidos ou bastará com umas poucas palavras? espetou ela. -De maneira que foi outra vez rude e rápido. -Não tão rude - reconheceu ela, a contra gosto - mas terminou sem me dar tempo de me dar conta de que havia começado. Theo se sentou pesadamente em um banquinho; seu rosto jovem mostrava um absoluto desencanto. - De maneira que ainda não te agradou? - Me agradar? - soprou ela, enquanto se aproximava do cofre instalado aos pés da cama - Me diga uma coisa, Theo: supõe-se que a mulher deve sentir algo especial durante a cópula, ou é só o desejo de outorgar ao homem os favores que ele deseja? - Não é para mim a quem deve perguntar, Reina. Eu desfruto, por certo. - Bom, pois eu não. - Mas sabe que falta algo. Do contrário não estaria tão chateada. -Theo lhe sorriu - Pergunta a Wenda, talvez ela possa te descrever como é para as mulheres. - Não quero perguntar a Wenda - replicou ela, com uma careta - Me diga, é normal que termine tão rápido? - Normal, não. Mas olha deste modo, Reina: esse homem encantador já te oferece o supremo elogio de não poder conter-se pelo muito que o excita o... - Fala a sério, tolo! Ele esquivou a camisa que Reina arrojou, protestando: - Mas se falo a sério! Caso contrário, como te dizia, é seu modo de ser e não se importa que sinta prazer ou não. Por desgraça, há homens assim. Pégasus Lançamentos

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- E eu me casei com um deles. - A jovem suspirou, sentando-se na cama com uma jaqueta em uma mão e uma camisa na outra - O que vou fazer? - Pode lhe dizer que não a satisfaz seu modo de... - Está louco? - chiou ela - Não posso lhe dizer isso! Theo encolheu os ombros. - Nesse caso, excita-o outra vez quando tiver terminado. Habitualmente, os homens atuam com mais lentidão a segunda vez. Isso incitou o interesse da moça. - Ou seja... Imediatamente depois? - Sim. - Mas se dormir? - Desperte-o. Ela franziu o cenho - Não acredito que goste. - Não o incomodará, se o fizer bem. - Como? E como o excito? - Reina! - exclamou ele, colocando os olhos em branco - Por acaso sua mãe não te ensinou nada sobre como agradar um esposo? Toca-o, o acaricie por toda parte... Oh, se eu pudesse... - Ruborizado, continuou imediatamente - Acaricia-o, sobre tudo onde mais conta. Ela alargou os olhos. - Lá? - Lá. - Oh, bom, suponho que não tem que ser tão difícil. O que estava dizendo? Como se atreveria a fazer semelhante coisa? - Pois bem, espero vê-la sorrir amanhã pela manhã. Ela o fulminou com o olhar. - Esse é só o menor de meus problemas. Não imagina quanto insofrível e fastidioso pode chegar a ser. Se alguma vez voltar a sorrir, será por milagre.

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C apítulo 22 Reina deu uma olhada a claridade, suspirando. Haviam se detido enquanto os galgos farejavam os matagais, depois de ter perdido o rastro do grande veado que divisaram um momento antes. A túnica de lã fina que usava era ideal para montar, mas fazia calor, embora ainda não fosse temporada, e as gotas de suor a incomodavam nas têmporas, empapando a camisa de linho. Em outra ocasião não teria reparado nisso, pega pelo entusiasmo da caçada, mas nessa oportunidade tinha muitas coisas em mente. Não prestou atenção a seu esposo, que havia detido seu cavalo junto a ela, ao menos, tratou de não prestar atenção nele. Aquele patife insofrível tinha mostrado às damas o outro lençol, o primeiro. Reina teve que sofrer olhares de horror e compaixão, que provavelmente continuariam até que alguém se incomodasse em lembrar que ela tinha voltado para Clydon em perfeita saúde. Isso era o que havia conseguido por pedir que fizesse sua vontade. E ele parecia achar tudo muito divertido. Até havia sorrido à sua esposa ao reunir-se com ela no salão para o café da manhã. Reina deveria ter desconfiado daquele sorriso, mas até então estava muito intrigada pela estranha agitação que voltava a sentir no ventre. Podia ser algo provocado por esse sorriso? Estúpida! Seria melhor que ele continuasse com seu humor de porco selvagem. - Não são estes os bosques onde habitam os bandidos que ouvi mencionar? Reina se viu obrigada a prestar atenção. - Refere aos terríveis foragidos que atacaram seu acampamento, aquela noite, te obrigando a partir tão depressa? Ranulf não mordeu o anzol. Teve o descaramento de lhe dedicar outro sorriso ante o aviso do ardil que havia empregado para tirá-la de Clydon aquela noite fatídica. Dois sorrisos em poucas horas. Decididamente, o episódio dos lençóis havia melhorado Pégasus Lançamentos

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seu humor. Talvez encontrasse uma perversa diversão no fato das mulheres de Clydon lhe tivessem medo, no momento, como se ele tivesse uma arma monstruosa dentro das calças, e não um pênis como outro qualquer. Reina não achava a graça. -Creio que a esses mesmos foragidos que me refiro - respondeu ele, com um tom que, para seu caráter, era muito simpático - Acha que veremos algum rastro deles? Reina decidiu refrear, momentaneamente, seu chateio, posto que ele parecesse interessado de verdade. - Talvez veja algum sinal de seu passo, mas não os verá.

Parecem saber

antecipadamente quando sairá um grupo numeroso de Clydon ou de Warhurst. Então se disseminam a leste e ao oeste, abandonando os bosques. - Warhurst? - A pequena população que há do outro lado do bosque. Na realidade, Warhurst sofre seus ataques mais que nós. Ocasionalmente roubam uma saca de grãos ou um barril de manteiga de meus aldeãos... - E esses importantes roubos de vaca e de ovelhas que mencionou? - Podem ser obra deles, mas não acredito. Só são aldeãos proscritos. A quem venderiam esses animais? E nos bosques conseguem toda a carne que necessitam. Não, o que costumam fazer com freqüência é assaltar aos pequenos grupos de viajantes que transitam pela rota do norte, a qual atravessa estes bosques. Em especial, às caravanas de mercadores que vão a Warhurst. Como te disse, atacam mais essa aldeia que Clydon. - Não trataste que desalojá-los? Ela não pôde deixar de sorrir, como se recordasse com afeto.

- Meu pai estava acostumado a ir todos os meses com seus homens para limpar a área. Até se divertia com a perseguição. Na volta se desafogava amaldiçoando os patifes, pois nunca conseguia apanhá-los. Como te disse, parecem saber quando há Pégasus Lançamentos

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ameaça. O castelão de Warhurst envia patrulhas com freqüência, mas esse homem é um imbecil e o burlam com facilidade. Os proscritos são simples aldeãos, mas tem astúcia. - Acha que vigiam tanto Clydon quanto Warhurst? - Estando os bosques tão perto, não lhes seria difícil. Ele a estudou por um momento antes de dizer: - Não acha que sejam uma autêntica ameaça, não é? - Me entendeu mal, senhor. Para meu pai era como um esporte que divertia a ambos. Mas desde sua partida importunaram mais. É certo que, até onde posso assegurar, não mataram ninguém, mas alguns visitantes de Clydon sofreram seus ataques. Roubaram quase cem marcos de um lorde, que me senti obrigada a repor. Afinal, os bosques são meus. - E, portanto, também os proscritos são seus - soprou ele. - Meus, sim... E agora seus. - Isso, por fim, fez que Ranulf franzisse o cenho. Ela ficou a ponto de rir - Terá que aceitar o mau junto com o bom, senhor. - Há mais coisas más? Ela sorriu. - Por certo. Deixe-me pensar. Há Tom, o ferreiro. A cada poucos meses bebe em demasia e trata de incendiar a aldeia. Ninguém sabe por que, nem sequer ele. - E não mandaste enforcá-lo? - Por quê? É um bom ferreiro e paga com seu trabalho os danos que causa. Espero que não trate de solucionar tudo com a forca. - E se assim fosse? Ela ficou rígida, levantando o queixo em um gesto desafiante. - Nesse caso discutiremos muito. - Talvez, mas não por isso. A freqüência com que eu empregue a forca está por ver-se, mas será minha decisão de senhor. Não é assim, senhora? Havia captado seu desafio e a respondia em um plano de igualdade. Ela o olhou por um longo instante. Observou suas feições implacáveis, a evidente tensão de seu Pégasus Lançamentos

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corpo. O que podia dizer? Ela mesma havia concedido o poder de fazer sua vontade ao casar-se com ele. Mas havia se casado com ele para que protegesse seu povoado, não para que enforcasse arbitrariamente. Não podia ter se equivocado tanto a respeito dele. Sem dúvida, essa pergunta sobre Tom era só uma maneira de provocá-la. Do contrário, como podia Ranulf saber de que modo ela tratava sua gente? Fazia mal em alterar-se. Mas demorou a se tranqüilizar. Com tom ainda duro, respondeu: - Sim, como senhor quase todas as decisões lhe correspondem. - Quase todas? - Quer se encarregar também com minha parte? Se devo me limitar a bordar, diga-me. Ranulf não disse nada. Observava os olhos da moça, que cintilavam de rancor, e seu corpo trêmulo. Sentiu um fogo abrasador na virilha. Pelos cravos de Cristo! Outra vez? Mas ali estava lhe atiçando o ventre, fazendo esquecer a conversa e a caçada. Nesse instante, os cães encontraram o rastro e o grupo partiu atrás deles, incluindo sua esposa. Ranulf ficou cheio de uma raiva irracional, como um animal à espreita que tivesse perdido o rastro de sua presa. Então compreendeu que não tinha por que enfurecer-se. O que havia vacilado em aceitar, tanto a noite anterior como essa mesma manhã, cristalizou por fim em sua mente: Reina de Champeney era agora Reina Fitz Hugh, sua esposa, sua. Pertencia-lhe por inteiro. Cravou as esporas em seu cavalo, mas com uma presa distinta na mente. Reina começava a relaxar, pensando que tinha deixado Ranulf atrás e que não voltaria a ser incomodada por suas irritantes maneiras, ao menos por um tempo, mas equivocara-se. O grande corcel voltou a ficar junto a seu palafrém, mas nesta oportunidade não foi trotar a seu lado. Antes que ela pudesse dar-se conta, Ranulf esticou a mão e tomou as rédeas. Subitamente, a pequena égua teve que segui-lo de perto. Ninguém notou. Esse foi o primeiro pensamento de Reina. Os outros membros do grupo se limitaram a continuar, sem sequer voltar à vista. O segundo pensamento a Pégasus Lançamentos

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fez empalidecer, lembrando sua atitude desafiante dos minutos anteriores. Só lhe ocorria que ele tinha se ofendido e pensava castigá-la imediatamente. Mas por quê? Ela havia se zangado sem dissimulá-lo, mas não era a primeira vez. Merecia uma surra? Ele podia pensar que sim. E agora tinha direito de aplicá-la. Não, não era assim: havia jurado não golpeá-la ao assinar o contrato matrimonial. Mas nada dizia de não lhe castigar o traseiro. E Ranulf havia chegado a lhe advertir que bem podia fazê-lo. Empalideceu um pouco mais e se inclinou para frente, tratando de recuperar as rédeas. Mas nesse momento sua égua se deteve detrás de Ranulf. A moça, contendo o fôlego, o viu desmontar. Estava muito assustada para fazer nada; nem sequer lhe ocorreu fugir. Só se recuperou quando as mãos do homem rodearam sua cintura. - Não foi minha intenção... Não pode ir mais à frente em sua tentativa de apaziguá-lo, pois se viu desmontada a puxões, esmagada contra o peito de seu marido e sufocada por sua boca contra a dela. Um beijo? Sim, provavelmente ele o chamasse assim. Reina não estava certa de que isso fosse beijar, sobretudo porque ele afundava a língua em sua boca. Tratou de empurrá-la com a sua, rechaçando-a. Isso provocou em Ranulf uma espécie de grunhido e fez que a estreitasse com mais força. O estranho era que não doía, pelo contrário, acendia uma chama trêmula no peito. Quando ele a depositou no chão, Reina sentiu que as pernas se afrouxavam. Quase não podia respirar e seus pensamentos estavam em desordem. Quando conseguiu reuni-los em algo coerente, o manto de Ranulf estava já estendido na terra. Tinha tirado a espada e lutava com as ataduras de sua roupa de baixo. - O que ... ? Um olhar feroz a interromper. - É minha esposa ou não? Aquele olhar e aquele tom deveriam ter servido de advertência, mas não foi assim. Reina ficou surpreendida pela pergunta. - Sou sua esposa, certamente. Por acaso não nos casamos duas vezes, para que Pégasus Lançamentos

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não tivesse dúvida alguma a respeito?

- Assim foi. E, portanto, desejo fazer uso de meus direitos. Ela dilatou os olhos, incrédula. - Agora? Ele encolheu de ombros, embora em seu olhar não houvesse gesto algum de despreocupação. - Sou jovem e apaixonado. Foi o que exigiu, não? - Mas... Uma vez mais, foi impossível terminar a frase, muito menos protestar. Ele a segurou pela cintura com um braço e a deitou no manto, para começar a beijá-la. No fundo de sua mente, Reina pensava que ainda havia tempo para lhe explicar, em termos razoáveis, que o senhor e a senhora de Clydon não se acasalava nos bosques. Ele teria que deixar de beijá-la para despi-la, então o diria. Tola ela, por pensar assim. Porque ele não deixou de beijá-la. Não a despiu, limitou-se a arrancar as calcinhas e a abaixá-las. Um instante depois estava dentro dela, cavalgando com uma veloz urgência que chegou a sua culminação em menos de um minuto. Reina não sentiu nada. Isso, mais que outra coisa, a fez se descontrolar quando ele se deixou cair de lado. - Maldito seja, Ranulf! Talvez esteja habituado a levantar as saias de qualquer serva com que cruze, mas comigo não atuará assim! Sou sua esposa, não uma qualquer que tenha encontrado nos campos. Se me desejar, terá ao menos a decência de tirar primeiro as roupas e me despir. - Como queira. Como ele estendesse a mão para sua saia, ela afogou um grito e se afastou bruscamente, pondo-se de pé. - Agora não, seu bruto animal! Estou farta de suas habilidades de animal pelo que resta do dia. Ele não pareceu ofendido. Pelo contrário, deixou-a estupefata com uma Pégasus Lançamentos

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gargalhada. E sorriu como um cão satisfeito enquanto acomodava a roupa interior. -Talvez demore um pouco em me acostumar com a idéia de que me pertence disse, com aquele sorriso enlouquecedor. - Mas você mesma o confirmaste e não vou ficar resistindo à idéia. Será melhor que se habitue a meus costumes o quanto antes, pois a possuirei, queira ou não, quando o desejar. - E em qualquer parte? Ele jogou uma olhada aos matagais que os rodeavam; não eram proteção alguma, por certo. Teve a audácia de rir entre dentes. - Sim, em qualquer parte. Não, não me importa. Ela passou a seu lado, com os lábios rígidos de fúria. - Me importa, e não voltarei a sair de Clydon contigo, se persistir em sua atitude. Isso provocou mais risadas, levando-a a beira da frustração. Não pensava pedir ajuda para voltar a montar, mas enquanto lutava por elevar-se, Ranulf pôs uma mão em seu traseiro e lhe deu o impulso necessário. Em vez de agradecer Reina se ruborizou intensamente e girou. Com um pouco de sorte, se reuniria com o grupo antes que notassem sua ausência. E com outro pouco de sorte, seu esposo se perderia nos bosques, para não retornar Clydon até o crepúsculo, com um mau humor de acordo ao dela.

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C apítulo 23 Ranulf seguiu sua esposa com o olhar. Afastava-se ao trote, retrocedendo o percurso que haviam feito, sem saber que ele seguia sorrindo. Era como as outras damas que conhecia, mas também diferente. E essa diferença lhe proporcionava um bem-vindo alívio. A maioria das damas chorava, suplicava, utilizava argúcias ou aplicava todas as más artes imagináveis para sair-se bem. Esta não. Era muito franca. Logo cortava suavemente com seu ofensivo sarcasmo ou deixava em liberdade seu mau gênio, que não o incomodava absolutamente. Pelo contrário: o divertia, por provir de uma mulher tão pequena. Por que havia se zangado desta vez? Ranulf não sabia com certeza, Era possível que se opusesse a uma rápida trepada nos bosques, em um belo dia de primavera? Lady Anne nunca havia se negado. Ao contrário, tinha sido ela quem instigava a maior parte de seus encontros, nos lugares mais estranhos. Também Lady Montfort havia tratado de seduzi-lo nos bosques, depois de fazer com que ele a acompanhasse a caçar com falcão. E se não lhe agradou, não foi pelo lugar em que estavam nem pela circunstância da dama, pois era então tão apaixonado quanto agora e procurava alívio quando e onde fosse. Mas aquela mulher tinha cinqüenta anos, e ele gostava das moças mais jovens. Para um moço de quinze anos, as avós tinham poucos atrativos. Ranulf afastou as recordações antes que ameaçassem seu bom humor. E seu humor havia estado bom desde que, no enfrentamento matinal com sua esposa, saiu vencedor. Isso foi algo inesperado. Queria que os vassalos de sua mulher soubessem a verdade sobre a primeira boda, mas se Reina tivesse dado motivos válidos para continuar com o engano, ele teria cedido. Depois de tudo, ela conhecia bem esses homens e estava mais capacitada para julgar suas reações. Se ela preferisse enganar Sir Henry, estava bem. Talvez algum dia, quando seu senhor o conhecesse melhor, ele Pégasus Lançamentos

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poderia lhe contar a verdade. Ou talvez não. Se Reina quisesse conservar intacta a memória de seu pai, Ranulf não tinha nada que objetar. Mas ela havia se mostrado de acordo, ao menos em parte, demonstrando que não era tão inflexível como algumas damas estavam acostumadas mostrar-se por pura perversidade. Ele mesmo sofria essa tendência, às vezes. Aquela manhã, por exemplo, não havia podido resistir a tentação de mostrar os verdadeiros lençóis de casamento ao grupo de mulheres sorridentes que haviam se precipitado sobre ele, logo que Lanzo terminou de vesti-lo. As mulheres se surpreenderam ao vê-lo só. Mais ainda quando ele contou a verdade. Mas a reação ante o lençol foi realmente hilariante, quase tão exagerada quanto o havia sido a dele ao ver a mancha. Pelo menos, ele tinha sua esposa para provar que não a havia matado. As damas não contavam com isso para acalmar seu horror, posto que Reina havia se ausentado de maneira muito conveniente. Reina? Reina, sim. Era um nome adorável, que ele dificilmente esqueceria, face às acusações que ela fazia. Mas o que importava o nome? E o que importava onde fizessem amor? Podia ser isso, na realidade, o que a irritava? Ela havia tratado de protestar, só para tornar-se suave e dócil ante o beijo. Ou a incomodava por acaso que ele não a tivesse despido? Claro que não havia escolha, nesse aspecto. Para despi-la seria necessário um tempo que o traidor escondido em suas calças não estava disposto a conceder. Nunca havia tido tão pouco domínio sobre essa maldita coisa. E estava se convertendo em um hábito. Na realidade, não era mau hábito, disse-se Ranulf com um sorriso, enquanto recolhia seu manto. Havia coisas piores que desejar a própria esposa. De repente seu sorriso se alargou e se converteu em uma risada sufocada: acabava de divisar no chão um objeto de linho branco. Em sua raiva, ela havia partido sem calcinhas! Recolheu a peça, feita do fio mais suave que jamais tocara. Não lembrava haver sentido essa suavidade ao arrancá-la, pois naquele momento só estava atento ao que havia dentro. Esfregou o tecido contra a bochecha, pensando nos luxos com que sua esposa mimava seu corpo. Isso foi um engano; assim que percebeu seu aroma, sua Pégasus Lançamentos

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virilidade voltou a excitar-se. Outra vez!

Ranulf, mal-humorado, guardou o objeto sob sua jaqueta. Mas seu chateio não durou muito. Ao imaginar a expressão de seu general quanto lhe devolvesse a calcinha, voltou a rir baixo. E rindo baixo estava quando Walter o achou. Seguiu rindo depois do rápido exame de seu amigo, pois temia que sua esposa o tivesse eliminado. - Não pode alguém atrasar-se por motivos que não sejam o assassinato? - O que eu podia pensar? - grunhiu Walter - Desapareceu com ela em um bosque que não te é familiar. Além disso, quando cruzei com sua esposa, esteve a ponto de me fulminar com o olhar. - Sim, quando nos separamos estava muito zangada. - Afastaram-se para discutir? - Por que nos afastamos não é coisa que te diz respeito, querido amigo replicou Ranulf. Walter aceitou isso por alguns segundos, ao cabo dos quais explodiu: - De maneira que se atrasaram por outros motivos! Por todos os Santos, Ranulf! Não me diga que... Não seria capaz de... Pelos cravos de Cristo! No bosque? Com razão está outra vez furiosa! Não sabe que as damas gostam de ser cortejadas com gentileza? O bufo de Ranulf soou muito forte. - Que necessidade há de cortejar uma esposa já conquistada? Walter emitiu um latido de risada. - Acho que passou muito tempo evitando as damas. Esqueceste o que significa viver entre elas, submetido a suas trocas de humor e seus rancores. E sua dama governa em sua casa. Recorda que desagradável ocorre quando a suas roupas faltem remendos, seus jantares cheguem mal preparados e não haja tijolo quente em sua cama no inverno? Ranulf sorriu. - São coisas das que prescindi até agora. - Mas agora tem uma esposa que se encarregará de seu bem-estar... Ou não. E Pégasus Lançamentos

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não há motivos para seguir renunciando disso, lorde Ranulf. Ranulf caiu na risada.

- Lorde? Está decidido a me colocar de mau humor, mas hoje não será possível. Estou muito contente com minha sorte. Deixe que eu me preocupe com minha mulher e suas irritações. Walter meneou a cabeça, mas acabou por encolher os ombros e sorrir. - Muito contente, é? E não é capaz de agradecê-lo, quando fui eu quem convenceu à dama para que te aceitasse. - Que você a convenceu? Se ela se convenceu foi por meu belo rosto. Por acaso não desmaiou só em me ver? - Caiu a seus pés, sim. Continuaram brincando até reunirem-se com o grupo de caça. A presa havia sido capturada e os caçadores estavam se ocupando dela, conversavam com grande entusiasmo. Walter se uniu ao grupo, mas Ranulf voltou à sua reticência ao ver novamente sua esposa, sobretudo porque ela o ignorava deliberadamente. Teria algo de verdade nas palavras de Walter? Por acaso se mostrava muito rude com ela? De algum modo tinha se esquecido do quão miúda era, ao menos, miúda em comparação a ele. Teria lhe feito mal? Talvez fosse muito teimosa para dizer e preferia o aborrecimento. Se algo sabia de damas, esse algo não gostava. Mas na verdade era muito pouco. As duas que o haviam colocado contra a espécie haviam feito um bom trabalho, pois ele evitava às senhoras da nobreza. E agora estava casado com uma delas: uma mulher que ele não compreendia absolutamente e que o fazia duvidar de sua própria conduta, embora ele não pudesse comportar-se de outro modo. Reina tinha razão ao dizer que ele estava habituado a se servir das mulheres sem rodeios. Tratando de criadas ou aldeãs, era necessário ganhar tempo, pois elas raramente dispunham de tempo para si mesmas.

E sempre haviam sido fáceis de

conquistar, entregavam-se em troca de uma bagatela ou uma boa comida. Às vezes, por nada, pois seu tamanho lhes era excitante e queriam comprovar como era. Pégasus Lançamentos

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Nunca havia tido que cortejar uma mulher. Nem sequer Lady Anne, pois havia sido ela quem iniciou o romance. Mas nunca havia se queixado de sua rudeza, se é que havia sido rude. Não lembrava grande coisa desses apaixonados encontros, salvo a pressa, pelo temor de serem descobertos. Mas então ele só tinha quinze anos e estava embevecido. Quando limpou a cabeça já era muito tarde para apreciar a doçura feminina. Racionalmente, ele sabia que era injusto ao comparar a todas as ladys com aquela cachorra da Anne, mas o fazia. Quanto a sua esposa, estava bem inteirada da educação que ele havia recebido e havia apreciado suas maneiras antes de decidir-se por ele. Todos aprendemos pelo exemplo, e seus exemplos haviam sido seu padrasto, o ferreiro, e Montfort: dois homens brutais e rápidos para o golpe. Walter havia tratado de lhe ensinar outras coisas e fazia muitas brincadeiras por sua falta de maneiras corteses, mas ele mesmo havia ficado a ponto de perder as suas nos anos passados a serviço de Montfort. Ranulf era o que era, produto de sua educação. Se sua esposa desejava algo diferente, teria que buscá-lo em outra parte... Essa idéia abriu caminho em seu bom humor. Não, ela não procuraria nada em outra parte. Havia escolhido a ele e teria que reduzir suas pretensões como correspondia. Mas não podia dizer que, até o momento, a tivesse tratado bem. Desde o momento em que a havia conhecido, a havia deixado cair no chão, a tinha amarrado e envolvido em uma manta e coberto com sacos de cereal. E só Deus sabia como havia tirado sua virgindade na verdadeira noite de núpcias, pois então estava muito embriagado para lembrar o papel desempenhado. Nos altares da justiça, ela não merecia esse tratamento. E o que custava ser um pouco menos... Brutal? Sim, essa era a palavra que ela havia usado. Pelo menos, podia tentar ser como ela desejava. Como recompensa ficava as comodidades que Walter havia mencionado. E Reina tinha dado muito a ele, mais do que jamais sonhou. Tentaria, sim.

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C apítulo 24 Quando cruzaram a primeira ponte levadiça de Clydon, Reina havia recuperado em parte o bom ânimo. Embora ela não tivesse desfrutado da caçada, seus convidados sim, e ainda estavam muito alegres. Voltaram cedo, com tempo para refrescar-se antes de iniciar o novo festim que os aguardava. Depois, quase todos iniciariam a viagem de volta a casa, a fim de aproveitar o resto da tarde. Então Clydon voltaria à normalidade, ao menos pela manhã, o qual seria um verdadeiro alívio. Reina estava acostumada a desfrutar de companhia e habitualmente insistia em que seus hóspedes ficassem tanto quanto desejassem, mas desta vez não foi assim. Necessitava

de

um

tempo

sozinha

para

acostumar-se

a

drástica

mudança

experimentada em sua vida. Até havia planejado uma maneira para se livrar de seu marido por um tempo, desde que ele estivesse de acordo. Mas não poderia se livrar de todos os convidados. Conforme viu ao entrar no salão com o grupo de caçadores, havia mais um. John de Lascelles se levantou do banco instalado contra a lareira, onde estava conversando com Lady Elaine, e cruzou o salão para reunir-se com Reina. Ela havia diminuído o passo. Sua primeira reação foi de crua irritação, pois nesse momento não estava muito satisfeita com seu esposo e tudo teria sido diferente se John tivesse chegado uma semana antes. Só uma semana! Logo se sentiu arrependida. Ele tinha seus próprios problemas, pois havia se encarregado das terras de seu irmão. Não era possível culpá-lo também dos dela, por muito que gostasse de culpar alguém. Além disso, não podia esquecer que ela mesma havia escolhido Ranulf, e por motivos importantes. Se começava a detestá-lo, era só por má sorte. Além desses sentimentos, Reina se alegrou ao ver seu velho amigo, pois fazia mais de um ano que ele não visitava Clydon. Nesse tempo havia perdido mais peso do Pégasus Lançamentos

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que o normal e estava um pouco pálido; pelo resto, estava igual. Seus olhos verdes ainda revelavam um coração terno, sua expressão cálida, o prazer de vê-la outra vez. Reina esboçou também um sorriso cordial e devolveu o breve abraço. - Lady Elaine me disse que devo felicitá-la, Reina. Por isso revelava tanta urgência em sua carta? Era um convite a presenciar suas bodas? Reina aceitou de bom grado essa desculpa. - Por certo. Teria gostado muito que participasse do casamento. Imediatamente lamentou suas palavras e o duplo significado que encerravam. Não havia sido sua intenção dar esse sentido, mas o captou ao ouvir que seu mordomo sufocava um bufo de risada.

Notou que Theo se inclinava contra a parede,

desajeitado, e o viu colocar os olhos em branco. Simon e Guiot lhe voltaram rapidamente às costas para ocultar a cara. Mas que outra coisa poderia ter dito? Provavelmente, John teria se mostrado muito feliz de tomá-la por esposa, sobre tudo porque o poder outorgado por Clydon teria aliviado suas dificuldades atuais. Se dissesse que o tinha convocado para uma proposta matrimonial, só lhe provocaria uma desnecessária amargura. - Por que tanto segredo, Reina? Por que não o especificou em suas cartas? - Como? Ah, sim. Tinha problemas com um de meus vizinhos, interceptava minhas mensagens - respondeu ela, evasiva - Queria casar-se comigo, compreende? - Apostaria que fala de lorde Falkes. Mas logo falaremos desse assunto. Agora me diga qual destes nobres cavalheiros é o afortunado senhor que a conquistou. Estava olhando por cima do ombro de Reina, para os rostos que não reconhecia. Por Deus! Como havia podido ela esquecer-se de Ranulf? Girou e o encontrou atrás dela, tão perto que deu com o nariz contra seu duro peito. Maldito homem! Ele também a havia escutado? Havia percebido a melancolia de suas palavras, ao lamentar que John não tivesse participado do casamento? Observou sua expressão, mas só detectou curiosidade. Então lembrou que não conhecia John. Talvez tampouco reconhecesse seu nome, posto que o tivesse ouvido só uma vez. Apressou-se a apresentá-los, com a esperança de separá-los imediatamente, Pégasus Lançamentos

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mas não foi possível. Não teria podido dizer o que esperava de Ranulf, antagonismo, talvez, ao ver John como rival. Só houve uma sobrancelha dourada que se arqueava para ela e uma clara diversão sob o gesto de seu rosto, falsamente suave. - Onde ouvi antes esse nome? -perguntou. - Sem dúvida eu mesma o mencionei - respondeu ela secamente. E disse a John Acompanhe-me e cuidarei de que possa se refrescar antes de se sentar à mesa. Sir Henry partiu está amanhã, pode ocupar seu quarto. Deliberadamente levou John a rastros antes que Ranulf pudesse adicionar uma palavra mais. O muito patife sabia. Mas o que o divertia tanto? John se aproximava mais à estatura dela que a dele, sim. Não era tão largo de ombros nem de braços tão grossos, na realidade, era bem estreito. Mas ao menos John era amável e gentil. Ele não a teria derrubado nos bosques. Quando voltou ao salão, ouviu a ensurdecedora gargalhada de seu marido. Estava com seus amigos: Walter, Searle e os outros. Reina avermelhou de aborrecimento, imaginando que estavam brincando à custa do pobre John. Disposta a não permitir, dirigiu-se diretamente para o grupo, muito irritada. - Eu gostaria de lhe dizer uma palavra a sós, senhor. - Como general ou como esposa? Provavelmente era uma brincadeira, mas como nunca havia feito uma brincadeira até então, ela não o interpretou assim. De qualquer modo, não estava de humor para brincadeiras. Fulminou-o com o olhar, negando-se a repetir a petição, mas ele não se afastava para segui-la.

Reina olhou com intenção a cada um de seus

companheiros, até que os muito avoados captaram a indireta e se retiraram. - Isso não era necessário, senhora - assegurou Ranulf com olhar divertidoEntre mim e eles não há segredos. Isso a fez ruborizar, sem que ela soubesse por que. Seria capaz de contar a eles suas intimidades? Não, impossível. Por certo, não tinha do que gabar-se nesse sentido. - Me alegro de que tenha amigos com quem compartilhar tudo. Eu também tenho Pégasus Lançamentos

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amigos, mas não compartilho tudo com eles. Me expresso com clareza, senhor? - Não muita. Ela apertou os dentes ante essa deliberada perversidade. O sorriso de Ranulf revelava que sabia muito bem a que se referia sua esposa. - Nesse caso lhe direi isso com toda clareza. Não diga a lorde John nada que possa fazê-lo conhecer a verdadeira razão pela qual o chamei a Clydon. Não há motivo para que saiba e sim muitos motivos para que siga ignorando-o. Mas o mais importante é que não desejo que saiba. - E se desatender seus desejos? Ela entreabriu os olhos até reduzi-los a gretas furiosas. - Faça, se quiser me chatear. É sua prerrogativa, certamente. Mas quem a ferro mata, a ferro morre, e eu tenho meus modos de saldar contas. Nesse momento não importou a reação que pudesse provocar nele. Ranulf, em vez de zangar-se pela ameaça, pôs-se a rir. - Não duvido de que pensaria algo muito desagradável para me castigar, Reina, mas não precisa preocupar-se com seu amiguinho. Jamais a delatarei como doce mentirosa que é, enquanto seus enganos e suas meias verdades não provoquem danos. Essa abrupta familiaridade a pegou tão de surpresa que, de momento, não captou o verdadeiro significado de suas palavras. Por fim compreendeu: acabava de lhe oferecer apóio marital, não só agora, mas também para quando fosse necessário. Era algo que ela não esperava. Dizia-o a sério? Fosse a sério ou não, ele só o fez depois de sua ameaça, o que fez que Reina baixasse o olhar, com uma incômoda sensação de culpa. E a sensação aumentou ao compreender que ele a tinha levado a descer a sua grosseira linguagem. Não era comum nela mostrar-se tão suscetível e irritável. A causa era o incidente no bosque, mas não sabia por que. De qualquer modo, isso não justificava provocar Ranulf até fazê-lo perder o bom humor, sobretudo quando ainda havia convidados, que não deviam presenciar uma briga entre ambos. Contrita e com a cabeça encurvada, disse - Agradeço por isso, senhor. Pégasus Lançamentos

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- Não, não me agradeça pelo que te corresponde... Assim como não deve esperar que eu te agradeça ao que me corresponde. Ela elevou o olhar com um brilho suspicaz. O sorriso de Ranulf revelou que havia interpretado bem a intenção oculta: estava lembrando, indiretamente, que estava em seu total direito se a deitava no bosque ou em qualquer lugar que desejasse muito. Reina esqueceu seu ar contrito. Mas antes que pudesse achar uma resposta adequada sobre esses direitos e o que pensava deles, seu marido continuou, com outro tom: - Só por curiosidade, eu gostaria de saber se na verdade teria se casado com esse pequeno... - Não o diga, não - vaiou ela com energia - Atreve-se a julgar um homem por seu aspecto? - Seu aspecto me diz que eu poderia fazê-lo desaparecer com um sopro. A risada que se lia nos olhos violeta a irritou mais ainda. - Isso pensa? – desafiou - Talvez John não ganhe muitos torneios, mas nem por isso carece de habilidade com a espada nem da velocidade que não possuem os brutos corpulentos. - Estou disposto a colocar isso a prova. Ela arqueou desdenhosamente uma sobrancelha. - Mediria seu fôlego contra sua espada? - Não é isso o que quis dizer - bufou ele. - Certamente, não. Mas se desembainhar sua espada em minha festa de núpcias, que não seja para cortar uma porção de carne, farei tantos galos em sua cabeças como em qualquer outro tolo. - Acha que poderia me alcançar a cabeça? Havia feito mal em esquecer que ele, tão pouco cavalheiresco, era capaz de aceitar o desafio de uma dama. - Com o banquinho, se fosse necessário - replicou. Isso provocou uma risada afogada. - Estando eu perto, não necessitaria banquinho algum. Pégasus Lançamentos

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Reina deu um salto atrás ao ver que ele avançava esticando as mãos para sua cintura para levantá-la até sua altura. Estendeu um braço para impedi-lo enquanto dava uma olhada a seu redor para ver se alguém estava observando tanta ridicularia. Ninguém os olhava, mas isso não aliviou sua exasperação. - Estúpido, não há modo de tratar com você! E tenho muitas coisas que fazer para perder o tempo tentando. - Reina? Havia lhe voltado as costas, mas girou outra vez para ele, disposta a fazer estalar todo seu gênio. Quase não chegou a abrir a boca. Por puro reflexo, capturou o que ele jogava. -Acho que é seu - esclareceu ele, com expressão enganosamente suave - Não é algo que se abandone em qualquer parte, mulher. Pode provocar estranhas ocorrências nos homens. Ela não compreendeu até que olhou o que tinha nas mãos. Então aspirou tão bruscamente que se afogou com o ar, aumentando a cor que alagava seu rosto. Horrorizada, guardou a calcinha em sua larga manga, cravando em seu esposo um olhar fulminante, digno de seu humor, e partiu, antes que alguém notasse que acabava de encolher-se. Naquele momento se sentia com meio metro de estatura.

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C apítulo 25 O crepúsculo foi um horrível banco de nuvens que ameaçaram chuva, mas Reina voltou ao castelo antes que caíssem as primeiras gotas. Havia passado o resto da tarde na aldeia, atendendo as enfermidades e feridas que descuidou na semana anterior. Tinha por costume passar ali uma ou duas horas a cada poucos dias, a menos que tivesse algum doente grave. Por sorte, desta vez não foi assim. A irmã do padeiro, que ainda não podia levar uma gravidez ao fim, estava outra vez grávida e necessitava uma nova provisão de visco. A velha Delwyn necessitava ervas para suas articulações inchadas. Alma, a Ruiva, a prostituta da aldeia, havia recebido um coice de sua vaca enquanto a ordenava e o pequenino corte recebido no pé tinha se convertido em uma chaga grande como conseqüência da infecção. Reina deixou cola de cavalo para várias aplicações, junto com o ungüento cosmético, feito com primaveras, que Alma sempre conseguia pegar para reduzir suas sardas. Teve que atender também os resfriados habituais, as gargantas doloridas e as febres de sempre. Havia uma mordida de cão que requeria amieiro, algumas úlceras purulentas que tinha que tratar com bagos. E já que estava nessas, preparou uma mistura de violeta doce para si mesma, pois necessitava seus efeitos relaxantes. Demorou muito mais do que o necessário. Mesmo depois de seu descuido, sua eficiência permitiu atender a todos em só duas horas. Atrasou-se mais em fazer visitas e responder às numerosas perguntas sobre o novo senhor... E para esconder-se. Depois do envoltório de pulcras desculpas, sofria de simples covardia, que a levou a descuidar de seus convidados durante o resto do dia sem o menor remorso. Mas quem ia criticá-la? O almoço foi servido tarde porque ela havia se atrasado em retornar ao salão. Quando o fez sentia que ruborizava a cada olhar de Ranulf, pois sabia, de algum modo, que ele ria dela para si mesmo. Jamais superaria a mortificação de não ter tido consciência de que lhe faltava aquele objeto. Mas ele soube desde o Pégasus Lançamentos

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começo, esse demônio, esse velhaco cheio de más piadas.

Escapou o quanto antes. E ainda agora não se decidia a retornar. Só restava esperar que seu esposo não estivesse, que Simon, seguindo suas indicações, o tivesse convencido a acompanhá-lo. Ao desmontar, ao pé da escada, viu que Aylmer a observava. Jogou suas rédeas ao palafreneiro que esperava, mas o menino não correu a saudá-la, conforme tinha por costume. Então caiu na conta de que não o via desde fazia vários dias. Na realidade, Por Deus! Desde o ataque de Falkes de Rochefort. Claro que ele não estava acostumado a entrar no salão. Além disso, ela havia incumbido a suas damas muitas das tarefas que a levavam a cruzar-se com ele, a fim de dedicar mais tempo a seus convidados. Aylmer estava sentado junto a um depósito, com as costas contra a parede. Ao ver que Reina o observava, afastou a vista. Ela compreendeu então que o menino tinha algum problema sério. Cruzou o pátio para reunir-se com ele. Não tinha muita pressa em entrar no castelo, embora as primeiras gotas de chuva tivessem começado a cair. Só quando estava ao seu lado notou que o menino não estava só, tinha Lady Ella amontoada em seu colo. Sem mencionar a gata, perguntou ao menino - Estava me evitando, Aylmer? Ele não levantou a vista para responder. - Estava ocupada, senhora. - É certo. Reina se pôs de cócoras junto ao menino. O curto beiral do depósito não a protegia da chuva, mas ela a ignorou, da mesma forma que o menino. Por que a gata não corria em busca de abrigo? Aquele animal era tão estúpido quanto feio. - Pensava que tudo seria diferente agora que me casei? - E não é assim? Seguia sem olhá-la, mas não conseguia dissimular o ar sombrio de sua expressão. Ela não estava segura do que o mantinha tão preocupado, mas suspeitava de algo. Pégasus Lançamentos

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- Logo tudo voltará para a normalidade – assegurou - A única diferença é que Clydon volta a ter um senhor e mais homens para nos proteger. Não te parece que isso nos beneficia? - Arrumávamo-nos muito bem... - Não, Aylmer, isso não é certo e você sabe. E agora me diga o que faz aqui, em vez de estar ajudando o padeiro. - Veio à cozinha - sussurrou Aylmer, a modo de explicação. - Quem? Ah, ele. E bem? - Fugi correndo. E agora Aldrich me açoitará por isso, sobretudo porque tem que fazer muitas barquinhas para os convidados. - Deixe que eu me encarregue de Aldrich. - Reina disse a si mesma que, se o padeiro houvesse açoitado Aylmer, faria servir suas orelhas como sobremesa em vez das barquinhas - Mas fez mal em fugir, Aylmer. - Não pode terminar a recriminação, afinal, ela também havia feito o mesmo - Não importa. Às vezes temos motivos para desaparecer por um momento. Por que fugiu? - Por quê? - Por fim o menino a olhou surpreso, como se a resposta parecesse óbvia - Não queria que o senhor me visse. Temo que me expulse do castelo por ser coxo. Reina grunhiu para si mesma. Teria querido abraçar o menino e lhe assegurar que isso não ocorreria jamais, mas como, se tinha razão? Havia quem reagisse de modo desprezível ante os aleijados, como se os considerassem uma ameaça, e ela não conhecia Ranulf o suficiente para assegurar que não atuaria assim. Escolheu a lógica; só restava esperar que desse certo. - Se o expulsasse, Aylmer, seria porque te tem medo. E eu sempre ouvi dizer que os gigantes não temem nada... Salvo a outros gigantes. A tentativa jovial não teve êxito. Em vez de esboçar um sorriso de alívio, Aylmer ficou pensativo por um momento, refletindo sobre o que ela acabava de dizer. Talvez até o aceitasse. Mas não era só isso que o preocupava. - Quando ele caminha, o chão treme. Ouve-se dentro do castelo, mesmo quando Pégasus Lançamentos

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está fora. Não o teme senhora?

