Livro "A Obra" - Capítulos 1 e 2

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de Antonio Simão

Copyright © 2013 Antonio Simão

Coordenação editorial: A. C. Scharrenbroich

Projeto gráfco: Antonio Simão

Imagem da capa: Antonio Simão

Revisão: Kyanja Lee e Cristiane Conceição Silva

Impressão e acabamento: Viena - Gráfca e Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Simão, Antonio

A Obra : preparado para reconstruir sua vida?/ Antonio Simão. n São Paulo: Edição do Autor, 16/11/2013

n ISBN: 978-85-916598-0-7

Índices para catálogo sistemático

Romance : Urbano fantástico : Ficção : Drama : Literatura brasileira B869

Todos os direitos reservados à Antonio Carlos Scharrenbroich Simão.

Tel (55 11) 98778-2616

www.livroaobra.com.br

scharrenbroich@hotmail.com

Índice Introdução ................................................................................. 11 —Desamor— ............................................................................ 13 Prólogo ...................................................................................... 15 Capítulo 1 .................................................................................. 17 A notícia que tira tudo do lugar .............................................. 23 Capítulo 2 .................................................................................. 27 Capítulo 3 .................................................................................. 33 Capítulo 4 .................................................................................. 47 Capítulo 5 .................................................................................. 55 Capítulo 6 .................................................................................. 63 A verdade sobre o Pee-paper ................................................... 67 Capítulo 7 .................................................................................. 87 Capítulo 8 .................................................................................. 91 Capítulo 9 .................................................................................. 99 Relatório preliminar de avaliação técnica da Obra ............. 116 Capítulo 10 ............................................................................... 119 Capítulo 11 ............................................................................... 133 Segundo relatório de avaliação técnica da Obra .................. 143 Capítulo 12 ............................................................................... 155 Capítulo 13 ............................................................................... 161 Capítulo 14 ............................................................................... 163
Terceiro relatório de avaliação técnica da Obra................... 168 Capítulo 15 ............................................................................... 171 Capítulo 16 ............................................................................... 175 ...(...)... ....................................................................................... 180 Capítulo 17 ............................................................................... 183 Capítulo 18 ............................................................................... 189 Capítulo 19 ............................................................................... 195 Capítulo 20 ............................................................................... 199 Capítulo 21 ............................................................................... 201 Capítulo 22 ............................................................................... 205 Capítulo 23 ............................................................................... 209 Capítulo 24 ............................................................................... 219 Capítulo 25 ............................................................................... 227 Relatório FINAL de avaliação técnica da Obra ................... 229 Epílogo ...................................................................................... 235

Aos meus flhos Miguel e Lorenzo. Que possam me amar na mesma medida que devemos amar a um mendigo e que, com o tempo, consigam entender o signifcado disso.

AGRADECIMENTO ESPECIAL PARA:

Marcio Simão - irmão, sem sua ajuda, a Obra não existiria; Claudio Simão - irmão e incentivador;

D.a Sônia - mãe, avó, amiga. Saudade; Danielle - causa e efeito da Obra; Marcos Milan - quando desnudas, ajudou a vestir minhas palavras com roupas de domingo; Nicolly - obrigado por estar sempre ao meu lado.

INTRODUÇÃO

Uma obra precisa começar por algum lugar e, ainda que pareça o começo, também poderia ser o fm de um longo processo de amadurecimento, ou mesmo a razão fnal do desejo que me trouxe até estas folhas, antes brancas. Dei forma às palavras, compondo frases inteiras ao acaso, até onde me lembro, vindas de outras obras já completas, outras imaginadas e até mesmo reais. Um tijolo aqui, outro acolá, dispostos segundo o grau de minha loucura. Assim, que ninguém se engane ao tentar procurar nestas linhas que seguem razões pessoais para acreditar, mesmo que parcialmente nesta história. Devo esclarecer: o que será exposto não se trata de nada menos que uma meia-verdade.

