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Ano VII – Edição Especial – Fevereiro de 2020

Equipe de Redação: Editores: Prof. Ms. Fernando Gralha (FIS/UCAM/UAB) Prof. Jessica Corais (FIS)

Comissão Organizadora - UFAM: • • • • • • • • • • • •

Profª. Dra. Kátia Cilene do Couto (UFAM) Jandira Magalhães Ribeiro (Licencianda em História/ Ufam) Mateus Rodrigues da Silva (Licenciando em História/ Ufam) Gerdeleison de Souza Teixeira (Licenciando em História/ Ufam) Gabriel Sebastião Barros Pereira (Licenciando em História/ Ufam) Thais Dantas (Licencianda em História/ Ufam) Inara Kézia Gama Araújo (Licencianda em História/ Ufam) Girlane Santos da Silva (Graduada em História/ Ufam) Dalila de Fretas Araújo (Licencianda em História/ Ufam) Márcia Eduarda Costa Pereira (Licencianda em História/ Ufam) Izys Maria Rodrigues dos Santos (Licencianda em História/ Ufam) Arlison Jorge de Souza Leite (Licenciando em História/ Ufam)

Revisor: • Profª Ms. Alexandre da Silva Santos (Rede Salesianas) Revista Eletrônica Acadêmica/Gnarus Revista de História. Edição Especial (Fev 2020). Rio de Janeiro, 2020 [on-line]. Gnarus Revista de História Disponível em: www.gnarus.org ISSN 2317-2002 1. Ciências Humanas; História; Ensino de História

https://www.facebook.com/gnarusrevistadehistoria/


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Sumário APRESENTAÇÃO................................................................................................................................................................ 4 Comissão OranizadoraErro! Indicador não definido. ARTIGOS: A CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E SUAS TIPOLOGIAS OBSERVADAS NOS MUSEUS DA CIDADE DE MANAUS ATRAVÉS DA NARRATIVA HISTÓRICA. ................................................................................................................... 5 Por Wenderson Macedo de Lima Erro! Indicador não definido. A FUNÇÃO DOS MISSIONÁRIOS NA ÁFRICA PORTUGUESA DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX....... 14 Por Girlane Santos da Silva A UTILIZAÇÃO DO ACORDO DE ALVOR COMO FONTE PARA O ENSINO DE HISTÓRIA .............................................22 Por Alexandre da Silva Santos e Girlane Santos da Silvas DEBATE ACERCA DA LUTA DOS CAMPONESES NO BRASIL A PARTIR DOS RELATÓRIOS DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE A CNV, A GUERRILHA DO ARAGUAIA E OS POVOS DA FLORESTA ......................................................................................................................................................... 29 Por Gabriel Cruz Carneiro e Yannara Moreira Gomes ENTRE WILLIAMSPORT E URUCARÁ: a trajetória do missionário Clinton Thomas dos EUA ao Amazonas através de fontes orais ....................................................................................................................................................... 37 Por César Aquino Bezerra e Júlio Claudio da Silva O TRABALHISTA: DISPUTAS POLÍTICAS E O GOLPE CIVIL-MILITAR NO AMAZONAS (1960-1964)) ......................... 46 Por Jandira Magalhães Ribeiro O “TRISTÃO” DE THOMAS MANN: A ARTE EM EXÍLIO ............................................................................................... 55 Por José Bosco Ferreira de Sá Junior O USO DA ARTE COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DA HISTÓRIA INDÍGENA E AFRO-BRASILEIRA................ 64 Por Gleici Vidal Osório e Girlane Santos da Silva SAÚDE INDÍGENA EM TEMPOS DE SEGREGAÇÃO (1870-1910)..................................................................................... 71 Por Francisco Adriano Leal Macêdo e Shirley Pereira Cardoso VESTÍGIOS DE UMA SOCIEDADE: A NECRÓPOLE DE MIRACANGUERA EM ITACOATIARA ...................................... 78 Por Paulo César Marques Holanda e Cristiano da Silva Paiva A QUESTÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL E A LUTA PELA TERRA: UMA BREVE DISCUSSÃO HISTORIOGRÁFICA.......... 86 Por Gabriel Cruz Carneiro e Yannara Moreira Gomes AS ATIVIDADES INTELECTUAIS DE ANGOLA (1950) ................................................................................................... 94 Por Alexandre da Silva Santos