Era lógico que um menino tivesse medo de alguém com a estatura intimidante de Ranulf. Por Deus, até os homens corpulentos o temiam. - Devemos ter em conta que os homens altos tendem também a ter a voz potente e passo forte. Isso não significa que seja perverso ou cruel. Note esta gata. Parece que um homem perverso a teria como mascote? Os olhos de Aylmer aumentaram. - Diz que a gata é dele? - Sim. Não sabia? - Pensei que era um gato perdido e que necessitava atenção. Como o encontrei revolvendo o balde dos restos, na cozinha, pareceu melhor lhe economizar um chute do cozinheiro e o trouxe aqui. - Foi muito bondoso, Aylmer. Mas não é gato, mas sim uma gata, e o cozinheiro não teria dado nenhum chute, porque sabe de quem é. - Ah - murmurou ele, outra vez sombrio. Reina sorriu ante essa expressão abatida. - Mas é certo que necessita atenção. Quer te encarregar desse trabalho? Por fim o menino sorriu. - Sim - disse e o sorriso vacilou - Mas o senhor me permitirá isso? Reina encolheu de ombros. - Perguntarei muito em breve. Por agora, saiamos desta garoa antes que descarregue um aguaceiro. Pode levar Lady Ella à cozinha. - Assim que ela se chama? - Sim, embora pareça tolo. Além disso, Aylmer, diga ao mestre Aldrich que, se te levantar a mão, terá que ver-se comigo. Mas se desculpe por tê-lo deixado sem ajuda. - Sim, senhora. Adiantou-se mancando, enquanto Reina o seguia sem muita pressa. Restava pouca luz, mas não tinha pressa para entrar no castelo. Já teriam começado a jantar sem ela, tal como era costume quando se atrasava na aldeia. Por sua parte não tinha Pégasus Lançamentos

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fome, estava muito tensa por não saber se seu esposo estaria ali ou não. Soube ainda antes de chegar ao salão, pois o próprio Ranulf quase a atropelou ao descer pela escada. Estava armado e com cota de malha. Sem sequer reconhecê-la, emitiu um grunhido de chateio ao ver que alguém o interpunha. Reina não gostou que a afastasse a trancos e deixou escapar um xingamento. Ele se deteve um tanto mais abaixo, havia reconhecido sua voz. - De maneira que ainda está aqui, senhor. - Era uma afirmação, não uma pergunta, e cheia de desgosto. Ele se virou para fulminá-la com o olhar. - Onde queria que estivesse? Mas é melhor perguntar: onde estava? - Na aldeia, já que pergunta. Onde devia estar você. Simon ia sugerir que o acompanhasse a Forthwick para ver as terras. - O fez, mas me neguei. Prefiro me familiarizar com Clydon antes de inspecionar suas outras propriedades. Tinha razão, embora ela não o admitisse. - E aonde ia, então? Antes que ele pudesse responder, Walter desceu precipitadamente, seguido por Kenric. Quando estava por ocorrer outra colisão, Walter se deteve a tempo. Kenric, menos afortunado, chocou-se contra suas costas. - De maneira que a encontrou - comentou Walter, depois de lançar um olhar de chateio ao moço - Não perdeste tempo. Ranulf se limitou a grunhir, estendendo um braço para que Reina o precedesse escada a cima. Ela ficou perplexa ante as palavras de Walter. - Iam me buscar? - perguntou, em voz baixa. - Tinha se atrasado, senhora - foi a azeda resposta - De agora em diante estará entre estas paredes antes de escurecer. Reina sorriu para si mesma. Pelo menos, sua visita à aldeia havia servido para pulverizar o bom humor de seu marido. Melhor assim, seu mau humor era muito mais previsível. Pégasus Lançamentos

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C apítulo 26 - Só tinha dezesseis anos quando ganhou suas esporas, mas era de se esperar, considerando o modo como brandia a espada nessa idade. Reina não se surpreendeu. Nunca havia posto em dúvida as habilidades de Ranulf com a espada. O que colocava em julgamento eram suas maneiras de cavalheiro. Enquanto Walter narrava a batalha pela qual Ranulf havia sido renomado cavalheiro com tão curta idade, ela observava seu esposo, que havia se detido do outro lado do salão para trocar uma palavra com seus dois escudeiros. Não era a única que o contemplava. Ao que pareceria, todas as suas damas tinham algum motivo para olhar também para lá. Suspirou. Só via problemas no fato de ter um esposo que atraía tanto as mulheres. Não por ela, certamente, mas sim por essas pobres senhoras. Nunca havia entrado em seus cálculos o amor por seu esposo. Desejava viver com ele de maneira compatível, respeitá-lo e poder confiar nele. Só tinha uma dessas três coisas. Não bastava. Mas isso não era justo. Ainda não conhecia Ranulf para julgá-lo assim. Talvez tivesse motivos que justificassem seu modo de ser. Por isso havia pedido a Walter que falasse de Ranulf. E foi um acerto: havia motivos. O próprio Ranulf tinha mencionado que sua infância havia sido pior do que ela supunha. Cresceu sem as atenções de uma mãe, submetido ao temperamento e aos fortes punhos de um homem brutal, desprezado ao mesmo tempo por nobres e plebeus, devido a sua bastardia. O quadro que Walter pintava não era bonito. Depois falou de lorde Montfort: em vez de melhorar a sorte de Ranulf, havia se limitado a trocar um dono grosseiro por outro igual. - Não me escuta senhora? Ela ruborizou um pingo, oferecendo a Walter um sorriso sobressaltado. -Temo que os relatos de sangue e morte nunca me fascinaram. Conte-me por Pégasus Lançamentos

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que Ranulf detesta tanto as damas da nobreza. - Por que supõe... ?

- Não trate de me enganar, senhor. Por acaso perdestes a memória? Você mesmo me falou dessa desconfiança com respeito às damas quando me convenceu que me casasse com ele. Vejo que já lembra. Conte-me essas experiências que mencionou então, as que supostamente provocaram sua revolta contra as senhoras de linhagem. Walter se remexeu, inquieto. - Não gostaria que soubesse. - Mas você me dirá isso. - Sua voz era suave como a seda, sua expressão, implacável - Por causa de sua lábia estou casada com um homem o qual nem sequer sei se gosta de mim. Está em dívida comigo, Sir Walter. Com os movimentos nervosos do cavalheiro se ergueu um rubor culpado. - Se souber que lhe contei isso, me matará. -Terei isso em conta. O tom de Reina não o tranqüilizou absolutamente. Antes parecia uma promessa de lembrar essa predição, se por acaso alguma vez desejasse se desfazer dele. Walter encolheu de ombros. Não queria que a dama acabasse odiando Ranulf, e isso bem que podia acontecer se não começasse a compreendê-lo melhor. E se narrar o passado de seu marido abrandasse seu coração, ele teria feito um serviço ao seu amigo. - Muito bem – disse - Mas antes deveria saber que Ranulf sempre teve problemas com as mulheres. -Com essa cara? - estranhou ela. Walter franziu o cenho ante a interrupção. - Devido a essa cara. Alguns venderiam a alma por ter sua beleza, mas Ranulf nunca se sentiu agradecido por possuí-la. Afora o fato de que é a viva imagem de seu pai, a quem nem sequer quer ouvir nomear, quando chegou a Montfort o chateava muito. - Mas isso é normal entre jovens. - Sim, e ele o aceitava de bom grado, pensando que só estava recebendo uma Pégasus Lançamentos

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porção pouco exagerada dos sarcasmos correspondentes... Até o dia em que viu sua própria imagem. Em sua aldeia não havia espelhos, sabe? Nem atoleiros de água limpa que refletissem seu rosto. Ele conheceu seu aspecto quando um dos escudeiros de Montfort, por rancor, aproximou-lhe um espelho do seu rosto, para demonstrar que era «a donzela bonita», como o chamavam. - E ficou horrorizado - adivinhou Reina. - Sim, e atacou a golpes o moço por fazê-lo ver a verdade. A partir de então não o chatearam tanto. Mas então compreendeu por que as meninas o seguiam a todas as partes. E se desgostou. Até o momento havia pensado que o viam como um amigo, quando na realidade era sua formosura que as fascinava. - Quer me fazer acreditar que isso não o agradou? - A essa idade não podia agradar, senhora. Vinham em turba: as moças da granja, as da cozinha, as garçonetes. Riam como tolas e atrapalhavam nosso treinamento. E os cavalheiros que nos adestravam sabiam quem era o culpado, por isso o faziam trabalhar mais que os outros. - Mas quando ficou maior... - Oh, aceitava o que as moças lhe ofereciam, sem dúvida. Mas não se enganava a respeito, sabia que só desejavam a oportunidade de gabar-se ante as amigas pela conquista. Até que Lady Anne reparou nele. Mas primeiro houve Lady Montfort. - A esposa do senhor? - Sim, uma dama que já havia deixado muito atrás seus melhores anos, tratando de seduzir um menino de quinze. Era ridículo. Mas quando ele recusou o caso, a senhora não viu desse modo. Ficou furiosa. E salvou seu orgulho com uma pequena vingança, informando seu esposo que Ranulf tratava de meter-se sob suas saias. Isso lhe valeu umas palmadas diante de todos os escudeiros. Reina franziu o cenho. - E não se defendeu? - Oh, ninguém acreditou na acusação da senhora, nem sequer o próprio Montfort. Mas não se pode tratar de mentirosa à esposa do senhor, de modo que Pégasus Lançamentos

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Ranulf foi açoitado ante o olhar de todos os nobres de Montfort. Assim foi como chamou a atenção de Lady Anne, pupila de Montfort. Tinha só um ano mais que Ranulf e era bonita, seu sorriso poderia iluminar a habitação e seus olhos... - Não se torne poético, senhor - advertiu Reina, com suave desgosto - Basta que diga que era bela. Walter sorriu tímido. - Sim, era bela, de verdade. Todos os pajens, os escudeiros e os cavalheiros estavam um pouco apaixonados por ela. - Também você? Ele se limitou a encolher de ombros. - Mas quando Lady Anne viu Ranulf, ficou cega para todos os outros. Escapulia até o quarto dele para visitá-lo, pois estava estropiado pelos açoites. Assim começou a aventura. Como pode imaginar, ele estava completamente embevecido. O problema é que acreditava que ela também estivesse. - Se for me dizer que toda essa desconfiança nasceu de um desengano amoroso... - Oxalá tivesse sido só isso, senhora. Pararei se não estiver disposta a escutar até o final... Tinha dado essa impressão? O que se passava com ela? Estava ouvindo falar das aventuras de seu marido com outras mulheres. Ela mesma tinha querido assim. - Continue Sir Walter, eu me esforçarei por refrear minhas conclusões apressadas. Como era o mais parecido a uma desculpa que dela poderia obter, Walter assentiu. Sua expressão havia se tornado muito séria, como Reina nunca tinha visto. - A mútua paixão durou vários meses, mas inevitavelmente chegou o dia em que deu frutos. Lady Anne confessou a Ranulf que estava esperando um filho. Para Reina não foi uma grande surpresa. Surpreender-se-ia mais se inteirar que Ranulf nunca havia engendrado um bastardo. O fato de que tivesse um filho de uma senhora não era tão comum, mas tampouco tão estranho. Prova disso era seu meioPégasus Lançamentos

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irmão, o nobre.

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Sem censura, perguntou: - O menino era dele? - Sim. Ao menos, ele não o pôs em dúvida. - Casaram-se? - Não. Ele estava disposto; poderia se disser que o desejava desesperadamente. A queria e queria a seu filho. Mas ela não o aceitou. Oh, brincou com ele durante um tempo mais, apresentando uma desculpa atrás da outra para não dizer a lorde Montfort que desejavam casar-se. Mas Ranulf não cedia. Por fim ela sucumbiu a sua insistência e lhe disse a verdade. »Não queria casar-se com um escudeiro sem terras, por nenhum motivo. Ela tinha propriedades, sabe? Era só uma casa solar, mas Montfort havia prometido que, graças a sua beleza, buscaria um esposo rico. E isso era tudo o que ela desejava. Quando Ranulf mencionou seu mútuo amor, ela pôs-se a rir, dizendo que, a seu modo de ver, o único digno de ter em conta era a riqueza.<< - Não se mostrou muito diplomática - comentou Reina secamente, embora chateada consigo mesma por sentir um gosto de simpatia pelo jovem Ranulf - E a criança? -Lady Anne voltou a seu solar para dar à luz. Mas quando Ranulf superou a dor da rejeição, compreendeu que ainda desejava o menino, por mais difícil que fosse criálo. Mas não pode averiguar onde ela estava. Quando soube e chegou até lá, inteirou-se de que o parto havia ocorrido e que a dama, depois de recuperar-se, vivia no norte, com seu novo esposo. - Levou consigo a criança? -perguntou Reina. - Não. Deu a uma família de sua pequena aldeia para que criassem, pois não queria saber dela. Reina se apressou a tirar suas próprias conclusões. Kenric, o escudeiro de Ranulf, era muito velho para ser seu bastardo, mas talvez Lanzo... Mas Walter não havia terminado. Pégasus Lançamentos

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- Eu acompanhei Ranulf até o solar. Ele temia que Lady Anne tivesse levado a criança, de modo que ficou encantado ao saber que a tinha dado para criar. Supunha que, com as poucas moedas que levava, seria fácil comprar o menino dos aldeãos. Não demorou muito encontrar à família. Naquele lugar não havia segredos. - Pressinto que não vou gostar do resto desta história - disse Reina, intranqüila, ao ver que a expressão do cavalheiro se tornava sombria. - Talvez seja melhor que não continue. - Não, posto que chegastes até aqui. Quero saber tudo, bom ou mau. - Poucos dias depois do nascimento, a criança foi entregue a uma família muito pobre, a mais pobre da aldeia. Também era a mais numerosa, pois já tinha sete filhos. Ela sabia. Todos protestaram que não queriam uma boca a mais, mas ela os obrigou a aceitar. Quinze dias depois morreu de inanição. - Oh, Por Deus! -gemeu Reina. Walter, sem olhá-la, continuou suavemente: - Foi a única rixa que tive com Ranulf. Ele queria matar toda a família e incendiar a aldeia. Não permiti. Eles não tinham culpa. Eram os plebeus mais pobres que já tínhamos conhecido. Pouco a pouco, eles também estavam morrendo de fome. Tinham muitas bocas que alimentar para esbanjar comida com um bastardo rejeitado por sua senhora. Mais tarde, um dos servos da casa admitiu que Anne soubesse o que podia ocorrer à criança e desejava isso. Obteve o que desejava. Reina fechou os olhos, por um momento não pôde falar. Lamentava não ter interrompido o relato. Lamentava ter se informado disso. Por Deus, os meninos eram os únicos inocentes de verdade. Muitíssimos morriam por causas naturais, mas isso era antinatural, deliberado. Que tipo de mulher era capaz de fazer isso, quando teria custado tão pouco achar um lar decente ao bebê? - O que... O que foi? Sabe? - Uma menina, forte e saudável ao nascer. Por isso demorou tanto em... Reina o sossegou com um gesto antes de deitar-se a chorar. Sentia que as lágrimas foram se formando e lutava contra elas, afastando aquele horror de sua Pégasus Lançamentos

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mente. Isso não tinha nada que ver com ela.

A quem tratava de enganar? Isso tinha acontecido a seu próprio esposo, que ainda sofria os efeitos, e, muito certamente, afetava a ela. Mas não era justo que ele culpasse todas as mulheres pelo que havia feito uma cadela sem coração. - Analisemos de um ponto de vista realista - disse, conseguindo dominar-se, embora sua voz soasse algo dolorida - Esses fatos ocorreram faz onze ou doze anos. - Oito - corrigiu ele. A surpresa arrancou Reina de suas reflexões. - Supus que ele fosse mais velho. - Sempre pareceu mais velho por seu tamanho, mas só tem vinte e três anos, senhora. - De qualquer modo, oito anos são suficientes para descobrir que nem todas as mulheres são iguais. - O que sentiria se tivesse acontecido a você? - replicou Walter - Lady Anne era toda doçura e suavidade. Nunca levantava a voz. Nunca dizia uma palavra desagradável a ninguém. Ocultava muito bem sua implacável cobiça e sua falta de sentimentos. Acredita que Ranulf poderia confiar nos sorrisos simpáticos de qualquer outra senhora, a partir de então? - Mas não somos todas assim! - Eu sei, mas será necessário muito para convencê-lo disso. - E então Walter grunhiu - Sorria. Aí vem ele. - Está louco. Agora não poderia sorrir mesmo que minha vida dependesse disso. E se o fizesse, ele estranharia meu sorriso. Hoje não mereceu nenhum de minha parte, se por acaso não se destes conta. - Mas o perdoará? - O que me disse só explica sua desconfiança pelas mulheres de linhagem sussurrou ela - Não explica suas deploráveis maneiras de caipira. - Isso se pode corrigir senhora, se você fizer um esforço. Não houve tempo de replicar, pois Ranulf se sentou no banco, a seu lado. Por Pégasus Lançamentos

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sorte, Walter lhe deu tempo para dominar-se, mantendo uma breve conversa com seu amigo. Logo apresentou suas desculpas e se foi, deixando-os a sós junto à lareira. Reina ainda não podia olhá-lo, seus sentimentos a confundiam e não se sentia capaz de falar. Quem teria pensado que semelhante homem podia despertar sua compaixão? Parecia tão indestrutível tão imune às emoções ternas... Mas teria sido assim em sua primeira juventude? Nesse momento notou que Edwina o olhava sonhador, do outro extremo do salão, e se esqueceu de tudo. - Fiz mal a você esta manhã? - O que? - Esta manhã, no bosque - esclareceu Ranulf - Lhe fiz mal? Reina ficou a ponto de dizer que sim. Mas na realidade havia sentido raiva, desilusão, frustração; dor, não. E uma mentira não era modo de iniciar uma relação. - Não, não me fez mal. - Está certa? - Sim. - Se a machucar, me dirá? Ela o olhou com incredulidade. O que lhe passava? Ou era outra mostra de seu estranho humor? Fosse como fosse, Reina havia superado a irritação. - Se me machucar esteja certo de que gritarei tão forte que você saberá e todos outros. Fique tranqüilo, senhor. Ele franziu o cenho. Talvez devesse ter perguntado antes, mas ela estava de mau humor desde a manhã. E agora convertia uma coisa em outra. E começava a merecer a outra. - Se lhe der uma sova sobre meu joelho, senhora, fique segura de que não me importará quem se inteire. E ela havia tido compaixão? Sem dúvida estava louca. - Agradeço pela advertência - respondeu com secura. E quis levantar-se. A mão de Ranulf a deteve. - Não era minha intenção... - se interrompeu, acentuando a ruga do cenho - Por Pégasus Lançamentos

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que hoje está tão zangada?

- Pense. A resposta virá sozinha. - Já pensei, mas não me vem à mente nenhuma resposta clara. Preferiria que me dissesse. - Muito bem. - Reina olhou a seu redor para assegurar de que ninguém podia ouvi-los. Logo tornou a enfrentar aqueles penetrantes olhos violeta - Não desfrutei. - Não desfrutou de que? - Já sabe do que - vaiou ela. Ranulf começou a sorrir, mas pensou melhor. E então cometeu o engano de dizer: - Supõe que as esposas não o desfrutam. Reina o olhou fixamente, perguntando-se o que faria se jogasse algo em sua cabeça. - Quem disse essa tolice? Não, me deixe adivinhar, um sacerdote. E você acredita em tudo o que dizem os sacerdotes. Néscio! Um sacerdote não é Deus. É um homem, sujeito a todos os enganos que cometem os homens. Um de cada dois cai nos próprios pecados como qualquer um de nós. Pelo bom Deus, use o sentido comum. Não, melhor ainda, pergunte a qualquer esposa que encontre no castelo o que pensa dessa antiquada estupidez. Mas não espere que me agrade ser tratada como se fosse menos que uma prostituta. Bem, agora sabia o que pensava sua própria esposa do assunto. Seguiu-a com o olhar, contendo a risada. Por todos os Santos, que enérgica era, até para blasfemar! De maneira que desejava prazer? O humor de Ranulf desapareceu. Como consegui-lo, se temia feri-la com sua paixão sendo tão pequena e delicada ?

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C apítulo 27 Reina deslizou silenciosamente ao interior da alcova. Haviam deixado uma vela acesa, que proporcionava luz suficiente para cruzar o quarto até o roupeiro da parede. Deixou ali seu cesto de medicamentos e se apressou a tirar o manto. Ranulf continuou dormindo. Ela não gostou que tivesse deixado abertas as cortinas do leito. O menor ruído podia despertá-lo. Mas pelo visto até então, Ranulf estava acostumado a dormir profundamente. Havia sido um alívio que a chamassem outra vez à aldeia, embora o motivo lhe provocasse muitas horas de preocupação. A irmã do padeiro havia sofrido uma queda e estava a ponto de abortar. Mas depois de trabalhar meia noite e de utilizar todos os remédios que lhe ocorreram, Reina tinha reduzido o perigo a uma simples possibilidade de que perdesse o bebê, coisa a que a mulher era propensa. Se permanecesse deitada por um tempo, até que a criança se firmasse bem, ainda poderia levar a gravidez ao fim. O que a aliviava era a desculpa de escapar, por essa noite, do leito matrimonial, ao menos até que Ranulf estivesse adormecido. Ainda parecia impossível o que ele havia dito na última conversa. Depois de pensar, a horrorizava imaginar como devia ter caído. O surpreendente era que ele não tivesse rido em seu rosto. Agora devia pensar que ela o desejava ou, ao menos, que desejava o prazer que ele podia lhe dar, e isso era muito pior. Os homens jamais duvidavam de suas próprias proezas, o que outra coisa podia ele pensar? Que ela encontrasse defeitos em sua técnica tão diligente, por certo que não. Oh, maldita boca a sua. Abriu bruscamente o roupeiro e fez um gesto de horror ante o chiado das dobradiças. Um agitar de lençóis, às suas costas, a fez puxar bruscamente sua túnica, sem incomodar-se em desatar os laços. Jogou-a junto com o manto no roupeiro, sem cuidado algum. Pensou fazer um colchão para passar nele o resto da noite. Pensou aconchegar-se no próprio chão, ali onde estava. Não queria que Ranulf despertasse, Pégasus Lançamentos

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sob nenhum motivo, mas que desculpa podia dar pela manhã, se ele a encontrasse dormindo no chão? A camisa era mais apertada, teve que desatar os laços. Enquanto lutava com eles, na penumbra, a voz de Ranulf a surpreendeu. - Venha aqui, Reina. O fato de ter o coração em meio da laringe dificultou a resposta: - Um... um instante. - Agora mesmo. A ordem, dada com aquele tom particular, levou os pés para frente. Só restava esperar que ele não estivesse acordado de todo. Talvez só quisesse assegurar de que ela havia retornado sã e salva para voltar a dormir. Deteve-se um par de metros da cama. - Sim? Nem sequer viu o movimento da mão. Um instante depois caía sobre ele. Acabou de costas junto a Ranulf; logo ouviu o ruído de sua camisa ao rasgar-se. - O que... o que faz? -conseguiu balbuciar. Muito tarde. Também a anágua rasgou pelo meio. - O que pediu - respondeu ele, no mais razoável dos tons- Disse que ambos devíamos estar nus. Eu já estou. E você estava demorando muito. - E isso te autoriza a... Seu furioso comentário ficou inconcluso. Até a surpreendeu ter podido dizer tanto. Ele não a havia chamado para falar. Plantou a boca sobre a dela, com uma feroz possessividade, e um instante depois fez o mesmo com seu corpo. Entretanto, desta vez foi diferente. Suas investidas não eram tão rápidas nem tão fortes. Havia certa frouxidão em seus movimentos: uma ondulação embriagadora que provocou um torvelinho de sensações deliciosas em seu interior. E seus lábios não se centravam só em sua boca, mas passeavam por todo seu rosto. Por fim chegaram a uma orelha, e a sensação, intensamente prazerosa, provocou tal comoção que se estremeceu sob o corpo de Ranulf, impulsionando-o mais para dentro... Com isso pôs efetivo fim aos movimentos. Pégasus Lançamentos

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Abriu bruscamente os olhos ao ouvir o rugido. Sentia vontade de gritar: «Ainda não!». Mas ele tinha terminado e a olhava com satisfação nos olhos. Bastou isso para ter vontade de matá-lo. Essa vez a havia levado mais perto que nunca do que provocava nele esses rugidos, só para deixá-la outra vez com uma sensação de dolorosa frustração, os nervos desenquadrados e a mente chispando de fúria impotente. Ranulf se deixou cair a um lado com um suspiro. - Fiz outra vez, não? - Sim, grandíssimo tolo -respondeu ela com os dentes apertados - Fez outra vez. -Temo que não estivesse de todo acordado. Se quiser, podemos tentar de novo. Ela afastou bruscamente a mão que ele havia apoiado em seu ombro. - Não me toque! Estou tão furiosa que só quero te pegar! - Pois me pegue. - Não me tente, Ranulf. - Mas o digo a sério. Já que não me deixa tentar outra vez, que maneira melhor de aliviar seu aborrecimento? O faça, general. Não pode me fazer mal. Ela tentou, por certo. O golpeou no peito e no ventre até que lhe doeram os punhos. Nem sequer conservou forças para afastá-lo, quando ele a atraiu contra seu corpo. - Sente-se melhor agora? - Não - murmurou ela com teimosia. Ele riu entre dentes. - É pela camisa rasgada? - Ohhh! Então ele riu francamente. - Se zanga com muita facilidade, mulher. E agora que se esgotou, também seria fácil... - Não te ocorra! Reina sentiu que ele encolhia o ombro sob sua cabeça. - Nós homens não estamos acostumados a discutir quando já estamos saciados. Pégasus Lançamentos

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Quando não estamos, as coisas são diferentes. - Ora, isso me tranqüiliza!

- Arrisca-se muito, considerando que tenho a mão tão perto de seu traseiro, moça. Um bocejo arruinou o efeito da ameaça. Reina soprou - Isso poderia ser mais gratificante que seus... - Se completas a frase lamentará. - Aquela ameaça resultou mais efetiva, sobretudo porque Ranulf pôs a mão sobre a curva de seu traseiro - Você ofereceu as condições e eu cumpri com minha parte. Se houver mudado de idéia e prefere que procure outra, diga agora mesmo. Conteve o fôlego, aguardando a resposta. Não havia sido sua intenção oferecer esse tipo de saída e não sabia o que fazer se ela aceitasse. Mas Reina não disse nada. Para não abusar de sua boa sorte, ele se calou. Reina também conteve o fôlego e pelo mesmo motivo. Oxalá ele não exigisse a resposta que lhe ditaria o orgulho. Só quando Ranulf estava profundamente adormecido ela caiu na conta de que a falta de resposta era também uma resposta.

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C apítulo 28 Depois da chuva da manhã, o dia resultou úmido. Isso não impediu os meninos de correr por toda a aldeia com seus brinquedos. As mulheres se sentaram a trabalhar diante de cada casa, convergindo sob a sombra dos carvalhos para mexericar enquanto faziam seus trabalhos. A essas horas do dia havia poucos homens, pois havia semeaduras a atender e sarjetas a cavar, seja nos terrenos próprios, seja nos do senhor. Os que permaneciam na aldeia estavam ocupados reparando arados e ferramentas. Alguém levava um par de bodes a pastar, vários estavam empalhando um telhado, um jovem desajeitado perseguia uma cabra no pátio da paróquia. Até os velhos e os estropiados eram úteis: alimentavam os frangos que escavavam os pátios traseiros, recolhiam ovos ou trabalhavam nos pequenos pomares cultivados detrás de cada casa. Era a primeira vez que Ranulf visitava a aldeia desde suas bodas. Quando apareceu pela rua central, com Lady Ella encarapitada a seu ombro, todos os trabalhos cessaram. Só uma alma atrevida lhe gritou sua saudação. Quase todos desconfiavam do novo senhor, perguntavam-se por que estava ali, pois os aldeãos tratavam sempre com o oficial. Uma larga experiência indicava que a presença do senhor não agourava nada bom. Mas como não escolheu ninguém para exercer um interrogatório ou um castigo, ignoraram sua presença ou fingiram ignorá-la. Ranulf não sabia com certeza o que estava fazendo ali. Havia tido uma vaga idéia e havia atuado sem pensar. E uma das coisas que não havia tido em conta era a impressão que causaria ao entrar na choça de Alma, a Ruiva. A casa foi fácil de encontrar, graças às indicações que havia dado um de seus homens. Dois gansos acasalavam ruidosamente no pátio dianteiro, o que era ironicamente apropriado para essa residência. A porta estava aberta de par em par, como um convite. Uma porca saiu chiando, seguida por uma terrina de madeira Pégasus Lançamentos

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voadora, um momento antes que Ranulf agachasse a cabeça para entrar. - Se vier a negócios, feche a porta. Se não, deixe aberta para que entre luz. Ranulf demorou um momento em localizar a voz, pois a porta era a única fonte de iluminação e a casa era maior do que parecia de fora. Alma estava trocando os lençóis de uma sólida cama, situada contra a parede de um lado. Do outro lado, uma vaca amarrada mascava tranquilamente os juncos que cobriam o chão de terra calcada. Abundavam ali os pequenos luxos: na cama, roupas e lençóis finos, nos muros, baixela de louça e caçarolas de bronze. As velas não eram de fedorento sebo, mas sim de doce cera de abelhas, de um caldeirão que fervia na lareira aberta, no meio da habitação, surgia o aroma da carne de veado para o jantar. Obviamente, uma parte havia chegado até ali em pagamento pelos serviços prestados. Ranulf não fechou a porta. A ruiva o havia visto entrar, mas ainda não sabia quem era. Passou um momento antes que a curiosidade a fizesse virar para olhá-lo. Até então não o reconheceu, pois ele tinha a luz às suas costas. Foi sua estatura o que o delatou, fazendo que ela empalidecesse de horror. - Deus me proteja! Você aqui! - exclamou. E empalideceu ainda mais - Oh... Quero dizer... Por favor, senhor. A senhora foi boa comigo. Raramente me repreende, traz ungüentos especiais e... - Por que a menciona? - Por que... Se souber que viestes para me ver, me odiará. - Por quê? Como ela se limitou a olhá-lo fixamente, Ranulf grunhiu: - Não, não vim por isso e ela não terá motivos para pensá-lo. Isso assustou ainda mais a mulher. Avançou a tropeções até a mesa de cavalete e se deixou cair no banco, apertando a beirada da mesa até que os nódulos ficassem brancos. - Quer me expulsar? - O que? - Ranulf franziu o cenho. Logo disse - Não seja tola, mulher. Seus serviços aqui são tão úteis quanto os de qualquer outro aldeão. O que quero de ti é um Pégasus Lançamentos

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conselho.

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- Um conselho? - repetiu ela, aturdida. - Sim. - Ranulf se adiantou, tirando as manoplas para colocá-las sob o cinturão. Lady Ella saltou à mesa - Mais especificamente, seus conhecimentos sobre as mulheres. O sorriso foi lento, mas brilhante uma vez completo. - É obvio! O que as agradam, senhor, o que gostam! Não têm mais que perguntar. - Como posso agradar minha esposa sem lhe fazer mal? Sentou-se no banco, junto a ela. Lady Ella se aproximou, procurando carícias. Ele não reparou nos olhos de Alma, redondos de assombro. - Fez mal a ela? - Ainda não. Ao menos, isso acredito. Mas se a tocar como desejo, temo que a machucaria. Creio ter perdido o controle que tinha sobre minha paixão desde que a conheço. - Por que pensa que a machucaria? Ele levantou as mãos e as olhou com o cenho franzido. - Com estes dedos? Estão habituados a mulheres grandes e fortes, às que não incomodam as carícias rudes. Não acha que machucariam uma mulher tão pequena e delicada como minha senhora? As mãos se descarregaram contra a mesa, terminada a pergunta. A gata, sobressaltada, encarapitou-se outra vez em seu ombro. Ele a desceu até seu peito para acalmá-la. A ruiva contemplou as mãos que acariciavam o animal. - Esse gato é seu, meu senhor? - perguntou pensativa. - Sim. - Vejo que lhe têm carinho. Uma vez tive um gato ao qual adorava. Amava-o tanto que às vezes queria espremê-lo, só para demonstrar o muito que o queria. Não sente às vezes o mesmo? Ele sorriu, sem deixar de coçar as orelhas da gata. - Sim, com freqüência. Pégasus Lançamentos

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- Mas não cede ao impulso?

- Não, certamente. A mataria. - Ou a feriria gravemente. Ele voltou a franzir o cenho. - O que isso tem que ver com o que te perguntei? - Se pode ser ameno com um gato, sabendo que de outro modo o machucaria, por que não com sua esposa? - Compara minha esposa com uma gata? - Não, não, absolutamente - assegurou ela - Só quero assinalar que essas mãos, que tanto teme, não machucarão à senhora se não machucam à gata, que é muito menor. -Mas a gata não me provoca lascívia - grunhiu ele. Alma teve que morder os lábios para não sorrir. - Não, é obvio. O que sugiro é: quando estava com outras mulheres não lhe ocorria que podia lhes fazer mal, assim como não pensava que poderia machucar a um cão ou a um cavalo com uma enérgica palmada afetuosa. Mas sim sabe que poderia machucar sua gata. A idéia está presente, mesmo que não esteja pensando nisso. O mesmo ocorre com a senhora. Sabe que é diferente das outras, que deve ser mais cuidadoso com sua força quando a toca. Mesmo que perca o domínio de sua paixão, a idéia estaria ali, para moderar sua força e proteger à senhora. - Como? Digo que nunca sofri uma luxúria tão assustadora como a que me acossa desde que a conheci. Nem sequer importa onde estejamos, quando me ataca não há forma de me conter. Não penso em nada, salvo na irresistível necessidade de possuí-la. - Compreendo - disse Alma, a Ruiva. Perguntava-se se havia ocorrido a ele pensar que estava apaixonado por sua mulher. Parecia improvável. E não seria ela quem cometeria a estupidez de sugerir. Mas se ele não achava possível conter-se nas garras da paixão, como ajudá-lo? Melhor dizendo, como ajudar à senhora? - Isso dá outra aparência às coisas - continuou, observando outra vez as mãos Pégasus Lançamentos

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A senhora é pequena e delicada, sim. Mas é uma mulher. E nós, mulheres, temos mais força e resistência que os homens reconhecem. Talvez suas carícias não lhe façam nenhum dano. - Não quero lhe causar dor para comprová-lo. - Me mostre, então. Acredito que posso apreciar por mim mesma o que uma mulher resiste. Diante da expressão vacilante do cavalheiro, sorriu para incentivá-lo. Entretanto, ao ver o tamanho daquelas mãos, lamentou não ter mantido a boca fechada. Também corria o risco de que, uma vez lançado à ação, não pudesse deter-se. Mas como, então, poderia aliviar a preocupação desse homem? O estranho era que ele se preocupasse. E seria uma pena que a senhora não conhecesse nunca o prazer de suas carícias. - Não é minha intenção tentá-lo, senhor. Jamais. Só se trata de uma prova para determinar a potência de seu tato. Nada mais. - Compreendo - grunhiu ele - Mas não tem absolutamente a constituição de minha senhora. Ela teve que sorrir. - Um seio é sempre um seio. Grande ou pequeno experimenta a mesma dor ou o mesmo prazer. Me toque como costuma fazer, para que eu possa... Ele o fez sem lhe dar tempo a concluir. Alma não pode evitar um gesto de dor. - Já compreendo senhor. A verdade, sua mão é forte - viu-se obrigada a admitir. E então se atreveu a adicionar o que havia dito a mais de um cavalheiro- Mas um seio não é a bainha de uma espada. Não cairá da mão se o segurar com suavidade... Oh, Meu Deus, sua senhora! - O que? Ranulf se virou para a porta. Sua esposa estava emoldurada pelo vão, com o cesto de poções medicinais na mão. Mas quase não chegou a vê-la, pois ela desapareceu. - Têm que segui-la e explicar! - exclamou Alma. Pégasus Lançamentos

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-Para que? Se a seguir, o mais provável é que volte a deitá-la nos bosques. E isso não a agrada muito. Alma o olhou horrorizada. A notícia a distraiu por um momento. - Mas ela pensará que... Mulheres se opunham tenazmente ao que ela havia sugerido e... - Não seja tola, mulher - interrompeu ele - Disse que ela não tem motivos para pensar assim. Não me nega, mesmo que não a agrade. Que necessidade tenho de outras mulheres? Alma não disse que muitos homens vão à procura de outras mulheres para passar melhor, quando a suas esposas desagrada a cópula. Claro que essas mulheres tendem a despachar seus esposos para outras com sua bênção. A total falta de preocupação que ele mostrava acabou por acalmar seus temores. Talvez Lady Reina ficasse agradecida. E se não fosse assim, Alma se encarregaria de que sentisse gratidão... Mesmo que fosse de um modo indireto. - Senhor, temo que encarei isto de modo equivocado. Perguntou-me como podia agradar sua senhora sem lhe fazer mal. E há uma maneira. Talvez se começar lentamente... a princípio, não a toque com as mãos. Use os lábios e a língua. - Não será o mesmo. - Por que não? Pode tocá-la com a boca em qualquer parte que a toque com as mãos. - Em qualquer parte? - Sim. - Em qualquer parte? A ruiva riu entre dentes ao adivinhar seus pensamentos. - Sim, ali também. Sei que à maioria dos homens não ocorre, mas os poucos que o fazem gozam com isso. É possível que ela resista claro, pois parecerá estranho. Mas se insistir, não só gostará, mas também desse modo pode levá-la à plenitude de seu prazer. - Como é possível isso? Pégasus Lançamentos

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Alma se ruborizou pela primeira vez em muitos anos.

- Têm que confiar em mim, senhor, isso pode ocorrer. E desse modo não há pressa por aprender que carícias a satisfazem e quanto suaves devem ser. Haverá tempo de sobra para isso, à medida que chegue a conhecê-la melhor. Ele não fez mais perguntas. Deixou na mesa uma moeda de prata, mais dinheiro do que ela jamais havia visto, com a promessa de lhe dar o dobro se o dito fosse verdade. Se o que disse era verdade ou não, dependia da dama. Algumas rejeitavam. Nesse caso era raro que o homem insistisse muito. Mas o novo lorde não parecia propenso a ceder com facilidade. Longe disso, estava decidido a ver sua dama gozar, gostasse ela ou não. Que não teria dado Alma para ser uma pulga no leito conjugal, aquela noite!

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C apítulo 29 - Mas por que agora, senhora? - Porque é o momento perfeito, Aylmer. -«Agora que o muito bastardo se sente culpado por sua infidelidade», adicionou Reina, para si mesma - Hoje dirá que sim a tudo o que eu peça. - Isso temia - murmurou o menino. Reina franziu o cenho. - Não queria te ocupar de Lady Ella? - Sim, quero, mas não pensei que para isso tivesse que enfrentar o senhor. - Não deve preocupar-se. Espera no batente da janela até que eu te chame. Logo remexeu seu cabelo com um sorriso, para tranqüilizá-lo - Vê, Aylmer. Não tem nada que temer dele. O sorriso se desfez assim que o menino virou as costas. Como havia feito sua mãe para atuar assim, não sabia, mas era um dos poucos ensinamentos que dela havia recebido.