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Eu, a partir de agora exercendo a plena razão de quem já não namora, revogo para sempre lembrar de quem foi embora

E que valha para todos esse remédio que serve para aliviar a dor no peito, o gemido das noites mal dormidas e da risada interrompida

Então, para quem sofre do desamor alheio, lua cheia tá banida para sempre! Não pode nem apontar no horizonte, porque já se chora aos montes só de ver o brilho da aurora

E que fechem todos os parques onde se namora, quebrem todos os bancos de praça, joguem tudo fora!

O desamor de quem foi embora não merece nem uma lágrima de quem sozinho não se consola

Aliás, proibido chorar também: engole o soluço, corra mundo afora faça o que for, mas não se chora

Proibido também falar o nome de quem desamou da gente. No meu caso nem vou dizer para não ter esparrela mas a você vou contar o que signifca o nome dela: saudade.

—Desamor—

PRÓLOGO

Foi como um choque de mil volts sacudindo seu corpo; ainda assim, não caiu. Ficou em pé, tremendo num trincar de dentes e arregalar de olhos. Apesar de tudo o que já sabia sobre aquele lugar, ainda questionava-se se o que estava vendo ali era mesmo real.

Refez mentalmente o trajeto desde que entrou na escuridão daquele imenso salão sem teto e de paredes ásperas de reboco. Dera apenas alguns passos da porta de acesso à cobertura da obra até uma pilha de tijolos, quando um gosto ferroso de sangue invadiu-lhe a boca. Segurando-se para não tossir, passou, com todo cuidado, os dedos sobre a ferida aberta na garganta; a mão voltou tingida de vermelho. Tirou a gravata do colarinho e amarrou-a mais abaixo, em volta do machucado. Fechou os olhos e apertou o nó com força.

Dor, sangue, o baque de seu corpo no chão. Então, tudo escureceu.

Dizem que a morte é precedida por um estado de alucinação que todos iremos experimentar. Que o cérebro de quem está prestes a morrer cria visões, sons e sensações que têm como objetivo confundir o raciocínio lógico para que percamos a noção exata do momento em que a vida se rompe.

Se é mesmo assim, o engenheiro Rubens agora se encontrava no ápice daquilo tudo. Estatelado no chão, teve tempo para revisitar sua história desde o início, assistindo aos principais eventos de sua vida como quem assiste a um flme pela enésima vez. Pleno dos direitos patrimoniais da própria existência, cortou as partes tristes, deletou o que deu errado e emendou cada um dos episódios numa versão melhorada do que poderia ser uma realidade perfeita. Ficaria ali brincando de Deus para sempre se aquela insistente voz o deixasse em paz.

— Levante-se, engenheiro Rubens, a sua obra ainda não terminou. Semiconsciente, tombou a cabeça para o lado e abriu uma pequena fresta entre as pálpebras melecadas de sangue. Sorriu.

A esperança voltara. Morrer teria que esperar.

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CAPÍTULO 1

Meteu

Quando caímos, é mais fácil admitir um terremoto do que a nossa própria falta de equilíbrio.

a chave na porta e assim permaneceu um instante, sem a abrir. Se pudesse, dormiria num hotel.

Isso não seria solução alguma, refetiu. Se eu dormir uma semana fora de casa, ainda assim, quando voltar, passarei a primeira noite sem ela. Então, a primeira noite será a primeira noite!

Avançou pelo apartamento de um quarto na mais completa escuridão, como um túmulo. Acendeu a luz da sala e tentou não fxar o olhar em nada. Estava decidido a trocar de roupa e deitar-se o mais rápido possível para acordar num dia diferente. Antes de fechar a porta, sentiu atrás de si a corrente de vento que passou fria, em silêncio. Olhou em direção à sacada, na extremidade oposta do pequeno aposento, e notou a cortina de algodão se mexendo. Danielle havia deixado uma abertura para arejar o ambiente.

Danielle!

Fechou a porta de vidro. Voltou e sentou-se no sofá, tirando cuidadosamente seus sapatos; os pés estavam cheios de bolhas. Tomou 30 gotas de Lexotan e fngiu que dormia.

