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Artigo

SAÚDE INDÍGENA EM TEMPOS DE SEGREGAÇÃO (1870-1910) Por Francisco Adriano Leal Macêdo e Shirley Pereira Cardoso RESUMO: Este texto se propõe primeiramente a analisar a presença da população indígena no final do século XIX e início do XX, notadamente entre os anos 1870 e 1900, na capital da Província do Amazonas, procurando perceber como estes foram atendidos e registrados ao receberem cuidados médicos em um momento de profundas alterações econômicas, políticas e sociais que a região amazônica experimentava. O antropólogo Carlos de Araújo Moreira Neto nos dá informações importantes ao explicitar os mecanismos pelos quais os indígenas deixaram de ser maioria para transformar-se em minoria. Dentre suas explicações, podemos destacar a redução de seus territórios motivados pela presença de seringueiros, castanheiros diante da pressão das sociedades por esses produtos cada vez mais demandados. Segundo Moreira Neto, após 1870, será crescente a rejeição ao índio e ao tapuio, este último com décadas de convívio com as sociedades regionais. O momento posterior a 1870 coincide com uma grande entrada de imigrantes nacionais e estrangeiros na região; expansão da economia gomífera; mudanças profundas nos modos de vida da população amazônica e não menos importante um permanente estado de presença epidêmica na província como a cólera, varíola, malária, febre amarela, sarampo, entre outras, firmarão presença permanente na região. Como sabemos, as vítimas mais frágeis e suscetíveis diante dessas ameaças crescentes eram os membros da população indígena. Além disso, a partir dos anos 1890, ocorre na cidade de Manaus um conjunto de transformações urbanísticas, por meio de políticas de saneamento e embelezamento que visam atender a uma demanda específica. De modo que esse processo se deu de forma desarmônica e desigual, uma vez que foi encetado pela elite extrativista e tais interferências no espaço urbano caracterizaram um projeto político e social que não contemplaram a todos e acabou negligenciando indígenas, trabalhadores urbanos, pobres, doentes e desvalidos. Portanto, pretendemos capturar informações que nos permitam entender como essa população foi tratada pelos registros oficiais, uma vez que a política em voga era a de negar e ocultar a presença indígena na cidade, posto que estes em algum momento tiveram que receber e recorrer aos socorros públicos, essa hipótese é factível visto que a questão da saúde começava a assumir importância para o desenvolvimento econômico da nação, e sua inserção no mercado de trabalho tão concorrido. No momento seguinte, refletiremos sobre como a trajetória de conquista dos direitos indígenas no Brasil tem sido lenta, longa, tortuosa, contraditória e deslegitimada. Antigos problemas parecem retornar constantemente. O Estado se afirmou repetidas vezes como um aparelho funesto para os grupos e etnias indígenas que dividiam/dividem o País, sobretudo na atual conjuntura política, onde assistimos perplexos aos diversos ataques do presidente da república para com os povos indígenas, na tentativa de diminuir ainda mais os direitos dessa população. Para demonstrar essas questões, faremos conexões com o tempo presente como esforço de desvelar algumas pistas sobre os tempos de segregação e silêncio a que os indígenas brasileiros vêm sendo submetidos até a contemporaneidade.Palavras Chaves: Umbanda; Identidade; Resistência

Indígenas e indigentes

L

política de concentração de poder do Segundo Reinado privou as Províncias de autonomia política para decretar e formular regulamentos segundo suas próprias necessidades, deste modo, a Província

do Amazonas estabelecida em 1852, não dispunha de um quadro administrativo capaz de resolver as inúmeras dificuldades pelas quais passava. Um de seus maiores desafios era solucionar os problemas referentes ao campo da saúde, uma vez que os surtos Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020