Que em um mundo de homens, onde as mulheres tinham tão pouco domínio sobre sua própria vida, onde se fazia necessário a autorização masculina para fazer ou conseguir qualquer coisa, era preciso aproveitar tudo o que ajudasse a obter um sim, quando cabiam dúvidas a respeito. Uma vez, sua mãe havia dito que a culpa era uma emoção estupenda para aproveitar. Embora ela nunca houvesse suspeitado de infidelidades por parte de seu esposo. Aproveitava as promessas esquecidas, os descuidos e esse tipo de coisas triviais. Ela não havia tido um marido que entrasse em zelo por um arrebatamento, como a filha. Mas como se compunha para pedir tranquilamente algo se estava ardendo por Pégasus Lançamentos

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dentro? Claro que sua mãe não havia tido um temperamento tão explosivo como o seu. Sabia portar-se para que seu esposo soubesse quando estava desgostada com ele de maneira sutil. Culpado ou não, ele não deixava de pensar que sua esposa tinha razões para isso e caía ante qualquer oportunidade de compensá-la, fosse com um vestido novo ou com uma visita a corte. Reina não imaginava seu gigantesco esposo fazendo algo tão normal como tratar de apaziguar uma consciência culpada. Tampouco se imaginava sugerindo algo com calma, quando sentia desejo de lhe partir algo na cabeça. Mas se sua mãe havia podido, ela também poderia. Entretanto, assim que tivesse o acordo que desejava o mataria. Esse porco, esse miserável sem coração! Como tinha sido capaz de... ? Não, não iria perguntar-se isso. De nada servia ficar furiosa por algo assim. Segundo a opinião geral, a infidelidade conjugal não era importante. Ela sabia e nunca havia suposto que seu casamento pudesse ser diferente. Que mulher podia pretender? Salvo sua mãe, certamente. O melhor que Reina havia sonhado era que seu esposo não a envergonhasse trazendo suas amantes para casa, como faziam alguns. Mas isto não era igualmente ruim? Visitar Alma, a Ruiva, em plena luz do dia, à vista de todos os fofoqueiros da aldeia, apenas dois dias depois das bodas! Reina teria podido compreender melhor se o tivesse encontrado em algum canto escuro com Edwina. Os homens babavam por Edwina. Por que devia ser diferente seu lascivo esposo? Mas Alma?! Na verdade, a mulher não era feia, com seu cabelo vermelho e seus olhos incitadores, azuis como os pensamentos. E era cheia de curvas, como preferia seu esposo. Mas ele sabia bem que Reina, à diferença da maioria das damas, visitava seus aldeãos para atender suas enfermidades. Tinha que saber que, se recorria à rameira da aldeia, sua senhora se inteiraria imediatamente. E se ele desejava que ela se inteirasse? Seria esse seu modo de castigá-la por tantas queixas? Ela tinha ficado se queixando perversamente. Por acaso pensava castigá-la? Não, o mais provável era que só desejasse uma cavalgada mais satisfatória. Entretanto, Reina não esquecia a pergunta da noite anterior, sugerindo que talvez ela Pégasus Lançamentos

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gostasse se ele procurasse a outra. E se havia tomado seu silêncio por assentimento e não por negativa? Podia ser tão estúpido? - O jovem Malfed me disse que deseja falar comigo. Bem. Ao estar advertido, ele pensaria que sua esposa desejava mencionar Alma. Mas ela não tinha intenções de fazê-lo, com o que o confundiria. Reina compôs suas feições o melhor possível e se virou para enfrentar seu pecador esposo... Só para ficar, por sua vez, mais confusa. Não sabia qual era a expressão de um homem que se estava afogando na culpa, mas não podia ser um simples olhar inquisitivo. Até tinha Lady Ella ronronando em seus braços, muito satisfeita, sem perceber agitação alguma em seu dono. - Sente-se, senhor. - Assinalou a cadeira do dono de casa, que havia posto frente à lareira para essa entrevista - Um pouco de vinho? Ele assentiu, enquanto ocupava o assento. Reina levantou a mão e um servo se aproximou com a bebida. Ela não tinha ignorado o suspiro de seu esposo ao sentar-se. Tão cansado estava após seus esforços na aldeia? Teve que exercer toda sua vontade para entregar o cálice de vinho, em vez de derrubá-lo na cabeça. - Meu oficial me informou que esta manhã o levou a ver os campos e o moinho. - Sim. Ele tomou um gole de vinho para não olhá-la aos olhos (ao menos, isso pensou Reina). Ela se pôs frente à lareira para olhá-lo de cima. - Suponho que o resto de sua jornada foi igualmente produtiva? Ele se engasgou com o vinho e teve que cuspir. A gata, vaiando, abandonou de um salto seu regaço. Reina a levantou para limpar as gotas de vinho da pelagem. Em seguida a colocou em um banco próximo, onde o animal se dedicou a lamber-se com atenção. Ranulf seguia tossindo. - Talvez o vinho seja muito forte, meu senhor - disse Reina com toda inocência Prefere cerveja? Ele a fulminou com o olhar, ofegando: - Preferiria que fosse ao ponto. Pégasus Lançamentos

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- Do que? Há algumas coisas que devemos discutir, mas se estiver muito exausto após jornada tão exaustiva, esses assuntos podem esperar. Ranulf não ignorou a ênfase que ela dava a esse suposto cansaço. E na realidade estava exausto, mas de ter estado cavalgando como um demônio pelos bosques, em busca de foragidos ou de qualquer presa que afastasse sua mente do que Alma, a Ruiva havia lhe dito. Ou isso ou ceder à luxúria que suas sugestões haviam inspirado. E não pensava permitir que seu maldito pênis voltasse a governá-lo. Enquanto pode manter a raia a esses pensamentos foi bastante bem, ainda na presença de sua esposa. Mas suas insinuações começavam a lhe distrair. Que demônios supunha ela que o havia cansado tanto? Se quisesse saber o que havia estado fazendo, por que não perguntava diretamente? Não era costume de Reina andar com rodeios, sendo tão franca. E ele percebia seu nervosismo. Aparentava estar serena, muito serena, mas irradiava a tensão de uma emoção poderosa. - Aconteceu algo que eu deva saber? - perguntou. Essa pergunta pareceu desconcertá-la. - Que você deva... Deveria saber melhor que eu, meu senhor. E isso o que significava? - Não importa - suspirou ele - Diga-me o que deseja, antes que fique realmente muito cansado para prestar atenção. Reina apertou os punhos por detrás de suas saias. As coisas não iam como ela havia suposto. Por que não agia como ela esperava? Ele sabia que ela estava inteirada do que havia feito. Poderia ter dado muitas desculpas para justificar sua presença na casa da Ruiva, se Reina não o tivesse visto com a mão apertada contra o grande seio da mulher. Isso significava que só tinha um motivo para estar ali. Não se importava, então, que ela soubesse? Ou pensava que ela não se atreveria a repreendê-lo pelo que havia feito que não ousasse sequer mencioná-lo? A maioria das esposas não teriam se atrevido, temerosas de receber uma surra caso se queixassem da errante conduta do marido. Reina, graças a seu contrato matrimonial, não padecia desses temores. De todos os modos, esse medo não a teria impedido de fazer a esse Pégasus Lançamentos

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homem todas as recriminações que merecesse.

Mas ainda não. Antes queria ver se ele só fingia despreocupação. - Muito bem, senhor. Isto não levará muito tempo, são só algumas decisões que necessito de você. Em primeiro lugar, recebemos um oferecimento de compra com respeito à tutela da herdeira de Burgh. Simon trouxe a carta de seu vizinho. É um jovem lorde que afirma ser capaz de administrar as propriedades da menina. Não quis mencioná-lo até que todos nossos convidados partissem. - De maneira que nosso lorde pombinho se foi. Ela apertou os lábios ante aquele tom depreciativo. - Sim, lorde John nos abandonou esta manhã. - Espero que tenha me despedido dele. Depois de tudo, agrada-me tratar bem a quem perdeu para mim. - Ele não perdeu ante você, perdeu por não ter se apresentado - espetou ela - E como nem sequer sabe que perdeu, sua cortesia é supérflua. De qualquer modo, se tivesse oferecido pessoalmente tampouco teria percebido. É bastante difícil identificar uma demonstração de cortesia quando rosnam. - Eu não rosno senhora. - Se você diz isso, milord - replicou ela com doçura, com o grunhido ainda soando nos ouvidos. Ele esteve a ponto de levantar de um salto, mas se conteve e a surpreendeu com uma risada contida, enquanto se reclinava para trás. - Ao menos, eu não chio como seu ratinho. - Não é nenhum... - Reina fechou a boca, fulminando-o com o olhar - Muito gracioso senhor. Podemos voltar agora para assunto que nos ocupa? À tutela? - Quanto ofereceram? - Quatrocentos e cinqüenta Marcos e dois palafréns. - Por que tanto? - Na realidade é pouco, se tiver em conta que se trata de duas casas solares, cada uma com sua própria aldeia e rendas de cento e cinqüenta marcos anuais. O Pégasus Lançamentos

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aluguel dos imóveis é grandemente superior. Também é preciso ter em conta a idade da criança, que ainda não tem dois anos. Haverá tutela para muitos anos antes que se case e suas propriedades passem a ser administradas por seu esposo. Quem quer que administre o feudo terá um bom ganho. - Nesse caso, por que vendê-la? - Não estou sugerindo que a vendamos. Não sugiro nada absolutamente. Só menciono um oferecimento que deve ser respondido, em um sentido ou em outro. Mas cedo ou tarde será preciso fazer algo. A viúva, que conta com um oficial e vários cavalheiros, está se arrumando bastante bem por conta própria, mas só porque ainda não teve problemas. - Por fim, sugere que venda a tutela. - Não, não o sugiro - respondeu ela, com voz rangente - Simon possivelmente conhece bem seu vizinho, mas nós não. E há outras possibilidades que nos beneficiariam mais. - Poderia designar um administrador que me responda, suponho, mas os administradores, quando não os vigia de perto, tendem guardar os lucros. Também poderia prometer a menina em matrimônio e deixar que seu prometido administrasse a partir de agora o que cedo ou tarde seria seu. Reina se surpreendeu que ele conhecesse as diversas opções, porém, não havia mencionado a que ela desejava. - Tal como diz, nem sempre se pode confiar em um administrador. Mas se prometer essa menina em matrimônio agora mesmo, terá que ser a um homem que já tenha idade suficiente para administrar. Desse modo prejudica a ambos: ele terá que esperar muitos anos para ter herdeiros e ela acabará casando-se com um velho, o que não a fará feliz. - Se escolher Searle ou Eric, não. Dentro de dez anos, eles terão só vinte e oito; não é grande tragédia para uma moça casadoura. Isso era verdade, maldito homem. - Mas desse modo obteriam só o serviço de um homem, quando poderiam contar Pégasus Lançamentos

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com dois, se em troca casasse a viúva. O padrasto poderia contar agora com os benefícios da terra e teria suficiente para comprar uma propriedade considerável para seus próprios herdeiros. Faz tempo que penso em Sir Amulf, mas adiei o assunto, pois o necessitava em Birkenham. - Me diga, Reina: se era isto o que desejava desde o inicio, por que não me disse? - Está de acordo? - Estou de acordo que o melhor é casar a viúva, mas aceita que queira conhecer esse Sir Arnulf antes de tê-lo em conta? - Por certo. - Bem. - Ranulf se levantou - Mas a próxima vez que deseje algo de mim, vá diretamente ao ponto. Não há necessidade de perder tempo com rodeios. - Não terminei - interrompeu ela irritada porque ele se atrevesse a repreendêla nesse momento. - Há outro assunto: sua gata. - O que acontece? Reina chamou o menino, experimentando sua primeira vacilação enquanto ambos esperavam que ele se aproximasse, com seu passo lento. Mas havia triunfado em seu primeiro objetivo e, portanto, estava convencida de que Ranulf tinha remorsos, sim, mesmo que não os demonstrasse. Nessa oportunidade foi diretamente ao ponto. - Aylmer, aqui presente, afeiçoou-se a sua mascote. Trabalha na cozinha, mas quer encarregar-se também de cuidar de Lady Ella: dar-lhe de comer, escová-la e todo o resto. - É outro como seu Theo? - perguntou Ranulf. - Eu sempre cuidei dele, se a isso se refere. É órfão. Só então Ranulf olhou o menino, enquanto sua esposa o observava. Sua inquietação ia aumentando, embora ele não revelasse em sua expressão os pensamentos que lhe passavam pela cabeça. Havia feito mal em arriscar-se assim. Deveria ter ocultado o menino em vez de indicá-lo. E se Ranulf decidisse expulsá-lo? O Pégasus Lançamentos

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que poderia fazer?

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E o pobre Aylmer estava horrorizado. Não levantava a vista e Reina notou que tremiam as pernas. Seu galope para o pânico se converteu em um tremor furioso. Como ousava Ranulf torturar assim o pequeno com seu silêncio? Reina levantou o pé com a intenção de dar um chute em seu esposo. Nesse momento ele disse a Aylmer, com voz que, nele, resultava suave: - De maneira que te agrada minha gata, é? - Sim, milorde - sussurrou. - Pois cuida de não alimentá-la em demasia. Aylmer demorou um momento em compreender que havia obtido a permissão desejada. Levantou a vista, com uma surpresa que logo se converteu em um amplo sorriso. - Sim, senhor! Reina demorou um momento mais em baixar o pé. Que porco, mantê-los em suspense desse modo! Era remorso. Na realidade, estava se afogando com eles. E já que estava disposto a pagar, o melhor era aproveitar o momento. - Leva Lady Ella à cozinha, Aylmer. Como passou o dia fora, com lorde Ranulf, deve ter muita fome. - Esperou que o menino levantasse cuidadosamente o animal e se afastasse, coxeando. Logo enfrentou novamente a seu esposo- Assim que a... - Deveria ter me prevenido antes de me apresentar a ele, senhora. Ela ficou tensa, à defensiva. - Por quê? Não lhe agrada que um aleijado atenda a sua bela gata? - Esse trabalho era de Lanzo. Não gostará que um lacaio de cozinha o retire. - Aylmer não é nenhum lacaio. Seus pais eram arrendatários livres. Quando morreram ninguém quis recolher o menino, nem sequer ajudá-lo. Trataram-no como se sua claudicação fosse uma enfermidade contagiosa. Ele era frágil e doentio. Por duas vezes estive a ponto de perdê-lo por enfermidades leves que quase não teriam afetado um menino normal. É pequeno e indefeso, mas tem orgulho. Não aceita caridade: trabalha para pagar sua manutenção. E se lhe dedico um afeto especial é Pégasus Lançamentos

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porque não tem ninguém.

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- Com um general como respaldo, a quem mais poderia necessitar? Ela ignorou isso. - Já que falamos de sua gata... - Dela falamos? Pensei que o assunto fosse o menino. - O menino corre por minha conta, a gata te corresponde, sobretudo quando se trata do lugar onde dorme. Não me agrada despertar com seu focinho junto a meu rosto, como esta manhã. Nunca devia permitir-lhe a entrada na alcova. - Ela vai aonde eu vou e dorme onde eu durmo. Sempre foi assim. - Isso estava muito bem quando dormiam em tendas, milord, mas um dormitório não é lugar para animais. - E eu que acreditava que também me tinha nessa categoria! Por acaso pensa me expulsar também da alcova? - Como se aceitasse ir! -soprou ela. - Não, não o aceitaria. E tampouco irá Lady Ella. - Devemos seguir discutindo o assunto. - O assunto fica fechado, Reina - disse ele com firmeza - Agora me faça preparar um banho. Se quiser se reunir comigo, venha. De outro modo, nos veremos na hora do jantar. Ela teve que apertar os dentes para não chamá-lo quando o viu afastar-se. Supostamente, esse homem deveria ter aceitado tudo o que ela pedisse, sem lhe negar nada. Mas era preciso reconhecer que conseguir duas de três solicitadas não estava ruim. De qualquer modo, se ele acreditava que com isso purgava sua infidelidade, estava muito errado.

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C apítulo 30 - Se sentirá melhor se contar a alguém. Reina, sem responder, manteve os olhos fechados, enquanto Theodric a penteava com suavidade. Cabia lamentar que o moço percebesse tão bem seus estados de ânimo. Nada havia dito sobre a visita de seu esposo a Alma, tampouco tinha intenções de fazê-lo. Ele se inteiraria muito cedo, assim que a intriga chegasse ao castelo, mas era de esperar que não relacionasse isso com sua inquietação. A confissão podia fazer um bem à alma, a humilhação, não. Sentia

necessidade

de

passear

pelo

quarto

em

vez

de

permanecer

tranquilamente sentada em um banquinho. Esse rito noturno costumava tranqüilizá-la, pois Theo tinha mãos mágicas quando se tratava de aliviar suas tensões. Mas seu desassossego ia aumentando em vez de diminuir, à medida que se aproximava o momento em que Ranulf faria sua aparição. - Por acaso a fez abrir outra vez as pernas entre o castelo e a aldeia? - Não seja grosseiro, Theo. - Sim ou não? - Não - chiou ela. Ele puxou seu cabelo até fazê-la jogar a cabeça para trás, a fim de olhá-la na cara. - Com quem está furiosa, se não é com seu gigante? - Theo... - Se não me disser isso, irei sussurrar ao ouvido dele que o espera com ânsias... No leito. - O faça e não respondo por sua vida - espetou ela levantando bruscamente a cabeça. Aquilo bastou para que ele não insistisse. Mas o silêncio seguinte fez com que Pégasus Lançamentos

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ela se irritasse ainda mais. Por fim decidiu contar ao menos a metade. - Não se equivocou de homem, Theo, mas sim de motivos. Eu acreditava ter convencido Ranulf para que casasse Louise de Burgh com Sir Arnulf. Mas durante o jantar, ele indicou Searle e Eric (e também Walter) que o acompanhassem a conhecer a viúva. - E bem? - Dei-me conta de que pensa entregá-la a um deles, quando esta tarde quase me prometeu casá-la com Arnulf. - Não me parece homem capaz de faltar facilmente a uma promessa, Reina. - Na realidade, não me prometeu isso - reconheceu ela reticente - Mas sabe que eu desejo esse enlace e disse que teria em conta Arnulf. - O ter em conta não equivale a escolhê-lo. Eu diria que está tomando precauções se por acaso Sir Arnulf não o agrada. - Não compreende Theo. Deve-me seu apoio nisto. - Por quê? - Não importa por que, mas me deve isso - assegurou Reina impaciente - E Arnulf é o mais adequado para esse lugar. Prestou-nos excelentes serviços. Demonstrou

ser

muito

capaz

de

semelhante

responsabilidade.

Merece

uma

recompensa. E, além disso, conhece a dama e lhe tem estima. Formam um bom casal. - Ah, mas o que pensa ela a respeito? Talvez se agradasse de poder escolher entre vários. - Desde quando isso importa, especialmente sendo a dama tão jovem? - Preciso te lembrar que você não era muito mais velha que Lady Burgh quando, com muita lógica, escolheu John de Lascelles e Richard de Arcourt como possíveis maridos? E não só isso: até mudou de idéia no último momento. - O que demonstra que, ainda aos dezessete anos, toda mulher é idiota se acredita saber o que lhe convém - replicou ela, com tom de desgosto. - Ora, ora, sabe que o gigante segue sendo o melhor, embora tenha tido sua primeira discórdia com ele. Não pode pretender que ele fique sempre de acordo Pégasus Lançamentos

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contigo, Reina. Como não ficaria seu... Pai.

Reina levantou os olhos, pois as palavras de Theo haviam se perdido no silêncio. Ranulf acabava de entrar sem fazer ruído e os olhava fixamente. Sua expressão se tornava mais e mais sombria. Lanzo, de pé atrás dele, mantinha a vista fixa no teto, com o pescoço vermelho de vergonha. Theo pigarreou para chamar a atenção de Reina. Como isso não deu resultado, cravou-lhe um dedo no ombro. Só então ela viu o que provocava a reação dos dois recém chegados: a bata havia aberto na frente, deixando à descoberto um seio e uma boa porção de umbigo. Afogando uma exclamação, fechou o objeto bruscamente e cravou em seu marido um olhar furioso. Já era muito que isso lhe tivesse acontecido uma vez. Duas vezes resultava insuportável. - Não ficaria mal que batesse na porta antes de entrar, milorde - disse cáustica - Alguns estão acostumados em fazê-lo. - À minha própria porta? Acredito que não. - Se estiver só não tem importância. Mas não entra sozinho. - Você tampouco está sozinha, senhora. E quero conhecer o motivo. Com muito atraso, Reina compreendeu que seu cenho franzido não era o de sempre, ardia de fúria. Tinha tensos os tendões do corpo e de seus olhos violeta despediam chamas. E esses olhos estavam fixos, não nela, mas sim em Theodric. Mas também Reina estava furiosa, e não só pelo embaraço que acabava de passar. Levantando-se bruscamente, inquiriu: - O que insinua? Sabe que Theodric é meu servo pessoal. O que pode estar fazendo aqui, senão cumprir com suas funções? - E que funções são essas, para que fique sentada diante dele meio nua? - Não seja estúpido - espetou ela - Me olha tal como olharia a você... Não, não é assim, preferiria amplamente olhar você. Em mim nem sequer repara, tal como Lanzo não repara em você quando o banha ou o veste. - Essas por acaso são suas funções? Pégasus Lançamentos

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- Certamente.

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- Pois a partir de agora não. Por Deus! - bramou Ranulf. E ao Theodric - Larguea! Reina ficou tensa e estendeu um braço para deter o moço. - Não tem por que ir, Theo. - Jesus, Reina! - grasnou Theo, a suas costas - Quer que morra? - Não se preocupe. - Eu não apostaria nisso esposa - disse Ranulf, com voz mais ameaçadora por seu tom mais suave - Se o pensar, lembrará que lhe devo umas palmadas. E a administrarei com muito gosto se não desaparecer antes que... Não foi necessário continuar. Theo já havia deslizado por debaixo do braço estendido e corria para a porta. Lanzo riu entre dentes ante essa cômica saída. Reina o fulminou com um olhar antes de voltar às costas aos dois homens. Neste momento estava a ponto de perder os estribos e gritar como uma tola. - Você também pode ir, Lanzo - disse Ranulf, em um tom que indicava que suas emoções estavam outra vez sob controle - Minha senhora me ajudará a me despir. - Para que me acuse de usurpar outro de seus trabalhos? - exclamou Reina, por cima do ombro, com um olhar doído - Não conte com isso, senhor. - Não é seu dever assistir seu esposo no que ele lhe peça? - Não me fale de deveres, depois desse arrebatamento infantil. - Nega? - Obrigada, Meu Deus - disse ela elevando o olhar ao teto - Por fim compreendeu. - Dir-se-ia que não só seu Theo merece uma surra. Não o ouviu aproximar-se por detrás, mas estava tão perto que seu fôlego lhe movia os cabelos. Tampouco ouviu a porta fechar-se, mas ambos estavam sós. - Talvez Theo morra de medo diante desse tipo de ameaça, mas eu não sou tão covarde. - Que ameaça? Quando o julgar necessário, asseguro-te que te resultará difícil Pégasus Lançamentos

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se sentar por uma semana, pelo menos. - A mão de Ranulf se apoiou em sua nuca para obrigá-la a voltar-se para ele - É necessário, Reina? - Está me pedindo permissão? Ele sorriu. - Não sou tão tolo para deixar o assunto por sua conta. Perguntei se é necessário. Vai seguir com seus desafios? - Não - sussurrou ela, ressentida e acovardada. - Bem. Quando entrei não pensava em te castigar. O que tinha em mente era muito distinto. Ela se afastou com brutalidade, dilatando os olhos de desconfiança. - Não pensará... Depois de... Como se atreve a pensar que eu...? - Tivemos um pequeno desacordo - interpôs ele, encolhendo de ombros - mas já passou. - O que passou? Pequeno? - balbuciou ela - Se é isso que opina, bem. Não cabia esperar outra coisa de semelhante bruto. Mas não obterá de mim essa coisa tão diferente que tinha pensado, depois de tê-lo feito com Alma! - Com ... ? Será melhor que explique agora mesmo, senhora. - Eu? -exclamou ela - Visita uma prostituta e sou eu quem deve dar explicações? - De maneira que isso é o que a manteve sobre brasas todo o dia. - Sorriu inesperadamente. Logo aumentou a ira de sua esposa tornando a rir - E eu lhe disse que não era tão tola! - Disse... tola? -balbuciou ela - Pois sim, devo sê-lo, se pensava que meu esposo não seria capaz de me envergonhar tão abertamente. Ele meneou a cabeça, sempre sorridente. - Nunca a envergonhei minha senhora... - ... E amanhã choverão moedas de ouro - soprou ela - Será melhor informar ao falcoeiro para que se prepare para ver essa maravilha. - Nem têm motivos para ficar furiosa. - Devo me perguntar todos os dias em que leito o encontrarei sem dizer nada a Pégasus Lançamentos

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respeito? É isso que pretende?

- Me encontrou no leito com aquela mulher? - O surpreendi com a mão em seu seio. Por acaso estavam discutindo sobre a renda, meu senhor? Seu sarcasmo se tornava cada vez mais agudo. Ele havia esquecido em que momento ela havia aparecido na porta da Ruiva. - Na realidade, estávamos falando de ti. - Por certo. - O tom de Reina se tornou seco. - A porta estava de par em par, como lembrará. - Isso só demonstra que me disse a verdade ao assegurar que não se importa em contar ou não com intimidade. No bosque, na choça de uma rameira com a porta aberta. O que importa? Tinha que lembrar disso justo agora? - Sabe general, teria podido economizar esse doloroso ciúme se ontem houvesse respondido a minha pergunta. Se não quisesse que me desafogasse com outra além de você, deveria ter dito. - De maneira que o admite - disse ela, vacilante. - E você? - contra-atacou ele. - Posto que você não saiba ser discreto, terei que ser eu - replicou ela amargamente - embora não vejo a utilidade quando tudo está já feito. E não estava com ciúmes. Horrorizada e humilhada, sim, mas ciumenta não. - Muito bem, não estava ciumenta - concedeu ele, embora seu sorriso revelasse que não acreditava nisso - De qualquer modo, teria podido evitar problemas se houvesse me perguntado simplesmente o que estava fazendo ali. - Quando um homem visita uma prostituta é para fazer uma só coisa. - Nesse caso, por que me limitei a conversar com ela? - A conversar? -bufou Reina- Colocando as mãos nos seios? Ele riu entre dentes. - Do que outro modo teria podido ela determinar se minhas carícias te fariam Pégasus Lançamentos

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mal ou não?

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- A mim? Por acaso a acariciou por meu bem? - burlou ela - Tente outra vez, por favor. Por fim ele franziu o cenho. - Se eu tivesse necessitado de uma mulher, não teria sido necessário ir à aldeia para achá-la. Aqui há muitas que não teriam me negado, incluindo você mesma. O que eu precisava era uma resposta que só podia me dar uma mulher de vasta e variada experiência. Só por isso visitei Alma, a Ruiva, e isso foi o único que ela me brindou. Ainda que sua resposta tenha me excitado, não demorei com ela para aproveitar sua profissão. Mas se tivesse te encontrado aguardando fora, jovem senhora, pode estar segura de que teria tido provas de seu equívoco. Ela não ignorou o significado dessas palavras, o que lhe avermelhou as bochechas. E acreditou, embora não fosse prudente, porque desejava acreditá-lo. Mas isso significava que, ao acusá-lo assim, havia feito o papel de uma verdadeira tola. Restava agradecer que ele não tivesse perdido a paciência por completo. Mas seguia com o cenho franzido, e isso aumentou o desconforto da jovem. - Quer ... ? - Teve que pigarrear. No momento ele não podia olhá-la nos olhos Quer me dizer qual era a resposta que procurava? Ele deu um passo para ela. Sua voz foi um rumor grave e rouco. - Queria saber como te dar prazer sem te machucar. Reina levantou bruscamente a cabeça, sentindo uma intensa indignação. - Perguntou isso a ela? - Sim. - Mas se nunca me fez mal! - Tampouco te toquei como gostaria, por medo de que estas mãos a machucassem quando eu perdesse o controle, coisa que tem me ocorrido uma e outra vez contigo. - A expressão dúbia de sua esposa o exasperou - Olhe quão miúda e delicada que é! Nunca levei a meu leito a uma mulher tão frágil. Não faço mais esforço para te elevar que para levantar Lady Ella. Pégasus Lançamentos

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Isso era um exagero, mas nenhum dos dois caiu levou em conta. Ranulf a segurou por debaixo dos braços e a levantou. Ela o olhava de cima, mas ele não elevou a vista mais à frente do seio, subjugado pela bata entreaberta. Ambos os seios apareciam suas grandes auréolas escuras, em forte contraste com o cremoso da pele, os mamilos ficaram eretos ante seu olhar, como se estirassem para seus lábios. Ele os provou, inclinando a cabeça apenas o suficiente para degustar um. Logo o sugou profundamente. Reina adivinhou o que vinha quando os olhos de seu marido se obscureceram até o anil, e conteve o fôlego, esperando. De repente emitiu um leve gemido. Deixou cair a cabeça para trás, com um torvelinho quente no ventre. Estendeu as mãos que tinha suavemente posadas nos ombros de Ranulf e afundou os dedos na cabeleira dourada. Pouco importava não ter o corpo apoiado contra o dele, mas sim suspenso no ar. De qualquer modo, seus membros haviam se convertido em gelatina. Os dele, em troca, permaneciam firmes como uma rocha; nem sequer os braços que a sustentavam delatavam tremor algum. Por fim soltou o seio, só para lamber o percurso para o outro, lhe arrancando um gemido ainda mais profundo. A sensação, de tão de intensa, tornou-se insuportável, mas a Reina não teria ocorrido pedir ajuda. De repente se sentiu elevada a uma altura maior. Os lábios de Ranulf não se separaram de sua pele, pressionando beijos acalorados contra seu ventre. Detiveramse por um instante em seu umbigo, para fisgá-lo com a língua. Ela quase não havia recuperado o fôlego depois desse ataque, quando sentiu descer outra vez, pouco a pouco, enquanto uma língua riscava um caminho do ventre até o pescoço, à bochecha e, por fim, afundava-se em sua boca para um beijo ardoroso que lhe curvou os dedos. Por fim, quando ele a depositou no chão teria caído aos pés de seu esposo se não estivesse agarrada ainda a seu cabelo. Derrubou-se contra ele e quase não se deu conta de que Ranulf desprendia seus dedos e baixava os braços para deslizar a bata pelos ombros, até que o objeto escorregou ao chão. Só percebeu que ele a levantava outra vez, agora em seus braços, e quase não Pégasus Lançamentos

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teve consciência de que a levava. Mas nenhum outro pensamento penetrou na neblina de prazer que ainda experimentava. O prazer não diminuiu. Mesmo quando ele a deixou no leito e se afastou para tirar a roupa, a ardência continuou. Contemplava-o, apreciando a carne dourada que ia se revelando, a potência que a havia sustentado no alto durante tão longo tempo, manifestada em cada ondular de músculos. Desejava lhe tocar a pele, prová-lo como ele a havia provado. Nunca havia experimentado uma expectativa tão ardente. E quando seus olhos se encontraram com os dele, outro estremecimento de sensações a percorreu por inteiro, pois as pupilas de Ranulf ardiam de paixão, lhe assegurando que realmente desta vez seria diferente. Mas ela não poderia imaginar até que extremo. Quando ele voltou à cama, seus lábios retornaram para tentá-la com beijos suaves, incitá-la com dentadas e inflamar qualquer lugar em que a tocava. Por fim se converteu em uma labareda de calor e desejo. Frustrava-a que não permitisse tocá-lo, pois a segurava as mãos com força, sem soltá-las. Finalmente se preparou para satisfazer o desejo de senti-lo em seu interior, mas Ranulf se ajoelhou entre suas pernas, depositou um beijo mais em seu ventre estremecido e logo... -Ranulf, o que... Não, não o faça... Não! Ele o fez, e foi como sair voando através do teto. A metade de seu corpo se afastou da cama, pois suas costas se arquearam como por vontade própria, tratando de escapar ao fogo daquela língua. Mas não o conseguiu. Tampouco era possível libertar as mãos. Tratou de levantar-se, mas ele a imobilizou com um braço cruzado sobre o ventre, mantendo-a a sua mercê. Continuou provando sua essência, consumindo em seu fogo a surpresa e o medo, até deixar escapar uma satisfação selvagem e assombrosa. Essa resposta não parecia brotar dela, entretanto, sentia-a, desfrutava-a e, com indefeso abandono, deixou-se levar aonde fosse. Um batimento do coração novo e glorioso lhe estalou entre as pernas, lhe arrancando um grito capaz de competir com o habitual bramido de Ranulf. E enquanto flutuava na sufocante seqüela, ele a possuiu, mantendo-a na crista Pégasus Lançamentos

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de uma doçura pura enquanto voava para seu próprio desafogo. Só que a onda adquiriu inesperadas dimensões de ciclone e, no último instante, o grito de Reina se uniu ao dele em outro estalo de palpitante êxtase.

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C apítulo 31 Foi uma desagradável surpresa despertar do sonho mais prazenteiro para achar-se com o traseiro de um gato diretamente contra seu rosto. Por um momento, Reina não conseguiu compreender o que estava vendo. Depois, o horrível aroma que lhe atacou as fossas nasais a permitiu identificá-lo. Com um chiado, saltou da cama. Mas quando se virou para fulminar com o olhar à inoportuna criatura que repousava em seu travesseiro, ficou paralisada ao ver seu esposo. Seu grito de indignação o havia despertado. Por obra de seus reflexos de guerreiro, estava já de pé ao outro lado da cama, espada em mão. Não conseguia adivinhar o que a havia alarmado assim, como foi óbvio pelo olhar inquisitivo que lhe dirigiu, com uma sobrancelha arqueada. O aborrecimento de Reina não se aplacou. Pelo contrário, aumentou consideravelmente ao se dar conta de que ambos estavam nus. E a lembrança da véspera acabou de ofendê-la. Por isso, quando ao fim ele perguntou o que a havia assustado, Reina respondeu sem se importar em parecer uma tola. A gata era a culpada desse novo embaraço e seria a gata quem suportaria a culpa. - Esse rato felino soltou um pum na minha cara. Ranulf não riu. Reina teria preferido que fizesse isso, pois assim poderia aliviar a tensão que aquela situação absurda estava criando. O que fez foi embainhar a espada com muita calma e voltar para a cama. A falta de um comentário bastou para irritar a jovem. E o que acabou de enfurecê-la foi que ele levantasse lady Ella para acariciá-la. - E então? -exclamou ela. - E então, o que? É algo normal, os animais têm tantos gases intestinais quanto nós. - Mas ela -assegurou Reina, assinalando a culpada com um dedo- o fez de Pégasus Lançamentos

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propósito!

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- Que ridículo! Por que odeia os gatos? - Eu não odeio os gatos. Pelo contrário, eu gosto. Odeio a essa gata e me nego a seguir compartilhando o quarto com ela. Se ela não se for, vou EU. Como ele se limitou a olhá-la em silêncio, como se considerasse louca, Reina saiu tempestuosamente do quarto; deteve-se só para recolher a bata que a noite anterior ficou no chão. Quando ficou fora, no corredor, lhe ocorreu que não tinha para onde ir. Já havia atribuído seu antigo quarto a Elaine e a Alicia, que o compartilhavam, e não gostaria de incomodar às outras mulheres tão cedo. Tampouco podia descer com essas roupas. Ainda que apenas estivesse amanhecendo, mesmo a essas horas já teria alguns serventes de pé. No corredor as tochas haviam se consumido; a luz que penetrava pelos fundos batentes quase não era visível. O poço da escada estava ainda mais escuro, mas Reina avançou nessa direção. O chão estava frio; sentada na escada, ao menos podia envolver os pés na bata. Com um pouco de sorte, ninguém passaria por ali; caso contrário, não lhe ocorria nenhuma desculpa para explicar por que estava sentada na escuridão, nos degraus frios, abrigada só com uma bata. Após um momento começou a respirar com mais calma. O torvelinho de seus pensamentos demorou um pouco mais em serenar-se; quando assim foi, deixou cair a cabeça contra os joelhos, gemendo. «Não fiz isso, Jesus, me diga que não disse nem fiz nada disso.» Não houve voz divina que respondesse. Reina voltou a gemer. Ranulf pensaria que estava casado com uma louca, e não se equivocava muito. Devia estar louca, se havia deixado que seu mau gênio transbordasse desse modo. No dia anterior havia tido motivos (ou acreditado os ter), mas esta nova idiotice não tinha desculpas. A gata era tão ardilosa que liberava contra ela uma guerra sutil; quem ia acreditar? Ela mesma teria duvidado se não tivesse visto o modo particular com que Lady Ella agia. E... caramba, outra vez estava inventando desculpas descabeladas. Ninguém em seu são Pégasus Lançamentos

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julgamento podia atribuir motivações humanas a um gato.

Era preciso enfrentar à verdade: estava ciumenta de Lady Ella... mas com razão. O absurdo ultimato que havia exposto a Ranulf demonstrava que a ele interessava mais sua bela gata que sua esposa, pois era ela quem se encontrava ali, nos frios degraus, enquanto o felino recebia seus mimos em uma cama quente: a cama de Reina. De repente se sobressaltou: algo havia roçado sua coxa. Divisou apenas uma sombra pequena e escura, que descia os degraus. Lady Ella? Mas se ela havia fechado a porta do hall... Reina ficou tensa: seu esposo estava de pé no degrau detrás. Havia chegado o momento de desculpar-se, de lhe pedir perdão por sua tolice. Mas não houve palavras que pudessem atravessar sua mortificação. Ao que parecia, estava adquirindo o costume de humilhar-se na presença de seu marido.

Mas desta vez era a pior;

detestava imaginar o que ele devia estar pensando. - Voltará de bom grado ou terei que te levar nos braços? Ela se levantou para enfrentá-lo. Só via sua silhueta, sem expressão que a ajudasse a conhecer seus pensamentos. Tampouco sua voz grave brindava pista alguma. - O que significa isso? - perguntou vacilante. - Significa que você ganhou, general. Preferiria que tolerasse Lady Ella, mas se não pode, não pode. Portanto, a gata dormirá com Lanzo. Reina deveria ter se mostrado magnânima, dizer que não se importava, que ele podia conservar a sua gata onde gostasse. Mas acabava de vencer, e sem culpabilidade masculina para ajudá-la. Valia a pena saborear aquela sensação sem concessões. - Obrigada. - Por quê? Não me deste alternativa. - Ela sorriu para si, pois isso não era do tudo certo. Ranulf poderia levá-la ao quarto a arrastada obrigando-a a aceitar sua vontade sem ter em conta seus sentimentos. - Não está zangado? Ranulf sem responder, colocou-se de um lado para lhe dar caminho. Era melhor Pégasus Lançamentos

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aproveitar a boa sorte e deixar o assunto em paz. Ele não parecia zangado mesmo que tivesse direito a estar. Os homens, em geral, não gostavam de ultimatos. Atou a bata para proteger do frio e subiu um degrau... para encontrar-se elevada nos braços dele. - Não disse ... ? - Cala - interrompeu ele - Não tinha me dado conta de que estava descalça. O que podia responder a isso? Tinha, na verdade, os pés terrivelmente frios. Ele havia tido o bom senso de colocar as meias e os sapatos, enquanto a ela só havia ocorrido recolher a bata. Esse cavalheirismo resultava inesperado, mas agradável. Desfrutaria-a enquanto durasse. Por outro lado, gostava de estar em seus braços. Lanzo continuava dormindo, imperturbável ante as idas e vindas no hall, ali onde estendia seu colchão, todas as noites. Estava habituado a responder quando Ranulf levantava a voz para chamá-lo, mas o amo havia falado em voz baixa. O aposento estava muito mais iluminado que antes, pois a alvorada entregava passo à aurora. Ranulf a deixou ao chegar à cama. Só então estudou seu rosto para averiguar seu estado de ânimo. O enorme sorriso era suficiente explicação. - Então não se zangou. Minha conduta o diverte. Ranulf se sentou junto a ela, mas sem olhá-la; mantinha a vista fixos em seus próprios pés, estirados para frente. - Até agora havia visto as mulheres brigarem e ficarem com ciúmes de mim, mas nunca por minha gata. - Seriamente? - replicou ela, indignada. A gargalhada que ele estava contendo explodiu de repente, fazendo-o cair na cama. Virou-se de um lado para o outro, bramando de rir. Reina procurou com o olhar algo com que o atacar. - Juro - ofegou ele, segurando o ventre sem deixar de rir.- que nunca vi... nem ouvi...... nada tão divertido... como acusar a um gato... de peidar na cara de alguém! Era isso o que ela havia dito? Nem sequer era lógico. Os animais não podiam dominar essas coisas, não mais que os humanos. Pégasus Lançamentos

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- Reconheço que posso ter me apressado ao lançar essa acusação. Deveria ter dito que ela o teria feito deliberadamente, se isso fosse possível. Isso provocou outro paroxismo de risada. Ranulf já chorava. Reina teve que morder o lábio para impedir que se curvasse, pois seu humor a havia contagiado. - Basta, Ranulf - protestou, exasperada. - Comportei-me como uma idiota, sim. Não faz necessário que me lembre isso. - Não, como uma idiota não. - Obrigou-a a deitar a seu lado e se inclinou para ela, sorridente - Esteve absolutamente deliciosa. - E tola - adicionou ela reconfortada pelo olhar dele. - Tola, sim. Sabe que nunca havia rido tanto? Me alegro de que seja tão tola, general. Ela levantou uma mão para limpar as lágrimas das bochechas dele. - Lamento. - O que? - Que tenha tido tão pouco do que rir em sua vida. - Ranulf lhe segurou os dedos e os levou aos lábios. -Cuidado, senhora, ou descobrirá na própria carne o que faço com as mulheres que me mimam por compaixão. - Sei exatamente o que faz - bufou ela - Aproveita-se a fundo de sua compaixão para levá-las a sua cama. Uma vergonhosa tática masculina. - Não mais vergonhosa que as táticas femininas que utilizou ontem, ao supor que eu padecia de remorsos. - Eu jamais... - Mas em meio da negativa, o sorriso de Ranulf provocou outro nela - Com meu pai sempre deu resultado. - Eu não sou seu pai. Ela arqueou uma sobrancelha. - Não se importa não ter paz em sua casa? Reina ficou tensa: ele havia inclinado a cabeça para aferrar entre os dentes a beira de sua bata e a estava abrindo. Se derreteu ante a língua que girava ao redor do Pégasus Lançamentos

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mamilo exposto. Os olhos que se voltaram para ela cintilavam de satisfação masculina. - Acredito ter descoberto um modo mais delicioso para fazer as pazes. - Talvez - reconheceu ela, com um sussurro gutural. Logo se levantou e pode adicionar, indiferente - Mas já estamos em paz. - Não tão cedo - riu ele. Um dedo enganchado no pescoço da bata a obrigou a deitar-se outra vez. Também afastou a bata dos ombros. Agora tinha os dois seios expostos; pela expressão com que Ranulf os contemplava, Reina adivinhou que essa conversa não se prolongaria muito. - Ainda esta zangada que eu tenha procurado Alma? - Reina se debateu, incômoda. - Poderia ter formulado a mesma pergunta a mim. - Teria me dito que te satisfizesse como o fiz? - Não, posto que ignorava que fosse possível. - Eu também. Ele roçou a bochecha com os lábios, seguindo uma trilha para a boca, mas não a beijou. Limitou-se a deslizar a língua pelo lábio inferior, tentador, até que ela se sentiu obrigada a pressionar seus lábios contra os dele. Logo se voltou atrás, sorridente. - Agora me diga se desfrutou. - Tem alguma dúvida? - perguntou ela. - Não, mas quero ouvir de sua boca. Diga, Reina. - Acentuou a exigência com outro beijo, deixando que seus lábios mal pendessem sobre os dela - Diga-o. - Eu... desfrutei. - Se o fizer outra vez, não protestará? - Não foi isso o que disse. Espera, Ranulf! Já é de dia... manhã... bom Deus concluiu, com um suspiro de felicidade.