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APRESENTAÇÃO

A

Semana de História pretende discutir,

não pode prescindir em discutir o hoje e suas

através de debates, mesas redondas,

relações com a experiência humana.

oficinas e minicursos, a trajetória das

políticas neoliberais. Procura promover uma discussão a respeito do tema desde o seu surgimento, após a Segunda Guerra Mundial, até os múltiplos impactos sentidos posteriormente na América Latina e, especificamente, no Brasil. Dessa maneira, propõe-se discutir as formas pelas quais as medidas neoliberais afetaram, e ainda comprometem, os direitos sociais e o acesso às políticas públicas. Com isso, visa-se estimular o debate acerca da importância do Ensino e da

Sendo assim, a Semana de História cujo tema é Neoliberalismo: fundamentalismo econômico e os perigos para a democracia, será uma oportunidade de dialogar de forma mais ativa com outros departamentos e outras universidades. Dessa forma, o evento proposto tem o potencial de estimular a discussão em torno da importância do ensino público, laico e de qualidade dentro da própria universidade e para além dela. Comissão Organizadora

Pesquisa no âmbito da Universidade Pública e em diálogo com o processo de construção da cidadania e na consolidação democrática. Nesse sentido, ao problematizar o pensamento neoliberal e entender o impacto de sua agenda sobre as políticas públicas, em especial sobre a educação, entende-se a universidade como o lugar que constrói um espaço coletivo com seus professores, alunos e funcionários para discutir sobre si e sobre a sua razão de existir enquanto instituição. Neste

contexto,

o

curso

de

História,

que

compreende a sua própria Ciência como aquela que problematiza a humanidade no tempo e as relações que existem entre passado e presente, Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020


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Artigo

A CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E SUAS TIPOLOGIAS OBSERVADAS NOS MUSEUS DA CIDADE DE MANAUS ATRAVÉS DA NARRATIVA HISTÓRICA Por Wenderson Macedo de Lima

RESUMO: O presente artigo faz parte de um projeto de pesquisa de Iniciação Cientifica, vinculado à Universidade Federal do Amazonas, tendo como alvo iniciar uma discussão sobre as narrativas históricas construídas dentro de espaços museais da cidade de Manaus, no tempo presente. Assim como as escolas da educação básica, esses espaços também produzem o que os historiadores chamam de Consciência Histórica. Primeiro, traçando uma discussão acerca do desenvolvimento de consciência histórica dentro do campo da didática da História, em seguida discutindo experiências de campo nos museus da cidade de Manaus. Palavras Chaves: Consciência histórica; Ensino de História; Aprendizado histórico; Museus.

Introdução

E

ste texto é fruto de uma pesquisa acadêmica intitulada “A construção de consciência histórica através dos museus da cidade de Manaus no tempo presente”, financiada pelo Programa de Cooperação Acadêmica (PROCAD), nos anos de 2018/2019. A pesquisa tinha como objetivo construir reflexões e análises acerca das construções de narrativas por museus da cidade de Manaus/Am, organizados pelas secretarias municipais e estaduais de Cultura. Essas reflexões estão baseadas nas teorias do historiador e filósofo Jörn Rüsen

sobre o aprendizado histórico, narrativa histórica e suas tipologias, geradoras de uma consciência histórica em cada indivíduo que está em contato com esses museus e suas diferentes narrativas. As experiências obtidas através das leituras feitas das obras de Rüsen, juntamente com outros diversos artigos sobre a relação dos museus e educação, despertou em mim uma análise voltada para o campo da história, especificamente da Didática da história e o Ensino de história para além da sala de aula e da disciplina escolar. Como os museus são espaços de produção de narrativas históricas, é