GNARUS-UFAM - 72 epidêmicos eram constantes na região tais como varíola, malária, febres intermitentes entre outras, carecia também de material, de profissionais habilitados para o atendimento médico, de uma instituição de saúde capaz de dar assistência à população local e de recursos para dar conta de tais necessidades. A Junta Central de Higiene Pública foi criada a partir do decreto nº 598, instituído em 14 de setembro de 1850. Foi nessa ocasião que se oficializou que os assuntos sanitários seriam responsabilidade do Estado. Essa junta encontraria dificuldades em se tornar efetiva por conta de problemas de infraestrutura, trazendo complicações para o atendimento dos doentes e para o saneamento básico na cidade. No meio cientifico e da medicina, durante o século XIX, era consensual que as doenças estavam diretamente ligadas aos miasmas – ou seja, emanações de odores de animais em estado de putrefação e ambientes sem saneamento adequado – que aliados ao clima tropical da região, asseveravam os surtos de epidemias. Esses eram os postulados centrais da época, autorizados amplamente pelo saber médico. A partir do último quartel do século XIX podem ser identificados ações de beneficiamento da saúde pública. Isso se expressa principalmente nos processos de urbanização e de embelezamento da cidade, catapultado pelo aquecimento da economia gomífera da época. Ruas calçadas, aterros, limpezas de igarapés, projetos de arborização das praças e construções de pontes marcaram os esforços de saneamento do espaço urbano. Pretendia-se com isso combater a origem das doenças – os miasmas – que segundo os saberes da época proliferavam as doenças e surtos epidêmicos. Apesar desses esforços, a conjuntura patológica da cidade não se Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

modificou como o esperado e as epidemias não cessaram. Apresentamos abaixo um excerto de um relatório provincial de 1873, a respeito dos atendimentos realizados pela Enfermaria Militar, único estabelecimento hospitalar da província.

Enfermaria Militar: A sua direção marcha muito

regularmente,

aos

esforços

do

Cirugião-mór de brigada honorário, Dr João Pedro Maduro da Fonseca. No ano findo, ali estiveram em tratamento 705 doentes das seguintes classes: Praças de linha . . . . . . . . . . . . . . . 398 Corpo provisório . . . . . . . . . . . . . . 190 Armada imperial . . . . . . . . . . . . . . 102 Polícia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 Indigentes . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

Desses enfermos falleceram 16 militares e 4 indigentes. A falta de uma casa de caridade, concorre para que ali continuem a ser medicados os desvalidos. Parte do edifício destinado á Enfermaria Militar, ainda é ocupado inconvenientemente pelo corpo provisório, de maneira que não há a necessária distinção entre os enfermos das diferentes classes e moléstias.

Fonte: Relatório á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas apresentou na acta da abertura das sessões ordinarias de 1871, o presidente, Cel. José de Miranda da Silva Reis.


GNARUS- UFAM - 73 Nota-se na fala proferida pelo Dr. João Pedro Maduro da Fonseca, então Inspetor da Saúde pública a preocupação quanto à carência de instituições de saúde a fim de tratar os doentes e algo que nos chama a atenção quanto à ênfase que dá ao fato de a Enfermaria Militar receber “até os indigentes”. Ao longo da pesquisa, verificamos que o termo “indigente” é constantemente utilizado nos registros presidenciais e hospitalares. Consideramos como “indigente” a população extremamente pobre, deste modo parte integrante desta categoria seriam os membros da população indígena. Como vimos, o estado sanitário da Província do Amazonas era demasiado insalubre, epidemias faziam constantemente vítimas pela capital e interior. Febre amarela, febres intermitentes e varíola eram uma das doenças mais registradas pelas autoridades no período estudado. Socorros eram remetidos ao interior com frequência, a fim de acudir os doentes, bem como a constituição temporária de lazaretos e enfermarias aos enfermos na capital e no interior. Na falta de um hospital de caridade parte desses doentes que eram socorridos pelo Hospital Militar, repetidas vezes percebemos o descontentamento, na fala dos presidentes da província, quanto a esta situação. De modo que em 1880 seria inaugurada a Santa Casa de Misericórdia de Manaus, que passaria a cuidar dos doentes de classe social menos abastadas como os desvalidos e indigentes que necessitassem de tratamento. Por vezes esta entidade teve de ser ampliada, na medida em que suas enfermarias, com todos os leitos ocupados, não davam conta de abrigar tantos enfermos, suas despesas eram custeadas pelo governo. Com relação aos indígenas mencionados nesta pesquisa, concluímos que durante