Ao sair da padaria naquela manhã, tinha decidido deixar o carro estacionado ali mesmo e andar até a rua da praia, seguindo à esquerda pelo calçadão sentido Pontal Norte. De lá, voltou andando pela areia até a Barra Sul. Fez isso por horas, perdendo a noção das horas. Parou apenas quando a escuridão se impôs no horizonte e o corpo dolorido gritou: “Chega!”

Acendeu um cigarro e colocou os pés sobre a mesinha de centro. Queria evitar olhar para as coisas que o lembravam dela, mas ele estava “cercado de Danielle” por todos os lados. Em tudo, havia um gesto dela: o esforço em deixar o ambiente mais bonito; a tentativa de fazer o lugar mais um lar, mais mulher, menos amante, mais humano, aconchegante. Ela queria mais que um apartamento para morar; ela queria o mundo.

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Recordou-se de quando chegaram ali tantos anos antes. Vinham de Belo Horizonte para morar em Balneário Camboriú, e essa mudança já era um sonho de mundo. A outra parte era só a realidade, um apartamento para alugar perto da praia. Simples assim.

A cidade crescia ao longo dos quase oito quilômetros de orla. Havia ruas e lugares privilegiados. A Avenida Atlântica separava o calçadão da praia dos altos e luxuosos prédios, com suas enormes sacadas com vista para o mar e para a “Ilha das Cabras”, a pouco mais de seiscentos metros da praia, quase que exatamente na metade da extensa faixa de areia. Paralela a esta, prolongava-se a Avenida Brasil e seus cafés, e o encontro do solitário shopping center, do comércio elitista e suas grifes, e dos prédios de classe média-alta antropofágica, meio pós-consumo. Em seguida e também paralela a ela, surgiu a Terceira Avenida, que foi assim batizada por ser a terceira avenida depois da praia. Nela, o comércio em geral era mais modesto e com preços mais frugais; os prédios, já na maioria com apartamentos sem sacada, eram a solução parca de moradia do balneário. Na luta entre o sonho e a realidade, furtiva e calma, ela se impunha.

Alugaram um apartamento em um prédio pequeno e amarelo de três andares, numa travessa da Avenida Brasil ‒ a duas quadras da praia, portanto. E assim que seus móveis chegaram de Belo Horizonte, Danielle fez questão de posicionar toda a mobília do jeito dela, demarcando assim o território do seu mundo de mulher.

Na sala, colocou com precisão o jogo de sofás de dois e três lugares em “L” e fechou um imaginário quadrado com uma estante de madeira escura de um lado e um rack com a televisão do outro. Próximo à parede envidraçada que dava para a sacada, colocou a mesa de madeira com quatro cadeiras, fazendo assim um ambiente feliz de jantar. Na cozinha apertada não pôde fazer muita coisa, pois já havia um velho conjunto de armários. Então, como uma menina que brinca de casinha, ela cobriu tudo com toalhas e paninhos rendados do seu enxoval colorido de mulher feminina que era, porém, longe dos paninhos, quando me olhava enfurecida, ela era um homem e eu tremia. Passou o dia fazendo isso e, ainda no dia seguinte, fez uma procissão a várias lojinhas para comprar penduricalhos e objetos de decoração tipicamente praianos. No fnal de uma semana, o pequeno apartamento seguia modesto e alegremente decorado por minha menina-menino.

Deveria ter saído, fugido enquanto havia tempo! Isso tudo é ela, não sou eu!

Decidido, apagou o cigarro e foi até a cozinha. Além do fumo, ele tam-

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bém zelava o vício de tomar várias xícaras de café por dia. Pensou na bebida negra e estimulante, nos cigarros, nos vícios e nas virtudes. O vício nada mais é do que uma virtude fora de moda, refetiu, dando mais uma tragada. Consumia uns cinco ou seis cafés expressos na rua e mais uns dois ou três quando chegava em casa. Ganhara do seu irmão Reinel uma pequena máquina de café expresso, que acabou sendo, em pouco tempo, o utensílio doméstico mais usado por ele.