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GNARUS-UFAM - 6 importante um olhar histórico sobre os resultados que se tem gerado com as exposições que se concentram nos espaços e quais os impactos na formação de identidade da sociedade manauara. A pesquisa se trata de aplicar as teorias de Rüsen sobre consciência histórica aos espaços museais, numa perspectiva mais teórica, e tendo como prática as observações feitas em visitas ao Museu da Cidade de Manaus e o Complexo Palacete Provincial, ambos localizados no Centro da cidade. Apesar da Manaus possuir vários museus, esses dois foram escolhidos por seu maior público e por possuírem objetivos diferentes quanto a uma construção de narrativa histórica. Tentarei esclarecer de início as teorias de Rüsen sobre consciência histórica, aprendizado histórico e narrativa histórica, levantando algumas reflexões das problemáticas trazidas pelo historiador acerca das tipologias de narrativas construídas individualmente ou coletivamente por sujeitos históricos, suas argumentações sobre os conceitos e suas aplicações na vida prática, no caso específico desta pesquisa, aos espaços museais. Na segunda parte, voltarei para os museus e suas narrativas, levantando questionamentos e propondo ideias sobre pensar os museus como construtor de uma história mais crítica e questionadora sobre os fatos narrados da história local da cidade. Consciência histórica, aprendizado histórico e narrativa histórica O conceito de consciência histórica é utilizado no campo da Didática da História para entender os processos na formação de identidades individuais e coletivas, no tempo histórico de diversas sociedades. Através do ensino de história e em diferentes espaços de aprendizados (escola, filmes, jornais, televisão, museus, Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

centros históricos etc.), os sujeitos são capazes de absorver informações que os ajudarão a criar uma noção de passado, presente e futuro, localizando-se no tempo como sujeitos históricos. O conceito de consciência histórica possui diversas interpretações no campo da filosofia e da história, porém escolhi trabalhar a ideia de que todo ser humano possui consciência histórica como uma das condições da existência de pensamento. Este, pertence ao historiador e filósofo alemão Jörn Rüsen. Ele afirma que todo ser humano age intencionalmente, interpretando o mundo e a si mesmo, de acordo com suas intenções. Esse agir está na interpretação do tempo onde o passado é interpretado à luz do presente e na expectativa do futuro.1 A consciência histórica para Rüsen é um processo cognitivo natural e pensar historicamente faz parte da vida de todo ser humano, como nascer, juventude, velhice, viver, morrer. Isto são interpretações que oferecerem aos seres humanos a noção de tempo. A consciência histórica não é algo que os homens podem ter ou não – ela é algo universalmente humano, dada necessariamente com a intencionalidade da vida prática dos homens. Sendo assim, a consciência histórica está inteiramente ligada ao cotidiano das pessoas. Como somos sujeitos coletivos e individuais ao mesmo tempo, a consciência histórica também se apresentará nesses dois aspectos de reconhecimento do homem como parte de um grupo. Podemos dizer que, subjetivamente, a consciência histórica constrói uma identidade e consciência individual em cada sujeito, uma noção de comunidade, estabelecendo e cultivando ligações que os define como grupo. Logo, essas duas construções andam jun1

RÜSEN, Jörn. Experience, interpretation, orientation: tree dimensions of historical learning. Studies in Metahistory. Pretoria: Human Sciences Research Council, 1993, p.85-93. Tradução para o português por Marcelo Fronza.