o processo histórico brasileiro, a política indigenista que seria a política do Estado destinada às populações indígenas foi marcada pela intensa interferência do poder público articulado ou não com órgãos civis e religiosos, visando a inserção do índio à sociedade. Entretanto, ao longo dos anos, tal medida mostrou-se contraproducente em decorrência da relutância dos povos autóctones em mudar seus hábitos e sua dificuldade em se ajustar ao modo de produção capitalista. Podemos concluir por fim que no que concerne ao campo da saúde não houve nenhum conjunto de medidas que visassem especialmente o atendimento adequado a esta população. A despeito da criação da Santa Casa de Misericórdia que como vimos abrigou e cuidou de uma parcela considerável de indígenas mascarados como indigentes, bem como do Hospital de Beneficência Portuguesa que ainda de maneira modesta cedeu alguns leitos para também atender uma parcela desta população. Tais medidas, no entanto, não se configuram em políticas de atendimento especial aos indígenas, isso ocorrerá somente a partir do ano de 1910 com a criação do Serviço de Proteção ao Índio que teoricamente seria o órgão responsável pelo cuidado dos indígenas. Os tempos de segregação continuam: o caso do SPI O Serviço de Proteção ao Índio perdurou por 57 anos, partindo da década de 1910. Afirmamos que a partir da criação desse órgão, teria ocorrido uma política de atendimento especial aos indígenas. Em sua operação, o SPI não foi nenhuma utopia. Em muitos pontos, os tempos de segregação continuaram século adentro. As opostas Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020


GNARUS-UFAM - 74 visões de mundo e o etnocentrismo que têm sido uma constante na relação com os indígenas permaneceram. Essas situações do passado lançaram ao nosso presente relações de causalidade direta. Talvez a principal dessas ressonâncias seja que as intenções sempre são “nobres”, e desejam apenas “salvar” os indígenas da selvageria, sendo que é um discurso que sempre descambam em verdadeiros etnocídios. Segundo Darcy Ribeiro, a chegada dos europeus foi, para os indígenas, espantosa. Os índios logo perceberiam a hecatombe que caiu sobre eles. Na visão europeia, os índios representaram à primeira vista a inocência, uma visão edênica de um povo sem males. Apesar de estarem previamente legitimados pela bula papal a cristianizar aquele povo, eles os viram numa forma de humanidade como se fosse antes da expulsão do paraíso. Mas “nenhuma inocência conteve o europeu em sua sanha de subjugar ao cristianismo e à honra de Deus e pela prosperidade cristã”.1 Isso se expressou nas doenças trazidas e a gana por riquezas do europeu que levou a escravizarem o índio “desfez, uniformizando o recém-descoberto paraíso perdido”. Esse antagonismo permaneceria, sob nomes diversos, e sobreviveria até os nossos dias, quando os indígenas brasileiros são sacrificados em nome do agronegócio. O SPI desejou “pacificar” e “proteger” os indígenas brasileiros. Essa instituição usava de discursos sobre salvacionismo para empreender controle e capitalização do trabalho dos índios. Essa abordagem camuflada lançou mão de mecanismos sutis e justificados como “o abraço amigo do governo”. Para penetrar nessa teia de incompreensões que Ana Lúcia Vulfe Nötzold 1 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: companhia das letras, 2006. p. 41.

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e Sandor Fernando Bringmann desenvolveram suas pesquisas, em uma análise a contrapelo de fontes, para perceber as construções de sentido que transborda a realidade dos indígenas que viam os “civilizados” com suas câmeras e a palavra mágica dos séculos XIX e XX – o “Progresso”. Em primeira análise, a concepção de proteção não se referia a resguardar os territórios indígenas tradicionais, pois “estas políticas [...] estavam dentro das estratégias do SPI de construir índios “melhores”, isto é, pequenos agricultores e cidadãos obedientes, conservando e aproveitando apenas algumas poucas “virtudes” indígenas2. Seguindo essa lógica civilizatória, as novas versões de colonizadores seguem na perspectiva de pacificar e controlar esses povos autóctones segundo um regime disciplinar que lhes era estranho. Nesse ponto, os autores fazem a opção metodológica de analisar os regimes disciplinares que povoavam os redutos do SPI. Segundo a premissa de Michel Foucault, o poder disciplinar era aplicado nas instalações montadas para “pacificar” e “civilizar” os indígenas. Os conceitos de “pacificação”, “avanço da civilização” e “silvícolas x civilizados” carregam consigo uma carga de etnocentrismo indisfarçável, sendo que essa instituição governamental partia do princípio hierárquico sobre os níveis de cultura, referindo-se aos índios como opostos aos civilizados. No vídeo produzido pelo SPI sobre uma expedição ao chamado Rio das Mortes, essas terminologias são repetidas exaustivamente; é interessante apontar o tom épico que é dado pelo narrador àquelas incursões em terras indígenas, sempre adjetivando os exploradores de “bravos”, 2 NÖTZOLD, Ana Lúcia Vulfe; BRINGMANN, Sandor Fernando. O Serviço de Proteção aos Índios e os projetos de desenvolvimento dos Postos Indígenas: o Programa Pecuário e a Campanha do Trigo entre os Kaingang da IR7. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 10, Dezembro de 2013. p. 3.