Quando passou ao lado da estante, notou a luz vermelha piscando. Era o alerta da secretária eletrônica. Apertou o botão do aparelho e entrou na cozinha. Enquanto preparava seu expresso, ouviu a voz imberbe e cantada do jovem atendente da locadora de flmes:

“Olá, seu Sauer! É o Fernando da locadora, tudo bem? Então, só estou lembrando o senhor de que o flme A FELICIDADE NÃO SE COMPRA já está atrasado cinco dias! É que tem um cliente querendo muito alugar ele.

Abração!”

Suspirou chateado. Iria pagar relocação de um flme que tinha alugado para ver com ela, mas acabaram não assistindo. Amanhã iria à loja devolvê-lo. Apertou o manípulo da máquina de café com força e acionou a tecla. Um flete de café ígneo e aromático começou a cair lentamente na xícara branca de louça fria. Eu e ela.

Outra voz, desta vez feminina e formal. Era do Recursos Humanos de uma empresa na qual ele concorria à uma vaga no setor administrativo. A moça lhe agradecia por ter comparecido à dinâmica de grupo dias atrás, dizendo que por ora a empresa decidira promover um talento interno para a posição em questão.

Promoveram nada! Escolheram outro, isso sim! Não era a primeira vez que ele recebia uma desculpa esfarrapada. Para preservar a autoestima dos candidatos, as empresas empregam o artifício de dizer que desistiram de contratar e promoveram um funcionário da casa.

Autoestima... Riu, como se fosse possível tirar-lhe aquilo que não mais lhe pertencia.

A voz seguinte pareceu ser de uma mulher mais velha. Com uma rouquidão nicótica, a senhora perguntava se ele já vendera a máquina de café que ela tinha visto no anúncio do jornal, e deixou um número para que ele retornasse. Foi então que ele se viu velho, quase sem ar, numa sala escurecida pelo chorume da borra do café, tal qual ela ‒ envelhecido, amargo,

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solitário com seus cigarros e o pulmão enfraquecido, jornal na mão, procurando uma máquina de café usada, obsoleta como ele. Sauer fez um carinho na máquina como se dissesse: Tudo bem, minha amiguinha, ainda não decidi te vender. Com ele desempregado havia dois meses, Danielle, prática como ela só, achou que deveriam vender a máquina de café.

Você desce e toma seu expresso na esquina, não precisamos de uma máquina de expresso em casa! ‒ ele se lembrou dela falando. Era masculina quando se tratava de resolver algum problema. Enquanto ele pensava dez vezes antes de tomar alguma decisão importante, ela agia.

Pingou adoçante no café, mexeu e, quando deu o primeiro gole, engasgou. Tossiu fortemente ao ouvir a voz que surgiu da secretária eletrônica. Largou o café e correu para a estante; pegou o aparelho e puxou-o até a mesinha de centro; sentou-se e fcou vidrado ouvindo.

“Oi, cheguei. Nem vou desfazer as malas, tô indo ajudar o meu pai na loja. Ah, deixei roupa sua pendurada, tem que recolher senão fca com cheiro ruim e... bom, isso é com você agora. Tchau.”

Pausa, silêncio; uma criança grita seu grito infantil ao longe num eco entre os prédios; um cachorro late seu latido canino; um freio agudo para num átimo antes das pernas do pedestre incauto. Silêncio.

Sauer voltou e ouviu a mensagem mais uma, duas, três vezes. Interpretou como sem fundamento cada palavra dela, as nuances na voz; fez conjecturas, juízos. Ficou contente por ela ter chegado bem, mas isso não diminuía a tristeza fxa pela partida. Mais um cigarro e fcou jogado no sofá pensando em como conseguir ver o lado bom daquela separação.

Ouvira falar que quando alguma coisa acontece é porque tem um motivo, uma razão. Até mesmo para a falta de razão há uma razão, ou não?!