GNARUS- UFAM - 7 tas, isto é, quem somos e quem sou define relações de passado-presente-futuro em interpretações que se relacionam e se orientam no tempo. Passado, presente e futuro são pontos fundamentais para a interpretação da consciência histórica. É o tempo histórico e a memória histórica que irão possibilitar que a consciência histórica seja construída. Rüsen denomina o tempo histórico de experiência (passado), interpretação (presente) e orientação (futuro) como responsáveis na formação histórica do indivíduo. O fato de todo ser humano possuir consciência histórica não significa que todos possuem o mesmo nível de consciência. É nesse ponto onde começamos a adentrar nas teorias de Rüsen acerca dos tipos de consciência histórica que se apresentam nas diversas sociedades e em diversos sujeitos. Primeiro precisamos entender que não existe um padrão universal na construção de consciência histórica, o que Rüsen nos mostra é que há tipos de consciência que se constroem ao longo da vida de diversas formas e modos diferentes. Rüsen chama de tipos de consciência histórica.2 A tipologia corresponde a quatro níveis de consciência histórica: a “consciência histórica tradicional”, a “consciência histórica exemplar”, a “consciência histórica crítica” e a “consciência histórica genética”. Esses quatro tipos de consciência determinam diversos fatores de interpretação sobre como um grupo ou sujeito enxerga uma determinada sociedade no tempo. Essa classificação não 2

RÜSEN, Jörn. El desarrollo de la competência narrativa em el aprendizaje histórico. Uma hipótesis ontogenética relativa a la consciencia moral. Revista Propuesta Educativa, Buenos Aires, Ano 4, n.7, p.27-36. Oct. 1992. Tradução para o espanhol de Silvia Finocchio. Tradução par ao português por Ana Claudia Urban e Flávia Vanessa Starcke. Revisão da tradução: Maria Auxiliadora Schimidt.

tem por intenção de qualificar em escalas ou hierarquizar o saber histórico. Segundo Rüsen, os sujeitos devem transitar em todos os tipos de consciência, onde uma complementa a outra. Mais do que saber os tipos de consciência histórica, precisamos entender como elas são construídas e de que forma se estabelece uma classificação para tais. A experiência, interpretação e orientação faz parte do que o autor define como dimensões da aprendizagem histórica. Logo, esse é o modo pelo qual a consciência é construída. Aprender faz parte da vida, estamos aprendendo e ressignificando constantemente, é esse aprendizado que irá estimular a consciência histórica, através do conhecimento histórico (passado/ experiência), das argumentações (presente/ interpretação) tendo função prática (futuro/ orientação) na vida. O aprendizado histórico se dá de diversas formas na sociedade, aprendemos história a todo momento, seja em sala de aula na disciplina de história, seja através das tradições orais de família, bem como nos meios de comunicação (jornal, televisão, internet, cinema, livros), como também em centros históricos, monumentos, galerias de arte e museus; há nisso uma infinidade de meios para a aprendizagem histórica. Mas as diferentes formas de aprendizado implicarão nas formas de consciência que irão se produzir em determinados grupos a partir dos questionamentos feitos no presente. Não se trata apenas de receber o conhecimento, mas este deve ser questionado para que se torne um elemento de discurso, no qual se constrói uma identidade histórica. O que irá determinar principalmente as formas de aprendizado histórico será a narrativa histórica. O processo do aprendizado histórico através da narrativa histórica possibilitará a consGnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020