GNARUS- UFAM - 75 “corajosos”, “intrépidos”. Essa narrativa deseja dar a ver a face filantrópico do órgão indigenista3. Apesar de toda a construção de uma verdade oficial, não nos faltam evidências dos ataques diretos aos modus vivendi dos índios. Raça, salvacionismo, entre outros elementos, foram usados como subterfúgios para esconder a expansão do poder do Estado e seus mecanismos. O SPI, gestado na primeira República, permaneceu até a década de sessenta porque o Estado brasileiro desejava corpos dóceis, produzindo segundo a lógica capitalista de mundo. Esse processo tem outra ressonância sombria, uma vez que selava o túmulo com o sufocamento da memória e manipulação das narrativas oficiais. O “abraço amigo” do governo federal produzira um filme mostrando as “maravilhas do progresso” entre os índios que trabalhavam no posto da IR7. Trata-se da implantação da agropecuária e da agricultura com mão de obra indígena, visando fazer desaparecer à força um modo de organização social sui generis dentro de um país que desejava inserir-se no seio de um sistema-mundo capitalista4. Esse tratamento ainda mantinha o caráter de “indigentes”, conforme discutido no tópico anterior. Cada fragmento desses vídeos apresenta discursos oficiais que queria mostrar o sucesso que eram as intervenções do SPI. A tentativa de inserção dos indígenas numa lógica de mundo “civilizada” pode ser vista desde vestimentas para crianças e adultos aos moldes dos expedicionários até o maquinário de produção em massa que era levado para o território dos índios. Por outro lado, os tão 3 FORTHMANN, Heinz. Rio das mortes. Serviço de Proteção aos Índios, 1947. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=1N7bYnxTkro&t=3s.

4 SCHULTZ, Harald. Um posto indígena da IR7. Serviço de Proteção aos Índios, 1946. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Da4TegbmjeY. VELLOZO, Nilo Oliveira. Uma visita aos nossos índios. Serviço de Proteção aos Índios, 1943. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kRyUBDrTXFA.

pregados benefícios na qualidade de vida dos donos das terras que estavam sendo invadidas não vinham. Uma lógica de trabalho regulada pelo tempo investindo a vida e os produtos não vinham para os indígenas. Quando haviam prêmios para alguns que em tese teriam produzido mais, estava uma lógica de “dividir para conquistar”, para desarticular esses indígenas enquanto grupo – clássica estratégia da colonização. Por último, essa intervenção do SPI iria também fomentar as belicosidades entre indígenas e posseiros e colonos, já que estes últimos arrogariam as terras onde os índios fincavam os seus postos. Considerações finais: algumas razões do silêncio O “destino” de que falava Darcy Ribeiro tem sido, até hoje, um estado continuado de exploração por parte dos dirigentes infiéis ao povo, ávidos pelo lucro que põe acima de qualquer outra coisa. Seja dos massacres dos primeiros dias, até a erosão das florestas e terras que persistem até hoje tanto quanto à crescente injustiça social. Como dizia Walter Benjamin, o lampejo de um passado anterior – dos tempos da colonização portuguesa – lançava uma fagulha nos séculos XIX e XX, fazendo arder novamente uma antiga fogueira cujas brasas nunca haviam se apagado. Esse salto dialético vestiria com novas roupagens o salvacionismo que outrora os Jesuítas tomaram como baluarte. Os padres, nos séculos iniciais de colonização, diziam querer salvar as almas dos nativos; agora, esses pretensos heróis brancos viriam salvar seus corpos; levar a civilização; tirá-los da barbárie; pacificá-los. Estes, assim como os padres das reduções jesuíticas, esqueceram de perguntar a visão de mundo do Outro.