E que coisas boas surgem de grandes tragédias. Vejam as grandes guerras mundiais, que prodígio para a aeronáutica, a mecânica, a medicina!

Eu ganhei a liberdade de um homem solteiro! Posso sair e conhecer outras pessoas, afnal. Não sou feio e, pensando bem, tenho um papo interessante! Não sou convencido, isto é certo, enfm.

— É isso mesmo! ‒ disse num tom alto e frme, avalizando seus próprios pensamentos.

Puxou o aparelho para perto, ouviu a mensagem da senhora interessada na máquina de café, anotou o número num papel e apagou a mensagem; apagou todas. Levantou-se e fcou andando pela sala em círculos, como

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um cão faminto sem dono procurando um lugar para deitar no cimento frio, planejando o que faria daquele momento em diante. Uma certeza: não ligaria para ela.

Foi embora, então, que viva sem mim, que aguente as consequências! ‒ pensou, quase com ira napoleônica, um general e seus comandados, com a única certeza do maço contendo 9 cigarros com fltro. Percebeu a seguir que esse era o único caminho. Sentir raiva, ser forte como a morte. O coração acelerou e já podia sentir até desprezo por aquela mulher. Agora posso sair de casa só de camiseta quando eu quiser, sem ter alguém dizendo pra eu levar uma blusa ou guarda-chuva! Entendeu que realmente podia sentir até mesmo ódio dela, sim, por que não? O mais fno e abjeto sentimento humano, o mais completo desprezo, a ausência, o vazio.

Está funcionando! – podia quase perceber o coração tamborilar por todo o corpo, jogando adrenalina e raiva por onde corria sangue. Sentia-se grande como uma montanha; não seria uma mulherzinha qualquer que mudaria isso. Correu para a estante e pegou um pequeno porta-retratos com a foto deles, tirada ali mesmo na sala, uns dois meses antes.

Não se lembrava do dia exato, mas era fnal de junho e eles tinham ido para a Praia Brava, uma pequena praia de surfstas, separada das demais apenas por um morro. Na ocasião, quiseram aproveitar o dia quente de fnal de outono. Somente quando voltaram, ela fez o almoço. De súbito, o aroma delicioso invadiu o apartamento de sua memória, o olfato lhe dizia coisas.

Que se dane, eu também sei cozinhar!

Segurou a foto abaixo dos olhos, com uma careta de raiva. Não se permitiria sentir falta dela. Ela é quem sentiria a falta dele e suplicaria para voltar para casa em menos de uma semana, apostou.

— Não estou nem aí para você! ‒ disse, olhando fxo para a foto e, nesse momento, seu coração quase parou.

O refexo no vidro emoldurado lhe devolveu uma imagem completamente oposta à expressão de meter medo que desejava se autoimpor. Em vez disso, lá estava alguém que não parecia ser forte e, muito menos, capaz de odiar. Era antes o rosto de uma criança com medo de estar sozinho em casa sem a mãe. E, para completar, começou a pingar sobre o vidro algo que lhe escapava pelos olhos. Seu corpo estremeceu e ele caiu sentado no sofá. Apertou o porta-retratos contra o peito, num abraço caloroso em si mesmo e tombou para o lado, encolhido numa posição fetal.

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Me ajude, mãe, eu não posso respirar!

Sentindo-se pequeno, fraco e extremamente solitário, usou a única arma daqueles incapazes de resolver seus problemas sozinhos, mas também sensíveis demais para ser indiferentes a eles. Queria retornar pelo mesmo caminho de onde viera e ali permanecer, no interior daquele útero quente.

Chorou pela primeira vez e por toda a noite.

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Antonio
A
TIRA TUDO DO LUGAR
NOTÍCIA QUE

CAPÍTULO 2

A obra mais importante de nossas vidas é sempre aquela que ainda não terminamos.

Senhor, senhor Rubens!

Rubens abriu os olhos e quase os fechou de novo, tamanha a claridade do local. Ajeitou-se na poltrona, meio confuso. — Oi?