GNARUS-UFAM - 8 trução cognitiva de uma consciência histórica. Assim, Rüsen nos mostra quatro abordagens que tentarei explicar sobre como se divide as tipologias e como se interligam. O primeiro tipo é o “tradicional”. Segundo Rüsen: “as tradições são elementos indispensáveis de orientação dentro da vida prática, e sua negação total conduz a um sentimento de desorientação massiva”.3 Trata-se das tradições passadas por gerações com intuito de serem mantidas vivas. Esse tipo de consciência, quando provida de tradições, faz-se recordar das origens e repetições de obrigações durante o tempo, acontecimentos e valores do passado ainda se mantem em prática no presente. Um exemplo são as práticas religiosas ligadas às diversas formas de interpretação do tempo presente sob uma perspectiva de futuro, através de cultura material e imaterial, narrativas orais ou objetos sagrados. Com relação à aprendizagem e à narrativa histórica, temos a obrigatoriedade da repetição, logo valores são perpassados durante o tempo, a experiência (passado) está pautada em algo dado e pré-estabelecido. A interpretação (presente) é de permanecia dos valores e modos de vidas originalmente constituídos. Na orientação (futuro) se caracteriza como uma eterna continuidade de modelo de vida e modelos culturais pré-escritos além do tempo, uma totalidade temporal. Internamente, o sujeito considera a moral como tradição, como uma estabilidade inquestionada de modelos além do tempo. Externamente, o sujeito se afirma por ordens pré-estabelecidas de um modelo comum válido para todos. Temos como exemplo na nossa sociedade ocidental as práticas cristãs disseminadas através da tradição, cultivadas como valores e definida como orientação de caminho para a maioria das pessoas. 3

RÜSEN, 1992, p. 62

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O segundo tipo é o “exemplar”. O que define este tipo de consciência histórica não são as tradições, mas as regras. “Se refere à experiência do passado na forma de casos que representam e personificam regras gerais de mudança temporal e conduta humana ”.4 Aqui a memória histórica é estruturada através dos exemplos de acontecimentos passados, válidos por todo o tempo histórico, estabelecendo regras atemporais onde a história é vista como recordação do passado, como uma lição para o presente, assim a história se torna Mestra da Vida (historiae vitae maestrae). Podemos citar como exemplos historiografias clássicas que servem de argumentos para situações do presente ou ideais de Nações contemporâneas que se basearam neste tipo de narrativa exemplar, onde surgem figuras e acontecimentos que inspiram pessoas através do tempo, carregadas de uma moral e um espírito de saudosismo, a construção de uma identidade nacional marcada pela universalização de seus pontos de vista (exemplos como os americanos e os franceses sobre os direitos do homem e do cidadão). Na aprendizagem através da narrativa histórica, temos a conservação de acontecimentos onde não há uma ideia abstrata de mudança temporal, a experiência do passado atravessa o presente e o futuro, numa extensão temporal. O modo de orientação é por regras comprovadas que derivam de situações atuais e é esse tipo de consciência que revela valores genéricos culturalmente materializados no individual e no coletivo. O futuro é orientado pela experiência. O terceiro tipo é o “crítico”. Apresenta-se como uma nova interpretação por meio do raciocínio histórico questionador. A crítica ao passado é construída por argumentos que oferecem uma “contranarração” àquela estabelecida. Diferentemente da exemplar, esse 4

RÜSEN, 1992, p. 65


GNARUS- UFAM - 9 tipo de consciência constrói críticas através das interpretações e negações do passado no presente. De acordo com Rüsen. 5 “Aqui há um rompimento com a estrutura de continuidade temporal, surgindo novas perspectivas e pontos de vista quanto ao passado, presente e futuro, assim as tradições e as regras perdem o seu poder como fonte de orientação no presente.”

Na identidade histórica, a história crítica expressa a negatividade do “o que não queremos ser”. Proporciona oportunidades de não nos definimos por modelos prescritos, estimulando uma constituição de identidade pela força da negação. Aqui a crítica desafia os valores e a moral, critica o genérico e a universalização daquilo que compõe o social. Um exemplo da por Rüsen é a luta das mulheres e a produção historiográfica voltada para o estudo de gênero. Na construção de narrativa, temos o desvio de memórias impostas, problematizando o passado e tendo como continuidade a alteração de ideias dadas. “O tempo aqui é um objeto de julgamento ”,6 isso significa que o discurso histórico deve ser renovado, abrindo espaço para novos modelos de interpretação. É perceptível que a crítica às tradições exemplares hoje causa incômodo. Elas adentram e desestabilizam aquilo que é considerado inabalável, revelando a memória histórica como fruto do presente, do agora. Se orientar no tempo através de uma consciência crítica estabiliza o poder do ser “eu” ou “nós”. O quarto tipo é o “genético”. “No centro dos procedimentos para dar sentido ao passado encontra-se em si mesmo a mudança. Nessa estrutura, nosso argumento é que os tempos mudam ”.7 Mudança é o que vai definir este tipo de consciência. A compreensão do passado não se dá pela negação, mas pela ⁵ RÜSEN, 1992, p. 67 ⁶ RÜSEN, 1993, p.101 7