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C apítulo 32 Reina cortou o último fio e se levantou, estendendo o objeto terminado para sua última inspeção. E teve que sorrir. Ao debruar o veludo azul com bordas de brocado de seda cor marfim, havia obtido uma bata digna de um rei. Restava por ver se seu esposo aceitava usá-la, e não só porque ele não estivesse acostumado a usar bata, mas sim porque toda sua roupa era opaca: simples objetos de lã ou linha, sem adornos e quase sempre necessitadas de algum conserto. Não podia acusá-lo de ostentoso nem de exibicionista, embora estava, desde fazia tempo, em condições de gastar muito mais em roupas. O fato de que preferisse trajes simples dizia muito em favor de seu caráter. Ao costurar aquela bata, ela havia se permitido um luxo, posto que só ela e os poucos serventes que entravam no quarto o veriam usá-la. O resto do novo guardaroupa que pensava fazer para seu esposo seria de boa qualidade, mas mais modesto... ao menos enquanto ele não se habituasse a idéia de que os ricos lordes do reino deviam mostrar-se elegantes e apresentar um melhor aspecto que o de seus vassalos. Enquanto costurava o veludo, os comentários que recebeu das damas mais velhas foram picantes, os habituais nesta situação para qualquer recém casado, e ela os aceitou desse modo. - Está seguro de querer cobrir com isso ombros tão magníficos? - O que quero é lhe tirar a bata, não colocá-la. - Lamentará, se fizer como meu William e decidir dormir com ela - disse Lady Margaret. - Se não está habituado a usar bata, por que mudar algo tão bom? O que elas não pareciam compreender (e Reina não estava disposta a explicar) era que ver um corpo como o de Ranulf passeando nu pelo quarto, fazia estragos no equilíbrio de uma mulher, ao menos no seu. Quando ele estava nu, Reina cometia Pégasus Lançamentos

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estupidezes, como olhá-lo fixamente com descarada falta de tato, ou acusar de más intenções a uma pobre gata. Não passaria muito tempo sem que ela sucumbisse aos impulsos sensuais que aquela pele dourada provocava nela: queria tocá-lo, acariciá-lo, degustá-lo, ainda que ele não o mandasse, e então, o que pensaria ele? Depois de tudo, o fato de que Ranulf fizesse amor com tanta freqüência era só o cumprimento de um trato. Isso terminaria assim que ela ficasse grávida. Vesti-lo em uma bata era um seguro contra a tentação. Garantia que ela não ficasse desolada pela perda de seu corpo, quando chegasse o momento. Se ele tivesse continuado como no começo, tal problema não teria existido. Mas suas novas técnicas a tinham cativado. Deus, quão cativada! E ele sabia. Além disso, mostrava-se doce e encantador em seu prazer por tão grande façanha, reação tipicamente masculina, provavelmente, como a do menino que obtém sua primeira vitória contra obstáculos insuperáveis.

Portanto,

a

ela

correspondia

fazê-lo

acreditar

que

mantinha,

basicamente, sua indiferença. Pelo menos, devia salvar seu orgulho. Reina segurou a peça terminada para levá-la a seu quarto. Deixaria na cama, para que Ranulf a visse. Era de esperar que se sentisse obrigado a usá-la, pois havia sido costurada especialmente para ele.

Caso contrário, Reina se encarregaria de

provocar correntes de ar no quarto, retirando algumas tapeçarias. Um pouco de frio frearia seu impudor. - Em seu lugar, pensaria melhor - pronunciou lady Hilary, com voz monótona, provocando uma risada travessa entre as mais jovens. Reina sorriu de seu pesar. Se as circunstâncias de seu matrimônio tivessem sido outras, teria pensado melhor, sim. Mas dificilmente poderia esquecer que havia sido preciso quase retorcer o braço de Ranulf para que aceitasse desposá-la. E quanto a suas novas habilidades amorosas, as quais estava tão orgulhoso, sem dúvida iria preferir praticá-las com alguma outra. - Se vê obrigada a lhe dar de presente uma bata, perca a sua - sugeriu Florette, muito séria - Desse modo ele não usará a dele com muita freqüência. Por fim conseguiram provocar o rubor que procuravam. Mas antes que Reina Pégasus Lançamentos

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pudesse pronunciar uma resposta adequada, Wenda apareceu no vão da porta e interrompeu as alegres risadas. Vinha exausta, com uma mão no peito, sinal de que havia chegado a toda carreira. Tampouco perdeu o tempo em rodeios, uma vez teve recuperado o fôlego. - Milady, será melhor que venha o quanto antes. Retornaram os cavalheiros de lorde Ranulf, e dois deles estão feridos gravemente. No quarto de trabalho se fez o silêncio. O coração de Reina havia dado um tombo ante as primeiras palavras, pensando que Ranulf havia sofrido algum percalço. Não poderia explicar o porquê dessa reação, mas ao recuperar a cor também recuperou a eficiência de sua mente. - Hilary, Florette, venham comigo. - Jogou a bata a Wenda - Coloque isto em meu quarto quando for procurar meus medicamentos. Margaret recolha o que achar necessário e reúna comigo abaixo. Elaine envie alguém em procura de meu senhor. Não podemos aguardar sua volta. - Onde está? - Na aldeia, conforme acredito. -«Pagando uma fortuna a Alma, a Ruiva», adicionou para si mesmo, pois não estava segura de que Ranulf tivesse brincado ao assegurar que os conselhos da mulher valiam seu peso em ouro - Florette? A jovem viúva não havia se levantado para reunir-se com ela; pelo contrário, ainda olhava Wenda com o semblante pálido. - É... Sir Walter está entre os feridos? - Não sei, senhora - respondeu Wenda - Ainda estavam os levando ao torreão quando o mestre Gilbert me enviou em busca de Lady Reina. Essa resposta não melhorou a cor de Florette; Reina teve que perguntar-se se a encantadora morena sentia certa ternura por Walter de Breaute. Obviamente, seus próprios problemas a haviam feito perder o contato com o que acontecia em sua casa. Nem sequer sabia que os homens de Ranulf tinham abandonado Clydon esse dia. - Talvez seja melhor que permaneçam aqui Florette - sugeriu, decidindo que a mulher só serviria de estorvo se Sir Walter estivesse entre os feridos e ela o amasse Pégasus Lançamentos

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- Margaret pode...

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- Não. Preciso saber. - Por certo, mas... - OH, por favor, senhora - insistiu Florette - Foi só a surpresa. Já estou bem. Reina vacilou, mas acabou por assentir e abandonou o quarto de trabalho. Ainda antes de chegar ao salão ouviu os xingamentos que Searle de Totnes lançava contra os homens que o levavam. Havia recebido um golpe de picareta na coxa e, embora a cabeça metálica houvesse sido extraída, ainda tinha cravados na ferida pedaços de suas calças de malha, que se moviam com cada sacudida. Entretanto, sua voz revelava que seu estado não era tão grave como Wenda havia dado a entender. Walter, pelo contrário (em efeito, ele era o outro ferido), estava inconsciente. Não tinha boa cor e sangrava por mais de uma ferida. Seguia-os Eric Fitzstephen. Reina lhe dirigiu as perguntas para as quais requeria resposta, enquanto os portadores depositavam os cavalheiros em alcovas separadas, contíguas ao salão. - Quanto faz que Sir Walter está sangrando? - Muito tempo - replicou Eric, com voz rouca de preocupação - Recebeu um talho no lado logo no inicio da briga, mas continuou combatendo. Estávamos a boa distância de Clydon quando nos emboscaram. - Caiu do cavalo ao receber essa ferida na cabeça? - perguntou ela - Devo saber se tem feridas internas. - Não, não há costelas fraturadas nem nada parecido. Nenhuma das duas feridas o derrubou. Foi ver seu próprio sangue, quando tudo terminou, que... - Compreendo - interrompeu Reina, assumindo que a um cavalheiro resultava difícil falar do desmaio de um par - Sabe quem o fez? - Estávamos na rota do bosque, milady. Provavelmente isso explicava. - Muito bem. Mandei procurarem Ranulf. Faça com que uma de minhas damas atenda esses arranhões antes que ele chegue, pois quererá escutar um relatório Pégasus Lançamentos

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completo do ocorrido.

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Achou a Florette inclinada sobre Walter, na alcova onde o haviam posto. Estava outra vez muito pálida, mas em atividade. Retirava com cuidado as ataduras improvisadas que haviam posto na cabeça. - Deixe isso - disse Reina enérgica - Aí a hemorragia cessou, mas no lado ainda continua. - Não... morrerá, senhora? - Não cometerá semelhante tolice - pronunciou Reina; entretanto, não podia assegurar enquanto não visse as feridas. O mais difícil foi retirar a pesada armadura de Walter para chegar à ferida. Foi necessária a colaboração de dois homens para conseguir, movendo-o o menos possível. Em seguida cortaram suas roupas com celeridade, deixando exposta sua ferida. «Muito tempo» havia dito Eric. E não era exagero. Walter tinha todo o lado esquerdo vermelho e ensopado até as botas; a ferida, desigual, ainda gotejava. A arma, qualquer que fosse, havia atravessado a cota de malha justo por debaixo da costela inferior, mas em vez de penetrar no corpo para causar a morte, havia sido desviada pela costela, depois rasgou a carne em diagonal. Era profunda, mas não parecia tão grave; ao menos, não o teria sido se tivesse fechado a tempo. Agora o perigo era que tivesse perdido muito sangue e ficasse muito fraco para lutar contra a infecção. Reina trabalhou depressa; limpou a ferida e aplicou um ungüento para deter a hemorragia. Deixou que Florette fizesse a sutura enquanto ela se encarregava da ferida da cabeça. Era só um pequeno corte na pele, mas abaixo havia um enorme galo. Isso se poderia evitar com um elmo. Walter teria uma forte dor de cabeça durante muitos dias, o que o ensinaria a não sair novamente de Clydon sem elmo. Walter não despertou nem por um momento, o que foi uma sorte, pois havia muitos pontos de sutura a aplicar. Em troca, não resultou fácil fazê-lo engolir o tônico que Reina preparou. Ela deixou que Florette se encarregasse disso, enquanto ia Pégasus Lançamentos

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verificar o estado do cavalheiro mais jovem.

As potentes queixas de Searle, que se tornavam mais estrondosas ante os cuidados de Hilary, ouviam-se claramente no quarto vizinho. Só quando a dama terminou a metade sossegaram. Mas ao ver Reina, o cavalheiro voltou a elevar a voz. - É cruel, senhora, por ter me enviado esta bruxa. - Essa bruxa tem mãos mais suaves que as minhas, senhor; agradeça que eu estava muito ocupada com sir Walter e não puder atendê-lo pessoalmente. Isso o fez calar-se e provocou uma risada afogada na corpulenta dama, que comentou: - Nem os meninos armam tanto animação por uma espetada! - Uma espetada! - Searle esteve a ponto de engasgar-se. - Só três pontos de sutura, senhora - informou Hilary. - Tão poucos? Sir Walter acaba de receber quase vinte. Ouviram-no por acaso gritar pedindo misericórdia? - Reina sorriu, compadecida do jovem, que tinha ruborizado - Estamos brincando, Searle. Às vezes gritar alivia a dor. Deveria ter ouvido meu pai quando cravava um simples estilhaço no pátio de exercícios. Para poder tirar tínhamos que nos encher as orelhas de panos. - Walter está ... ? - Não se preocupe. Ainda está inconsciente, mas neste momento é o que lhe convém. Suas feridas não são tão graves como parecia, mas serão muito dolorosas quando despertar. Agora beba isto. - Estendeu a ele uma beberagem de papoula branca, mesclada com vinho quente - Aliviará a dor e o fará dormir, que é o que também lhe convém. - Mas Ranulf... - Eric responderá a suas perguntas. Nesse momento se abriu violentamente a porta da alcova vizinha. Searle se apressou a engolir sua beberagem. - Em quanto tempo fará efeito? Reina o olhou franzindo o cenho. Pégasus Lançamentos

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- O que lhe ocorre?

- Ficará furioso. Preferiria estar dormido quando se enfurecer. - Mas que motivos têm para zangar-se? A menos que vocês três tenham agido mal. Foi assim? - Temos um morto e dois feridos. Eles eram só quinze. Deveríamos ter feito melhor papel, senhora. - E vós, quantos eram? - Seis. Reina lhe cravou um olhar de desgosto. - Durma, Hilary cuide para que o senhor, meu esposo, não entre bruscamente a lhe perturbar. - Não é pouco o que pede milady. Hilary também recebeu um olhar de desgosto por esse desnecessário sarcasmo. - Muito bem, eu mesma me encarregarei. - E Reina se retirou, murmurando Jesus, três a um parece boa proporção? Por acaso Ranulf pensa que todos seus homens são gigantes como ele? Eric estava apoiado contra a parede, ante o quarto de Walter, débil; ao que parecia, já havia contado a Ranulf o ocorrido. A porta seguia aberta, e Reina vacilou ao ver Ranulf dentro. Estava junto à cama de Walter, contemplando-o com o corpo tão tenso que parecia feito de pedra: os músculos avultados, os punhos fechados contra o flanco. Ela não pode ver sua expressão, mas sem dúvida estava furioso, posto que houvesse assustado Florette ao ponto de fazê-la abandonar seu paciente: ela também esperava fora do aposento. Quando Reina chegou a seu lado, ele não se moveu nem desviou os olhos para olhá-la. - Não é possível que esteja furioso com ele por ter sido ferido, Ranulf. Acha que o fez de propósito? - O muito tolo sabia que ia cruzar os bosques, senhora. Sabia que esse lugar fervia de bandidos. Entretanto, só foi com três homens de arma. Pégasus Lançamentos

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- Mas também os acompanhavam três cavalheiros bem armados. Os foragidos raramente atacam viajantes partem em grupo e armados. - Desta vez o fizeram. O que cabia replicar? Ele tinha motivos para estar zangado. Mas quando a olhou, não foi raiva o que ela viu em seus olhos, mas sim um medo profundo, terrível. - Senhora, por favor, não o deixe morrer - disse, com sincero pesar - Se o ajudar a recuperar-se, contará com minha mais profunda gratidão. Reina sentiu um nó na garganta. Experimentava o irresistível impulso de abraçálo e assegurar que não havia nada que temer. Mas a compaixão e os consolos vácuos não eram modo de tratar com aquele homem. - O que está pensando, senhor? - exclamou, com voz deliberadamente severa Por muito que eu gostasse de contar com sua obrigação em momentos que assim me conviesse, devo dizer que De Breaute não vai morrer... Suas feridas são leves comparadas com algumas que vi. - Nesse caso, por que não acorda? - Porque lhe dei algo para fazê-lo dormir, e também a Sir Searle. É a melhor maneira de recuperar forças depois de ter perdido sangue. Mas nenhum dos dois está tão gravemente ferido que não vá protestar pelo longo repouso ao qual os obrigo. Não estava segura de que seu esposo acreditasse, mas após um instante ele assentiu secamente e saiu da alcova. Reina suspirou, mas o alívio durou pouco. Ao olhar Walter comprovou que ainda estava horrivelmente pálido. Não era de estranhar que Ranulf o tivesse acreditado moribundo. - Será melhor que me escute, De Breaute. - inclinou-se para o ferido para sussurrar asperamente ao seu ouvido - Se me faz ficar como mentirosa morrendo, passarei o resto de minha vida rezando para que passe a eternidade apodrecendo no purgatório.

Não sei por que estúpidos motivos, mas ele te quer.E por ele se

recuperará muito em breve. Se ele a escutou ou não, Reina se sentiu melhor por havê-lo dito. Florette ainda rondava a porta, ansiosa, de modo que Reina a fez passar; deuPégasus Lançamentos

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lhe instruções para que vigiasse a febre e a mandasse chamar ao primeiro sintoma. Ao jogar uma olhada no salão, descobriu que Ranulf estava outra vez conversando com Eric, mas só ouviu o final do diálogo ao aproximar-se. - Envia um mensageiro de confiança ao castelo de Warhurst. Diga que poderá capturar os foragidos se enviar atrás deles uma força numerosa amanhã ao romper o alvorada. - É certo? - Sim. Depois de que os persiga até colocá-los em nossas mãos, poderá ficar com o que deles subtraia para fazer sua vontade. Reina se afastou sem que Ranulf a visse. Era lógico que não reparasse nela, posto que só pensasse em derramar sangue. Nunca o havia ouvido falar nesse tom, mas quaisquer fossem seus planos para o dia seguinte, preferia não conhecê-los. Quase compadecia dos foragidos, mas deveriam ter sido eliminados tempo atrás.

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C apítulo 33 O céu tormentoso reduzia o calor, mas em nada aliviava a impaciência de Ranulf, enquanto avançava a manhã. Havia saído de Clydon na escuridão, ao meio da noite e em pequenos grupos, a intervalos. Outra precaução foi cavalgar primeiro para o sul e logo retornar rodeando os bosques, a fim de que o retiro não fosse descoberto. Ranulf havia tomado os sessenta e oito cavalos existentes em Clydon, incluído o melindroso palafrém de sua esposa. Mesmo assim, alguns homens tiveram que montar de dois em dois, a fim de que os cem convocados pudessem acompanhar Ranulf até onde ele desejava antes de romper a alvorada. Eric e Sir Meyer se encaminharam para o leste, com a metade dos homens; Ranulf continuou pela linha ocidental dos bosques. O fato de não conhecer o terreno não foi obstáculo, ao menos no limite do oeste. O arroio que corria paralelo ao bosque, ao longo de uma légua, formava uma ravina baixa que serviria para ocultar os cavalos, ainda disseminados para vigiar os pontos por onde pudessem sair os proscritos. Precisavam permanecer escondidos para aproveitar a surpresa. Só restava esperar que Eric tivesse achado um amparo parecido. Entre o bosque e o arroio havia um largo semeado de aveia de pouca altura; não ofereceriam cobertura alguma aos foragidos, uma vez os apanhasse no meio. Segundo um dos homens de Clydon, o campo de aveia pertencia à viúva de Burgh, Ranulf não se importava semear de cadáveres e pisotear as tenras plantas. Até havia pensado enviar um homem à casa solar, a fim de recrutar todos os homens que a viúva pudesse prescindir; mas decidiu não fazê-lo. No caso de que lorde Rothwell decidisse ir ver o que havia sido de sua noiva ou se havia novos problemas com Falkes de Rochefort, então seria chegada a ocasião de convocar seus vassalos. - Terá saído algo errado, Ranulf? - perguntou Kenric, a seu lado - Talvez os homens de Warhurst tiveram sorte, por uma vez, e os apanharam. Pégasus Lançamentos

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Ranulf se limitou a grunhir, pois a ele havia ocorrido o mesmo. Os bosques mediam só umas quantas léguas de largura: quanto podia demorar em sair um homem que corria para salvar a vida? Claro que aqueles foragidos tinham astúcia. Nesse mesmo instante podiam estar no limite do bosque, atentos a qualquer armadilha, antes de decidir-se a correr para o oeste. E então viu um movimento, embora demorasse um momento em assegurar-se. Por isso aqueles homens haviam evitado a captura durante tanto tempo, sem cavalos e vestidos com as cores do bosque, podiam confundir-se facilmente com a folhagem circundante; até deviam resultar invisíveis na copa de uma árvore. Se os perseguidores não eram muitos, não havia motivos para sair do todo. Warhurst devia ter enviado uma patrulha tão numerosa que estavam nervosos e se arriscavam a sair. Os homens já eram dois; agora, três. Não tinham pressa. O primeiro se virou para dizer algo a seus camaradas, enquanto outros saíam dos bosques. Se haviam se espalhado para fugir dos soldados de Warhurst, obviamente haviam voltado a reunirse antes de arriscar a sair para campo aberto. Era mais do que Ranulf podia pedir. Havia temido que saíssem de um em um, pois desse modo só poderia capturar um punhado antes que os outros percebessem e voltassem a perder-se entre as árvores. Ranulf deu a ordem de preparar-se, embora ao bando de proscritos que cruzava o semeado não podia passar inadvertida. Agora somavam quase cinqüenta, o que agradou Ranulf. Trinta e quatro de seus homens sairiam ao encontro deles. Outros estavam apostados com molas, para abater aos que ficasse ao seu alcance. Ranulf não tinha intenções de perder um só; portanto, primeiro devia lhes cortar a retirada para os bosques. O que seguiu foi uma farsa que teria podido enojar um guerreiro curtido. O elemento surpresa deu resultado. Ao ver que uma fileira de cavaleiros carregava desde o aterro, diante deles, os proscritos ficaram boquiabertos durante intermináveis segundos; logo deram a volta e puseram-se a correr. Os alcançaram um pouco mais à frente do meio do campo, o que os fez perder a coragem, pois os bosques estavam muito longe. Pégasus Lançamentos

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Vários foram derrubados no caminho, mas quando Ranulf se virou para trás se encontrou com todo o bando prostrado; todos haviam jogado suas armas e gritavam pedindo trégua, como se fosse uma artimanha bem ensaiada. Ranulf se desgostou, mas não restava nada senão aceitar a rendição, a menos que desejasse iniciar um verdadeiro massacre. Entretanto, não retrocederia na vingança que procurava. Eric havia dito que cinco bandidos haviam abandonado a luta para perder-se no bosque ao ver que estavam sendo derrotados. Faria enforcar a esses cinco e o chefe do bando. Os outros poderiam voltar para Warhurst. Ranulf desmontou e fez sinal ao mestre Scot, para que fizesse o que desejava. Não teve que esperar muito, mas o corpulento mestre de arma retornou com um só homem. Raspada a mandíbula quadrada, bigode talhado e cabelo castanho ainda mais curto que o de Ranulf, não se parecia com o foragido que imaginava. Nada em seu aspecto indicava que vivesse à intempérie. Não estava sujo, suas roupas eram pulcras e, embora um momento antes houvesse pedido piedade a gritos, como os outros, em seu olhar não havia medo algum; até era muito direto. - Diz ser o chefe - informou o mestre Scot, embora Ranulf já houvesse chegado a essa conclusão. - Sabe quem sou? - perguntou ao proscrito. - Ocupo-me de conhecer todos meus vizinhos e de saber a que se dedicam, lorde Fitz Hugh: tanto os novos como os velhos. - Isso indicaria que possui algum grau de inteligência. Mas se o possuísse, teria observado e esperado até conhecer minha disposição antes de atacar os meus replicou Ranulf, áspero. - Isso fiz. Meus homens vigiavam Clydon e os dois caminhos que conduzem a seus portões. Os homens que atacaram seus companheiros não eram de meu grupo. Seguiram os seus desde o local de onde partiram, e esperaram até que entrassem no bosque para atacá-los. - Seguiram-nos a cavalo e atacaram desmontados? - burlou Ranulf. E adicionou, em voz baixa e mais ameaçadora - Não pense que sairá livre apenas contando fábulas. Pégasus Lançamentos

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Se soubesse de onde vinham meus homens, não tentaria dizer que os culpados saíram dali. - Vinham pelo estreito caminho que leva desde a casa solar de Keigh a Warhurst ou a Clydon sem dar uma volta de várias léguas pela rota oeste. E por ali vinham os seus e os que os seguiam. Isso sei, porque um de meus homens, que estava caçando na zona, os viu afastarem-se do caminho. Se seus companheiros vinham de Keigh ou de mais à frente, como dizem, não o sei. Mas o caminho do bosque não descreve uma linha reta, lorde Fitz Hugh. Descreve muitas curvas para evitar as árvores mais antigas. Segundo meu homem, os que seguiam os seus se mantinham entre as árvores; quando chegaram à curva mais fechada, cortaram caminho para adiantar a seus homens, deixaram seus cavalos ocultos na mata e saíram a interceptá-los. É irracional atacar desmontados, tal como pensaste, sobre tudo contra cavaleiros... a menos que se queira que a culpa recaia sobre outros, sobre alguém que não possui cavalos. - Vocês? - Vejo que ainda duvida, mas o senso comum ordenava uma emboscada melhor. Ao longo da rota há vários pontos aonde a folhagem das árvores é densa. Eu teria disposto meus homens ali, a ambos os lados do caminho e até dispersos ao longo das matas que o cruzam, para que caíssem na armadilha por todos os lados; desse modo tudo teria acabado cedo e com êxito assegurado. Pergunte a seus homens; eles dirão que tudo aconteceu de modo muito diferente. Teria sido fácil dar a volta e fugir em vez de lutar. - John! - uivou Ranulf. Os homens de arma que haviam acompanhado Walter no dia anterior estavam a pouca distância; Ranulf não teve que formular a pergunta. - É certo, senhor. Chegaram à carreira, todos juntos, de um mesmo lado da rota, tivemos tempo suficiente para nos desviar a fim de evitá-los. Agora que o penso, não foi ataque digno de homens supostamente destros no assalto. - Onde está o homem de Clydon? - perguntou Ranulf. - Aqui, milorde. Pégasus Lançamentos

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- Chama-te Algar? - Ante o gesto afirmativo, Ranulf perguntou - O que pensa da historia deste bandido? - Que é certo o que diz de seus métodos. Em todos os assaltos dos quais tivemos notícia, as vítimas asseguravam que os bandidos os haviam rodeado em segundos, caindo até do céu. Estranha vez tinham tempo para brandir uma arma. Nós, em troca, tivemos tempo demasiado para isso. - Poderiam ter sido seguidos da casa solar de Keigh sem sabê-lo? - Sim - admitiu Algar, um pouco relutante - Na realidade, nenhum de nós prestava muita atenção à rota. Estávamos rindo tanto que não teríamos ouvido nenhum perseguidor. - Se explique. - Sir Searle ficou cegado pela viúva; seus outros dois cavalheiros o enchiam de sarcasmos, sobre tudo porque a dama não correspondia ao seu interesse. Ranulf nem sequer havia lembrado-se de perguntar como haviam sido recebidos em Keigh Manor. O motivo daquela visita havia ficado esquecido à luz do ataque sofrido à mãos dos proscritos... se eram proscritos quem haviam atacado. - Como encontraram Lady Burgh? - Agora que menciona milorde, comentei com Wat, que Deus o receba em seu seio, que a senhora parecia mudada desde a última vez que a vimos em Clydon. - Em que aspecto? - Mostrava-se cortês, mas bastante fria. Sendo uma mulher necessitada de marido, restava esperar que recebesse de bom grado três arrumados cavalheiros, mas se alegrou mais de vê-los partir. - Disseram-lhe eles a que foram? - Sir Searle deve ter dito. Como comentei, estava deslumbrado. - Por acaso insultou à senhora? - Com suas declarações de amor eterno? - Falta-lhe algo de tato - soprou Ranulf - Mas o que tinha a dama contra Eric e Walter? Por acaso eles também se mostraram ofensivos? Pégasus Lançamentos

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- Absolutamente. Por isso me chamou a atenção a atitude da senhora. - Te ocorre algum motivo pelo qual possa ter se comportado assim? - A mim sim - disse o proscrito, sem vacilar em atrair outra vez a atenção de Ranulf. Continuou: - Segundo rumores, Louise de Burgh pôs seus afetos em William Lionel, um cavalheiro de sua casa. Se tiver um esposo em vista, pode receber de bom grado outros candidatos? - Como sabe isto? - interpelou Ranulf. O homem encolheu de ombros. - Temos nossos meios para averiguar. Assim soubemos de sua chegada e também quem era os que fizeram fugir de Clydon aquela manhã. - Já sabemos quem foi o atacante de Clydon. - Sabe, milorde? Aquilo foi dito em um tom como para não deixar dúvidas: o proscrito sabia algo que Ranulf ignorava. E o cavalheiro jamais gostou servir de brinquedo. Em um abrir e fechar de olhos segurou o homem pelo peitilho de seu espartilho de couro e o levantou até a altura de seu rosto. - Faria bem em falar imediatamente, antes que eu lembre para que o fiz trazêlo. - Fugiram para Warhurst! - Mente - vaiou Ranulf - Sei de boa fonte que o castelão de Warhurst é um imbecil. Não o demonstrou ao dar por certo a mensagem que lhe enviei ontem à noite, agindo conforme ele sem saber de quem provinha? Assim o indica o fato de que estejam aqui. - É como diz, senhor. Mas o lorde do castelo não é imbecil. E lorde Richard esteve em Warhurst toda essa semana. Também na rota, essa manhã, com uma tropa numerosa. Nem ele nem seus homens usavam suas cores. Eu mesmo o vi retornar a Warhurst, com uma ferida no ombro direito. Dificilmente posso confundir o homem que me converteu em proscrito, só porque desejava minha esposa. Pégasus Lançamentos

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Ranulf o depositou lentamente na terra. Logo, para desconcerto de seus homens e seus prisioneiros, explodiu em uma gargalhada. Era possível que seu general se equivocou tanto ao escolher esse personagem como candidato a esposo? Era possível que o pombinho de senhor feudal tivesse cometido o engano de pretender apoderar-se dela pela força, ignorando que ela o desejava por marido? Pelos cravos de Cristo, essa sim que era boa!... se fosse verdade. Dominando-se ao fim, cravou os olhos no proscrito. - É uma autêntica fonte de informação, mestre bandido. O homem se ergueu em toda sua estatura; a cor ia voltando para as bochechas. - O que sei da viúva de Burgh são só rumores e hipóteses. É jovem; em muitos aspectos segue sendo uma menina. Eu seria o primeiro em duvidar que ela tivesse enviado seus homens depois dos seus. Entretanto, sei com certeza que meus homens não participaram e que os atacantes vinham da zona de Keigh Manor. A solução é simples, sem dúvida, só que eu não a tenho nem pretendo conhecê-la. Entretanto, o que sei de Richard de Warhurst é verdade. - Assim diz, mas você mesmo admitiu ter bons motivos para manchar seu nome assinalou Ranulf. - Tenho, como todos os homens que me acompanham. O pai desse homem é poderoso; por isso ele se considera acima da lei. Em Warhurst é assim, pois ninguém pode contradizê-lo. Quem o tenta não demora para unir-se a nosso bando. - Por acaso todos são de Warhurst? - Sim. Fomos expulsos sem ser ouvidos e nos separou de nossas famílias. Se não o fez lorde Richard, fez seu castelão ou esses gordos mercadores que lhe caem em graça, pois imitam sua maneira de agir; acusam falsamente qualquer um só porque cobiçam seus pertences ou, simplesmente, porque não lhe tem simpatia. Pode comprovar quanto lhe disse interrogando qualquer pessoa de Warhurst. - Se assim for as coisas, por que não procurastes justiça na corte do condado? - Contra um senhor feudal, que ainda tem a nossas famílias entre suas muralhas, submetidas a seus caprichos? Pégasus Lançamentos

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Ranulf emitiu um grunhido, pois conhecia de primeira mão o poder desses pequenos tiranos. Montfort era um deles. - Você não é um plebeu qualquer. O que fazia em Warhurst? - Trabalhava como escrivão de lorde Richard - replicou o homem, descontente Nem sequer o fato de que eu conhecesse seus ganhos ilícitos o impediu de se livrar de mim. Ranulf arqueou uma sobrancelha. - Ganhos ilícitos? Gado e ovelhas roubadas, por exemplo? - Sim, entre outras coisas. - Gado e ovelhas roubados de Clydon, por exemplo? - especificou Ranulf. - Não sei de onde provinham os animais, mas os levava ao norte para vendê-los. - Me diga uma coisa mais - pediu Ranulf- por que em Clydon ninguém suspeitou da tirania deste pequeno senhor, se são vizinhos tão próximos? - Como podiam suspeitar? A senhora não tem necessidade de freqüentar os mercados de Warhurst; os mercadores de sua própria Birkenham a provêem de tudo; por isso não ouviu nenhuma queixa. Mas lorde Richard visita Clydon com freqüência e, fora de seu pequeno reino, converte-se em outro homem. É capaz de enganar qualquer um que não o conheça e fazer acreditar que não tem no corpo um pingo de maldade. É jovem e ardiloso; só é lorde de Warhurst há quatro anos. Se a senhora e seu pai tivessem ouvido algum rumor contra ele, teriam se apressado a defendê-lo. Você mesmo duvidará do que lhe disse quando o conhecer, pois provoca esse efeito nas pessoas: parece digno e virtuoso, embora seja tudo o contrário. - Não preciso conhecê-lo para duvidar de ti, homem. Tudo o que disse é matéria de duvida. Ou supunha que eu aceitaria cegamente a palavra de um proscrito como verdade divina? Mas seu relato faz que te libere da forca durante um tempo, ao menos até que eu fale com Lady de Burgh para averiguar o que sabe disto. Se comprovar que não me causaste dano algum, então investigarei o resto.

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C apítulo 34 Louise de Burgh, de pé na soleira de seu salão, presenciava com horror a chegada de cavaleiros e mais cavaleiros que cruzavam suas portas para amontoar-se no pátio interior. Se havia anunciado a chegada de lorde Fitz Hugh, mas era muito tarde para que ela pudesse fechar os portões. Agora compreendia que com isso não teria podido detê-lo: seus homens continuavam entrando, cinqüenta, sessenta, mais, e entre eles o gigante, ao lombo de seu inquieto, e enorme cavalo de combate. Olhava-a de frente. Só pode reconhecer um dos homens: Sir Eric Fitzstephen. Esse, ao menos, não havia morrido.

Mas e os outros dois visitantes do dia anterior? Significava sua

ausência que não haviam sobrevivido à emboscada? Que loucura havia cometido! Havia se arrependido muito pouco depois de mandar seus homens ao ataque. Enviou outro para que os detivesse, mas era já muito tarde. E agora, seu senhor feudal vinha cobrar vingança. E tudo era culpa de Searle de Totnes, maldito caipira. Se ele não tivesse dito que bastava pedi-la a lorde Ranulf para que ele a desse como esposa, adicionando que pensava pedir, ela não teria cometido semelhante estupidez. Claro que também era culpa de William, por mostrar-se tão relutante a desposá-la. Searle de Totnes não a teria alterado tanto se a tivesse conhecido casada. Mas não podia culpar William: amava-o. Com um pouco de tempo o teria convencido de que formavam um casal ideal. Agora era muito tarde. Ou não? Lorde Fitz Hugh se apresentava com um pequeno exército, mas como podia saber o que havia ela feito? Como, se ela não confessou? Tampouco os poucos homens que retornaram de seu ataque do dia anterior admitiriam sua culpabilidade. E William, a quem o maldito sentido da honra poderia ter obrigado a atuar, não sabia de nada. Acabaria com que ela... Pégasus Lançamentos

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- Louise de Burgh?

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Estremeceu. Ele não havia desmontado; nem sequer havia se incomodado em aproximar-se. Sua voz ressonou no pátio como uma trompetista. Teria que gritar para responder ou aproximar-lhe, preferiu não fazer uma coisa nem a outra. No momento, limitou-se a assentir com a cabeça. - São estes seus homens, senhora? Louise jogou uma olhada a seu redor: todo mundo havia saído a contemplar o novo senhor de Clydon, inclusive os serventes. Mas não havia nada que temer, certamente; ao menos, assim acreditavam eles. Também William estava ali, com os homens de arma, o cenho franzido ante a atitude de lorde Fitz Hugh. Esses eram os homens aos quais Fitz Hugh fazia referência. Só ficavam doze, pois no dia anterior haviam caído dez. Antes que pudesse assentir, em resposta à pergunta, lorde Ranulf interpelou: - Quem de vós é William Lionel? Então Louise desceu os degraus a toda carreira. - Para que procura Sir William? – gritou - Ele nem sequer estava aqui o... ontem... Era muito tarde para retirar as palavras que praticamente a condenavam, a julgar pelo olhar de lorde Ranulf. Por fim desmontou. Louise empalideceu ao ver a estatura daquele gigante que ia para ela.

Quis pôr-se a correr, mas o terror a

paralisava. - Teria jurado que não era sua culpa, senhora. Quando Eric sugeriu que, provavelmente, seu homem Lionel teria atuado por conta própria para eliminar a seus competidores, me senti inclinado a acreditar assim, embora ele não lembrasse ter sido apresentado a esse homem. Para Ranulf havia sido uma surpresa ver Eric aparecer no momento em que ele, depois de despachar a metade de seus homens com o grupo de prisioneiros, rumo a Clydon, preparava-se para cavalgar com o resto para a casa solar de Keigh. Eric observou que não tinha sentido que ele seguisse esperando a saída dos foragidos pelo Pégasus Lançamentos

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leste do bosque, posto que a patrulha de Warhurst acabasse de aparecer por ali. Portanto, foi diretamente com seus homens reunir-se a Ranulf. Após ouvir a história do foragido, apressou-se a defender à viúva. «É muito bela - havia dito - Se Searle não tivesse sucumbido tão cedo às flechas de Cupido, eu mesmo teria lhe pedido isso. Qualquer um poderia assassinar por ela, e esse cavalheiro amante sem dúvida viu perigar suas possibilidades ao averiguar o porquê de nossa visita.» Agora Ranulf se arrependia de ter lhe dado ouvidos. Deveria ter confiado em seu instinto, que duvidava acima de tudo de qualquer dama, simplesmente porque todas eram traiçoeiras e mentirosas. E ela era linda: sedosa cabeleira de trigo, olhos como safiras, juventude e medo... Justificado. Correspondia enforcá-la, mas a general se oporia. - O que ocorre aqui, lorde Fitz Hugh? Ranulf, ao virar, encontrou-se ante o cavalheiro que lhe havia chamado a atenção anteriormente. Supôs, sem equivocar-se, que se tratava de Sir William Lionel. Era alto e arrumado, de cabelo negro e doces olhos cinza, não lhe custaria inspirar paixão a uma jovem solitária. Restava resolver quem desejava a quem. - Sua senhora decidiu que tinha muitos pretendentes e que correspondia matar alguns - replicou Ranulf. - Sua acusação é grave, senhor. - De qualquer modo, ela é a responsável. - Não enquanto não o demonstre, e eu serei seu campeão para dirimir a questão. Isso despertou imediato interesse em Ranulf. Olhou ao homem com mais atenção. Não estava mal: media quase um metro oitenta, era corpulento e mostrava disposição. Depois de haver passado a metade da noite e toda a manhã esperando o combate, Ranulf se sentia frustrado. Talvez aquela fosse sua oportunidade. - Contra mim? Houve um coice de surpresa, mas Sir William se repôs imediatamente e assentiu secamente. O sorriso de Ranulf foi lento e arrepiante pelo que sugeria. Lady Louise se Pégasus Lançamentos

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apressou a romper em lágrimas e jogou os braços ao pescoço de William. - Não pode lutar contra ele! Por favor, William! Não fiz nada, ao menos ele não pode prová-lo. E Lady Reina me protegerá. - Basta - disse William, áspero, fazendo-a a um lado. - É que o matará! - Deveria pensar nisso antes de atuar com sua habitual impetuosidade infantil. Voltou-lhe as costas e avançou até o centro do pátio. Ranulf fez um gesto a Eric para que imobilizasse à dama se fosse necessário, e foi reunir se com seu desafiante. Houve uma breve espera, enquanto o escudeiro de Sir William ia à procura de seu elmo, a fim de armá-lo tal como estava Ranulf. Feito isso, Ranulf desembainhou a espada e atacou. Tinha esperanças de ter achado, por fim, um adversário digno dele. A verdade, William Lionel teve um bom desempenho nos primeiros instantes. Era de movimentos velozes e instinto certeiro; sua folha ou seu escudo bloqueavam todos os golpes. Mas não sabia fazer outra coisa. Como de costume, a ofensiva de Ranulf não dava oportunidade para o contra-ataque. Suas poderosas estocadas aconteceram sem pausa até que Lionel caiu de joelhos por puro esgotamento, sem poder levantar o escudo. Agachou a cabeça, aguardando o golpe mortal, muito exausto para afligir-se. Ouviu, em troca, que Ranulf embainhava sua espada e levantou a vista surpreso. O gigante sorria, com a respiração quase normal. William sacudiu a cabeça, confuso. - Não é mérito algum desfrutar deste triunfo, quando o destino da senhora é o que pende na balança. Ranulf riu ante a má interpretação do homem. - Não fiz nada que possa lhe repugnar, senhor. O destino da senhora estava decidido, lutasse por ela ou não. - Por que aceitou meu desafio, pois? - Necessitava exercício. Como meu adversário de costume está em cama, graças a traição da senhora, por muito tempo não poderei contar com alguém capaz de me enfrentar. Mas não perguntastes por esse destino. Tão pouco a ama? Pégasus Lançamentos

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- Não a amo absolutamente. É bela, sim, mas também superficial e malcriada como uma criança, muito caprichosa para meu gosto. - Sabia que o desejava? - Sim, mas nunca lhe dei esperanças. Ao contrário, fiz todo o possível para lhe demonstrar que não me interessava; até lhe roguei que me permitisse abandonar seu serviço. Mas não quis acreditar. - E por que se ofereceu a ser seu campeão? - Embora seja uma criança malcriada e tola, ainda sou seu servidor até que me liberte. Ranulf conteve outra risada ante o rancor que denotavam aquelas palavras. - Muito elogiável. Viria-me bem um homem de tais convicções a meu serviço, se estiver disposto.

Quanto ao destino da senhora, Sir William, não tem por que se

preocupar. A casarei com um de meus homens para me assegurar de que não cometa mais travessuras. Goste ou não, aprenderá a ser fiel ao seu senhor, ainda que seu traseiro suporte com o peso do ensino. - Lição que devia ter recebido faz muito tempo - soprou William, de total acordo. Então Ranulf se afastou, lançando seu elmo a Kenric. Por acaso, seu olhar caiu sobre a viúva, que estava muito longe para ouvir o que se havia dito dela. Estava pálida, angustiada e tremendo de medo, pois seu campeão não havia conseguido libertá-la por meio do combate. Mas ao aproximar-se Ranulf para lhe informar de sua decisão, a viu mudar de atitude. Suas feições se suavizaram, relaxou o corpo e seu olhar adquiriu um viés sensual. Ranulf quase pode ouvir o girar de suas engrenagens mentais. Havia visto muitas expressões similares para equivocar-se: era o aspecto da mulher disposta a seduzir a um homem para obter o que deseja. - Nem pense senhora - grunhiu, antes de lhe voltar as costas. Ela podia esperar que Searle se recuperasse. Então ele mesmo lhe informaria sobre seu destino. Até então, que ardesse de preocupação em seu fechamento; era menos do que merecia pelas vidas que havia custado sua idiotice. Pégasus Lançamentos

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E se essa idiotice não teria levado a outros descobrimentos, se Ranulf tivesse se mostrado bem menos macio.