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GNARUS-UFAM - 76 Da perspectiva do índio, não seria o homem branco que precisaria de salvação? “A sobrevivência ou a extinção de uma grande nação indígena” é uma questão muito mais complexa do que dava a entender o discurso oficial do SPI. A revelia de tudo isso, o grande contraste se faz presente – o fato ocorrido e a história escrita sobre ele. O sacrifício e o genocídio parecem ser preços pequenos a se pagar por aquele que veio substituir Deus por ocasião de sua morte: o Progresso. O Brasil produz apenas bens primários. Muitos recursos naturais, mas continua a colonização. As privatizações, as políticas do Estado neoliberal que favorece os interesses estrangeiros – tudo isso são as dinâmicas que afetam os indígenas no Brasil. O grau de desconfiança por parte dos que sofrem o roubo de suas terras pelo Estado atingem altos níveis, pois os indígenas possuem a consciência de que sua versão da História nunca é contada, colocada em perspectiva ou contexto. A grande mídia pega a sua imagem gravada, edita, põe uma legenda e a notícia está pronta – dando o enunciado que desejar. A perspectiva indígena é atacada por todos que não a compreendem; os lucros nunca irão para eles. As tentativas de “comprar a consciência” dos habitantes do Vale do Xingu para a construção da hidrelétrica são fortemente divulgadas, sob o discurso de diálogo pacífico. Em outras palavras, essa versão mostra um país em que o respeito pelos direitos humanos e indígenas estão na vanguarda, e até órgãos como a FUNAI aparece corroborando com esse discurso oficial. De repente, todos parecem saber o que é melhor para os indígenas melhor do que eles mesmos. O grande conflito entre o processo civilizador contínuo, marcado pelo poder despótico do capital e outras formas de Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

pensar a vida, está representado pelas reiteradas tentativas de silenciamento do líder indígena Raoni Metuktire, posicionado contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte. “Não destruímos a beleza que nos cerca”; “Nós não somos porcos”; “Eu não quero dinheiro” – são falas proferidas por indígenas durante o documentário. São evidências de uma existência desligada da lógica capitalística. Uma outra inteligência que cresce paralela à do restante da Nação. Sobre essa dimensão do movimento indígena contra a infantilização de si mesmos, Davi Kopenawa dirá que os seus saberes não são, de maneira alguma, menores; só muda a maneira de pensamento. Diz Kopenawa: “Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados”5. São dois mundos ainda em disputa, seja olhando o final do século XIX ou períodos mais próximos ao nosso presente, um padrão perturbador permanece: o poder Estatal continua tratando os indígenas como indigentes, sem preocupação com sua saúde ou cosmogonias e modos de viver.

Francisco Adriano Leal Macêdo é Mestrando em História do Brasil, PPGHB da Universidade Federal do Piauí Shirley Pereira Cardoso é Mestranda em História, PPGH da Universidade Federal do Amazonas.

5 KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro — 1 Ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2015.


GNARUS- UFAM - 77 Referências: FORTHMANN, Heinz. Rio das mortes. Serviço de Proteção aos Índios, 1947. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=1N7bYnxTkro&t=3s. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro — 1 Ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2015. NÖTZOLD, Ana Lúcia Vulfe; BRINGMANN, Sandor Fernando. O Serviço de Proteção aos Índios e os projetos de desenvolvimento dos Postos Indígenas: o Programa Pecuário e a Campanha do Trigo entre os Kaingang da IR7. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, São Leopoldo, v. 5, n. 10, p.147-166, dezembro de 2013. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: companhia das letras, 2006. SCHULTZ, Harald. Um posto indígena da IR7. Serviço de Proteção aos Índios, 1946. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=Da4TegbmjeY. VELLOZO, Nilo Oliveira. Uma visita aos nossos índios. Serviço de Proteção aos Índios, 1943. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=kRyUBDrTXFA.

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