RÜSEN, 1993, p.68

mudança de tempo e transformação da sociedade. Os acontecimentos históricos são importantes para termos uma dimensão do passado, porém esses acontecimentos não são dados como universais, eternos, definidores de regras ou são objetos de negação. “Aqui permite-se que a história faça parte do passado, mas ao mesmo tempo lhe concedendo outro futuro ”.8 Esta é uma forma refinada de pensamento histórico onde o presente se coloca como uma intersecção entre passado e futuro. O futuro aqui se excede sobre o passado, tem maior destaque quanto as interpretações do presente. A memória histórica se apresenta como mutável no presente, tornando-se mais dinâmica do que os outros três tipos, a aceitação de distintos pontos de vista orienta a sociedade numa perspectiva abrangente de desenvolvimento comum, gerando mudança e transformação no sujeito necessária para a permanência de autoconfiança. Assim, o indivíduo torna-se sujeito histórico que interpreta o seu passado através de uma perspectiva de que o tempo e a sociedade mudam, se orientando dinamicamente conforme seu processo de autodefinição. É primordial entender que os quatro tipos de consciência apresentados se complementam e não são desassociáveis, nenhum tipo aparece de forma pura e nenhum deles pode ser pensado sem os demais. Por mais que seja complexo, o exercício de identificação desses tipos de consciência histórica na sociedade faz com que os historiadores possam enxergar o aprendizado histórico embasado em teorias que fujam da ideia de didática geral que se instalou no ensino de história como apenas repasse e aplicação de conhecimentos acadêmicos. Os trabalhos desenvolvidos por Rüsen nos mostram uma profundidade sobre o campo da Didática da histórica que fogem do genérico, tratando o ensino e aprendizado histó8 RÜSEN, 1993, p.69

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GNARUS-UFAM - 10 rico envolta de teorias e métodos, pensando a didática e consciência história juntas à teoria da história como prática. As teorias da consciência histórica mostradas aqui refletem em um recorte específico da sociedade, os museus. Tendo esses espaços como objeto de observação e análise, devemos observar as diferentes construções de narrativas nesses espaços e como os indivíduos estão interpretando essas experiências que chamamos de experiências museais. Experiências museais no centro histórico de Manaus Os museus históricos tiveram seu surgimento no Brasil a partir da metade do século XIX por inciativa das elites, onde aparecem os primeiros colecionadores de artefatos e objetos raros trazidos de diversas partes do mundo. A caça e o apreço pelas antiguidades cresciam conforme o capitalismo ascendia nas sociedades ocidentais, a ideia de admiração pelo passado também é alimentada pelos ideais nacionalistas dos diversos países que se constituíam. Inicialmente, o propósito desses colecionadores era apenas guardar os objetos com o intuito de expô-los para seus familiares em reuniões e festas da alta sociedade. Com a necessidade de se afirmar uma identidade brasileira, a busca pelas raízes fez com que essas elites criassem espaços onde a prática da contemplação do passado fosse despertada nos cidadãos brasileiros. Então surge os primeiros espaços com visitação contendo alguns objetos que remetiam a admiração pela cultura ocidental e objetos que faziam parte da construção do Brasil como nação.9 Os museus históricos brasileiros atravessaram momentos de transformações no que diz respeito aos investimentos sobre cultura BARCA, Isabel. (org). Educação Histórica e Museus. Universidade do Minho, 2003. 9