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C apítulo 35 - Já vem, senhora. Reina não esperou para ouvir mais: saiu a toda pressa de sua alcova, desceu a escada, cruzou o salão e seguiu descendo escadas até chegar ao pátio, no preciso momento em que Ranulf desmontava. Sem pensar no cavalo de combate cujas rédeas ele ainda retinha, adiantou-se como uma tromba e jogou os braços ao pescoço de Ranulf. O juramento que o ouviu pronunciar foi a primeira indicação de que havia feito mal em atuar tão impulsivamente. A segunda foi sentir que todo o corpo de Ranulf se sacudia ante o puxão das rédeas. Logo ouviu o cavalo, que se elevava de suas mãos para exercitar sua especialidade: pisotear ao tolo capaz de correr para ele, ainda que fosse seu dono. Reina emitiu um pequeno grito e se soltou para se resguardar. Quando finalmente Ranulf conseguiu dominar o animal, já estava furioso. Mas bastou um olhar a face cinzenta de Reina, tão parecida com o medo de Louise de Burgh, para deixar a irritação para melhor ocasião.

Avançou para sua esposa e a

elevou nos braços. - Que tolice fizestes senhora - disse. - Eu sei. Uma coisa estúpida e inconsciente. Não voltará a ocorrer. - Bem - replicou ele silenciosamente - Agora me diga por que fizeste essa coisa estúpida e inconsciente. Ela desceu os olhos com acanhamento, enquanto elevava as mãos vacilantes até os ombros de seu marido e as deslizava por eles, até aferrar-se outra vez a seu pescoço. - Estava preocupada - sussurrou-lhe ao ouvido- Assustei-me ao ver que os homens retornavam com prisioneiros e diziam que você tinha ido. Pensei em William Lionel, que não é homem de pouco físico. Temi que combatesse com ele e resultasse Pégasus Lançamentos

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ferido.

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Seus estremecimentos, conforme descobriu um momento depois, eram de risada. Isso converteu sua preocupação em chateio. O mesmo ocorreu com o forte abraço que recebeu antes de ser depositada no chão. - Não seja tola, mulher. O sorriso que lhe dedicou foi o incentivo que seu mau gênio necessitava para explodir. - Sim, devo ser tola, posto que me preocupo por um caipira de pouco miolo, capaz de meter-se em um lugar onde se suspeita que há traição com tão poucos homens para lhe guardar as costas. - Os homens de Eric se reuniram comigo antes que fôssemos à casa solar -observou ele, sorridente. - Ah - murmurou Reina, embora ainda não estivesse de todo satisfeita - Mesmo assim, deveria ter esperado. - Para que? Estava ali e tinha homens de sobra para enfrentar um simples punhado. Quanto a Lionel, não é um fracote, mas me olhe, Reina, e me diga em qual dos dois apostaria. Ela lhe cravou um olhar azedo por aquela presunção. - Só é necessário um homem com uma flecha para derrubar um gigante, Ranulf. Não é invencível. - Talvez não - concedeu ele - Mas tampouco sou idiota. Faz sete anos que tomo fortalezas e derroto exércitos em nome de outros. Acha que posso me descuidar agora que trabalho para mim mesmo? - Suponho que não - reconheceu ela a contra gosto. - Por que se preocupa, então? - As mulheres não necessitam motivos para se preocupar - replicou ela, irritada - Como tinha vontade de me preocupar, o fiz. - Senhora, antes que continuem dizendo coisas cada vez mais insensatas, devo lhe dizer que meus pés não resistirão muito tempo mais. Deveria estar me oferecendo um banho, uma refeição e uma cama, em vez de me repreender por um trabalho bem Pégasus Lançamentos

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feito. Sabe quanto levo sem dormir?

Uma cor inundou as bochechas de Reina. - Bom Deus! Deveria ter dito antes! Entre, senhor, entre e terá o que deseja. Ele deixou que o precedesse pela escada. Observando o meneio de seus quadris, sacudiu a cabeça. Lamentava que Reina tivesse utilizado essas palavras: por uma vez, estava muito exausto para se aproveitar delas. Reina não teria podido dizer o que a havia despertado, mas imediatamente soube que estava só na cama. Sentiu um leve temor, seguido de um sobressalto, ao ver Ranulf. Estava apoiado contra o poste da cama, com as cortinas afastadas para contemplá-la melhor. Mais ainda a inquietou vê-lo nu, banhado em bronze pela luz da vela. Se ele havia reparado na nova bata que pôs sobre sua arca de roupas, era óbvio que não lhe deu atenção. - Ocorre algo, senhor? - Não. - O que faz ai, então? - A observava dormir - disse ele, simplesmente. E adicionou com a mesma simplicidade - Sabia que ronca? Ela ficou boquiaberta, mas se apressou a negar: - Não ronco! - Sim ronca. Não muito, mas de qualquer modo ronca. Que terrível dizer isso a uma mulher! E o pior era não poder lhe responder do mesmo modo. - Obrigado. Teria-me causado muita pena seguir vivendo sem sabê-lo. Ele riu entre dentes. - Não se zangue general. Ainda me sinto na glória pelas atenções que me prodigalizou ontem. Ninguém nunca me atendeu com tanta ternura. Como zangar-se com ele, depois de ouvir aquilo? - Não fiz outra coisa que lhe banhar e dar de comer. - Também esquentou meu vinho e meus lençóis, e cobriu as janelas para escurecer o quarto, e enviou a todas suas damas abaixo, para que nenhum ruído me Pégasus Lançamentos

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incomodasse tão cedo. Até me agasalhou antes de sair nas pontas dos pés. Estava se burlando dela ou lhe agradecia? Reina, de qualquer modo, ruborizou. Naquele momento tinha acreditado que ele estava adormecido de puro cansaço. Além disso, a aliviava tanto tê-lo de volta sem um só arranhão que era um prazer deixá-lo cômodo. Mas seria verdade que ninguém o havia agasalhado nunca? Sentiu o impulso de fechar os braços em seu pescoço para abraçá-lo, mas ele não era uma criatura que pudesse consolar; era uma tolice tentar. - Pensei que dormiria até a manhã, meu senhor. Algo o perturbou? «Sim, você - pensou ele -, ao aconchegar-se contra meu corpo.» Mas não o disse, porque já a havia feito ruborizar. - Não, bastam umas poucas horas para me restabelecer. Ainda não me habituei ao luxo de dormir uma noite inteira. Mas estava tão fatigado que não perguntei por Walter. Como vai? - Despertou e começou a queixar-se, tal como predisse. - Ao menos nesta ocasião dizia a verdade - Dirá agora o que ocorreu na casa solar de Keigh? - Por acaso não importunou meus homens com essa pergunta, uma vez que me deitei? Seu sorriso de sabedoria a irritou, mas ao cabo de um instante ela também sorriu, reconhecendo: - Eric me disse. Contou-me também seu combate com Lionel. - E então? - Magnífico, não houve enfrentamento e eu não tinha motivos para me preocupar - aceitou ela, relutante - Mas já lhe disse que as mulheres não necessitam motivos para isso. - O que na verdade me intriga senhora, é que se preocupasse. - Acha que quero me encarregar com o problema de escolher outro esposo? -contra-atacou ela. - Isso significa que estão satisfeita com seu atual marido? - Satisfeita. Pégasus Lançamentos

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Ele emitiu uma risada retumbante.

- Essa palavra pode se interpretar de muitas maneiras. Reina chiou os dentes. - Afaste-se desse tema, meu senhor. Eric não me disse quais eram suas intenções para com Lady Louise. Ranulf se aproximou para sentar-se em seu lado da cama. Por um momento a jovem contemplou suas largas costas. A força que sugeria lhe provocou um agradável calafrio que afastou seus próprios pensamentos do assunto. Logo ele se reclinou sobre um cotovelo, ficando junto ao quadril de Reina, surpreendendo-a com uma expressão séria. - A viúva permanecerá encerrada em sua alcova até que Searle fique bem recuperado para desposá-la... se ainda desejar fazê-lo, depois de conhecer sua perfídia. Reina se enrijeceu. - Isso significa que não pensastes em Sir Amulf, como lhe pedi? - Não. Tenho pensado colocá-lo no comando de Birkenham. - Mas isso é muito! -exclamou ela, surpreendida. - Por que, se é tão leal como dissestes e se resulta de meu agrado? - Mas... mas pensei que daria Birkenham a Walter. - Ele não a quer. - Isso disse, sei, mas pensei que brincava. Ranulf sorriu. - Falava muito a sério. Sabe que sempre terei um posto para ele sem afligi-lo com responsabilidades que não deseja. Se o sobrecarregasse com elas, se limitaria a voltar para sua casa, onde será bem-vindo e ninguém lhe pedirá outra coisa que o combate em caso necessário. - Sendo assim, por que o enviou a Keigh Manor? Ele se encolheu de ombros. - Para que os dois cavalheiros mais jovens não se atassem a golpes pela dama se Pégasus Lançamentos

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ambos decidiam que a desejavam.

- E se ele também tivesse se engraçado com Louise? - Não era provável, pois sempre mostrou um grande interesse em uma de suas damas. Ou não o notaste? - Edwina não é uma de minhas damas. Ranulf riu ante aquele indignado protesto. - Não me referia a ela. O interesse de Walter por Edwina é só uma necessidade. Todo homem deve atender a suas necessidades enquanto pensa no matrimônio. Ou aprovaria que se introduzisse às escondidas no leito de dama Florette? - Não aprovo uma coisa nem a outra. Não compreendo que um homem não possa dominar sua lascívia por breves períodos. Se Walter quer Florette, e posso te assegurar que a ela encantaria aceitá-lo, não pode esperar a casar-se? Você esperou. -Pela segunda vez, viu que a cara de seu esposo se acendia de rubor e concluiu, inexplicavelmente ofendida - Ou não esperou? Ele percebeu o tom afogado da pergunta e apoiou uma mão na bochecha. - Havia estado tão impaciente por gozar de ti, depois da segunda cerimônia, se tivesse me deitando com uma de suas moças? Mas não vou negar que o pensei, por puro chateio ante o fato de que me fechasse sua porta. E se me diz que também é errado pensá-lo, te darei umas palmadas. Ela não pode deixar de sorrir, pois sabia muito bem que ele não o dizia a sério. E seu alívio era muito para que umas palmadas a preocupasse. - Não, não o direi. Do contrário, terei que condenar todo homem vivente. - Me alegro de que seja razoável - grunhiu ele, levantando-se. Era óbvio que ela não acreditava em suas ameaças de palmadas, mas Ranulf não conseguiu decidir se gostava disso ou não. Como se domina uma esposa que não teme às represálias? Se alguma vez se apresentasse a necessidade de castigá-la, ela podia sentir-se humilhada e não perdoá-lo jamais; a lição ao ensinar, qualquer que fosse, não valia a pena. Mas faltava averiguar por que pensava que não valia. - Ocorre algo, Ranulf? Pégasus Lançamentos

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- Acabo de me lembrar dos prisioneiros - respondeu ele, resmungão, necessitado de uma distração ante o rumo que estavam tomando seus pensamentos Onde os instalou? - Em uma das torres da muralha. Devo reconhecer que me surpreendeu vê-los chegar. - Por quê? - Não pensei que seu plano desse resultado, posto que mudasse de opinião e, em vez de enviar um mensageiro, enviou a Warhurst uma mensagem sem assinatura. Só um perfeito idiota iniciaria ações sobre uma informação tão pouco fidedigna. - Contei com que o castelão fosse tão imbecil quanto você dizia, e o era. - Mas por que correu esse perigo? - Se o plano não desse resultado, não queria desempenhar o papel de tolo. Ela teve que responder com um sorriso, ante aquela demonstração de vaidade. - OH, muito prudente, senhor. Ranulf percebeu sua ironia e franziu o cenho. - Prudente ou não, resultou, senhora. E como a mensagem foi sem assinatura, em Warhurst não sabem que tive algo a ver; também ignoram que os proscritos estão em meu poder. - Entretanto, te ouvi dizer que pensava devolvê-los a Warhurst. Mudou de opinião também sobre isso? - No momento, sim. - Pensa enforcá-los pessoalmente? - Não tem por que horrorizar-se, mulher. Se merecerem a forca, serão enforcados. Mas me inclino a pensar em corresponder um castigo menos duro, e até deixá-los sem castigo, se for certo o que disse sobre Warhurst. Isso é o que penso averiguar amanhã. - Não se pode acreditar na palavra de um proscrito! - protestou ela. - Isso pensava eu mas o que disse o chefe sobre a casa solar de Keigh resultou ser verdade. Pégasus Lançamentos

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- E o que disseram sobre Warhurst?

- Só que seu estimado lorde Richard esteve lá nestas últimas semanas; que saiu de Warhurst com uma força numerosa na mesma manhã em que eu encontrei uma força numerosa atacando Clydon, e que essa mesma manhã voltou a sua cidade, ferido. O homem disse muitas coisas mais, mas... Ri? Não acho nada humorístico no que disse. Reina tratou de dominar-se, mas escapou outra gargalhada. Foi o cenho de seu marido, cada vez mais turvo o que lhe inspirou seriedade, embora não total. - Não posso acreditar que tenha dado crédito a essa historia ridícula. - Por que parece ridícula? - Que motivo teria Richard para me atacar? - O mesmo que atribuiu a Falkes de Rochefort. - Casar-se comigo? - Ela sorriu - Esquece que eu estava disposta a me casar com Richard. - Não, não o esqueço. Mas me diga, Reina, ele sabia? Isso acabou com o regozijo da jovem. O prazer que viu em seu esposo ante sua nova expressão a chateou ainda mais. - Soubesse ou não, jamais me convencerá de que Richard queria me prejudicar; não o conhece, Ranulf. É mais afável e doce que... - Isso acha? - interrompeu ele com um sorriso zombador - Tão segura está? E se fosse um homem muito diferente quando está atrás das muralhas de seu pequeno reino? Por acaso o viu dentro de Warhurst? Sabe como se comporta ali ou como trata sua gente? Prosseguiu lhe contando o resto do que o proscrito havia revelado de seu lorde Richard e terminou: - E se tão somente uma parte disso for certo? - Só porque um proscrito o diz? - desdenhou ela - Tinha que te dizer a verdade sobre Keigh, sem dúvida, porque ia enforcá-lo e ele sabia. Como isso lhe deu tão bom resultado, teceu outra fábula de injustiças sofridas para obter sua outra meta: a liberdade total. E já admite que está pensando conceder-lhe. OH, o homem é ardiloso, Pégasus Lançamentos

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sim. Mas não me convencerá de que Richard não é a melhor pessoa do mundo. E já sei por que prefere acreditar tanta tolice. - Sem lhe dar sequer a possibilidade de desmenti-la, prosseguiu, acalorada - Pelo mesmo motivo que você adorou menosprezar a lorde John. Quer que eu esteja eternamente agradecida por ter me casado contigo e não com um deles. Mas como já estou agradecida, não necessita... Ele pôs fim a aquela argumentação voltando-se para aterrissar meio em cima dela. Um dedo cruzado sobre os lábios da moça a impediu a mínima exclamação. - Se alterou por nada, senhora - disse, sorrindo abertamente - Eu não disse que acreditava em uma palavra de tudo isso. Só que quero chegar à verdade. Segundo você, Richard é um santo. Aceitarei sua palavra enquanto não veja provas do contrário. Mas analisemos agora essa gratidão que acaba de confessar. Conduz algum benefício a seu destinatário? Ao ver a direção que haviam tomado seus pensamentos, assim como seu olhar, Reina não pode pronunciar palavra alguma. Os seios ficaram tensos sob seu olhar; o rubor, ardente. Quando ele voltou a olhá-la nos olhos, ela quase não pode sustentar seu olhar, afogando-se na expressão que já havia aprendido a reconhecer. Sem fôlego, esperou que a boca de Ranulf iniciasse sua magia. Entretanto, foi sua mão que cobriu o seio; ele não afastava os olhos dos seus. Seus dedos eram quentes e suaves, imensamente excitantes; brincaram com seus mamilos até deixá-los eretos, provocando uma leve excitação com alguma pitada de algo mais forte, que intensificou a emoção ao relaxar. Mas ele não deixava de observá-la, alerta ao seu fôlego entrecortado. Por fim perguntou: - Te faço mal? - Não. - Dir-me-ia se assim fosse? - Por Deus, vai começar outra vez com isso? Reina ouviu sua risada um momento antes que sua língua lhe lambesse os lábios. No curso da hora seguinte, a jovem logrou experimentar os benefícios pelos quais ele Pégasus Lançamentos

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havia perguntado, com um considerável grau de prazer mútuo.

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C apítulo 36 Reina viu que o gigante cruzava o salão para ela, acompanhado por seu mordomo, mas mesmo assim não pode dar crédito a seus olhos. Sabia muito bem que Ranulf ainda estava na cama. Àquelas horas de sono restaurador haviam se prolongado durante o resto da noite e toda a manhã. Ela acabava de ir à cozinha, onde havia dado ordens de adiar o almoço para esperá-lo. Theo, que não tinha se movido do salão até sua volta, respondeu negativamente ao perguntar se Ranulf havia saído um momento antes. Se não era seu esposo quem vinha em sua direção, tratava-se de um homem igualmente enorme, embora ela tivesse jurado que isso era impossível. Tal como havia acontecido ao ver seu esposo pela primeira vez, só reparava no tamanho daquele homem. Não reparou em seu rosto senão quando o teve quase diante de si, logo, sua cabeleira dourada, ao tirar a touca. Gilbert devia tê-los apresentado antes de escapar, mas Reina, estupefata, não ouviu uma palavra. Cabelo e pele dourados, olhos de cor violeta intensa, o mesmo rosto: o de Ranulf, mas não era Ranulf. Tudo aquilo resultava incrível. Seria seu irmão? Não, posto que, segundo ele mesmo, seu irmão era menor. Aquele homem era mais velho, embora não muito. Não tinha idade suficiente para ser seu pai, mas não podia ser outra coisa. Entretanto, não se tratava de um pai amoroso. Ao lembrar isso, Reina recordou também sua reação indignada ao ouvir a história de lábios de Ranulf. - Não se preocupe, Lady Reina. Com freqüência causo este efeito nas mulheres. Sem dúvida ele repetia essas palavras por costume, estavam destinadas a tranqüilizar as damas, sobressaltadas após terem ficado surdas, cegas e mudas ante seu extraordinário aspecto. Mas nesta oportunidade estava equivocado. A estupefação de Reina estava justificada: nem todos os dias se conhecem uma versão idêntica e mais velha do homem com quem se casou. - Viestes visitar Ranulf? Pégasus Lançamentos

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- Ranulf? -A ele tocou então mostrar-se assombrado. Mas logo sorriu, compreendendo - Por isso me olhava assim: pela semelhança. É estranho, não é? - Muito - respondeu ela, pois ainda lhe custava acreditar que dois homens de diferente idade pudessem parecer-se tanto. - Na realidade, eu ignorava que Ranulf estivesse nesta área. A última notícia que tive dele foi que estava combatendo para um dos Lordes da fronteira. Claro que isso foi no ano passado, e não o agrada passar muito tempo em um mesmo lugar. Como ele podia saber isso? Conforme dizia Ranulf, só havia falado com esse homem duas vezes em toda sua vida. Talvez esse homem fingisse familiaridade e interesse paternal só porque, à vista de quem conhecesse a ambos, não podia negar que eram pai e filho. - Talvez tenha tido esse hábito, sim, mas é difícil que abandone Clydon por algum tempo - replicou ela, muito enrijecida. O homem pareceu confuso por sua atitude, mas também curioso ante suas palavras. - Conheço muito bem Clydon e suas muitas terras, Lady Reina, entretanto, ninguém me disse que tivessem o tipo de problemas que poderia levar a requerer as habilidades especiais de meu filho. De qualquer modo, posso assegurar que contratastes ao melhor. Era verdadeiro o orgulho que detectava em sua voz? Que direito tinha de orgulhar-se do filho que quase havia abandonado? - Naturalmente, cabe-nos agradecer as excepcionais habilidades de Ranulf, milord, mas temo que compreendestes mal. Não contratei Ranulf, estou casada com ele. É o novo senhor de Clydon. Ao ver a surpresa de seu visitante, Reina deixou de envergonhar-se pelo que ela mesma havia experimentado momentos antes. Ele a olhou com incredulidade durante longos instantes. Logo jogou a cabeça atrás e soltou uma gargalhada. - Duvida de minhas palavras? - encrespou-se ela. Ele demorou um momento em recuperar o fôlego para responder. Pégasus Lançamentos

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- Não, absolutamente, milady. Sempre soube que Ranulf saberia achar uma posição, mas nunca suspeitei que chegasse a superar a minha. Se estiver no castelo, realmente eu gostaria de vê-lo. - Mas não foi por isso que veio. O que o traz por aqui, milord? - O coche onde levava minha bagagem perdeu uma roda a pouca distância daqui. Ocorreu-me lhe pedir emprestado os serviços de seu ferreiro, para acelerar a reparação, e aproveitar a oportunidade para apresentar meus respeitos. Agora talvez se digne a me dizer por que se coloca à defensiva. - À defensiva? Eu acreditava estar me mostrando bastante grosseira, mas se prefere dizer de outro modo... Em vez do rancor que semelhante descortesia teria provocado em qualquer outro, a resposta foi outra gargalhada. Na verdade, não era fácil insultar ao pai nem ao filho. Reina acabou sentindo-se embaraçada por ter tentado. Afinal, o homem era um hóspede e estava sob seu teto, embora não tivesse sido convidado. Não merecia seu antagonismo por feitos passados que em nada se relacionavam com ela. E se Ranulf se alegrasse em vê-lo? Se ela o expulsasse antes que seu marido tivesse oportunidade de decidir, pagaria muito caro. Em resumo: estava se comportando de um modo abominável para com um homem a quem nem sequer conhecia. Como se chamava? Por Deus, perguntar agora seria outro insulto. - Devo lhe pedir perdão... - Não, não - interrompeu ele ainda sorridente - Agrada-me seu temperamento, senhora. É um traço necessário para tratar com meu filho, teimoso e intimidador como está acostumado a ser. Uma mulher com menos fibra se deixaria afligir. Uma vez mais, Reina se perguntou como ele podia saber isso, se havia tratado tão pouco com Ranulf. Mas não perguntaria. No momento, o melhor era retirar-se o quanto antes, para não cometer mais descortesias. Não obstante, seu comentário merecia uma resposta. - Ranulf não é tão temível quanto parece, quando se acostuma a seus rugidos. Mas você deve sabê-lo... - interrompeu-se, horrorizada por ter caído outra vez nas Pégasus Lançamentos

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mesmas. Esperava que ele não tivesse detectado esse último sarcasmo - Sinta-se em sua casa, senhor. - Indicou um banco junto à lareira, longe da comoção dos servos que ainda estavam acomodando as mesas - Logo almoçaremos como pode ver, e será um prazer que nos acompanhe. - Dizia a verdade, mas não sabia como Ranulf o receberia E agora, me desculpe enquanto busco meu esposo para que o atenda. Sem lhe dar tempo de responder, afastou-se apressadamente. Só se deteve para ordenar a um servo que levasse vinho ao cavalheiro. Sentia-se alterada e ansiosa, mas também chateada pela conduta do visitante. Atuava como se Ranulf fosse seu filho amado, quando na verdade mal o havia reconhecido como tal. Por acaso pretendia aproveitar da boa sorte de Ranulf? Sim, isso explicava que tivesse se alegrado tanto ao saber que seu filho era lorde de Clydon, mas não estava além do orgulho paternal ao saber que não estava ali só como mercenário. Na verdade, Reina não sabia o que pensar. Certamente, Ranulf podia ter calado alguns fatos. Entretanto, sua amargura era autêntica ao falar de seu pai. Isso era real e havia provocado nela antipatia por esse progenitor indiferente. Se Ranulf não lhe guardava afeto algum, sem dúvida teria suas razões, conhecesse-as ela ou não. Ao lembrar dessa amargura, a preocupação de Reina aumentou. Envergonhada por sua própria conduta havia convidado esse homem a comer. Agora se arrependia. Se Ranulf se negasse a recebê-lo... Pior ainda, se exigisse que partisse, a vergonha de Reina seria ainda maior, embora ela mesma tivesse tentado que se fosse. Uma vez oferecida a hospitalidade, equivalia a um oferecimento de paz, que não se retirava senão quando o hóspede cometia atos contrários a essa boa vontade. Mas Reina esqueceu tudo isso ao descobrir que Ranulf ainda estava na cama, embora acordado, atento à precipitação com que ela se aproximava. Reina procurou imediatamente sintomas de palidez ou de cor excessiva em sua tez, que pudessem indicar uma enfermidade. Não havia, entretanto, devia estar doente para ter se demorado no leito tantas horas, acordado. Sobretudo, considerando que tinha mencionado suas intenções de interrogar os prisioneiros e enviar um de seus homens a Pégasus Lançamentos

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Warhurst para que falasse com as pessoas da cidade. A jovem se amaldiçoou por não ter subido antes para ver como estava. - Devia mandar me chamar. O seco de seu tom desmentia a suavidade de suas mãos na testa e o pescoço de seu marido. - Não está febril - adicionou, com gesto de preocupação - O que te aflige? Ranulf a olhou sem compreender. Logo respondeu: - É mais embaixo. Ela desceu o olhar até pousar no ventre, nu sobre o lençol que rodeava o quadril. Aplicou a mão, mas não fez nada senão rondar a região. Notou que ele esticava os músculos ante o contato, certamente sinal de que estava dolorido. Então sentiu medo, aquilo era mais grave do que ela pensava. Com a garganta subitamente seca de temor, chiou: - Aqui? A voz de Ranulf tampouco foi firme ao responder: - Mais abaixo. Os olhos de Reina desceram um pouco mais. Com a mesma rapidez se encheram de desconfiança e retornaram lentamente para os dele. - Aí, é? E o que é que pode lhe afetar aí? - Um inchaço muito doloroso... - Ooooohhh! - Vá! -Ele sorriu de orelha a orelha ante a indignação de sua mulher. - É insofrível, Ranulf! Pensei que estava gravemente doente! Se voltar a me assustar assim... Sentia um forte impulso de estapeá-lo. E como ele continuava sorrindo, cedeu. - Ai! - Merece isso - grunhiu ela - Agora tem algo que curar. Ele esfregou o ombro como se na verdade doesse, queixando: - Já o tinha, senhora. - Sim, seu senso de humor. Faz falta uma boa purgação. E agora me diga o real Pégasus Lançamentos

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motivo de que ainda esteja na cama. Acaba de despertar? Ele meneou a cabeça.

- Fiquei praticando paciência, general. Estava aqui, deitado, esperando que viesse me repreender por minha preguiça. - Deixe de brincadeiras. - Mas falo a sério. Teria preferido que descesse para te trazer arrastada? Não parece que suas damas teriam arqueado uma sobrancelha? As sobrancelhas da própria Reina se juntaram sobre o nariz. - Não seria capaz de... De... Mas ele era capaz, e assim demonstrava sua expressão matreira, se não as experiências anteriores. Além disso, era muito tarde para fingir que não compreendia o porquê dessas sobrancelhas arqueadas. - Devo agradecê-lo? - Nunca falha - assegurou ele rindo entre dentes - Quando não me aflige com repreensões, recorre ao sarcasmo. Mas neste caso deveria me agradecer, general. Nem sempre serei tão cortês. Às vezes terei pressa e... - E então qualquer canto escuro bastará, não? Por essa brincadeira se encontrou deitada na cama. - Qualquer, sim, embora prefira esta cama macia. - Mais que os bosques? - Muito mais. Ela conteve um sorriso, mas não era possível seguir zangada quando ele se mostrava assim. Nunca teria imaginado que, dentro desse gigante carrancudo, existia um homem brincalhão. Mas começava a agradecer que assim fosse. Mais ainda, acabaria por afeiçoar-se a esse lado carinhoso, e nisso radicava seu problema. De qualquer modo, enquanto durasse pensava aproveitá-lo... Mas não agora. Antes que as suaves dentadas no pescoço a fizessem perder a memória, resmungou: - Ranulf, terá que deixar isto para depois. Pégasus Lançamentos

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- Não, a menos que o castelo esteja se incendiando.

Não deixou de mordiscá-la. E agora que havia perdido o medo de acariciá-la, suas mãos também se mantinham muito ocupadas. - Ranulf.. Vim te dizer... Lá embaixo há alguém que deveria... Tem que... Ranulf! -exclamou, ao sentir uma dentada no lóbulo - Bom, podemos deixar para depois decidiu. Mas em seguida se arrependeu com um suspiro - Não, Ranulf, não podemos. É seu pai. Ele ficou imóvel. Ao cabo de um momento se afastou lentamente para trás para olhá-la: - Meu o que? - Seu pai está lá embaixo. Pediu para te ver. Nele se revelou a surpresa. Por um fugaz segundo, também algo parecido à alegria, embora Reina não poderia garantir. Mas quaisquer que fossem essas primeiras reações, logo as cobriram uma emoção muito mais sombria, a mesma que ela havia visto ao ouvir falar de seu pai. Ranulf abandonou a cama. Ela pensou que o fazia para vestir-se, mas não foi assim. Começou a passear, melhor dizendo, a rondar como um animal nervoso. A bata que havia costurado para essas ocasiões jazia sobre o cofre. No momento, para Reina importou muito pouco que estivesse lá. Ranulf sabia pouco de pudores, o mais provável é que a bata não fosse usada jamais. E seu corpo era esplêndido à vista. Tão crua masculinidade provocou nela uma reação totalmente primária fazendo lamentar ter aberto a boca. Mas já era muito tarde. Ainda que detestasse interromper essas idas e vindas, teve que perguntar: - O receberá? - Como diabos se inteirou tão cedo? Reina teve a sensação de que ele não falava com ela, de que nem sequer havia ouvido sua pergunta. De qualquer modo, respondeu: - Se referir a nossas bodas, não estava informado. Ao menos, até que eu o Pégasus Lançamentos

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mencionei.

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Isso atraiu a atenção de Ranulf. - Você lhe disse... ? Nesse caso, a que veio? - Não é nenhum mistério, Ranulf. Sua carreta da bagagem quebrou ao passar por aqui. De outro modo não teria se detido em Clydon. Gilbert o trouxe e... - E você adivinhou quem era - concluiu ele, descontente. - Adivinhei? Por Deus, não era necessário ser adivinha. Não me disse que era tão jovem nem que você é uma cópia quase exata. - Acha que me agrada essa estreita semelhança? Não imagina quantas vezes fui confundido com ele por pessoas que estavam algum tempo sem vê-lo. Até houve quem se negou a acreditar que não fôssemos a mesma pessoa. Sabe o que significa que te confunda com alguém a quem... Não completou a frase. Ela o fez em seu lugar: - Com alguém a quem despreza? É assim, de verdade? - Ranulf franziu o cenho: - O que é que ele deseja, mulher? - Te felicitar, possivelmente. O cenho se tornou mais sombrio. Ela se apressou a adicionar, mal-humorada: - Por que não desce e pergunta? - Morda a língua! Ela piscou, logo seus lábios se curvaram imperceptivelmente. Havia ouvido dizer essas mesmas palavras a Walter. Sabia que não eram uma expressão de fúria, mas sim, antes bem, uma frase de afeto. Ela podia ser receptora de seus rugidos, mas não de sua cólera; ao menos, ainda não. - Isso significa que não o receberá. - Não, não o receberei - grunhiu ele. - Que lástima, - respondeu ela, em tom leve e como se o assunto estivesse resolvido - Teria gostado saber como é que sabe tantas coisas de ti. - O que quer dizer? - Em algum momento deve ter dado motivos para que se orgulhe de ser seu pai. Pégasus Lançamentos

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Não me explicou por que... - Reina...

- Era só uma brincadeira! - exclamou ela, ao ver que se aproximava. E escapou da cama para a porta antes de adicionar - Mas teria que ter ouvido cantar seus louvores quando acreditou que eu havia contratado seus serviços! Talvez quisesse me assegurar de que valia a pena te pagar. Foi um prazer corrigir seu engano. Entretanto, devo confessar que a princípio me mostrei muito descortês. Não me explicou por que. Mas o alegrará saber que, tratando de insultos, é tão impermeável quanto você. Não houve modo de ofendê-lo. - Sem dúvida não foi tua culpa, hábil como é para morder justo na jugular. Ela sorriu para si mesma, mas deu um passo mais para a porta antes de fazer a confissão final: - Eu ainda não o conhecia e não tinha desculpas para me mostrar tão pouco hospitaleira. Por isso me ocorreu convidá-lo a comer conosco, para me desculpar. - O que diz? -estalou ele. Esse era o momento certo para escapar depressa.

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C apítulo 37 Reina teve que cobrir a boca com a mão enquanto corria para a escada. A expressão de Ranulf era muito cômica, estava entre a surpresa e a fúria. Mas na realidade havia feito mal em agir daquele modo. Ele não deixaria de ajustar contas com ela por colocá-lo em semelhante apuro. E talvez nem sequer desse resultado. Não porque ela desejasse receber seu pai devia ele apresentar-se para impedi-la. E de qualquer modo, o que era que esperava obter? Que tudo ficasse bem assim que se vissem? Isto dificilmente seria possível. E na verdade, não queria ser ela quem pedisse ao pai de Ranulf que se fosse. Já havia sido muito grosseira. Se Ranulf não o queria no castelo, que fosse ele mesmo quem o expulsasse. Reina se deteve no alto da escada, pois ainda tinha que dar alguma explicação a esse homem, quando voltasse para salão sem seu filho. Uma desculpa, uma mentira, a verdade? O que seria mais acreditável? Se conhecia Ranulf tão bem como dava a entender, não estaria esperando essa reação dele? Ainda refletia sobre o problema, com o cenho franzido, quando uma mão se fechou sobre seu ombro, lhe dando um susto de morte, pois não havia ouvido ninguém se aproximando por detrás. Ao virar-se compreendeu por que: ali estava Ranulf, descalço e despido... Dos pés à cabeça. Reina ficou boquiaberta: nunca teria se atrevido a provocá-lo, a não ser pela segurança de poder escapar a sua ira franqueando a porta do quarto. Não podia acreditar que ele se atreveria a segui-la assim. - Está louco? - acusou, sentindo nas bochechas o ardor da vergonha que ele deveria sentir. Imaginou dez servos aparecendo de repente e presenciando a total falta de pudor de seu marido - Está nu, por Deus! - Nu de paciência, senhora! - grunhiu ele, a maneira de resposta - Terá o castigo que merecia faz tempo! Pégasus Lançamentos

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- Se vestirá antes, ao menos?

Imediatamente Reina lamentou seu atrevimento. A louca era ela, por provocá-lo ainda mais. Supôs que ele a arrastaria à alcova, para lhe aplicar o castigo, ou que a cruzaria sobre os joelhos ali mesmo. Tendo em conta seu último e imprudente comentário, não podia criticá-lo. Por sorte, ele não fez nem um nem outro, pois não havia esquecido o motivo principal de seu aborrecimento. - Por agora voltará para o salão, senhora, e retirará seu convite. Reina suspirou para si mesma. Era necessário que ele se mostrasse tão... Tão inflexível? Sua resposta, a única que podia dar, o colocaria ainda mais furioso, mas só com ela. - Não posso fazer isso, meu senhor. - Como não pode? Não peço isso, mulher. Ordeno isso. - Eu sei. Ela pareceu diminuir, a seguir disse: - E eu gostaria de cumprir, mas como? Isto já não é só um assunto entre você e seu pai. Equivoquei-me ao convidá-lo sem antes consultá-lo, mas já está feito. Sendo sua esposa, não falo só por mim, mas também por você, em sua ausência. Quer que retire minha hospitalidade, conduzindo a vergonha sobre mim e sobre Clydon? Isso é o que exige? Ele lhe cravou um olhar fulminante, mas ao fim disse: - Dê de comer, mas quero que vá o quanto antes. Bendito homem. Não era tão inflexível, afinal. - Sim, meu senhor. E posso lhe dizer... ? - Lady Reina? -A voz de Florette chegava até eles. Reina afogou uma exclamação e ficou carmesim. - Vá! -sussurrou a seu marido. - Não terminamos - replicou ele, teimoso. - Está... Está nu, Ranulf! Pégasus Lançamentos

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- E o que?

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- Lady Reina... - Florette apareceu na curva da escada - lady Hilary quer saber... - Agora não - espetou Reina, voltando-se para a dama para desdobrar suas largas saias frente a Ranulf, ainda sabendo que isso não bastaria para ocultar sua enorme constituição. - Mas... - Agora não, Florette! A mulher se retirou imediatamente, mas Reina não podia assegurar que não tivesse tido tempo de dar uma boa olhada em seu marido. A situação era tão exasperante que pôs em atividade seu próprio mau gênio. Virou-se e fulminou seu esposo com o olhar. - Em minha vida presenciei teimosia, mas néscia? Se queria passear nu diante de minhas damas, então poderia vir agora ao salão. Por que beneficiar a uma só? Não duvido que todas adorariam ver seu traseiro ao ar. - Não mude de assunto, Reina. Ranulf parecia divertido e isso a enfureceu ainda mais. Ele não chegava a sorrir, mas estava claro que custava a ele não fazê-lo. - Muito bem, milorde – chiou - Estávamos falando de seu pai, não é? Posso lhe dizer que se reunirá conosco ao seu devido tempo? Isso fez que ele voltasse a franzir o cenho, para alegria de Reina. - Seria uma mentira, senhora. Você o convidou. Você comerá com ele. - Como quiser. - Ela desceu vários degraus antes de voltar-se para adicionar Sua presença não será necessária para que eu tenha minha curiosidade saciada. - Volta aqui, Reina! Ela seguiu descendo. - Farei que tragam sua comida, milord. - Reina! Ela não respondeu. Descia depressa, pois não estava do todo segura de que ele não a seguiria. Havia perdido a vontade de rir, mas não deixava de experimentar uma Pégasus Lançamentos

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grande satisfação por tê-lo vexado pela segunda vez. Sabia que o ajuste de contas chegaria mais tarde, pois dificilmente ele esqueceria o castigo prometido. Mas nisso pensaria mais tarde.

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C apítulo 38 Reina teve que dar indicações aos servos para que preparassem a comida, além de atender uma pequena crise com lady Hilary, provocada por Sir Searle, que insistia em abandonar sua alcova. Ainda não havia voltado a se reunir com seu sogro quando Ranulf desceu pela escada veloz, ainda ajustando o cinturão. Ela não esperava essa reação a seu último desafio e, por um momento, esteve a ponto de fugir, pensando que sua cólera o levaria a castigá-la imediatamente. Entretanto, ele se deteve quase patinando ao vê-la junto à alcova de Searle, sozinha. Devia compreender que ela ainda não tinha voltado a falar com seu pai. Então o buscou com o olhar. O descobriu junto à lareira, conversando com várias damas. Reina mordeu o lábio ao presenciar a indecisão e outras dolorosas emoções contra as quais ele parecia debater-se. Não se movia. Limitava-se a olhar fixamente seu progenitor. Reina compreendeu que havia sido uma falta de sensibilidade importuná-lo justamente sobre esse assunto. A verdade era que merecia uma surra. Ignorava o que se sentia ao odiar ao próprio pai, mas não devia ser nada fácil ir contra o instinto. Então viu que Ranulf ficava rígido e compreendeu que, por fim, o pai havia reparado em sua presença. O outro se pôs de pé para avançar para Ranulf, com expressão de prazer, de imenso prazer. A de Ranulf se tornou subitamente inescrutável. Entretanto, seu corpo permanecia rígido. Nem um só músculo se movia. Reina conteve o fôlego enquanto avançava para interpor-se entre ambos. Rogava que sua presença bastasse para impedir qualquer confrontação. Os dois homens pareciam ter se esquecido do resto do mundo, por diferentes motivos. Mas todos os olhos do salão estavam fixos neles, observando com fascinação aqueles dois homens, tão idênticos em sua extraordinária estatura. Talvez por isso Ranulf calasse o que teria dito se estivesse a sós com seu pai. Pégasus Lançamentos

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Suportou o caloroso abraço, mas sem devolvê-lo. Seu pai não se deu conta ou, em todo caso, não o manifestou. - Por todos os céus, quanto me alegro de ver que sentaste cabeça, Ranulf, e em tão boa posição. - Sim? Acreditava que ia ser mercenário toda a vida? - Absolutamente. Sempre soube que tinha grandes ambições. Não podia ser de outro modo, posto que se assemelhe tanto a mim. O que me deleita é que tenha superado todas as minhas expectativas... E muito antes do que eu esperava. Como obteve semelhante façanha? - A senhora ficou cativada por mim. - A exclamação afogada de Reina pôs em claro o sarcasmo do comentário. Ranulf lhe sorriu, zombador - Têm algo que objetar a minhas palavras, senhora? - Não me interessa como tenha chegado a ser o novo lorde de Clydon - corrigiu o pai, apressadamente - Como seja, o felicito. - De maneira que se alegra por mim - replicou Ranulf friamente - Quer que acredite nisso? O pai vacilou sem poder seguir ignorando a hostilidade de seu filho. - Duvida de mim? - Me dê um motivo para não duvidar. - Eu posso fazê-lo - interveio Reina, chateada ante tanta aspereza - É seu pai. É motivo suficiente para lhe desejar o bem. - Me fez descer com ardilosas maquinações, senhora, e essa é travessura suficiente. Agora se retire. Isto não lhe concerne. - O que o concerne me concerne - replicou ela - E não sairei de meu próprio salão, Ranulf. Se quiser que vá, terá que me tirar arrastada. Mas não o aconselho que dê semelhante espetáculo diante de minha gente. Lamentaria muito mais do que eu lamento tê-lo provocado. Uma desculpa e uma ameaça ao mesmo tempo? O cenho de Ranulf se obscureceu por um momento. Logo voltou a descontrair-se. Um instante depois estava rindo entre Pégasus Lançamentos

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dentes, sem burla alguma.