O Dr. Miguel vai recebê-lo agora. Você deu um belo cochilo, é alguma técnica para relaxar?

É... Acho que é.

A sala em que estava tinha paredes totalmente brancas. Olhando com mais atenção, notou que tudo ali era branco: a mesa, as poltronas, o computador, o telefone, o teto e o piso. A moça de cabelos platinados à sua frente vestia um terninho e saia muito bem cortados e brancos; pouco acima de seus joelhos delicados a saia atraía o olhar de quem a visse até seus pés de proporções simétricas, perfeitas. Através da fna sandália branca de salto que expunha todo o seu pudor, viam-se suas unhas pintadas de branco. Estranho, a boca aberta num sorriso oferecido dizendo sim revelava seus dentes ainda mais brancos entre os lábios vermelhos. Um sorriso que lembrava a candura de noviça virginal, mas que, ao mesmo tempo e sem piedade, lhe dizia não. Muito estranho.

Levantou-se; tinha o corpo um pouco doído: a perna esquerda formigava como se estivesse na mesma posição bastante tempo. Apesar daquele desconforto inicial, sentiu-se bem. Bocejou o ar do lugar e encheu os pulmões até a última de suas ramifcações bronquiais, o que lhe transmitiu uma sensação de leveza há muito não vivenciada. Rip Van Winkle1 ‒, parece que dormi por vinte anos ‒ divagou, literário.

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1 Rip Van Winkle- é um conto que foi escrito durante um estágio do escritor Washington Irving na Inglaterra e conta sobre os tempos antes e após a revolução norte-americana. Conta que um homem, fugindo à sua esposa má, corre até uma foresta. Depois de muitas aventuras ele põe-se a descansar embaixo de uma árvore umbrosa, e adormece. Vinte anos após ele acorda e decide regressar a sua vila e percebe que tudo havia mudado.

Olhou para suas próprias roupas; o terno preto fazia o contraste necessário à brancura imaculada da sala.

— Pareço elegante? Este terno, esta cor...

Laís riu, ainda despudorada de seu sorriso branco; não sabia o motivo, mas algo em Rubens a atraía. Pegou sua pasta num gesto cênico e entregou-a numa reverência oriental, com as duas mãos nas do rapaz magnético. Depois segurou em seu braço e o conduziu até a porta que os separavam da sala da diretoria.

— Você está do jeito que deveria estar. Boa sorte, espero que consiga.

Pararam em frente à enorme porta de madeira entalhada. Rubens olhou para aquela linda mulher agarrada ao seu braço e sorriu; pareciam ser quase da mesma idade, vinte e poucos anos. Ela abriu a porta, e ele entrou.

Nem deu dois passos dentro da sala e parou estarrecido. Nunca havia estado antes num ambiente tão fnamente decorado como aquele. O salão, com pé-direito muito alto, tinha o teto colorido e totalmente trabalhado em gesso com fguras inspiradas numa arte sacra qualquer, concluiu, pois não era expert no assunto. Se não soubesse que estava numa construtora, afrmaria que ali era uma igreja muito antiga.

À sua esquerda, uma imponente mesa de mogno suportada por quatro pés de madeira, também trabalhados em desenhos geométricos. À frente dessa mesa, duas pesadas poltronas de tecido negro sobre um espesso tapete retangular de cor vinho. À sua direita, outra mesa de madeira ocre, com uns dez metros de comprimento e rodeada por cadeiras de encosto alto e assento de veludo.

Girando os calcanhares, pôde observar que a parede de trás, bem como a da direita e a da esquerda eram cobertas por um papel de parede que imitava desenhos persas e que em duas havia quadros de tamanhos diferentes, iluminados por lâmpadas de luz amarelada. Não conhecia nada sobre pinturas e seus estilos, mas apostava que ali deveria haver uma pequena fortuna em tinta sobre tela.