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- Felicita-me, lorde Hugh? Talvez devesse me oferecer suas condolências. Era óbvio que brincava, de modo que Reina não se sentiu muito ofendida. O pai também riu o que era bom sinal, tendo em conta a atitude de Ranulf até esse momento. Lorde Hugh? Posto que estivesse casada com um Fitz Hugh, ela deveria ter suposto que seria o nome de seu sogro. - Meus senhores posso sugerir que continuem com este reencontro à mesa? O almoço se atrasou muito pela preguiça de certas pessoas. Ranulf não ignorou a indireta e respondeu à tempo: - Assim se chama atualmente à lascívia, senhora? Reina havia voltado às costas, mas girou com uma exclamação afogada e duas manchas coloriam as bochechas. Ia dizer algo, mas só emitiu um chiado. Fechou a boca bruscamente, mas seus gélidos olhos azuis expressaram mais que muitas palavras. Ranulf não cometeu o engano de pensar que tinha a última palavra. Mais tarde, quando visse suas próprias tripas esparramadas pelo chão, saberia que ela acabava de vingarse. De momento, ao menos a tinha deixado sem fala, o qual era uma verdadeira façanha. Ela partiu com um olhar fulminante, deixando-o as sós com seu pai, a quem esse último diálogo parecia ter sobressaltado. - Isso foi... - começou a dizer cauteloso. Mas mudou de idéia - Não importa. - Aqui faria bem em ser franco - replicou Ranulf, em tom neutro - Eu tenho intenção de sê-lo. Hugh fez uma careta ante o que isso implicava face à falta de emoção das palavras. - Muito bem. Ia dizer que isso foi uma falta de cavalheirismo. Afinal, ela é sua esposa. - Exatamente, minha esposa. E você não tem nenhuma autoridade para julgar o que ocorre entre mim e ela, se não sabe o que aconteceu anteriormente. Basta dizer que a senhora merecia algo muito pior e que o sabe muito bem. Do contrário teria me Pégasus Lançamentos

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feito em farrapos com o fio de sua língua, aqui e agora. Soube que já falastes com ela. Saberá, então, o que quero dizer. - Na realidade, havia esquecido - admitiu Hugh - mas não tenho que negar que sabe usar as palavras. - Disse que foi impermeável a elas. - Seriamente? - Hugh riu entre dentes- Absolutamente. Na realidade eu adorei. Resulta refrescante conhecer uma mulher que não se deixe impressionar por minha classe, minha estatura ou meu sorriso. Até agora não havia acontecido. - Não perdestes o encanto, se isso é o que teme. Tampouco eu a impressionei muito quando nos conhecemos. - Mesmo assim, Ranulf, não compreendeste o que quis dizer. Embora uma dama se comporte como uma verdadeira bruxa, todo cavalheiro deve cuidar para não castigá-la ou insultá-la, ao menos em público. - Outra vez com as regras de cavalheiros? - bufou Ranulf - O que o faz supor que em Montfort me ensinaram essas coisas? Asseguro que lá não se tratava de ensinar delicadezas semelhantes. Hugh ruborizou. - Já disse que não sabia que tipo de homem era Montfort, Ranulf. Do contrário não o teria feito treinar como cavalheiro lá. Foi meu pai quem dispôs tudo. Lorde Montfort era um velho amigo dele, e me assegurou que lá seria bem tratado e educado pelos melhores. Além disso, me mantinha informado sobre seus progressos, que eram realmente notáveis. Não me surpreendeu muito que ganhasse as esporas a tão curta idade. Eu tinha dezenove anos quando me armaram cavalheiro. Até meu pai ficou impressionado ante suas habilidades. - Acha que me importa o que esse velho pensava? - Ranulf já não pode seguir dissimulando sua amargura - Em todos os anos que passei na aldeia, nunca recebi dele uma palavra amável quando vinha ver como estava. Nem sequer... - O que disse? -interrompeu Hugh, áspero. - Era pedir muito? Uma palavra bondosa do avô a um menino? - bramou Ranulf. Pégasus Lançamentos

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- Bom Deus, o que está dizendo, Ranulf? Ele não conhecia sua existência. Eu mesmo não estava informado. Você tinha nove anos quando ele me disse que existia. E jurou que acabava de inteirar-se. Ranulf só pode sustentar seu olhar, sentindo que lhe rasgavam as entranhas. Aquilo punha em carne viva sua amargura: que seu pai, por puro desprezo, não tivesse reconhecido sequer sua existência naqueles primeiros anos de vida. Nunca lhe ocorreu que talvez não estivesse informado. Como era possível, se seu avô sabia? Mas estava ignorando o resto de sua vida e outras amargas desilusões. Não, não as ignorava, mas o resto não era tão importante. Com voz desprovida de inflexão, disse: - Mentiu. - Não é possível! -insistiu Hugh. - Muito bem - suspirou Ranulf, muito dolorido para que lhe importasse algo - Eu menti. Pelo rosto de Hugh cruzou uma breve expressão de angustia, que sacudiu Ranulf até o mais fundo. - Não, sei que não mente. Bom Deus, agora compreendo porque você foi tão indiferente e frio quando nos conhecemos. Meu pai me disse que era natural, posto que você também acabasse de saber que eu era seu pai. Disse que devia te dar tempo para que se habituasse à idéia. - Sim, sete anos é tempo de sobra, especialmente porque não precisava me habituar à idéia. Soube quem era meu pai desde o dia em que soube o que era um pai. E soube também que o meu não estava disposto a me reconhecer. Hugh empalideceu ante aquela acusação. – Foi isso que pensou? - Que outra coisa podia pensar? Vivia em suas terras, em sua aldeia. Todo o mundo sabia que eu era seu bastardo, ainda antes que meu rosto e meu corpo tomassem esta forma para demonstrá-lo.

Reina havia ouvido o bastante, mas continuou escutando, consciente de que ambos estavam muito perdidos nesse doloroso pinçar do passado. Mas já não queria Pégasus Lançamentos

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escutar mais, e estava segura de que Ranulf tampouco o desejava. Parecia aflito, com a angústia de sua miserável e solitária infância nos olhos, na voz, em cada uma de suas palavras. Sofria, ela sentiu, e odiou o pai por fazê-lo sofrer. O odiou muito mais do que ele o odiava... Se o odiava, pois nesse caso não teria sofrido tanto. Embora não pudesse acalmar a dor, era possível evitar que piorasse. - Não sei percebeu Ranulf, mas esta sala está cheia de pessoas esfomeadas. Só se espera que ocupe seu assento à mesa. A interrupção lhe valeu um olhar fulminante, mas conseguiu o que desejava. Ele assentiu com secura e partiu a grandes passos para a plataforma. Hugh ia segui-lo, mas ela o deteve pelo braço. Os olhos violeta que se voltaram para ela estavam tão atormentados quanto os de Ranulf, mas isso não a arredou. - Jurei compensar minha grosseria anterior - disse com voz baixa e decidida Mas me é impossível depois do que acabo de escutar. Quero que abandone Clydon agora mesmo. Ele não pareceu surpreender-se ante a ordem, mas a ignorou. - Não posso partir antes de arrumar este assunto, senhora. - Se nega a sair daqui? Ele esboçou um débil sorriso pela incredulidade que lhe havia alisado o cenho. - Para repetir suas palavras: «Se quiser que vá, terá que me tirar arrastado». E tenho sérias duvida de que possa fazê-lo pessoalmente, querida minha. - O diabo o leve, então - vaiou ela, sabendo perfeitamente que não podia fazê-lo ser expulso, ao menos sem a permissão de Ranulf. E seria muito difícil obter isso. Do contrário, Ranulf já teria se encarregado de expulsar seu pai - Mas o advirto, lorde Hugh: se fizer mais dano a meu esposo com suas palavras, seus atos ou de qualquer outra maneira, juro que o aniquilarei, junto com sua casa e tudo aquilo que ama. - E se o que mais quero for seu esposo? - Não pudestes convencê-lo disso. O que o faz pensar que eu acreditarei? - Pois é verdade. Quero-o. O quis desde dia em que me olhou com meus próprios olhos, como minha imagem. Antes que eu abandone este castelo o terei convencido, Pégasus Lançamentos

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ainda que precise fazê-lo aceitar a verdade a golpes.

E se afastou, deixando-a em meio a muitas dúvidas e confusões. Reina não sabia se intervinha ou permitia que ele tratasse de convencer Ranulf de sua sinceridade... Se na verdade fosse sincero. Ainda que não o fosse, se Ranulf acreditasse, não acalmaria isso em parte a amargura que levava em seu coração desde tanto tempo? Mas isso de fazer aceitar a verdade a golpes... As palavras usadas a fizeram sorrir. Lorde Hugh era, talvez, o único homem capaz de fazer semelhante coisa.

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C apítulo 39 A enguia com saboroso molho de ervas estava ainda quente; também o frango com pinhões e o espaçado coelho ao creme. Ranulf não tocou o prato posto diante dele, Hugh, tampouco. Reina não estava acostumada deixar que as emoções afetassem seu bom apetite, mas por cortesia aos homens que a flanqueavam, limitou-se a beber o vinho. Na mesa reinava um incomum silêncio. Sentia falta da faísca de Walter. Embora as damas de Reina conversassem entre si em voz baixa, a atmosfera sombria que reinava no centro da mesa apagava seu humor. Até os servos, advertindo a tensão do ambiente, comportavam-se melhor que de costume. Por desgraça para Reina, isso não se prolongou até o final da comida. Ela supunha que Ranulf não podia pensar senão em seu pai, mas uma pequena parte de sua mente devia estar reservada a ela, pelo visto: Ranulf se levantou de repente e pôs uma mão sob seu cotovelo, obrigando-a a levantar-se. Sem uma palavra de explicação para seu pai nem para ela, afastou-a da mesa. Ela não teria dito nada, mas notou que a levava para a escada que conduzia à alcova. - O que faz? - perguntou, alarmada. - Necessito uma distração, senhora, antes de explodir. Reina pensou imediatamente na habitual lascívia de seu marido. - Agora? - protestou. - Não há momento melhor, pois não quero tê-la esperando temerosa toda a noite. Ou pensou que me esqueceria do que lhe prometi? Esperando temerosa toda a noite? Que promessa era aquela? Bom Deus referia-se ao castigo anunciado essa manhã, não a fazer o amor! Reina perdeu a cor, só para recuperá-la aumentado ante a visão do que ele podia fazer. A seu modo de ver, se ele a castigava nesse instante seria de uma maneira muito dolorosa, pois precisava dar Pégasus Lançamentos

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saída para torvelinho de emoções que a visita de seu pai lhe causou. Mas se ela impulsionava antes uma reconciliação, era provável que as emoções de Ranulf fossem menos turbulentas. Então talvez a tratasse com mais benignidade, talvez até se limitasse a uma severa repreensão. Não tratou de detê-lo, mas deu um olhar para a mesa, rogando a lorde Hugh com os olhos que os seguisse. Por sorte, ele estava observando-os. Um momento antes que eles chegassem à escada, levantou-se, mas sua expressão parecia insegura. Maldição! Estaria lembrando o que ela havia dito antes de comer? Não havia assegurado que não abandonaria o castelo enquanto não arrumasse as coisas com Ranulf? Que melhor oportunidade esperava para falar com seu filho a sós? Reina se deixou arrastar pela escada, já não estava segura absolutamente de obter uma trégua.

No ventre tinha um apertado nó: o medo que Ranulf havia

mencionado. Não queria iniciar relações com a palma de sua mão, que até então só a havia tratado com ternura. Mas na realidade merecia algum castigo.

O havia

provocado deliberadamente, além de obrigá-lo a enfrentar seu pai contra sua vontade. Mas Por Deus, Reina não o havia acreditado capaz de chegar a tanto, depois de ameaçar tantas vezes sem conseqüência alguma. Ele não a soltou senão quando estavam dentro da alcova, e então a deixou só para fechar a porta e passar o ferrolho. As palpitações de Reina se multiplicaram. O senso comum lhe dizia que tudo passaria muito rápido. Se os meninos podiam suportar uma surra, ela também poderia. Mas ao diabo com o senso comum! - Ranulf, não podemos conversar? - Não - disse ele secamente, e caminhou para a cama. Sentou-se na beirada, de lado, e deu um tapinha a seu lado - Se instale aqui, senhora, e recolha suas saias. Reina empalideceu. - Além disso, quer me humilhar? - A humilhação é à base desta lição. A moléstia física passará muito rápido mas a humilhação será algo que lembrará durante muito tempo. - Também lembrarei que isto lhe deu prazer! - espetou. Pégasus Lançamentos

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- Absolutamente, senhora. Não me agrada mais que a você, mas me desafiastes em excesso. Agora, venha. Ela permaneceu em seu lugar como se tivesse criado raízes. - Não faça que vá até você... «Ou será pior», poderia adicionar. Não o fez. A advertência era muito óbvia. Reina obedeceu, mas nunca havia demorado tanto em dar alguns poucos passos. Suas mãos já estavam suarentas. O que tanto temia não era a ardência no traseiro, mas sim o golpe que daria em seu orgulho. E não lhe ocorria maneira alguma de... A menos que... Em um gesto desesperado, jogou os braços ao pescoço. - Queria uma distração, Ranulf, faça amor comigo, em vez de me castigar. Nos olhos do marido saltou uma labareda, mas foi só por um instante. Seus lábios eram uma linha dura e reta, inflexível. Pouco a pouco, liberou-se do abraço e pôs os braços ao lado. - Depois. O olhar dela também se acendeu, mas com uma chama diferente. - Maldito seja! Se me tocar depois de me pegar, não lhe perdoarei jamais. - Isso significa que me perdoará por este castigo que procuraste? Por uma vez, ele tinha razão e ela se equivocava. Claro que o perdoaria. Mas não pensava deixá-lo saber. - Não tem por que fazê-lo agora! – exclamou - Ao menos, espera que passe um pouco o aborrecimento. - Já não estou zangado contigo - respondeu ele, paciente - Até compreendo o que tratou de fazer. - Imediatamente endureceu a voz, fazendo compreender que estava perdida - Mas não me deixarei manipular assim, senhora, e será melhor que aprenda sem mais demora. Ela se perguntou se as lágrimas serviriam de algo. Provavelmente não. Era muito bárbaro para apreciá-las. - E se prometer ser a esposa aborrecida, calada e covarde que parece desejar? Não darei mais motivos para que me chame «general». Não te contenta com isso? Pégasus Lançamentos

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A julgar por seu cenho franzido, não se contentava. Céus, o que havia feito para provocar tanta irritação? Mas Reina não teve oportunidade de averiguar, a trégua que esperava se apresentou, por fim, com uma batida na porta. Com um suspiro de alívio, disse a Ranulf - Tem que ser seu pai. Chega a tempo. O cenho dele obscureceu notavelmente. - Não acredito que se atreva. Reina se encolheu por dentro, temendo que suas próximas palavras piorassem a situação. - Eu... Eh... Acho que eu o convidei. Ranulf se levantou com um rugido, fazendo que Reina desse um pulo. Mas ele se limitou a lhe cravar um olhar, com a que não deixou dúvida alguma sobre o que pensava por essa nova audácia. - O... Direi que se vá - ofereceu ela com voz débil. - Não, o fará entrar - replicou ele, com voz rude, mas dominada - E não se moverá daqui. Não tenho intenção de te perseguir por todo o castelo quando isto acabe. Ela fez um gesto de horror, mas foi abrir a porta. Por um instante fugaz pensou em voltar a desafiá-lo pondo-se a correr, mas afastou a idéia por pura curiosidade. E ainda tinha uma esperança: que Ranulf se reconciliasse com seu pai e, portanto, a perdoasse pelo papel desempenhado no caso. Era uma esperança muito pequena, mas a pôs outra vez no bando de lorde Hugh. - Entre, milorde - disse, fechando a porta detrás dele - Aqui podem conversar em privado. Não repare em mim, por favor. Por desgraça não posso abandonar o quarto, pois devo receber um castigo assim que acabe com o seu, sabe? - Reina... - advertiu Ranulf. - Que importância tem que o diga? - replicou ela, com um olhar rancoroso - De qualquer modo, gritarei tanto que toda Clydon saberá. - Obrigado pela advertência - disse Ranulf silenciosamente, com claro tom de Pégasus Lançamentos

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ameaça - Não me esquecerei de amordaçá-la antes.

A essa altura Hugh pigarreou, decididamente incômodo. - Se não for bom momento para... - Não há nenhum momento bom para abrir velhas feridas - bramou Ranulf - Mas se está decidido a ver sangrar as minhas, diga o que gostaria e acabemos com o assunto. - Acha que isto é mais fácil para mim? Descobrir, depois de tantos anos, que meu pai mentiu! Agora até me dou conta de que nos manteve separados deliberadamente, tanto antes quanto depois que soube de sua existência. Quando o enviou a Montfort ele era ainda um homem ativo, mas deixou em minhas mãos o manejo de todas suas propriedades. Eu era pouco mais velho do que você é agora, Ranulf, e não sabia nada de administração, pois até então havia vivido praticamente na corte, com minha esposa, pensando que faltavam muitos anos para me encarregar dessas responsabilidades. Ranulf não disse nada, a expressão de seu rosto não revelava se seus sentimentos haviam mudado em algo. Reina teve desejos de lhe dar um chute por esse silêncio. Se ele não tinha nada que perguntar, a ela sobravam perguntas. - Por que seu pai agiu assim? - Não sei senhora, e seus motivos morreram com ele, faz vários anos. Talvez tenha se inteirado do nascimento de Ranulf passados alguns anos, e então... - Ele sempre soube - interrompeu Ranulf - Minha mãe disse a ele. Por isso a casou com o ferreiro da aldeia. - Dos bebês nascidos em uma aldeia, um de cada dois morre antes de cumprir os dois anos - assinalou Reina - Talvez ocultou a notícia para que não sofresse se Ranulf não sobrevivesse. - Senhora, se eu tivesse conhecido Ranulf desde seu nascimento, o teria criado no castelo, rodeado de todos os cuidados. Simplesmente, não sei por que meu pai o deixou nas mãos de plebeus. - Por Deus! - sussurrou Reina, lembrando alguém que havia entregado seu bebê Pégasus Lançamentos

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aos plebeus justamente com a esperança de que não sobrevivesse. Lançou um olhar a Ranulf, perguntando-se se ele estaria lembrando o mesmo ou se já havia estudado essa possibilidade, atribuindo a seu próprio pai o desejo de que ele morresse. O melhor era não mencionar, mas Hugh não havia concluído. - Só me ocorre um motivo para que me ocultasse isso. Eu tive outro filho natural, com uma mulher cuja família era muito poderosa. Não me permitiram me casar com ela, pois já estava comprometida. Mas me obrigou a nomear herdeiro a esse filho. - O obrigou? - Me arrancou essa concessão ao nascer o menino. Meu pai estava de acordo, pois do contrário eles nos declarariam guerra, coisa que, naquele tempo, não estávamos em condições de permitir. - Mas era muito jovem - observou Reina - Certamente eles sabiam que se casariam e teria filhos legítimos. - Sim, mas me comprometeu a prover a manutenção do menino, ainda nesse caso. Desse modo eles não se viam na necessidade de fazê-lo e contavam com um vínculo não oficial entre as duas famílias. Coisa que, além disso, encantava ao meu pai. Talvez por essa razão tenha preferido ocultar o nascimento de Ranulf, tanto a mim quanto à família de Lady Ella. - Ella? - Reina olhou bruscamente Ranulf - Lady Ella? O áspero cenho de seu marido fez que explodisse em uma gargalhada. Hugh não compreendeu a brincadeira. - Conhece essa senhora? -perguntou a Reina. - Não, milorde, mas mantenho estreitas relações com sua xará. - Um grave rugir de seu marido lhe apagou o sorriso dos lábios - Claro que isso não tem nada que ver aqui. Por que seu pai, por fim, mencionou Ranulf? - Eu passei esse verão em casa, depois de vários anos de ausência. A corte estava de viagem e minha esposa acreditava estar grávida, de modo que não tínhamos pressa por partir. Por então, Ranulf havia chegado a uma idade em que me bastaria vêlo para saber que era meu filho. Pégasus Lançamentos

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- Então seu pai temeu que o descobrisse por sua conta e, possivelmente, suspeitasse que ele houvesse ocultado de propósito. Ao se informar de sua existência, fingindo-se tão surpreendido quanto você, acabaria com suas suspeitas antes que pudesse as conceber. - Isso devo supor. - Mas uma vez que soube dele, por que o manteve afastado? - Novamente, senhora, só posso supor. Não queria que se formasse entre nós nenhum tipo de vínculo. - Formou algum vínculo com seu outro filho? - Não. - Hugh suspirou - A família de Ella se encarregou de sua educação e não se parece comigo em nada. Por vezes cheguei a suspeitar que, na realidade, não fosse meu. Entretanto, mantém comigo uma relação mais estreita que Ranulf, pois Ranulf nunca permitiu que me aproximasse. - Pode reprová-lo? Tal como vejo as coisas, senhor, esta é só a terceira vez em sua vida que fala com você. Passou seus primeiros nove anos pensando que não o queria. Enquanto o treinava como cavalheiro, nunca indagou por ele nem o visitou. Tendo em conta tudo isso, compreendo que duvide de sua sinceridade. Eu mesma duvido. Aquelas palavras provocaram um franzir de cenhos em ambos. Bom, má sorte. Ranulf não fazia pergunta alguma e ela queria saber se havia algum fundamento no que Hugh havia dito. Se na verdade se interessava por esse filho, deveria ter se aproximado dele muitos anos antes. - Pelo que entendi senhora a administração de Clydon esteve em suas mãos nestes últimos anos - observou Hugh, à defensiva - Diga-me, quantas vezes teve tempo para viajar por prazer? Ela ruborizou. - Realmente, nunca. - Tampouco eu. Meu pai nunca foi afeiçoado a delegar seu poder a outros. Quando assumi suas funções se passaram anos antes que achasse homens de confiança com os quais compartilhar minha carga. Agora penso que ele teve muito que ver nisso, Pégasus Lançamentos

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mas não tenho provas. O que sei é que me aconselhava a não intervir no treinamento de Ranulf. Como eu recebia informações periódicas sobre seus progressos e estava tão atarefado... Mas isso não é desculpa. Fiz mal e estou disposto a reconhecê-lo. Jamais deveria ter deixado se passar tanto tempo sem voltar a vê-lo nem reduzir minha comunicação com ele a meras cartas. - Que cartas? - interpelou Ranulf, quebrando por fim seu silêncio - Só recebi duas cartas de você. Ambas, depois de ter abandonado Montfort. - Não é possível. Deve ter recebido muitas mais. Te escrevi seis cartas ao ano, no mínimo, durante todo o período que passou em Montfort. Não esperava que respondesse, pois sabia, por própria experiência, que escrever não é instrução de um escudeiro. Só queria te fazer saber que não o tinha esquecido. Reina esteve a ponto de chorar ante a expressão de angustia com que seu esposo gritou: - Digo que não recebi carta alguma! Hugh também estava comovido pela evidente dor de seu filho. - Meu pai deve ter interceptado-as - murmurou. - Lorde Montfort - apontou Reina, em voz baixa - Não diz que era amigo de seu pai? Hugh, sem responder, sem olhá-la, deu um passo para Ranulf. Reina teve a sensação de que sentia a desesperada necessidade de abraçá-lo. Ela experimentava o mesmo. Mas Ranulf havia voltado a dominar suas emoções e sua expressão não convidava a gestos desse tipo. - Te escrevi, Ranulf - insistiu Hugh - Juro-lhe isso. Também mandei buscá-lo quatro vezes, mas em cada oportunidade Montfort respondeu com desculpas, dizendo que não era momento adequado para deixá-lo ir. Suponho que tampouco se inteirou disso. A maneira de resposta, Ranulf se limitou a franzir o cenho. Reina não se atrevia a intervir outra vez. Era óbvio que seu esposo não acreditava no que ouvia. Por que acreditar, afinal de contas? Só contava com a palavra de seu pai, que bem podia ser Pégasus Lançamentos

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falsa. De um modo ou outro, a reconciliação estava tão longe quanto antes. Para alcançá-la faria necessário algo que comprovasse o relato de Hugh. - Assegura que recebia relatórios periódicos sobre Ranulf enquanto ele estava em Montfort, embora ele não lhe escrevesse pessoalmente, lorde Hugh. O que não compreendo é como sabe tantas coisas do que fez uma vez terminada sua instrução. Por um momento pensou que ele não responderia. Parecia vacilar por vergonha. - Na realidade, um dos homens de Ranulf trabalha para mim. - Um soldado que sabe escrever? - criticou Reina, desdenhosa. - Era meu escrivão, não gostou da tarefa que lhe atribuí, mas lhe paguei muito bem pelos riscos da vida militar. Ao fim acabou por desfrutar dela. - De maneira que fez me espionarem - disse Ranulf, sem muita surpresa. - Do que outro modo podia saber de ti? Quando saiu de Montfort voltei a te escrever, como lembrará. Admite que, ao menos, recebeu essas duas cartas. Mas não respondeu. Isso, somado à frieza com que me tratou em nosso segundo encontro, obrigou-me a aceitar que dificilmente saberia de sua vida. - Eu era seu pecado, sua imagem. - O tom de Ranulf havia voltado a encher de amargura - Não o inspirava outra coisa que vergonha. - Equivoca-se - jurou Hugh -. Como me envergonhar de um filho tão igual a mim? - E em um estalo de exasperação - Por Deus, Ranulf! O que devo fazer para te convencer de que te amo? Uma vez mais, Ranulf não respondeu. Reina tinha uma resposta, mas o mais provável era que um dos dois a estrangulasse se a dissesse. De qualquer modo, ia calar-se só por isso? - Ao que parece, terá que fazê-lo entender a golpes, lorde Hugh. - Não está me ajudando, senhora - grunhiu Hugh. - Quando disse que o ajudaria? - perguntou ela, arqueando uma sobrancelha Conforme lembro, pedi que abandonasse Clydon antes de lhe causar mais dor. Foi você quem disse que não iria sem arrumar isso. Disse que o amava desde o primeiro olhar, e também que o convenceria antes de partir, mesmo que tivesse que fazê-lo aceitar a Pégasus Lançamentos

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verdade a golpes. Foram suas próprias palavras, milord, não as minhas. Ao que tudo indica, é o único recurso que lhe resta... A menos que Ranulf tenha começado a duvidar do que acreditou certo por todos estes anos. O que diz, Ranulf? - Reina mudou a direção de seu ataque - Não pode acreditar? Seu avô está morto e não pode dar fé do que ele diz, mas e Montfort? Não quer interrogar esse escrivão convertido em soldado? Aceitará simplesmente sua palavra e o amor que parece disposto a te dar? Talvez te convenha tentar, pois ele parece ser o único com quem não teria a vitória garantida. Seria uma pena que não ficasse em condições de me aplicar o castigo prometido. - Uma pena, na verdade, mas não conte com isso - assegurou Ranulf, sombrio. Reina se encolheu de ombros. Se havia chegado até ali, bem podia arriscar algo mais. - Não respondeste a minha pergunta, Ranulf. Mas antes que responda deve saber algo que notei: este homem se parece muito a ti, e não só no sentido físico. Tem o mesmo temperamento e é igualmente teimoso. Céus, se até franzem o cenho ante as mesmas coisas. Não compartilhariam também o mesmo sentido da honra? Também quero te assinalar que, se eu não tivesse acreditado quando me falou de Rothwell, agora não estaríamos casados. - Pelos cravos de Cristo! - exclamou Ranulf - O que isso tem que ver aqui? - Estamos falando de confiança. Eu não sabia como era Rothwell, tampouco verifiquei o que você assegurava. Acreditei em sua palavra sem pedir provas. Você deve a mesma confiança a seu pai, sobre tudo porque muitas das coisas que diz podem ser verificadas, e ele sabe. Portanto, não tem motivos para mentir. E não disse você mesmo que seu avô nunca havia dado mostra de bondade? Não é preciso muita inteligência para compreender que, sem querer, culpou a quem não devia Ranulf, e não é questão de seguir teimosamente no mesmo engano. Se quer conhecer minha opinião... - Ninguém pediu sua opinião! - exclamaram ambos, com bastante exasperação. Reina sorriu, satisfeita por ter demonstrado o que desejava. - É certo, mas ouça - disse a ambos - eu não estaria aqui para dá-la se não Pégasus Lançamentos

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estivesse aguardando um castigo. E não estaria aguardando esse castigo se não tivesse obrigado meu esposo a falar com seu pai. Se devo suportar uma surra por ter provocado esse encontro, vocês podem suportar minha opinião. - Suportamos até agora, mas já basta - grunhiu Ranulf - Desapareça agora mesmo, senhora. - Decidiu me perdoar? - O que decidi é permitir que padeça até a noite. Atenda suas tarefas, mulher. Ajustarei as contas mais tarde. Ela partiu para a porta, com expressão azeda. - Sempre soube que era um caipira sem coração. Não espere mais favores de mim! Depois da portada se fez o silêncio. Hugh, deliberadamente, evitava olhar Ranulf nos olhos, temendo estalar em uma gargalhada se visse a irritação de seu filho depois desse enfrentamento. Se o jovem tinha senso de humor, a gargalhada não o incomodaria, mas essa era uma das muitas coisas que ignorava dele. E se a dama havia feito um favor a alguém, era a ele mesmo. Não queria vê-la sofrer as conseqüências por isso. - Vai surrá-la? - Com estas mãos? - bufou Ranulf - Não quero matá-la, mas sim lhe dar uma lição. Além disso, ela fez pôr no contrato matrimonial que não poderia golpeá-la. - As condições do contrato matrimonial de nada valem no calor do momento. - Vivi com esta força sempre, milord. Minha esposa é tão miúda que eu temia até tocá-la. Por muito que ela diga ou faça, nada fará com que eu esqueça isso. Não têm por que preocupar-se. Não padecerá outra coisa que a palma de minha mão no traseiro. Hugh riu entre dentes. - Método que eu mesmo tive que usar, ocasionalmente. - Dá resultado? - Sim, ainda que esses resultados nem sempre justifiquem os meses de Pégasus Lançamentos

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arrependimento que ela pode te fazer sentir depois... Se sentir algo por ela. Ranulf sorriu. - Nesse caso, talvez o interesse a sugestão que recebi de uma rameira.

Reina não havia ido além do hall, onde estava passeando, em um esforço por acalmar seu mau gênio. Ao ouvir uma profunda gargalhada se deteve. De maneira que sua aposta era acertada. Desceu as escadas sorrindo, segura de não ter que preocupar-se, no momento, com um possível castigo.

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C apítulo 40 Aquela tarde, Reina fez suas tarefas muito satisfeita de si mesma. Essa sensação aumentou ao saber que Ranulf havia saído com seu pai para percorrer as terras de Clydon. Embora não gostasse de seus métodos, era óbvio que davam resultado. Sem dúvida havia desaparecido a amargura que durante tanto tempo havia remoído em seu interior. Agora seria mais feliz e, portanto, mais fácil de tratar. Se fosse possível dar tapinhas nas próprias costas, ela o teria feito. Passou um momento com Walter, o colocando a par do ocorrido, tanto no dia anterior como nesse. Já não a preocupavam suas feridas; não havia febre e Florette o vigiava de perto. Por isso ele não se queixava da necessidade de se manter de cama. Em uma semana poderia levantar-se e caminhar, embora demoraria um tempo em retornar a sua vida normal. Entretanto, Reina se surpreendeu ao lembrar em seu relato os prisioneiros, lorde Richard e suas terras de Warhurst. Nem sequer pode responder às perguntas de Walter, pois não sabia se Ranulf havia enviado um homem a Warhurst, conforme era sua intenção. O mais provável era que ele também tivesse se esquecido, tendo em conta todo o acontecido naquela manhã. Ainda não podia acreditar que lorde Richard fosse capaz de tirania tão desprezível. Decidiu falar pessoalmente com o chefe dos proscritos. O fez, mas não chegou a convencer-se. Entretanto, o homem parecia tão sincero que conseguiu plantar nela algumas duvidas, ainda que não suficientes.

Confiava mais em seu próprio

instinto, que raramente falhava, e em seu pai, que havia sido bom juiz do temperamento humano. Richard havia merecido a avaliação de seu pai, que o tinha aceito inclusive como possível genro. Não era possível que ambos se equivocassem tanto a respeito dele. Reina não passou muito tempo refletindo esse assunto. A satisfação a induzia a Pégasus Lançamentos

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pensar em outras coisas, em especial, em seu esposo. Não o permitiria esquecer que devia estar agradecido, sobretudo porque havia estado muito perto de castigá-la. Embora ele não o admitisse, para ela era óbvio que, apesar do ressentimento superficial, tinha sentimentos profundos por seu pai. De outro modo não teria se sentido tão ferido. Quando eles retornaram, Reina estava no salão e teve a oportunidade de observá-los enquanto cruzavam o longo aposento. A atitude de ambos era muito diferente, riam, tocavam-se e pareciam inseparáveis. Os teria tomado mais facilmente por irmãos que por pai e filho. Ao fim de contas, Hugh ainda não tinha quarenta anos. Qualquer donzela da idade de Reina, e até menor, o teria contemplado com bons olhos... Tal como estavam contemplando seu esposo todas as mulheres presentes no salão. Provavelmente era algo a que ela teria que habituar-se. Fez um gesto a um servo para que lhes oferecesse uma bandeja com queijo e doces. Não havia esquecido que nenhum dos dois havia tocado o almoço, e o jantar demoraria um tempo ainda. Por sua parte, havia satisfeito seu próprio apetite com um simples passeio pelas cozinhas, onde também recolheu Lady Ella.

Um verdadeiro

demônio interior a fez brincar com a idéia de apresentar a gata ao pai de Ranulf. Se desistiu, foi só pela probabilidade de que a Hugh não resultasse divertido o nome que seu filho havia posto no esquálido animal. Não queria provocar ondas no mar que mal havia conseguido acalmar.

Lady Ella estava agora amontoada aos seus pés, junto a lareira, sem lhe mostrar rancor por ter perdido seu privilegiado aposento. Ao menos, seguia mostrando-se cordial com ela na ausência de Ranulf. Mas a voz do dono a despertou subitamente e se afastou a grandes saltos para saltar a seus braços. Típico. Não deixaria que ele a descobrisse descansando amigavelmente aos pés de outra pessoa. Reina se perguntou se Ranulf se sentiria tão cômodo com seu pai para lhe apresentar à gata.

Provavelmente não mencionaria o nome do animal, ainda que

estivessem falando de gatos. - Não - dizia Hugh - em tantos anos não consegui me acostumar a eles. Minha Pégasus Lançamentos

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esposa tem três, aos quais até permite entrar em nossos aposentos. Tratei muitas vezes de expulsá-los dali, mas não tenho sorte. - Minha esposa poderia lhe dizer como nos desfazemos deles em um abrir e fechar de olhos. - Ah, mas suas técnicas poderiam não me dar resultado. Não tem caído ainda em conta de que, embora nós, os homens, tenhamos a última palavra, nossas senhoras ganham quase todas as discussões e obtêm o que desejam? - Morda a língua - replicou Ranulf, embora houvesse uma risada em seus olhos de violeta - Espero ganhar ao menos uma de cada duas discussões nesta casa, de um modo ou outro. Quando chegaram junto a Reina, a jovem já estava ruborizada. Não era conversa da que gostasse de participar, nem sequer indiretamente. - Deram um bom passeio, senhores? - Por certo - respondeu Hugh - Devo confessar que esperava achar algum aspecto aonde meu conselho pudesse ser útil. Em troca, aprendi um par de coisas que quero colocar em prática em minhas próprias terras. Felicito-lhe, senhora, Clydon é tão próspero quanto haviam comentado. - Por mérito de meu pai, não pelo meu - replicou a jovem - No fundo era agricultor e amava a terra. - E sua filha é muito modesta - adicionou Ranulf - Administrou tão bem toda a propriedade que não me vejo na necessidade de fazer grande coisa, além de cuidar de suas defesas. - Não subtraiam importância a isso, milord. Basta uma só agressão para arruinar muitos anos de duro trabalho. Hugh sorriu. - Nisso tem razão, Ranulf. Não há imóvel que possa prosperar durante muito tempo, se não contar com um senhor capaz de protegê-lo. Sem dúvida a senhora o teve muito em conta quando se permitiu cair cativada por seus encantos. Ranulf meio se afogou de risada. Reina também sorria. Pégasus Lançamentos

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- Ele conseguiu me arrancar alguns detalhes - admitiu Ranulf, enquanto deixava

Ella em um banco, junto a sua esposa. - Imagino quais - bufou a jovem, embora na realidade aquilo a divertia- Mas devem descansar. - ficou de pé para encher os copos de vinho e entregou um a Hugh, dizendo - Não vou faltar outra vez a meus deveres de anfitriã, milord. Tenho uma alcova preparada para você, se quer se refrescar antes do jantar. Theodric o acompanhará quando houver... - Theodric não o acompanhará a nenhum lado - interrompeu Ranulf asperamente - Como se atreve, senhora? - Como me atrevo a que? - perguntou Reina, com doçura - Edwina está pronta para ajudar seu pai. Theo não fará nada senão lhe indicar o caminho até a torre leste, quando tiver comido algo. - Ah - foi toda a resposta de Ranulf. - Ocorre algo? - perguntou Hugh. - Nada absolutamente, milorde - assegurou Reina, tomando seu próprio copo, embora reservasse um azedo sorriso para seu esposo - Eu gostaria de propor um brinde: A um novo começo... - fez uma pausa; seu sorriso se converteu em careta de satisfação irreprimível - que só necessitou de um pequeno empurrão para iniciar-se. Hugh riu entre dentes. Ranulf não o imitou. Nesse momento se ouviu outra voz, que provocou pulos em Reina e em seu sogro. - Espero não interromper. - Que surpresa, Richard! - disse Hugh. E realmente estava surpreso. Incomodamente surpreso, dadas as circunstâncias - Creio que conhece meu filho, não é, Lady Reina? Ela não respondeu. Havia se engasgado com o vinho ao estabelecer a vinculação e estava tossindo. Deixou-se cair pesadamente em um assento, mas se apressou a rechaçar o auxílio de Ranulf, temendo que a fizesse cair no chão por lhe dar uma palmada nas costas. Por sorte, ele ainda não havia se dado conta de quem era Richard, embora sim de que era seu irmão. Pégasus Lançamentos

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- Está bem, senhora? - perguntaram ao mesmo tempo Hugh e Richard. - Sim, por certo - ofegou Reina, deixando seu copo - Um vinho de má qualidade adicionou a modo de explicação. Hugh assentiu e jogou uma olhada a Ranulf. Vendo que este só experimentava uma leve curiosidade pelo giro dos acontecimentos, devolveu toda sua atenção a Richard. - Como descobriu que eu ia caminho de Warhurst? - Não sabia - respondeu Richard - Na realidade, eu mesmo ia caminho de Lyonsford, mas quis apresentar meus respeitos a Lady Reina, posto que levo algum tempo sem visitar Clydon. Não sabia que conhecesse a dama, pai. - Não a conhecia até está amanhã. Se não tivesse quebrado a carreta que levava minha bagagem, não teria me detido aqui, estando Warhurst tão perto. Reina não prestava atenção ao diálogo. Observava seu esposo. Detectou imediatamente o momento em que ele saiu de sua ignorância. Como ele estava sentado ao seu lado, no banco, ouviu a exclamação afogada e a ruidosa expulsão de ar. Logo ele colocou os olhos nela, cintilantes de furiosas acusações, e ela não pode senão encolher-se. Bom, era culpa dela, por não ter prestado atenção quando Gilbert apresentou Hugh. Do contrário teria compreendido que não era só o pai de Ranulf, mas também o de Richard, e poderia advertir seu esposo. Lyonsford, a mesma família com a qual seu pai havia aprovado sua união por matrimônio. E ela havia estabelecido a mesma aliança sem sabê-lo. Era muito engraçado, embora no momento não se atrevesse a rir. Querendo casar-se com um irmão, havia acabado desposada com o outro, sem sequer sabê-lo... E sem que eles mesmos soubessem. E agora seu esposo pensava que ela havia tratado deliberadamente de ocultar a verdade. E seguiria pensando-o até que se encontrassem a sós e ela pudesse explicar. Por que esperar? Depois de tudo, a coisa ficava em família. - Não é como supõe, Ranulf. Pode deixar de me olhar com esse cenho. Esta Pégasus Lançamentos

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manhã, ao ver seu pai, fiquei tão surpreendida que não ouvi seu nome quando me apresentaram. Foi simples assim. - Seriamente? - grunhiu ele. - Muito bem. Dê-me um motivo pelo qual eu iria querer te ocultar que seu irmão é agora seu vizinho. Se soubesse teria te informado logo, embora seu pai não lhe tenha te dito. Por que lhe ocultar isso? - Por despeito. - Eu não sou Lady... - Por Deus! Havia estado a ponto de dizer «Lady Anne», mas não podia revelar que Walter havia feito essa confidência - Não tem importância concluiu, muito enrijecida e chateada por não poder oferecer melhor defesa. Chateava-a ainda mais ter que defender-se - Se assim pensa é porque não me conhece absolutamente. Sua voz devia expressar tanta desilusão que causou efeito. Um momento depois, a mão de Ranulf a virou para ele. - Perdoa - disse mal-humorado. Ela compreendeu que falava com sinceridade, estava embaraçado - São muitas coisas que estão ocorrendo ao mesmo tempo. Ela, sabedora do que sentia, sorriu para assentá-lo. - Nada que não possa solucionar milord. - E se aproximou um pouco mais para lhe sussurrar - A chave consiste em fazer-se dono da situação e assumir o comando... Assim. - O olhar de alarme que recebeu a fez adicionar - Tranqüilo. Desta vez não será você o objetivo. Reina se voltou para os dois homens, que seguiam de pé. Haviam interrompido sua própria conversa, embora não se pudesse saber quanto haviam ouvido do diálogo entre os esposos. Mas Richard não parecia tranqüilo, por certo. Era uns quinze centímetros mais baixo que seu pai, de cabelo castanho encaracolado e olhos cinza. Habitualmente eram tão alegres quanto os de Searle, mas naquele momento não revelava bom humor. Hugh tinha razão, esse filho não lhe parecia absolutamente nada, mas não resultava estranho. O estranho era a notável semelhança existente entre Ranulf e ele, que a Richard não podia ter passado inadvertido. Certa Pégasus Lançamentos

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vez havia comentado que, por parte de seu pai, tinha primos e tios aos quais não conhecia. Se ao ver Ranulf o havia tomado por um deles, era explicável que estivesse desconcertado por ter ouvido dizer a Reina que eram irmãos. E se não a tinha ouvido, as suspeitas não demorariam. - Bom lorde Hugh, embora seu pai tenha conseguido ocultar dos parentes de Richard a existência de Ranulf, reconhecerá que agora deixou de ser um segredo. Irá apresentar seus filhos ou devo fazê-lo? As suspeitas deviam existir já, sim, mas a confirmação fez que Richard avançasse a tropeços até um assento. Hugh olhou a jovem com o cenho franzido, mas não prestou atenção. Tampouco a Ranulf, que estava igualmente carrancudo pelo abrupto da informação. O mais interessante era a reação de Richard: ao invés de surpresa, revelava alarme. Por quê? Era o herdeiro de seu pai, assim renomado em seu testamento. Por acaso pensava que isso mudaria a partir de agora? Talvez, se supunha que seu pai acabava de descobrir a existência desse outro filho. - Não sabia a verdade, Richard? - pergunto com mais suavidade, lembrando tardiamente que esse homem sempre havia sido seu amigo. - Não. - Richard olhou a seu pai - E você? - Sim, há vários anos - admitiu Hugh. - Como não te ocorreu me dizer isso? Não pensou que podia me interessar saber que tinha outro bastardo, mais velho que eu? Essa acalorada acusação foi feita em um tom e com uma expressão tão pouco habituais nele que Reina se sobressaltou. Notou que a Ranulf não parecia chamar a atenção. Claro que ele não conhecia o temperamento normal de Richard, tão despreocupado. Tampouco Hugh se mostrava surpreso, talvez houvesse presenciado algum outro arrebatamento similar. Mas Reina não podia dizer o mesmo, e aquele Richard lhe parecia muito diferente do que ela conhecia. Isso a levou a lembrar, sob uma nova luz, as palavras do proscrito. Ainda que parecesse impossível que Richard pudesse apresentar duas caras tão distintas, na realidade assim era. - Nunca tive motivos para lhe dizer isso. - estava respondendo Hugh - Devido a Pégasus Lançamentos

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lamentáveis mal-entendidos, Ranulf e eu vivemos afastados ao longo destes anos. - E já não é assim? - acusou Richard. - Alegra-me dizer que não, em efeito - replicou o pai. Logo, com mais aspereza Sua reação é compreensível, Richard, mas não se justifica. Isto não altera as circunstâncias de sua própria vida. Em troca, sim as altera a notícia que te levava a Warhurst. Hoje se inteira de que não só tem um meio-irmão, mas também uma meioirmã. Mês passado, minha esposa deu à luz uma menina chamada Elizabeth. Richard empalideceu. Reina deu uma fugaz olhada a Ranulf. Não parecia surpreso. Obviamente, Hugh já havia lhe informado que tinha uma irmã e isso não o desagradava absolutamente. Claro que para ele não fazia diferença. Mas para Richard não era assim. Tratando de herdar ou não uma propriedade tão grande como Lyonsford, devia se importar muitíssimo. - As condições que me impuseram ao você nascer, Richard, eram lógicas e não estavam destinadas a aplicar-se plenamente. O fato de que minha esposa passou tantos anos sem me dar descendência pode tê-lo levado a esperar mais de mim, mas isso não pode ser. Te dei Warhurst. Com isso, deve satisfazer suas necessidades. - Por quê? Parece-te mais do que um bastardo deveria esperar? Esquece quem foi meu avô! - Não, não o esqueço - disse Hugh friamente, cedendo por fim ao desgosto que lhe inspirava seu filho - Se a alguém importava era a meu pai, a mim, não. Richard não podia assimilar tudo aquilo ao mesmo tempo. Essa irmãzinha não lhe parecia real. Era um bebê, os bebês morriam. Ranulf, em troca, era real, estava ali, presenciando seu embaraço. E a ele parecia ser impossível deixar de fazer-se de tolo. - E a ele o que dá pai? - disse cinicamente, enquanto cravava em Ranulf um olhar furioso. Mas voltou a empalidecer ao ver que Ranulf se levantava para aceitar o tácito desafio. Também Reina se levantou para interpor-se. Se ela pudesse evitar, ninguém brigaria em seu salão. Mas foi Hugh quem desativou a súbita tensão. - Não acredito que isso te diga respeito Richard. O que ele recebe de mim foi Pégasus Lançamentos

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dado faz muito tempo, quando cumpriu os dez anos, de modo que já não forma parte de Lyonsford. A transação foi aprovada pelo rei. Concede que a propriedade passará à mãos de Ranulf quando cumprir os vinte e cinco anos. Não é uma cidade como Warhurst, mas sim um pequeno castelo, mas tenho a certeza de que ele ficará muito satisfeito. - Ficará? - repetiu Richard, com uma risada depreciativa. Ao que parecia, encontrava algo engraçado naquilo - Esperaste até agora para dizê-lo? Reina sentia vontade de dar um chute no jovem lorde. Imaginar que ela havia pensado em casar-se com esse jovem ambicioso, vingativo e chorão! O relato do prisioneiro ficava cada vez mais verossímil. Aproveitando que Ranulf estava detrás dela, sussurrou - Ele te contou sobre Elizabeth. Disse-te também sobre a herança? - Como ele não respondeu, voltou-se o suficiente para olhá-lo. A expressão de Ranulf era resposta suficiente. - Não disse isso. Uma vez mais, Reina não pode deixar de sentir uma irritação irracional contra esse pai. Richard havia recebido dele o imóvel de Warhurst quando só tinha dezoito anos, para fazer com ele sua vontade. À Ranulf, em troca, havia atribuído uma propriedade ainda menor, sem sequer lhe dizer nada. E não poderia dispor dela senão até os vinte e cinco anos. Claro que agora não necessitava dela, mas que sentido tinha esperar? Ele poderia tê-la utilizado muito antes para conquistar uma esposa e iniciar uma família... E ela não o teria conhecido. Caramba, por que se zangava? O comportamento de Hugh a havia beneficiado, se não a Ranulf. Entretanto, Ranulf não devia receber mais surpresas. Ela tinha perdido o domínio da conversa. Também Hugh reparou na reação adversa de seu filho mais velho e se aproximou. Aproximou-se tanto que Reina ficou quase apertada entre os dois. Não havia perigo de que reparassem nela de cima. Às vezes, a falta de estatura era uma verdadeira vantagem. Até então Reina não o havia experimentado com tanta acuidade. - Isso o coloca contra mim? - perguntou Hugh a Ranulf, cauteloso - Quando tomei essa decisão me advertiram de que podia ocorrer assim. Mas eu tinha meus Pégasus Lançamentos

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motivos. Não queria que se conformasse com sua sorte e deixasse de lutar por melhorá-la. Parecia-te tanto comigo, Ranulf... Quis saber até onde era capaz de chegar sozinho. - Então sorriu com o mesmo orgulho que Reina havia visto antes - Eu diria que chegaste muito longe. Para ti, Farring Cross se converteu em algo insignificante. - Farring Cross?! - Ranulf, que havia iniciado a frase com uma exclamação afogada, acabou-a em um estalo de risada. Hugh também ria. À Reina teria sido impossível saber por que, se ele não tivesse continuado: - De Millers se tornou louco tratando de te ocultar que ele era só um administrador da propriedade.

Ficou muito desconcertado ao saber que estava

decidido a comprar seu próprio imóvel. Quando se viu obrigado a subir de novo o preço, para que não a comprasse, temeu que o matasse. De qualquer modo, não lhe permiti que te dissesse a verdade. Reina deslizou de entre os dois para menear a cabeça ante tanta ironia. Richard seguia sem compreender onde estava a graça. - Tratou de comprar Farring Cross? - perguntou a seu irmão. - Sim. - Quer dizer, o imóvel é mais rico do que nosso pai deu a entender. - Mais rico não, mas está em excelentes condições e satisfazia minhas necessidades da época - replicou Ranulf, tranquilamente. De repente mudou de atitude e sua voz se tornou zombadora - À diferencia de ti, eu não desejava uma propriedade da magnitude de... Clydon, por exemplo! Reina notou a evidente intranqüilidade de Richard ante aquela insinuação. Teria querido aplaudir seu esposo, mas antes desejava ver que reações podiam provocar ainda em seu antigo amigo. - Oh, pobre homem - disse Ranulf - Que desventurado há de se sentir por se ver obrigado a se encarregar com semelhante propriedade, depois de tudo! - Que propriedade? -perguntou Richard. - Já vê, lorde Hugh - repreendeu ela, com suavidade - fez mal em não Pégasus Lançamentos

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apresentar-se devidamente, como lhe sugeri. Desse modo, Richard já saberia que seu irmão é lorde de Clydon. - E a Richard, que estava ficando carmesim de fúria Casamos faz menos de uma semana. - Mas se é um bastardo! - estalou Richard. - Como pôde se casar com um bastardo? Ali estava, mais claro do que se ele tivesse admitido simplesmente a verdade. Havia dado por certo que ela não o aceitaria porque ele mesmo era bastardo, portanto, decidiu tomá-la pela força. Mas a fortuita chegada de Ranulf havia desbaratado seus planos. Reina se perguntou se Richard tinha planejado tentá-lo outra vez, talvez esse mesmo dia, se na realidade não estava ali para isso. Bastaria um pretexto para fazê-la abandonar o castelo com ele para apropriar-se dela. Lástima que não tivesse acontecido antes. Não, lástima não. Graças a Deus não havia acontecido. - Não sei que relação tem as circunstâncias do nascimento de Ranulf com tudo isto - disse, com muita calma e gélidos olhos - Na verdade, se isso importasse não teria pensado em ti como possível esposo, no inicio. - O que? -chiou ele. - É a verdade, Richard. Te enviei várias cartas, tanto a Warhurst quanto a Lyonsford.

Se houvesse vindo a Clydon, como eu solicitava, talvez tivesse aceito

minha proposta e agora eu estaria casada contigo, não com seu irmão. Mas estava escassa de tempo, sabe? Necessitava um esposo imediatamente. Como não sabia onde estava e não era possível esperar indefinidamente notícias suas, quando conheci Ranulf, semana passada, e descobri que ele também era bom candidato, fiz minha proposta. Richard havia ficado mudo no momento. Hugh não. - De verdade queria se casar com Richard? - Surpreende-se, milorde? Somos bons vizinhos, meu pai aprovava minha escolha e eu pensava que nos daríamos bem. - E por que não esperou? - estalou Richard - Por que não insinuou para que desejava me ver? Pégasus Lançamentos

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Uma sobrancelha se arqueou inquisitivamente.

- Supus que minhas cartas não haviam chegado Richard. Por acaso chegaram e não lhes deu atenção? - Não, não, nunca disse que... Estive viajando muito e... - Bom isso já não importa - interrompeu ela, com voz de seda. - Estou muito satisfeita com o esposo que tenho. E ele demonstrou ser muito capaz de defender Clydon. Assim nos conhecemos, sabe? Chegou a tempo de expulsar um desprezível bando de malfeitores que se atreveram a nos atacar. Além disso, jurou eliminar os vilões, como advertência para qualquer outro que pense que Clydon carece de senhor. Disse que não era necessário, mas foi mercenário durante muitos anos, e já sabe como lhes agrada combater, matar e fazer guerra. - Não sou tão sanguinário, senhora - protestou Ranulf, resmungão, embora seus olhos riam. - Claro que não - concordou Reina. E nesse momento viu a oportunidade de descarregar o golpe final, um manto de penugem se esfregava contra os pés de Ranulf. Ela se agachou para levantar sua inimiga jurada. - Se fosse tão sanguinário – disse - não teria por mascote a este animal fraco e feio, nem lhe teria dado o ilustre nome de... - Reina! A advertência marital chegou muito tarde. De qualquer modo, não teria prestado atenção.

-...Lady Ella -concluiu, com uma doce inocência que valeu um olhar ainda mais feroz de seu esposo. Hugh, com muita dificuldade, pôde conter a risada. Ao rosto de Richard subiu outra vez um rubor furioso.

- Lady Ella? Pôs em sua gata o nome de minha mãe? - perguntou incrédulo. Logo, indignado - colocou em sua gata o nome de minha ... ! - Por que grita tanto, Richard? - interrompeu Reina, severa - Não pensará que Pégasus Lançamentos

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seu irmão é tão indigno.

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Ele desviou sua fúria contra o pai. - Vai deixar que a insulte assim? Ela é sua... - Minha o que? - estimulou Hugh, ao ver que seu filho não concluía. Logo sacudiu a cabeça, descontente - Não, nós dois sabemos o que era ela. Bem sabe que com o correr dos anos não valeu meu carinho, Richard. Mais ainda: em minha casa tenho várias cadelas com esse nome. Não espere que eu ralhe com um homem cujo senso de humor é tão parecido ao meu. - Já se inteirará meu tio disto! - foi quanto Richard pode dizer. - Oh, Richard, Por Deus ... ! - começou Hugh, exasperado. Mas concluiu em um suspiro ao ver que o moço partia a grandes pernadas. Então olhou a Ranulf como lhe pedindo desculpas - Será melhor que vá tranqüilizá-lo. Sempre foi um gênio vivo, mas o que se pode esperar se foi sido criado por seus insuportáveis parentes? - Quanto mais quando que... - começou Reina, mas emitiu um gritinho ao sentir um beliscão no traseiro. - Vá, milorde - disse Ranulf, enquanto ela se voltava para fulminá-lo com o olhar. Como Hugh não havia perdido detalhe da cena, adicionou - Minha senhora não sabe deter-se, uma vez que consegue a dianteira. Hugh assentiu com um amplo sorriso. Reina quase não pode esperar que seu sogro se afastasse para sussurrar: - Por que me interrompeu, Ranulf? - O que ia dizer não se pode apoiar com provas. - Ainda não enviaste alguém a Warhurst? - Não, e não enviarei ninguém. - Mas por quê? - exclamou ela - Não viu a expressão de Richard quando mencionei que perseguiria a os vilãos atacaram Clydon? É culpado! - Eu sei. - E é preciso informar seu pai. - Não serei eu quem o faça, senhora. Pégasus Lançamentos

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Ela o olhou com incredulidade.

- Por quê? Porque ele é seu irmão? - Exatamente. Um irmão que me inspirou ressentimento por quase toda a vida. E agora... Agora não sei o que sinto por ele, salvo desprezo. Mas não serei eu quem vai ante meu pai com contos sobre ele. - Não conheço néscio pior que... Muito bem. Serei eu quem envia um homem a Warhurst. A mim, ao menos, não me acusará de despeito, embora seja injusto com seu pai ao acreditar que seria capaz de pensar isso de ti. - Não se intrometa nisto, Reina. Digo a sério - ordenou Ranulf friamente - Uma vez meu pai se for, solucionarei isto a meu modo. - Mas ele deve saber! - Não por nós!

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C apítulo 41 Reina pensou muito. Pensou seriamente. E esteve muito perto de desafiar a autoridade de Ranulf para fazer o que acreditava correto. Mas lembrou a inequívoca seriedade com que ele havia ordenado não intervir e decidiu obedecer a seu esposo, ao menos nessa ocasião. Afinal, era preciso começar a ter confiança em seu bom julgamento, e esse parecia um bom momento para isso. Na realidade, Reina teve motivos para alegrar-se de sua decisão, pois o assunto resolveu por si só e muito cedo. Como Hugh não pode alcançar Richard a tempo para dialogar com ele, decidiu segui-lo a Warhurst e enviar uma mensagem a Ranulf, dizendo que retornaria mais tarde. Voltou muito depois. O salão estava deserto e se fez passar diretamente à alcova preparada para ele. Reina tinha a lareira acesa, ali se esquentava água para o banho e se mantinha a comida ao ponto. Hugh estava cansado, mas não só pela fadiga física. Bastava olhá-lo para compreender que havia descoberto por seus próprios meios a verdade sobre Richard. Na realidade, os habitantes da cidade haviam caído sobre ele com queixas, lamentos e acusações de tirania assim que cruzou os portões. - Tudo isto é obra de Ella - disse Hugh, depois de repetir algumas das coisas escandalosas que haviam lhe contado - Não quis casar-se comigo, graças a Deus, mas tampouco permitiu que eu me encarregasse do menino. Queria que se criasse na corte, como ela. As intenções de Reina eram permanecer em silêncio enquanto Ranulf e seu pai resolviam aquilo entre os dois. Mas como seu esposo não fazia comentário algum, não pode suportar a curiosidade. - Não disse que Richard havia sido educado pela família de sua mãe, milord? - E assim foi. Ah, compreendo sua confusão. Esqueci mencionar que Ella é dos Plantageneta. De um galho ilegítimo, é obvio. Pégasus Lançamentos

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Reina ficou boquiaberta. Ranulf nem sequer piscou. Pelo visto, sabia desde o instante em que conheceu a existência de seu meio-irmão. - Filha de Henrique? - perguntou ela, ao recuperar a voz. - Em efeito. E agora já sabe por que essa vinculação agradou tanto meu pai. Mas o tio que Richard mencionou não é o rei Ricardo. Ele mal o conhece. Por desgraça, foi o príncipe João que se interessou pelo menino. E já vêem aonde o conduziu essa influência. - Mas o que se acontecerá se fala com João, como disse? Hugh deixou escapar um bufo de desprezo. - João está muito atarefado com suas maquinações para arrancar a coroa de Ricardo. Essa foi sua obsessão desde a morte do pai. Acredita que pode lhe interessar um inofensivo insulto à sua irmã bastarda? Não, senhora. Meu filho menor gosta de pensar que tem influências na corte, mas na realidade não é assim. Tampouco sua mãe ainda as tem. O homem com quem se casou tinha certo poder em outros tempos, mas o perdeu ao ocupar o trono Ricardo Coração de Leão. O que meu filho possui, possui graças a mim. - O que fará... O que pode fazer, então? Warhurst é de Richard, por sua própria generosidade. - Não, não de tudo. À diferença de Farring Cross, cuja propriedade passou integralmente a Ranulf, Warhurst ainda faz parte de Lyonsford e assim será até minha morte. Meu engano foi atribuir a Richard seu controle, com a esperança de que a responsabilidade lhe ajudasse a desenvolver um caráter mais honrado ou, ao menos, alguma integridade. Em troca, corrompeu o administrador que enviei para que o guiasse e emulasse seus poderosos parentes no pior. - Mas é Chaucer, o castelão? Tratamos com ele. Hugh meneou a cabeça. - Era meu administrador. O castelão era Richard. - Vá, que mentiroso! - protestou Reina, indignada - Fez que com todos os residentes nesta região o considerasse lorde de Warhurst. Pégasus Lançamentos

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Ranulf riu entre dentes ante seu aborrecimento.

- Vamos, senhora, foram enganados por um perito, que aprendeu suas táticas com os melhores mentirosos do país. Não é culpa sua que não soubessem detectar seu engano. - Para você é muito fácil dizê-lo - replicou ela - porque não esteve a ponto de se casar com ele. Ranulf sorriu. - Graças a Deus, não. Hugh se apressou a intervir. - De qualquer modo, não sofrerão mais problemas por conta de meu filho menor, senhora. - E então não pode evitar sorrir, por sua vez - Mas não posso garantir o mesmo por conta deste. Nestes instantes, Richard viaja sob escolta à casa de um primo que tenho na Irlanda. Esse homem não tolera a desonestidade. Alguns anos ali o colocarão no bom caminho. Ao menos, isso espero. - E ele aceitou viajar? - Não perguntei - respondeu Hugh com franqueza. - Entendo. Então tudo fica arrumado, salvo... -Tudo está arrumado Reina - interrompeu Ranulf, seco - Agora vá deitar. Reunirei-me contigo muito em breve. Ela apertou os lábios, pronta para brigar por ver-se despedida desse modo. Aquele homem tinha que aprender boas maneiras. Mas de repente lembrou que havia se livrado com muita dificuldade naquela manhã e preferiu não provocá-lo mais, por esse dia. Mesmo assim, em seu interior havia sentido todo o tempo um demônio dançarino. Foi essa malvada criatura que insistiu em replicar, no momento de abandonar o salão: - Não se apresse por mim, milord. Me encontrará profundamente adormecida. - Não será assim, pois ainda temos algo que arrumar, como lembrará. Pégasus Lançamentos

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Ela abriu a boca, mas voltou a fechá-la bruscamente. Não, não podia referir-se a isso. A isso não! Mas Ranulf se referia a isso. Assim que entrou na alcova, perguntou: - Temia este momento, senhora? Não, não é necessário que responda. Sua conduta do dia fala por si só. Mas algo a induziu ao engano. Reina estava sentada em um banquinho junto à lareira, penteando o cabelo. Ranulf se aproximou da cama e adotou a mesma posição que pela manhã. Ela se limitou a olhá-lo, horrorizada. - Venha, Reina - disse ele com o mais tranqüilo dos tons - Não levará muito tempo. Por Deus! Que bruto, que besta! Como se atrevia a mostrar-se tão tranqüilo? - E se me negar? - Então demorarei mais... Muito mais. Sem dúvida não tinha em conta o tempo que levaria persegui-la por todo o quarto. - Se esta manhã o tivesse deixado sair com sua vontade, não teria se reconciliado com seu pai - disse amargamente - Isso não conta? - O fim não justifica os meios, Reina. Não prestou nenhuma atenção a meus desejos e me obrigou a aceitar os teus. Agora nos asseguraremos de que isso não volte a acontecer. - O que faz é coisa de bárbaros! - Seria coisa de bárbaros se a pegasse com um chicote, senhora - disse, e se pôs de pé. Reina também se levantou de um salto. Entretanto, ele não se aproximou. Reina compreendeu que lhe dava ainda a oportunidade de facilitar as coisas. Valia a pena receber um castigo por um pouco de resistência inútil? Obrigou-se a aproximar-se e se deteve ante ele com a cabeça encurvada. Sentia náuseas pelo medo e o coração palpitante. Não parecia correto manifestar uma débil submissão, mas que remédio restava? Não correspondia a uma esposa opor-se a Pégasus Lançamentos

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seu marido e provocá-lo até sair-se com a sua. E este esposo ia encarregar-se de que ela aprendesse de uma vez, maldito fosse por sua inflexível teimosia. - Sábia decisão - comentou ele enquanto voltava a sentar-se e a deitava em seu regaço - Pode deixar a bata. Será simples levantá-la até onde seja necessário. Ela teve a sensação de que o dizia só para agravar sua humilhação, e deu resultado. O fato de que ele não se mostrasse rude, de que não falasse em tom áspero, piorava as coisas. Sua voz era ronronante, suas mãos agiram com suavidade ao deitá-la sobre as coxas. Reina deixou pender a cabeça para ocultar a cara: apoiou uma mão na cama e outra no joelho esquerdo de Ranulf. Se sentisse a necessidade de levantar-se para sair dessa horrível situação, teria apoio para fazê-lo. Ao menos, isso pensava. Mas a mão esquerda de Ranulf, apoiada no centro de suas costas com uma pressão sutil, insinuava outra coisa. Na cabeça de Reina ressonaram sinos de alarme de diferentes timbres: ele havia começado a levantar a bata. O fez apoiando a mão no dorso de sua panturrilha e deslizando-a suavemente pela perna, para cima, arrastando com ela o tecido. Era uma carícia, simples e direta, e lhe provocou a mais estranha das sensações. Seu corpo não sabia o que esperar, se dor ou prazer, e a mente dava voltas confusamente. Era isso um castigo? Muito cedo a bata ficou levantada até a cintura e retirou a mão. Reina se preparou, fechando os olhos. Ardia-lhe a cara por ter o traseiro nu ante os olhos de Ranulf. Seu coração palpitava em louca corrida. Mas ele não fazia nada e a tensão resultava terrível. Era pior a espera do que o que ele pudesse lhe fazer a modo de castigo. Quando por fim chegou a palmada, foi quase uma desilusão. Quase, mas não de tudo. Ardeu, sim, provocando um grito afogado de dor e surpresa. Esticou os músculos para receber a seguinte. Mas não houve outra. Sua voz disse com suavidade: - Se por acaso não está segura, pequena Reina, esse era todo o castigo que pensava te proporcionar quando te fiz subir aqui, esta manhã. O alívio fez que todos os músculos de Reina relaxassem. Pégasus Lançamentos

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- Mas já que está em posição tão conveniente - adicionou ele - me ocorre outra coisa. Ela abriu os olhos ao sentir um beijo na marca avermelhada deixado por aquela mão. - E isto. Reina aspirou bruscamente. Os dedos de Ranulf deslizavam dentro dela sem nenhuma dificuldade. A anterior carícia a havia preparado para recebê-los. Não havia resistência alguma contra o calor que a inundava. - Certamente, esqueceu que me proibiu de te tocar depois do castigo, disse algo sobre não me perdoar. - Fez uma pausa, lhe atormentando com os dedos - Era certo isso? - Talvez... Mostrei-me um tanto... Apressada. - Ou talvez já não importe? - Os dedos provocaram outro grito abafadoImporta? - Não. - Ao que parece, Alma, A Ruiva acertou outra vez - disse ele, com uma entoação de satisfação - O medo, combinado com uma correta estimulação, pode aumentar o prazer de uma mulher até tal ponto que passe por cima qualquer castigo leve que receba. Reina ficou tensa, mas não tanto para dissipar a névoa de prazer que ele criava com tão impressionante rapidez. - Recorreu outra vez a ela? - Não. Foi uma informação que me ofereceu por gratidão, ante a considerável soma que lhe dei por sua ajuda. E foi muito útil, não? - Ranulf retirou os dedos, voltou a afundá-los, retirou-os, levando Reina até o limite próprio do êxtase - Quer que o ponhamos a prova? Ela acreditava que já estava feito, mas nesses momentos não pensava com clareza. - Como? Pégasus Lançamentos

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- Mencionei que esse era o castigo pensado em um primeiro momento. - A mudança de tom serviu a Reina de aviso - Mas após ganhaste quanto menos outra... - Ra... nulf! - tentou exclamar antes que soasse a palmada. A penosa ardência foi muito pior que a primeira - O que fiz? - chiou. - Provocou-me pela segunda vez nesta mesma alcova, senhora. Repreendeu-me diante de meu pai, lembra? A mão voltou a descer. - Ranulf! - Chamou-me «caipira sem coração», não é? Outra palmada nas nádegas. - Chega! - A voz de Reina cobrou mais volume - Bom Deus, amordaça-me! Disse que me amordaçaria! - Não há necessidade - disse ele bruscamente - Terminei. Reina se encontrou de repente sobre seus próprios pés, não muito seguros. Bastou um olhar de seu esposo para comprovar que estava contentíssimo. E seu traseiro bem podia testemunhá-lo. As palavras seguintes foram uma confirmação. - Não me obrigue a repetir isto, senhora - grunhiu. Ela meneou a cabeça, mas não estava segura de estar afirmando ou negando. No momento, pouco importava. Tinha o traseiro em chamas, mas não ardia tanto como o outro fogo aceso por ele. Sem pensar mais, Reina se deitou novamente em seu colo. - Estou devidamente castigada, senhor. Agora termine o que começou. Não foi necessário pedir duas vezes.

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C apítulo 42 Após poucos dias, Reina entrou em sua alcova e fechou a porta de uma portada, possuída por uma grave irritação. Theodric, que estava limpando o quarto, levantou o olhar com um sobressalto, pensando que se tratava de Ranulf. Certificava-se sempre de não cruzar o caminho do senhor e já não ajudava Reina a banhar-se, mas se recusava que outra pessoa usurpasse o resto de suas funções. Entretanto, só cumpria com elas quando o senhor não estava presente. Como naqueles momentos, as primeiras horas da tarde. Ao ver que se tratava de Reina se tranqüilizou. Um instante depois deu-se conta de que ela tinha um rasgão na manga, o cabelo revolto e sem o lenço de seda e, além disso, trazia nas bochechas um rubor que não era de todo pela fúria. - Outra caída nos matagais, é? - adivinhou o jovem com um sorriso pícaro. Reina virou para lhe cravar um olhar chamejante. - É um bruto! Uma besta! - Esses costumam ser os melhores - suspirou Theo. Reina ignorou o comentário. - Saiu para combater contra Rothwell. Mas antes a tinha arrastado a um estábulo vazio e havia feito amor rápida e apaixonadamente... Para que lhe desse sorte, conforme disse. Com toda a tropa esperando-o! Afastando os palafreneiros com uma só ordem que soou mais como um grunhido! E todo mundo informado por que se atrasava! Mas o que mais a tinha enfurecido era sua falta de juízo. - Não quis me escutar uma palavra. - O que disse? - Que não devia ir, certamente. - Dizer ao poderoso guerreiro que não saísse a combater? - Theo esteve a Pégasus Lançamentos

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ponto de soltar a risada, mas compreendeu que sua senhora, nesse instante, não o toleraria. - Rothwell? Não é ... ? - Sim, o próprio! Ranulf predisse que viria, e assim foi. - Onde está? - Conforme relatório a uma hora de distância na direção norte, e com um exército de trezentos homens. Ranulf saiu com apenas cinqüenta! - exclamou Reina - É uma loucura! Por que não deixar que Rothwell chegue até aqui? Agora Clydon está bem defendido. Poderíamos suportar um ataque de milhares de homens. Mas não, disse que, se Rothwell desse uma boa olhada ao castelo, jamais renunciaria. Quer detê-lo antes que chegue e fazê-lo retroceder pela força das palavras. Só das palavras, Theo! Quando viu que um homem decidido à guerra preste atenção às palavras? - Quando provêm da boca de um gigante decidido a detê-lo. Reina voltou a fulminá-lo com o olhar. Logo franziu o cenho, pensativa. - Suponho que tem algo de razão – reconheceu - Rothwell conhece Ranulf e sabe do que é capaz. Por isso esteve disposto a pagar tanto para contratá-lo. Mas valha meu Deus! Ficará furioso quando Ranulf disser que se casou comigo. E se decide me deixar viúva? Theo riu entre dentes, notando que ela havia encontrado outro motivo de preocupação. - Acha que Ranulf não teve em conta tudo isso, Reina? Ele sabe de estratégia. Combater é sua profissão. Por isso se casou com ele, lembra? - Sei, sei, mas detesto o risco, Theo. O que o impedia de mostrar-se razoável e fechar os portões, considerando que o excedem tanto em número?

Se Reina soubesse que nesse instante Ranulf se adiantava ao encontro de Rothwell acompanhado só por Eric e Searle, jamais o teria perdoado. Entretanto, não era isso o que preocupava Ranulf. Tomou nota dos dez ou doze homens que se separavam das filas para interceptá-lo, com Rothwell à cabeça. Conhecia três deles Pégasus Lançamentos

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de sua primeira entrevista com o velho senhor. Os outros deviam ser vassalos obrigados a acompanhá-lo, pois não pareciam muito satisfeitos de participar dessa campanha. E com isso havia contado o novo senhor de Clydon, apoiando-se no que sabia sobre Rothwell. Tal como também havia previsto, as filas estavam compostas principalmente de mercenários. Ranulf reconheceu vários capitães com quem havia trabalhado em anteriores oportunidades. Ao vê-lo se mexeram nas celas, incômodos. Isso o levou a se perguntar se sabiam por que estavam ali. Seqüestrar uma recém casada não era algo que orgulhasse a ninguém. Ranulf havia deixado seus próprios homens escondidos nos bosques, a suas costas. Alguns estavam à vista, outros não. Desse modo era difícil calcular seu número. Havia esperado Rothwell ali para aproveitar essa vantagem, embora não acreditasse necessária. - Não esperava encontrá-lo ainda nesta região, Fitz Hugh - disse Rothwell quando se encontraram - Como não retornou, supus que tinha decidido não aceitar minha oferta. Ou por acaso não puderam entrar em Clydon e ainda estão tentando? adicionou com um gesto zombador que feriu Ranulf no mais fundo.

Entretanto,

respondeu com tom sereno. - Sua primeira hipótese é a acertada. - Nesse caso, o que faz ainda aqui? - espetou o velho. - Cuido de que não cometa um grave engano. A dama da que desejava apropriarse já não está disponível. Casou-se. - De maneira que por isso não fez nada - resmungou Rothwell. E se aproximou um pouco mais para adicionar - Deveria ter retornado para me dizer isso, mas não importa. Bem, se pode deixá-la viúva. Se o interessar, meu oferecimento segue de pé. Uma sobrancelha dourada se arqueou, interrogante. - Quinhentos marcos por matar o marido? - Sim. - Seria um pouco difícil, milord, pois esse marido sou eu. Pégasus Lançamentos

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Os olhos de Rothwell saltaram. Por um momento se engasgou com sua própria saliva. Quando recuperou a voz, rugiu: - Cria do demônio! Roubou minha noiva! Matem-no! - gritou aos homens que o acompanhavam. Eric e Searle levaram a mão ao punho da espada, mas Ranulf não se moveu. Tampouco os homens de Rothwell, a não ser para dominar seus cavalos, nervosos pelos gritos do ancião. Gritou mais ainda, com a cara inchada, enfurecido pela pouca atenção que se prestava às suas ordens. - O que esperam? São todos covardes? É só um homem! - Também é lorde de Clydon - sussurrou um de seus homens - Pense no que diz. - Roubou-me... - Basta, Rothwell - grunhiu Ranulf, ameaçador - Não lhe roubei nada e sabe muito bem. A dama nunca lhe foi prometida. Nem sequer tinha ouvido falar de você. Mas agora está casada comigo e eu conservarei minha propriedade. Se quer me desafiar, nomeie seu campeão. Rothwell se mostrou encantado ante o oferecimento, mas ao olhar seus homens, para ver quem se bateria, nenhum lhe sustentou o olhar. Uma vez mais se pôs arroxeado. - Covardes! Isso é tudo o que tenho! - Não - corrigiu Ranulf - O que tem é um grupo de homens honrados, cuja má sorte foi tê-lo como senhor. - Isto não terminará assim, Fitz Hugh! - Nesse caso, estarão cortejando a morte - replicou Ranulf, com um tom tão ameaçador quanto as palavras - Esta é minha única advertência. Volte para sua casa e esqueça de Clydon. Do contrário passarei por cima de sua idade e o matarei pessoalmente. Sem esperar resposta, puxou das rédeas e se afastou. Mas havia visto o medo naqueles velhos olhos. Rothwell buscaria outra noiva.

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C apítulo 43 Reina estava no quarto mês de gravidez. Durante muito tempo havia tratado de negar, procurando uma desculpa atrás da outra para se convencer de que não podia ser. Mas teve que abandonar a tentativa ao comprovar que sua cintura se alargava sem que seu apetite tivesse aumentado. Esse dia esteve intratável, comportou-se com todo mundo como uma verdadeira harpia. Depois seu temperamento não havia melhorado muito. Por sorte, Ranulf ficou ausente grande parte desse período, com o qual se livrou de seus piores dias. Aqueles em que, assediada por intensas emoções de sinal contrário, explodia de fúria a menor provocação ou rompia em pranto. Uma e outra vez lhe haviam dito que tudo isso passaria, que eram os hormônios experimentados por seu corpo que a tornavam tão emotiva. Cada uma de suas damas mais velhas assegurava o mesmo. Todas elas estavam inteiradas de seu estado... Todo mundo sabia, salvo o pai da criatura. Mas ninguém sabia o que na realidade a preocupava. Era algo que não queria falar com ninguém, nem sequer com Theo. Theo estava tão entusiasmado pelo bebê quanto os demais. Qualquer um teria dito que era ele que daria luz.

Isso não queria dizer que Reina não estivesse

entusiasmada. Queria a criança como nunca quis nada no mundo.

Já o amava, não

imaginava como estaria então, mas sim como seria quando nascesse, uma vida a proteger e mimar... A fazer malcriação. Um pequeno gigante exatamente como Ranulf. Mas à diferença de Ranulf, ele precisaria dela. Oh, bom Deus, outra vez essas condenadas lágrimas. Reina as enxugou com aborrecimento e abandonou a cervejaria, o insólito lugar que Lady Ella havia escolhido para parir uma ninhada de cinco gatinhos. Depois de não vê-la durante toda uma semana, Reina havia organizado sua busca por todo o castelo, presa de pânico ante a possibilidade de não achá-la antes que Ranulf retornasse. Mostrava-se tão encantado e ansioso pela gravidez de sua gata que ela tinha estado a ponto de revelar sua própria Pégasus Lançamentos

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gravidez. Mas não pode fazê-lo. E estava há tanto tempo adiando que já não seria necessário dizer. Seu corpo havia experimentado grandes mudanças nas três semanas de ausência, e ele notaria assim que a visse; ao menos, assim que a levasse à cama. Céus, quanto temia isso!

Os meses transcorridos haviam sido idílicos e serenos. Desde a visita de Hugh, Ranulf não havia ocasionado problemas. O pai enviou outro administrador a Warhurst, com a ordem de arrumar a bagunça que Richard deixava a suas costas e recompensar os que haviam sofrido injustamente. Os prisioneiros de Ranulf foram entregues ao novo administrador. Depois de um novo julgamento, agora justo, quase todos ficaram livres de acusações. E Ranulf se mantinha muito atarefado, razão pela qual não havia presenciado as trocas de humor que Reina tinha ultimamente. Havia percorrido todos os feudos de Clydon. Partia por alguns dias, às vezes uma semana. Depois de passar um breve período no castelo, voltava a partir. Reina o acompanhou em suas primeiras viagens, até que as cavalgadas começaram a provocar mal-estar. A partir de então apresentou desculpas para permanecer no castelo. Esta nova ausência de Ranulf era a mais longa. Uma viagem a Londres, a convite de seu pai. Tudo ia bem entre eles, ao menos, assim indicava sua carta. Era a primeira que recebia de Ranulf, mas não podia pontuá-la de pessoal. Na realidade, havia sido escrita por Walter, que o acompanhava. Reina tinha se informado pelo próprio Ranulf de que não sabia ler nem escrever. Por isso, também sua resposta careceu de toda intimidade, posto que deveria ser lida por outra pessoa. Reina havia decidido fazer algo a respeito, embora provavelmente Ranulf fosse resistir a aprender, posto que sobrassem escrivãos para essa função. Tudo isso não tinha importância à luz do que ocorreria quando Ranulf descobrisse que sua missão estava cumprida. Havia dado a Reina o filho que ela exigiu no contrato matrimonial. O único motivo de que ele a tornasse objeto de sua lascívia era a seriedade com que tomava as condições do contrato.

Agora acabaria a

sensualidade e, com ela, a intimidade que Reina havia chegado a experimentar com ele. Pégasus Lançamentos

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Ao decidir desfrutar da situação enquanto durasse, não chegou a imaginar que se sentiria desolada quando Ranulf já não estivesse obrigado a fazer amor com ela. Chegaria a pedir que voltasse para seu quarto de solteira? Quanto demoraria para buscar uma amante? Ela poderia perdoá-lo e recebê-lo outra vez quando chegasse o momento de ter outro filho? Porque ela havia pedido filhos, não só um. As perguntas estavam deixando-a louca. Por Deus, tudo isso não devia importar! Nunca imaginou que sua vida de casada seria assim. Certamente, tampouco tinha imaginado que chegaria a experimentar um desejo sexual insaciável e intenso, nada menos que por seu próprio marido. Era puro egoísmo adiar o momento de dar a notícia. Não devia ser fácil para Ranulf ser fiel por tanto tempo. E ela estava convencida de que mantinha a fidelidade, mesmo quando se ausentava de Clydon. O homem que leva sua esposa à cama assim que chega, qualquer seja a hora, e não a abandona durante momentos intermináveis, não esteve procurando prazer em outro leito. Quanto sentiria falta desses momentos... E tantas coisas mais! Afligida com esses horríveis pensamentos, quase não reparou nos visitantes vinham pelo caminho rumo ao castelo. Eles, por sua vez, tampouco prestaram atenção nela. Que motivos teriam tido para olhá-la? Advertida pela cervejeira de que se ouvia um miar de gatinhos depois dos tonéis, tinha posto a túnica mais velha. Se chamasse dez ou doze servos para que removesse os tonéis, seria provável que os gatinhos acabassem esmagados no procedimento. Tudo o que podia fazer era subir sobre eles e arrastar-se ao redor até achar o estreito lugar escolhido pela gata para sua cria e comprovar se realmente era lady Ella. Agora estava coberta de pó e sujeira, mas tinha se assegurado de que a gata de Ranulf estava sã e salva. Teve um momento de relaxamento ao imaginar seu marido arrastando-se por entre esses barris para ver a cena com seus próprios olhos. E o faria, sem dúvida. Quem eram aqueles inesperados hóspedes? Tratava-se de uma dama e um cavalheiro, mas a haviam deixado atrás antes que ela pudesse ver suas faces e identificá-los. Tinham uma escolta de dez homens, elegantemente vestidos e Pégasus Lançamentos

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equipados, mas isso não ofereceu nenhuma pista. Bem, não havia pressa em sabê-lo. Mesmo que se pusesse a correr, não poderia chegar ao castelo antes deles. Uma vez mais, não estava preparada para receber visitas. A ocasião anterior havia sido quando conheceu seu esposo. Desta vez passaria idêntico embaraço dado seu aspecto, quaisquer pessoas que fossem os recém chegados. A novidade havia chamado a atenção de vários cavalheiros que se exercitavam no pátio. As práticas se interromperam por um momento, para recomeçarem quando os visitantes cruzaram o portão interior. O clamor das espadas levantava ecos em todo o recinto exterior. Desde a chegada de Ranulf era um som familiar a essas horas do dia. Clydon contava agora com sete cavalheiros mais a seu serviço e outros tantos escudeiros. Reina viu que Sir William estava treinando um deles. Não desfrutava tanto desde que o defunto castelão partira para Terra Santa. Lá estava também Searle, medindo sua destreza contra um dos novos cavalheiros. Ela havia presenciado os desafios entre Ranulf e Walter. Searle, treinando por ambos, empregava a mesma técnica. Não houve combate, o cavalheiro ficou desarmado em questão de segundos. Também Eric e Aubert estavam ali, observando dois escudeiros que fingiam um combate similar.