Coçou o queixo e espremeu os olhos para a parede do outro lado da sala: ela era completamente coberta por uma pesada cortina aveludada de cor vinho, com rendas brancas nas extremidades que vinham do teto ao chão. Ficou intrigado sobre o que teria atrás daquela cortina; talvez uma enorme janela com uma vista maravilhosa. Mas, então, por que a cortina?

Outra coisa sem explicação era a luminária à direita da porta pela qual acabara de entrar: de bronze e com uma haste que subia uns dois metros de

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altura, a candeia terminava num lindo globo de cristal, de onde vertia um facho de luz muito branco e intenso.

Foi em direção à luminária e analisou-a de cima a baixo; aproximou o rosto tão perto da luz que praticamente podia senti-la vibrar.

— Brilhante, não é? ‒ Dr. Miguel surgiu de uma porta atrás de sua mesa e, quando a fechou, a abertura praticamente desapareceu, camufada pelo mesmo papel de parede.

— Desculpe, é que eu ainda não tinha visto uma luz assim, tão branca. Onde o senhor comprou?

— A energia do corpo humano é capaz de produzir centenas de luzes iguais a essa, e mantê-las acesas por décadas...

Dr. Miguel sentou-se atrás da mesa e indicou que o jovem ocupasse a poltrona em frente.

— China, veio da China. Quase tudo vem da China hoje em dia.

O velho pegou alguns papéis e pôs-se a ler. Rubens permaneceu sentado, em silêncio, aguardando que o homem lhe dirigisse a palavra.

Após um pequeno punhado de minutos, Dr. Miguel sorriu ainda com os olhos no papel.

— Se formou em Engenharia Civil com as melhores notas, fez especialização em projetos de estruturas de concreto... Parece que você tem se dado bem!

— Obrigado.

— Mas, infelizmente, não tem experiência. Existe algum bom motivo para eu confar uma das minhas obras a você, engenheiro Rubens? ‒

Encarou o rapaz de forma amedrontadora, mas este desviou o olhar como quem foge de uma fecha.

Quem não sustenta um olhar, não saberá como sustentar de pé um prédio inteiro.

Rubens agora entendia que o disfarçado sorriso do executivo era algo teatral e premeditado.

Ele me elogia apenas para que eu baixe a guarda e, então, lança uma pergunta desconcertante, concluiu com razão, pois a pergunta deixara-o com a boca seca e desprovido de qualquer coisa inteligente para falar.

Miguel continuava aguardando a resposta com a expressão de quem já sabia que ela não viria, quando se surpreendeu com Rubens desencostan-

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do-se da poltrona e aproximando o tronco da mesa.

— Dr. Miguel, eu nunca vou ter experiência se alguém não me der uma chance e...

— Pode parar, essa é muito batida! ‒ interrompeu-o com uma voz frme, num tom claro de desaprovação. Esperava algo mais inteligente do rapaz, que agora o olhava espantado. ‒ Esqueça tudo o que você pensou em falar para me impressionar e me diga por que eu devo fazer isso. Eu prometo, se sentir sinceridade em você, o emprego é seu.

Miguel olhou no relógio de pulso, como se abrisse contagem de tempo; nesse gesto demonstrava o seu tédio, porque praticamente podia prever cada palavra, cada movimento de quem se sentava ali.

Naquele momento Rubens pressentiu que a vaga não seria sua; então, era uma excelente oportunidade para ser sincero:

— Eu nunca pisei num canteiro de obras em toda a minha vida ‒ disse sem medo.

— Eu sei, você nunca quis ser engenheiro civil, não é?

— Meu pai era engenheiro, um dos melhores e ele queria que eu também fosse.

— Não estou aqui para ouvir a história triste de como o seu pai estragou o seu sonho de ser arquiteto ‒ completou jocoso. ‒ Eu sei que você quer ser arquiteto.

— Eu não falei que queria ser arquiteto.

— O jeito como você entrou na sala reparando em cada detalhe, olhando para tudo... Só faltou pedir o telefone de quem decorou o ambiente. Rubens confessou num meio sorriso:

— Eu ia pedir.