Um deles era Lanzo, o reconheceu pelo vermelho de seu cabelo.

Deveria usar o elmo, pois estava usando uma espada de verdade e não uma arma de madeira como as que utilizavam os novatos. Seu adversário era miúdo e tampouco estava completamente armado. O pequeno estava recebendo uma verdadeira surra, quase não podia manter sua espada erguida, muito menos, seu escudo. Reina o viu cair. O que chateou a jovem foi que Lanzo se enfurecesse com o caído. Ela sabia que todo cavalheiro deve aprender a defender-se ainda em terra, pois muitos morriam nessa posição se não estivessem treinados. Mas Lanzo parecia aplicar essa lição com especial brutalidade. De repente acreditou reconhecer o menino estendido no chão e sentiu que seu coração parava. Aylmer? Não, Lanzo não podia ser tão cruel. Aylmer adorava presenciar as práticas dos cavalheiros.

Mas Lanzo não podia ter se atrevido a

desafiá-lo, a lhe dar uma espada para medir-se com ele. Como era possível isso? Pégasus Lançamentos

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Pôs-se a andar, chamando o escudeiro por seu nome. O moço não ouvia nada, seguia brandindo sua espada contra o escudo do menino caído. Logo Reina ficou o bastante próximo para comprovar que realmente era Aylmer quem estava recebendo aquela surra. Então a consumiu uma fúria vermelha e cega. Em segundos estava sobre eles, sem pensar no perigo dessa espada veloz. Só pensava em interromper Lanzo... E o fez dando a Lanzo um vigoroso empurrão que o fez cair ao chão. Imediatamente ajudou Aylmer a levantar-se, afastando os suarentos cachos castanhos dos olhos para examiná-lo, se por acaso estivesse ferido. Comprovou com alívio que não sangrava, mas ainda estava furiosa. O fato de que o menino a olhasse como se fosse louca piorou sua cólera. - Por que fizeste isto, senhora? - Por quê? - chiou a jovem - Estava o matando a golpes e perguntas por quê? Ante seus gritos, os cavalheiros que estavam se aproximando para averiguar o que passava reataram a prática. Eric, que havia tentado interpor-se ao vê-la correr para ali, retrocedeu para não atrair sua atenção. Com um olhar a Aubert informou que tinham problemas, ainda sem saber por que. Aylmer era o único em compreender que Reina só estava preocupada com sua segurança. Neste caso resultava vergonhoso, mas não deixava de reconfortá-lo que uma senhora tão importante se interessasse por ele. Em voz baixa, com a esperança de alegrá-la, disse: - Vou ser cavalheiro, senhora. O coração de Reina afundou ante o orgulho que revelavam essas palavras. OH, Deus, aquela brincadeira era mais cruel do que ela havia pensado! - Quem te disse isso? Foi Lanzo? - Não, ele me ensina por ordens de lorde Ranulf. Mas Lanzo estava me tratando com muita suavidade. Disse a ele que assim jamais aprenderia. - E por isso que acaba com você a golpes? - protestou ela instintivamente, pois o cérebro dava voltas. Aylmer teve a coragem de sorrir, sem dar-se conta de que Reina havia perdido Pégasus Lançamentos

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a cor.

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- Um mês mais e saberei me defender melhor. - Você quer fazer isto? Uma pergunta estúpida. Um menino sem esperanças de aspirar nada, ante a possibilidade de ser armado cavalheiro? Certamente que queria! - Está bem – continuou - Já vejo que sim. Como começou isto, Aylmer? - Pensei que soubesse, senhora. Lorde Ranulf me propôs isso. Disse que alguns cavalheiros sofrem tantas feridas que ficam meio estropiados, mas isso não os impede de brandir a espada e combater. Disse que o pé não tinha por que me incomodar. Vai trazer de Londres uma bota feita especialmente para mim, para que facilite meu equilíbrio. - E Aylmer concluiu, com mais orgulho ainda - Se me desempenhar bem, prometeu me instruir pessoalmente. Os olhos de Reina se encheram de lágrimas. Que outro cavalheiro teria se mostrado disposto a assumir essa tarefa? Sabia que Ranulf não era um bruto insensível, embora ela o dissesse com freqüência, mas fazer isso por ela? Não, por ela não, ele era assim, simplesmente. E por isso o amava tanto... Sim, era certo. Compreendeu com um sobressalto. Bom Deus, quando havia começado isso? Ao descobrir seu senso de humor? Ao compreender que seus bramidos eram pura aparência? Quando ele consultou uma rameira para aprender a satisfazê-la? Fazia tanto tempo? Ou quando ele converteu aquele castigo em uma sensação erótica incrível que jamais esqueceria? Que néscia tinha sido ao enganar-se, pensando que só era lascívia! Mas o que importava agora, se ele não sentia o mesmo? - Senhora? Virou-se. Lanzo, ainda estendido na terra, observava-a com cautela. Reina recobrou a consciência do que acabava de fazer. Tinha interrompido uma prática de cavalheiros e atacado um escudeiro. O escudeiro de Ranulf não estava ferido, mas temia levantar-se se por acaso ela voltasse a atacá-lo.

Entretanto, seu medo

aumentou ao ver que a senhora caía de joelhos a seu lado. Pégasus Lançamentos

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- Lanzo, sinto muitíssimo...

O moço ficou atônito. A senhora se rebaixava a desculpar-se! - Se levante, por favor, milady! - Não, enquanto não me diga que me perdoa. - Levante-se, senhora - rogou ele - Ranulf me matará se ficar sabendo disto! Ela fez uma careta. - A culpada sou eu. Se deve matar alguém, será a mim. Está bem? - Certamente - replicou ele, com um bufo de indignação. Ela sorriu, aliviada, e lhe ofereceu a mão para levantar-se ao mesmo tempo. - Me perdoa, então? - Não há nada que perdoar, senhora - assegurou ele, molesto por tanta insistência - Compreendeu mal, isso é tudo. - Assim foi. Mas para minha tranqüilidade, poderia tratar Aylmer com um pouco mais de cuidado? Até que considere que pode defender-se, certamente. Lanzo assentiu com um sorriso. Reina se afastou, mas compreendeu que Aylmer havia sido informado de seus desejos para ouvi-lo protestar, em tom de queixa: - Oh, milady! Não se deteve. Depois de tudo, o menino só tinha sete anos. Ficavam muitos anos pela frente para fazer machucados e equimoses.

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C apítulo 44 Reina não se lembrou de seus convidados até que Gilbert, que a estava procurando, a achou no edifício de entrada. Lorde Roghton e sua esposa solicitavam teto para passar a noite, pois iam a caminho de Londres. Isso ocorria com freqüência. Quando a corte estava em Londres, duas ou três vezes por semana passavam grupos de viajantes. - Não conheço esse nome. De onde vêm? - Da Northumbria. - Céus, tão longe? Bem, Gilbert, lhe dê uma alcova e faça que se sintam cômodos. Se conseguir cruzar o salão sem que me vejam - acrescentou com um sorriso, contemplando suas roupas imundas - diga que os verei na hora de jantar. - Sim, milady. O senhor esteve aqui faz muitos anos. - Gilbert se sentia na obrigação de lembrar-lhe. - Nesse momento então também solicitou teto por uma noite, mas acabou ficando quase uma semana. Outra coisa que ocorria com freqüência: era costume de quem tinha muitos servos ou um só imóvel. Quando acabavam com suas próprias reservas de mantimentos, passavam vários meses viajando e se detinham em um e outro castelo, onde abusavam da hospitalidade recebida. - Um desses, é? - riu Reina, sem preocupar-se. Clydon podia permitir-se gastos adicionais na hora de comer. Ainda não conseguia identificar o nome, mas o recordou mais tarde, quando viu o homem ao descer para o jantar. Na ocasião da visita anterior de lorde Roghton, ela tinha cinco ou seis anos, o homem lhe pareceu a mais feia das bestas viventes. Ainda era desagradável aos olhos, embora ela já não fosse uma criança e não se deixasse impressionar pelas aparências. Aproximava-se dos quarenta anos e estava ainda mais obeso que antes, mas não era isso o que o tornava feio. Seus olhos eram cruéis, o Pégasus Lançamentos

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nariz, grande e avultado, quase não conseguia dissimulá-los, assim como as duas horríveis cicatrizes, uma entortava sua boca em uma careta permanente, enquanto a outra lhe afundava as bochechas, puxando para baixo o olho esquerdo. A esposa ainda não estava no salão. Reina não pode menos que se compadecer por ela ter de suportar semelhante marido. As coisas teriam sido diferentes se o homem tivesse sido bondoso, mas não era esse o caso. Reina lembrava cada vez melhor aquela primeira visita, em que Roghton tinha se feito insuportável com seus insultos sutis e suas pequenas crueldades, até que seu pai pediu que abandonasse o castelo. Restava por saber se havia mudado em algo. De qualquer modo, a jovem lamentou que Ranulf não estivesse ali para atendê-lo em seu lugar. O senhor estava com Sir Walter e Lady Margaret. As damas mais jovens permaneciam misteriosamente ausentes, e Reina não pode criticá-las por isso, realmente, Roghton era um pesadelo. Searle e Eric apareceram simultaneamente a seu lado assim que chegou ao grupo, que estava junto à lareira.

Mostravam-se

ridiculamente protetores cada vez que Ranulf partia em viagem sem levá-los. Mais de uma vez haviam tido que ver-se com a áspera língua da jovem, em seus momentos de irritação. Mas nesta ocasião cabia agradecer que estivessem com ela. Como Searle tinha se casado com Louise de Burgh, segundo o projeto de Ranulf, Reina só a via quando seu esposo estava em viagem. O casal se entendia bastante bem, considerando que havia sido preciso levar a senhora arrastada, entre gritos e pontapés, até o leito de núpcias. Em sua última visita, porém, a via feliz e contente. Searle parecia ter feito algo com mágicos efeitos. Lástima que ela não soubesse fazer o mesmo com Ranulf! - Ah, Lady Rhian, não é? A menina de cabeleira de bruxa. Ainda recorda de mim, senhora? Reina se enrijeceu. Dois insultos em outras tantas frases? Por acaso o homem acreditava tão idiota para interpretar essas palavras como um engano inocente? Gilbert devia ter dito seu nome. Em todo caso, o idiota era ele, por não lembrar um simples nome de batismo escutado poucas horas antes. Pégasus Lançamentos

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- Na realidade, lorde Ralston - disse, pagando na mesma moeda - Reina é meu nome é... Reina Fitz Hugh. Se o esquecer outra vez, podem me chamar milady, como corresponde. E se eu fosse uma bruxa, não pareceria seguro dormir sob meu teto. Portanto, têm sorte de que não o seja. Ela não era como sua mãe, que costumava passar por cima das insinuações e sarcasmos encobertos, pois pareciam menos importantes que manter a paz em seu salão. Se Roghton acreditava poder cometer impunemente essas tolices ali, estava muito equivocado. E havia conseguido pegá-lo por surpresa. Ele não esperava que a falta de respeito lhe fosse devolvida, muito menos por uma mulher. Desconcertado como ficou, não pode menos que responder cortesmente. - Disseram-me que está recém casada, Lady Reina. - Sim, se uma pessoa segue sendo recém casado depois de quatro meses. Meu esposo está em Londres com seu pai, Hugh de Arcourt. - Lyonsford? - O próprio. Depois disso não voltou a ouvir uma palavra ofensiva. Certamente, era engraçado, já que Clydon era mais poderoso que Lyonsford. Isso devia demonstrar que uma dama, à frente um pequeno reino, era menos impressionante que um senhor guerreiro de menos fortuna... À exceção de que alguém mencionasse como seu parente de esses senhores guerreiros. Quando chegou a esposa, Reina sofreu uma verdadeira impressão, como todos os que a viam pela primeira vez. Em total contraste com seu esposo, a mulher possuía uma beleza assombrosa e incomparável. Era loira, de pele perfeita e rosto de anjo. Até Edwina chiava os dentes de inveja. Era inconcebível que aquela adorável criatura estivesse casada com um homem como Roghton. Quem havia cometido a crueldade de estabelecer uma aliança entre pólos tão opostos? Searle e Eric estavam estupefatos. Na realidade, todos os homens presentes no Pégasus Lançamentos

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salão estavam imóveis e mudos, afetados pela dama de um modo ou outro. Talvez Reina tenha sido a única em reparar na satisfação que experimentava o marido ante a reação provocada por sua mulher. Desfrutava da sensação que ela causava e do horror inspirado pelo fato de que esse ser tão desejável e delicioso fosse seu. Apesar disso, repreendeu à senhora por ter se atrasado, embaraçando-a e incomodando a todos os que ouviram suas palavras, deliberadamente duras. Reina teve a certeza de que o fazia de plena consciência. Era um modo de demonstrar ante todos que ela, realmente, pertencia-lhe. Reina teve pouca oportunidade de conversar com Lady Roghton durante o jantar. O esposo dominava a conversa, enquanto sua mulher permanecia mansamente a sua esquerda, sem pronunciar uma palavra, com aspecto deprimido. Reina tratou de imaginar-se na mesma situação. Na realidade, bem poderia ter sido esse seu destino, se não tivesse tido um pai tão afetuoso. Passava mal só de pensar. Quando Roghton ficou farto, depois de ter engolido tudo o que pôs à mão, seu interesse se desviou para a conversa mais tranqüila que reinava nas mesas inferiores, entre os homens. Reina ficou sozinha com Lady Roghton. Assim que o marido se foi, ela se aproximou de sua anfitriã. Esta se perguntou o que dizer que não soasse a comiseração, mas sua preocupação era desnecessária. A bela loira não vacilou absolutamente, uma vez longe da intimidante presença de lorde Roghton. - Disseram-me que seu esposo é Ranulf Fitz Hugh. - O conhece? - Não estou certa - objetou Lady Roghton - É alto, muito alto, e dourado dos pés a cabeça? A Reina pareceu divertido: - Sim, essa é uma boa descrição. - Então é meu Ranulf - replicou a mulher, excitada - Incrível! Ranulf, lorde de Clydon? É uma pena que não possa vê-lo, mas ouvi dizer que está em Londres, de maneira que certamente o verei lá. Reina a olhou estupefada. Aquela mulher parecia ter esquecido com quem estava Pégasus Lançamentos

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falando. Teria se dado conta desse possessivo «meu Ranulf» que acabava de escapar? Resultava difícil sabê-lo. Sua atitude havia mudado por completo. Agora borbulhava de entusiasmo. - Quando... Quando conheceu Ranulf? - perguntou Reina. - OH, foi faz muito tempo, mas estou segura de que não me esqueceu. - A mulher riu. Foi um som doce e musical - Já pode imaginar que tipo de relação tivemos. Em Montfort todas as mulheres o desejavam belo como era. Como resistir a ele? Se até lhe dei um filho. Anne? Por Deus, aquela mulher era Lady Anne! A surpresa devia refletir-se na cara de Reina, pois a mulher adicionou: - Não sabia? Oh, mas isso não tem nada que ver com você. Os homens nunca são fiéis, já sabe. Pulverizam bastardos por todo o país. Se o próprio Ranulf é um bastardo! Logo sorriu. - Por isso me surpreende tanto que se converteu em lorde de Clydon. Reina tomou um gole de vinho, com a esperança de que isso aplacasse sua repentina fúria. Que tipo de mulher era aquela, que podia dizer semelhantes coisas a uma esposa... A menos que quisesse provocar uma briga entre eles? Walter havia dito a verdade sobre ela. Não era senão uma cadela calculista, apesar de seus doces sorrisos e seus olhares angelicais. E havia tido compaixão dela? - Não me disse o que aconteceu à sua criança - disse. Reina, em tom leve, ao compreender que Anne procurava lhe fazer acreditar que entre Ranulf e ela existia um vínculo. A dama ficou desconcertada. - Não lhe disse isso? O pobrezinho morreu. Fiquei destroçada. - Era um menino? - Acho que... - começou a mulher, duvidando. Mas se apressou a corrigir essa impressão - Certamente que foi um menino. Quem dá a luz sabe. Deus bendito, não sabia, nunca tinha se importado. Para Reina, como para Pégasus Lançamentos

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qualquer futura mãe, aquilo resultava quase tão inconcebível quanto o que essa mulher havia feito com sua filha, fruto de sua carne e de seu sangue. Oh, Por Deus! Reina se levantou, não suportava um instante mais a presença de Lady Anne. - É uma sorte que Ranulf não esteja no castelo - disse. E se afastou. Anne sorriu, sem entender o que, com um pouco mais de sagacidade, teria reconhecido como uma advertência.

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C apítulo 45 Ranulf subiu a grandes saltos pela escada até o Grande Salão, sem cuidar de fazer ruído, apesar de que fosse muito tarde. Havia sentido falta de Clydon. Três semanas era muito tempo para ficar longe de... Bom, era melhor admitir. Não havia sentido falta de Clydon, mas sim de sua esposa. Ainda que fosse caprichosa, temperamental e às vezes insuportável, quando estava ao seu lado o fazia sentir muito especial, como nunca em sua vida: querido, importante e necessário. Ela atendia a todas suas comodidades, cuidava dele se estava doente, repreendia-o se ele se exigia muito, preocupava-se com ele. Ranulf não tinha que estar sempre em guarda para se defender dela nem desconfiar de sua atitude, pois Reina tinha demonstrado ser diferente das mulheres que ele conhecia. Nem sequer suas novas relações com seu pai se pareciam com o sentimento que Reina lhe inspirava. Tinha que dizer a ela, mas não conhecia as palavras corteses que as damas queriam ouvir. Se tentasse ficar lírico, o mais provável era que fizesse papel de ridículo. Além disso, ela devia saber o que ele sentia. Todos diziam que nesse aspecto as mulheres eram intuitivas. Depois de tudo, ele sabia o que Reina sentia. Sabia desde que ela o chamou «tolo» pela primeira vez, pois reservava esse termo para as pessoas a quem amava. Sim, conhecia-a bem. A única coisa ignorava dela era por que estava demorando tanto em lhe revelar que esperava um filho. Mas seu pai havia explicado e também Walter, que havia visto nascer duas irmãs menores, não era raro que as mulheres grávidas se comportassem de maneira estranha. Tendo em conta seus pensamentos e o lugar para onde corria, Ranulf não estava preparado para encontrar-se com aquela mulher no salão às escuras. Ela apareceu tão bruscamente, cruzando-se em seu caminho, que o cavalheiro esteve a ponto de derrubá-la. Quando ia desculpar se, reconheceu-a. As palavras se afogaram na Pégasus Lançamentos

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garganta. Anne o havia visto entrar enquanto tentava despertar seu esposo, que estava ébrio e tinha dormido junto à lareira. Agora se alegrava desse torpor alcoólico. Essa oportunidade era um presente do céu e não pensava esbanjá-la. - De maneira que se lembra Ranulf - disse com satisfação. E adicionou por prudência, sabendo que nenhum homem gosta sentir-se propriedade garantida - Sua esposa quis me fazer acreditar que, ao se casar com ela, tinha esquecido todas suas amantes anteriores. Afirma que tem seu afeto em um punho. A velha desconfiança de Ranulf reviveu imediatamente. Sabia que sua esposa não seria capaz de tais confidências, muito menos com uma desconhecida. Mas isso só demonstrava que quem nasce mentiroso, mentiroso tem que morrer. Anne não havia mudado absolutamente. Era tão bela como sempre. Não, mais ainda, graças às curvas da maturidade. Mas sua alma seguia sendo negra como o pecado. Se houvesse passado um momento na companhia de Reina, por mais breve que fosse, ninguém saberia que maldades poderia ter cometido. Decidiu seguir a correnteza, momentaneamente, embora sentisse vontade de estrangulá-la. Ela estava acostumada a escolher suas palavras com cautela. Tudo quanto dizia era para causar efeito, bom ou mau.

Sem dúvida tinha motivos para

desejar que ele se desgostasse com sua esposa por ser tão linguaruda. - É uma verdadeira surpresa vê-la aqui, senhora. - Acreditava que jamais voltaríamos a nos ver? Eu sempre soube que nos encontraríamos outra vez. - aproximou-se para sussurrar - Não sabe quantas vezes pensei em ti, Ranulf, recordando a paixão que compartilhamos. - Apoiou uma mão no peito - Não há... Algum lugar onde possamos... Conversar a sós? O oferecimento era sedutor. Em outros tempos lhe inflamaria os sentidos, o enlouquecendo de desejo. Agora só lhe arrepiava a pele de repugnância. Olhou a seu redor, os servos dormiam profundamente entre as sombras. - É como se estivéssemos praticamente sozinhos. - Quer dizer... Não importa. - Ela fez uma careta. - Parece ter esquecido com que freqüência procurávamos os cantos escuros. Pégasus Lançamentos

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Ele estava se cansando de esperar que ela dissesse o que desejava. Não desejava a ele, sem dúvida, devia ser algum favor. - Agora sou um homem adulto, Anne. Prefiro uma cama abrigada. - Há uma em minha alcova. - Agora que o menciona, o que está fazendo aqui? Por um momento a expressão da mulher, cuidadosamente dominada, deixou trair irritação. - Não te ocorre pensar em outra coisa? Amávamo-nos, Ranulf. - Eu te amava, ou acreditava te amar. Mas você escolheu outro caminho. - E por isso recebi um eterno castigo! - Então pode expressar suas súplicas com adequado sentimento. - Oh, Ranulf, por Deus, não sabe a que monstro me entregou Montfort. Assinalou com um dedo a lareira, onde se via Roghton derrubado em um banco, à luz de uma vela. - Esse é meu esposo. E sua alma é tão grotesca quanto seu corpo. - Conforme acredito lembrar importava pouco quem fosse o homem - apontou ele, friamente - contanto que fosse rico. - Não compreende o que acabo de te dizer? Equivoquei-me! – exclamou - Ele é bastante rico, sim, mas não há fortuna no reino que possa pagar o inferno em que converteu minha vida ao longo destes anos. Sabe que adestra os falcões para que ataquem às pessoas e os solta sobre seus pobres aldeões, só para se divertir? Isso te dirá que tipo de homem é. Já não o suporto. Fosse verdade ou não, Ranulf não se deixou comover. - O abandone, então. - Acha que não tentei? Deixa-me prisioneira: faz-me seguir e vigiar, e me encerra sob chave em minha alcova quando sai. Ranulf voltou a contemplar o homem adormecido. - Vá agora. Não vejo ninguém que possa te deter. - Me buscaria para me arrastar para casa. Já o fez antes. - Para que me conta tudo isto? Pégasus Lançamentos

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- Você poderia me ajudar, se quisesse. - Como?

Ela se aproximou um pouco mais, até lhe roçar o antebraço com os seios. - Mate-o por mim - rogou com voz sedutora - Disse a seus homens que, se morresse de maneira suspeita, devem me torturar até a morte. E eles o fariam. São tão cruéis e perversos quanto ele. Este homem poderia morrer engasgado com sua comida e eles me matariam. Deve ser desafiado dentro da regra, morrer em um duelo. Por favor, Ranulf, me liberte dele. De maneira que havia justiça, depois de tudo. Ranulf esteve a ponto de soltar uma gargalhada. Ela queria que a libertasse do inferno que tanto merecia? Impossível, mas ainda não diria. - Que motivos teria eu para desafiá-lo? Não vejo em ti marcas de maus tratos. Mais ainda, Anne, me custa acreditar que esse homem não cuide de você como um tesouro. - À princípio foi assim, mas eu não suportava que me tocasse e ele sabia. Acabou por me odiar. Depois me achou com um... com um amante. E o matou com suas próprias mãos. - Mas não te fez nada. - Esperou... esperou que passasse minha dor. Queria que eu sofresse. Isso o alegrava. Não fez nada enquanto me viu sofrer, mas assim que comecei a me recuperar, me pegou. Queria que lembrasse, compreende? A princípio pensava que, ante uma dor tão intensa, uma surra não teria importância, por isso esperou. Tão diabólico que é. E agora me castiga cada vez que olhou outro homem. Oh, Ranulf, por favor! - suplicou, jogando os braços em seu pescoço - Não posso seguir vivendo assim. Se não me ver livre dele logo, me matarei. - Acha que me importa isso? Ela retrocedeu lentamente, com o cenho franzido. Acreditava ter entendido mal. - Em outros tempos me amava - assinalou. Pégasus Lançamentos

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- E agora amo outra.

- A quem? - Como ele não respondeu, seus olhos se alargaram de incredulidade Não pode estar apaixonado por esse ratinho com quem te casaste! - Ratinho? Para mim é a mais bela de todas que conheci em minha vida. - Não diz a sério - soprou ela. O desespero lhe infundiu audácia, fazendo que apertasse seus quadris contra os dele - Tem que recordar tudo o que... Ranulf reagiu com violento desgosto, afastando-a de um tranco. Logo voltou a aproximar-se e lhe segurou a cabeleira à altura do pescoço, puxando a cabeça para trás. Por fim ela compreendeu o que Ranulf havia estado dominando com muita dificuldade: o ódio lhe cintilava nos olhos. A mulher sentiu que a percorria um calafrio. - Matou minha filha, senhora - disse ele, em um grasnido mortífero - Nem sequer a matou com piedade, senão deixando-a morrer de fome. Isso é tudo o que recordo de você. Agora saia de meu lar antes que lhe pague como realmente merece. - Não posso ir sem meu esposo! - Desperte-o imediatamente, então... ou o farei eu. - E o que posso lhe dizer? No meio da noite! - Já lhe ocorrerá algo, senhora. As mentiras são sua especialidade. Ranulf se afastou sem voltar-se para olhá-la. - Miserável filho da puta - disse Anne, mas só quando ele desapareceu - O que pode lhe importar uma bastarda que nem sequer era sua? Devia ter dito. Isso o teria posto em seu lugar. Estúpido! - Deveria dizer sim - disse Walter atrás de dela, em voz baixa - Já me encarregarei de corrigir sua omissão. Isso não acabará com a dor que sofreu durante tantos anos, mas talvez alivie um pouco a lembrança. Anne, que se havia virado à primeira palavra, sorriu-lhe. - Sir Walter, não é? Faz muito que está aqui? - O suficiente, senhora. E ele também se afastou, sem dissimular seu desprezo. Ela o seguiu com um olhar furioso até que ouviu uma cruel gargalhada junto a Pégasus Lançamentos

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lareira. Virou sobre seus calcanhares com uma exclamação afogada, e se encontrou com seu esposo que, acordado, observava-a. - Parece que esta noite não tem muita sorte, não é, querida? Vejo que fiz mal em não ter me deitado antes, pois agora nem sequer tenho cama. Como acha que vou lhe agradecer por isso? Anne, empalidecendo, fugiu do salão até a alcova que lhe atribuíram, onde se aconchegou em um canto. Ainda ali ouvia a gargalhada de seu marido. Isso indicava que tudo o que viu e ouviu o havia entusiasmado. Sendo assim, iria querer deitar-se com ela antes de partir. E isso era muito pior que todas as surras pudesse proporcionar em seguida.

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C apítulo 46 Reina despertou ante a suave carícia de uma mão que lhe tirava o lençol do corpo. Suspirou entre sonhos, mas ao abrir os olhos afogou uma exclamação de susto. Por fim compreendeu que quem estava se deslizando em sua cama era seu esposo. - Céu, Ranulf, me assustou. - Não era essa minha intenção, senhora - disse ele, muito sorridente. Ela ruborizou. Ainda não estava do todo habituada às suas insinuações maliciosas, embora não pudesse dizer o que tinham de objetável. - Acaba de voltar? - Era de manhã, conforme indicava a luz que se filtrava por entre as cortinas da cama. - Não. Cheguei ontem à noite, com Walter. Mas dormia tão pacificamente que não quis despertá-la. Deslizou uma mão pelo umbigo e pensou no que pulsava em seu interior. - Não nota... Algo diferente em mim, Ranulf? - Nada - assegurou ele, lhe beliscando um seio para observar como se erguia o mamilo. - Nada? - Não. Por quê? - Não tem importância - disse ela, mal-humorada. - E você nota algo diferente em mim? - brincou ele. - Só que parece mais tolo que nunca - soprou ela. Ranulf riu de boa vontade e a estreitou contra si. - Por que não diz diretamente, senhora? - O que? Ele voltou a cobrir o ventre com a mão e se inclinou para beijá-lo. - O que me disse Walter, faz quase dois meses. Pégasus Lançamentos

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- Sabe? -exclamou ela - E não mencionou?

- É privilégio da esposa informar o seu marido. Esperava que o fizesse. - Sinto muito. Devia ter lhe dito isso, mas... - Mas o que? - O motivo é muito tolo - disse Reina - Preferia não dizê-lo. Ele se conformou. Seu pai o tinha advertido: «Nunca discuta com uma mulher grávida, pois não imagina as tolices que costumam dizer nesse estado». Além disso, tinha outras coisas em mente, no momento: familiarizar-se com as novas curvas de sua senhora, por exemplo. E a isso se dedicou. Reina se surpreendeu ao comprovar que ele seguia desejando-a, ainda informado de sua gravidez. Não cometeu a tolice de interrogá-lo, mas a confusão, desaparecida por uma hora de felicidade, voltou quando Ranulf separou a cabeça do seio dela para levantar-se. Isso por acaso significava que ele havia se habituado a ela durante esses meses de casamento? Talvez houvesse decidido seguir gozando com ela, grávida ou não. Nesse caso... O sorriso de Reina era brilhante, cheio de alegria e satisfação, até que de repente lembrou. - Oh, Ranulf, esqueci. Temos convidados e deveria saber que... - Tínhamos convidados, senhora - disse ele, aproximando-se da porta para despertar a Lanzo - Partiram ontem à noite. - Partiram? - repetiu ela, surpreendida - Mas por quê? - Ao que parece a senhora compreendeu que não estava segura aqui - foi a única resposta. Reina guardou silêncio. Enquanto o casal se fosse para não voltar, estava satisfeita.

Dois meses mais tarde, chegou um mensageiro de Shefford, com uma chamada Pégasus Lançamentos

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às armas que fez estourar a bolha de felicidade em que Reina vivia. Estava no salão, jogando xadrez com Walter, quando Ranulf entrou para dizer-lhe. Parecia que, lorde Rothwell havia procurado outra herdeira: a sobrinha de lorde Guy, nada menos, e que, além disso, era pupila dela. O castelo onde vivia a moça, em Yorkshire, estava sitiado fazia várias semanas, mas Sir Henry acabava de inteirar-se e havia decidido que necessitava dos serviços de Ranulf. Reina se opôs imediatamente e com firmeza. - É só uma prova e não me agrada. Sir Henry poderia ter convocado cinco ou seis senhores que estão mais perto de York, e assim penso dizer-lhe. Não tem por que ir, Ranulf. - Morda a língua, mulher - replicou ele, incrédulo - Me enferrujará o braço com o pouco uso que lhe dou aqui. - Quer combater quando não é necessário? -gritou ela. - Quero combater porque me agrada combater! - gritou ele, a sua vez. - Para isso me prepararam e é o que mais me agrada... Além de fazer amor contigo. As bochechas dela se acenderam e voltou a explodir. - Não se importa o que eu sinta, não é? Depois de tudo, só sou sua esposa. - Não seja caprichosa, senhora - troou Ranulf - Rothwell é um perfeito idiota. Sairá a toda carreira assim que veja que chegam reforços. - E se não fugir? - protestou ela - Te amo, grandíssimo tolo! Como vou gostar que te sangre em uma batalha sem sentido? - Eu também te amo, mas não vou perder uma boa diversão só para te manter tranqüila. - Vá, então! Não me importa! Reina se afastou, mas só uns passos. Logo correu outra vez ao peito de seu marido. - Me ama? - Sim. - Seriamente? Pégasus Lançamentos

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- Sim. - Ele sorria de orelha a orelha. - Eu também te amo. - Eu sei. Ela se afastou para golpeá-lo.

- Bom, pois eu não sabia! Podia ter me dito isso! - E agora, quem é a tola? Disse isso cada noite, ao tomá-la em meus braços. Digo-lhe isso da única maneira que sei fazer. - Não, milorde. Acaba de dizê-lo com mais clareza - disse ela, com lágrimas de felicidade nos olhos - Não importa que tenha gritado. É o que desejava ouvir. - Essas palavras? - Sim. - Mas dizem tão pouco... - queixou-se ele. - Se eu quisesse ouvir frases de trovador, milord, contrataria um. De você só preciso escutar «te amo», de vez em quando. Ranulf riu entre dentes. - Como desejar general. Ela levantou a boca para um longo beijo. Ranulf tinha deixado de levantá-la até sua própria altura fazia um par de semanas, ao experimentar um exuberante chute de seu filho, que esteve a ponto de fazer que a soltasse. - E agora - murmurou ela, com um ronrono satisfeito - se esquecerá dessa tola guerra? - Não. - Ranulf! - Mas ainda te amo - ofereceu ele. Ela o fulminou com um olhar furioso e partiu a grandes passos. - A irritação não durará - assegurou Walter, sem poder dissimular sua diversão - Nunca dura. - Mas quando passar já não estarei aqui. - logo Ranulf sorriu - Detesto perder essa parte. É sempre muito... muito expressiva quando perdoa. Pégasus Lançamentos

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Walter pôs-se a rir.

- Alguém deveria repetir a ela o que acaba de dizer. - Morda a língua! Se ela descobrir por que a provoco com tanta freqüência, cobrarei em sua pele o que perca.

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C apítulo 47 O inverno se fechou ao redor de Clydon com uma branca cobertura de neve que não desapareceria até a primavera. Em segredo, Reina adorava essa época do ano, embora as vinhas ficassem rançosas e mofadas e os homens, irritáveis pela inatividade. Era uma temporada em que as mulheres podiam dedicar-se às coisas para as quais nunca havia tempo. Começavam e acabavam tapeçarias antes que terminasse a estação, costuravam peças para as ocasiões especiais do ano vindouro, tiravam do chapéu novos talentos e se experimentava receitas novas. Eram meses abrigados e cômodos, com todas as lareiras acesas. Nesses dias, as relações se tornaram mais sólidas. Se uma mulher desejava conceder o luxo supremo de passar o dia na cama, sem fazer nada, bem podia fazê-lo. E Reina o fazia com freqüência, simplesmente porque sua pequena constituição encontrava dificuldades para levar tanto peso adicional. Ranulf a chateava sem misericórdia por seu novo volume. Assegurava que, de tanto que gostava de vê-la assim, se encarregaria de lhe fazer aumentar de peso com freqüência. Surpreendia-a voltando para o castelo com muita mais assiduidade do que ela havia esperado, considerando que Sir Henry ainda estava em pé de guerra. Ranulf se apresentava em todas as festividades: esteve em casa na festa de Reis, para repartir as bonificações aos servos: as roupas, os mantimentos, bebidas e a lenha que constituíam o tradicional presente de Natal. Nessa ocasião ficou até na segunda-feira do Arado: a primeira segunda-feira depois de Epifanía data em que os aldeões faziam correr seus arados pelos pastos comunitários, para determinar quantos sulcos poderia semear cada um esse ano. Mas Ranulf não chegou à única festividade a qual Reina não esperava que faltasse: a Candelária, ao iniciar o segundo mês do ano novo. Já havia passado uma semana desde então, Reina devia dar a luz a qualquer momento e ele continuava sem Pégasus Lançamentos

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aparecer. Posto que tinha prometido estar ali para o parto, o que restava pensar, senão que algo horrível havia acontecido? Walter se apressou a dizer que era uma tolice preocupar-se. Ranulf não o tinha levado consigo a essa campanha e a ele não incomodou ficar, pois estava recém casado com Florette. Mas o que sabia ele dos medos femininos? Entretanto, Reina sabia que ele estava certo.

Rothwell tinha escapulido para sua casa, tal como Ranulf predissera, mas esse não foi o fim. Sir Henry decidiu que necessitava uma lição por tanta audácia e levou o exército de Shefford a oeste, para sitiar o castelo de Rothwell. O sítio se mantinha fazia dois meses, com poucos combates. Os quarenta dias de serviço de Ranulf haviam expirado, mas que importava isso quando alguém se divertia? O fato de que ele decidisse permanecer junto a Sir Henry provocou outra briga conjugal, que ganhou ele, é obvio. E ela o perdoou, como sempre. Esse patife adorava os desafios, os desafios de qualquer espécie. Seria muito importante acostumar-se a esse aspecto da vida em comum. Ficaria mais fácil com o correr dos anos. E em outras ocasiões demoraria para retornar e ela adoeceria de preocupação. Também teria épocas de amor para compensar tudo. Na realidade, do que podia queixar-se? De que Ranulf não estivesse presente ao nascer seu primeiro filho, que chegou a tempo e sem complicações? Sim, Reina prometeu fazê-lo pagar. Entretanto, tudo ficou esquecido assim que ele entrou na alcova, apenas uma hora depois de terminada a dura prova, e foi diretamente para o leito para tomá-la em seus braços. Estava contrito e jubiloso, tudo ao mesmo tempo. Como repreendê-lo quando a enchia de amor? E trazia uma boa desculpa para justificar sua demora. Lorde Guy havia voltado para a Inglaterra, por fim, e Ranulf foi convocado a Shefford para a primeira entrevista, e se entenderam muito bem. O senhor havia chegado a insinuar que não o desagradaria ser escolhido como padrinho do primogênito. Reina não pode Pégasus Lançamentos

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senão rir. O grande senhor feudal não estava acostumado a ser sutil ao expressar seus desejos. Ranulf devia tê-lo impressionado muito favoravelmente. Portanto, ela podia despreocupar-se nesse aspecto. O pequeno engano que seu pai levou a cabo para seu bem jamais sairia à luz. E sua última vontade estava cumprida: ela havia se casado com um homem de sua própria escolha, tal como ele desejava.

Theodric, cantarolando suavemente, balançava Guy em seus braços. O bebê (tinha já três meses) dormia profundamente, mas ele não tinha pressa alguma por deitá-lo. Wenda estava penteando a cabeleira de Reina, ainda úmida pelo banho. Theo já não se queixava porque a moça tinha usurpado suas funções, posto que ele tinha a seu cargo o cuidado de Guy, a quem adorava. Quando se tratava de preocupar-se com o menino, era pior que qualquer mãe. Reina pensava às vezes que ele a invejava por poder amamentá-lo: também disso teria se encarregado, se tivesse sido possível.

Lady Ella se pavoneava no centro da cama matrimonial, enquanto sua última ninhada de gatinhos pulava no chão, fazendo que Wenda risse a cada instante. Também divertiam Reina. Não tinha gostado que sua nêmeses parisse sob sua cama, depois de ter se introduzido furtivamente. Reina tratou então de transladá-la ao hall, mas lady Ella miava e arranhava a porta até que a abriam. Em seguida recolhia o gatinho que havia levado até lá e entrava correndo. Ranulf, sem dizer uma palavra, deixou a decisão por conta de Reina. Que decisão? A gata estava decidida e não havia nada mais que fazer. A porta se abriu, dando caminho a Ranulf, para alegria de Reina. Posto que lorde Hugh havia chegado essa mesma tarde, ela havia temido que seu esposo não se retirasse até muito tarde. Mas ao ver a cara de horror com que olhava Theo e Guy, Reina amaldiçoou para si mesma. Se Ranulf não havia descoberto antes que Theo estava encarregado do menino, era só graças a ardilosa tarefa de sincronização do jovem. Ranulf não perdeu tempo em preliminares. Limitou-se a uivar: Pégasus Lançamentos

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- Fora!

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Theo já não tremia de medo cada vez que Ranulf soltava um de seus rugidos. Depositou Guy em sua cesta, com muita suavidade, e se retirou muito rígido. Reina fez um sinal a Wenda para que recolhesse a cesta e os deixasse sozinhos. A disputa que estava a ponto de iniciar-se podia cobrar dimensão suficiente para alterar o sono do filho. - Ofendeste Theo - começou, com bastante serenidade. - E farei muito mais que ofendê-lo, se voltar a descobrir esse efeminado perto de meu filho, senhora. Não quero que Guy sofra influências... - Não empregue essa desculpa, Ranulf - interrompeu ela, áspera - O único que pode influenciar seu filho é você, e bem sabe. Não aceitará outra coisa, e ambos sabemos. Quanto a Theo, passou toda sua vida neste castelo. Nesse tempo criou a dois bebês e três crianças, eu mesma incluindo. E poderia adicionar que fui a única menina a quem atendeu. Nenhum de nós recebeu dele influencia adversas. E é muito difícil que assim ocorra. Ao ver que ele a escutava, e que já não tinha o cenho tão franzido, adicionou com mais suavidade: - Ama a Guy como se fosse seu próprio filho. Jamais fará nada que possa prejudicá-lo. E o que é mais importante? Que seu filho receba o melhor dos cuidados ou que você siga zangado porque Theo admira seu magnífico corpo? Ela o surpreendeu com a guarda baixa. - Magnífico? - Sim - respondeu ela, esboçando um sorriso. - Não sabia que pensava isso. Estava envergonhado? Bom Deus, como amava esse homem, com todas suas peculiaridades, seus defeitos e suas adoráveis qualidades! - Não lhe disse isso, milord? - Não. - Mas devo haver ter demonstrado isso. Pégasus Lançamentos

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Realmente Ranulf sentia vergonha. Reina sorriu mais ainda e se aproximou lentamente. Deliberadamente, deixou que a bata deslizasse por um ombro e viu que os olhos de seu marido se acendiam. Talvez tenha se desconcertado por um momento, mas não durou muito. Na verdade, durou tão somente o tempo que ela demorou em ficar junto a ele. Então se viu suspensa no ar. Assim haviam se conhecido. A única diferença era a paixão que ardia agora nos olhos de Ranulf, tão diferente da irritação. - Pelos cravos de Cristo, mulher, quando me olha assim... - Que esperas? - perguntou ela com voz sedutora. E jogou os braços ao redor do pescoço dele, rodeando-o até que entre eles não ficou espaço algum - Quer que eu te arraste até a cama, para variar? Não teve que perguntar duas vezes.

Fim

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