— Olhe, rapaz, se você quer ser arquiteto, parabéns, seja um. Mas, hoje, você veio aqui para uma vaga de engenheiro civil.

O jovem engenheiro ouviu as palavras saindo da boca daquele homem metido num elegante terno bege-claro feito sob medida e um sentimento de repulsa subiu-lhe os calcanhares.

Esqueça isso e vá embora, você não precisa disso! ‒ Sua mente protestou e ele obedeceu; levantou-se e estendeu a mão para Miguel.

— Não vou fazer o senhor perder o seu tempo, nem sei por que estou aqui.

O velho recostou-se na poltrona e relaxou os músculos da face; a batalha havia terminado e, infelizmente, ele vencera mais uma vez. Cruzou os braços e deixou Rubens com a mão pendurada no ar.

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— Você falou que queria uma chance, mas acabou de jogá-la fora.

— Como é?

— Você é qualifcado, mas não tem culhões para construir coisa alguma. Tenho certeza de que se daria melhor sendo decorador de ambiente.

— Arquiteto! – Rubens corrigiu.

— Tudo a mesma coisa. Passar bem.

Dr. Miguel jogou a fcha de Rubens num canto da mesa e puxou o notebook para perto. Parecia já ter se esquecido de que tinha mais alguém na sala.

Sem falar uma palavra, Rubens baixou a cabeça, deu meia-volta e foi em direção à porta de saída. Não se lembrava de descaso maior em toda a sua vida. Ele sabia de seu valor como engenheiro e, por isso mesmo, tinha certeza de que era a pessoa certa para o trabalho. Fora vencido mais pela absoluta falta de talento em argumentar a favor de suas qualidades do que propriamente pela falta delas e isso era algo que não conseguiria engolir.

Abriu a porta, mas antes de sair, parou. Miguel ainda mexia no computador.

— Por que não sou a pessoa que está procurando?

O dono da construtora apenas levantou os olhos, mas manteve as mãos no teclado.

— Quer que eu repita?

— Eu posso não ter a experiência que o cargo exige, mas sou dedicado e atento. Isso conta, não é mesmo?

Miguel encostou-se para trás na poltrona e cruzou os braços; queria saber o que mais viria do jovem arquiteto. E Rubens continuou:

— Estive aqui durante uns cinco minutos? Pois bem, nesses cinco minutos, eu notei que o terceiro e o quinto quadro da parede à esquerda estão tortos. Percebi que a luminária está quente. Então, mesmo a luz sendo branca, não se trata de uma lâmpada fuorescente e, além disso, me intriga não ver nenhum fo ligado a ela. Sei também que o senhor é canhoto, porque, apesar de usar o mouse com a direita, acabou de fazer uma anotação com a mão esquerda. Só um canhoto escreve com a mão esquerda.

Antes de sair, parou entre o vão da porta e concluiu sem olhar para trás:

— Notei também que a porta atrás de sua mesa é o banheiro. O senhor

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deve ter comido alguma coisa que lhe fez muito mal. Mas é claro, isso não foram meus olhos que me avisaram.

Saber que podemos fazer algo extraordinário é tão importante quanto fazer de fato. Isso já era o sufciente. Rubens deixou a sala batendo a porta. Assim que se viu sozinho, Miguel discou para sua secretária:

— Laís, cadê ele?

— Acabou de entrar no elevador, Dr. Miguel.

Ele olhou rápido para a luminária e notou a luz intensa e branca fcando fraca e opaca.

— Vá atrás daquele petulante, diga que ele foi contratado e deve começar amanhã. O resto você já sabe.

Miguel sentou-se confortavelmente em sua poltrona e afrouxou o nó da gravata. Receava perder aquele candidato, porque sabia que isso signifcava também perder mais uma obra. Voltou-se para a luminária oscilando; após duas piscadas, a luz se frmou forte e brilhante como nunca.

Agora começaria a parte do jogo que ele mais gostava.

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