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e informação, e a própria ideia de utilização do museu como complemento à educação do cidadão ganhou desenvolvimento, na medida em que a história se caracterizava como disciplina escolar. Apesar de haver um crescimento na ascensão do consumo de história no Brasil, na metade do século XX, em tempos de ditadura militar, os museus foram transformados não mais como lugares de produção de conhecimento histórico de caráter científico, mas como locais de reforço aos ideais patrióticos. Quando a disciplina de história deixa de ocupar os currículos da educação básica, todo o desenvolvimento entre museu e história e as reflexões acerca do museu como lugar de crítica e questionamento estagnam-se, e os museus ficam fadados ao saudosismo e exposições ligadas ao militarismo e aos feitos políticos do Brasil. As narrativas heroicas tomam conta novamente dos museus. Com a redemocratização da sociedade nos anos oitenta e noventa, os museus também adquirem novos olhares e novas formas de se pensar seus espaços, a criação de um curso especializado em museologia é reflexo dos diversos questionamentos levantados pelas ciências humanas sobre a importância de pensar esses espaços para além da coleção de objetos e da recreação, a ideia agora era encontrar um espaço para além da recreação, mas que encontrássemos ciência, arte e história, possibilitando uma infinidade de interpretações e ideais aos visitantes desses espaços. Na perspectiva local, os museus em que desenvolvi minhas observações e reflexões foram: o complexo Palacete Provincial que foi reinaugurado em 2008. Assim, compõe-se o Museu da Imagem e do Som, o Museu de Arqueologia da Amazônia, A pinacoteca do Estado do Amazonas, o Museu de Numismática Bernardo Ramos, o Museu Tiradentes e o Museu da Polícia Militar do Estado do Amazonas.


GNARUS- UFAM - 11 Este complexo de museus é organizado pela Secretaria de Cultura do Estado (SEC) e se localiza no centro histórico da cidade de Manaus. Outro museu que também analisei foi o Museu da Cidade de Manaus. Este reinaugurado em 2018, coordenado pela secretaria de cultura da prefeitura de Manaus, localizando onde ficava a antiga prefeitura da cidade, no centro histórico. Esses dois museus possuem características importantes que ao mesmo tempo se assemelham e se diferem. Apesar dos dois museus estarem desenvolvendo atividades parecidas, eles possuem objetivos diferentes. Enquanto o Palacete Provincial possui artefatos e objetos de cultura material, no Museu da Cidade de Manaus o foco é trabalhar para além da cultura material, se utilizando também da cultura imaterial. O que esses museus apresentam aos seus visitantes, implicará nas relações com o aprendizado histórico. É aqui onde a consciência histórica adentra, através das narrativas construídas nesses museus. O meu papel aqui não é destrinchar o organograma estrutural de funcionamento desses espaços ou adentrar em aspectos da museologia. A ideia é propor uma reflexão sobre o que esses museus estão contando como história. Que tipo de história é essa? Que tipo de consciência histórica esses museus estão estimulando construir na sociedade manauara? Qual o papel das secretarias de Cultura na construção de discursos para os visitantes locais e turistas? Como os museus contribuem para uma formação de identidade histórica e uma consciência histórica social? Essas questões me levaram a pensar em como o ensino de história está tão próximo dos museus, apesar de ainda esses espaços serem pouco frequentados e divulgados na cidade. A ideia de museu como algo que pertence a uma classe especifica ainda é recorrente,

não é um programa de lazer que está sempre na agenda de muitos. Nos museus que analisei, a maioria das pessoas que frequentam são jovens e adolescentes da educação básica. Isso reflete muito a ligação entre museu e escola. Essa ligação não é recente. Desde o início do século XX, os museus já começavam a adquirir esse caráter complementar da educação, aproximando as salas de aulas aos museus, tendo esses espaços quase como laboratórios da disciplina escolar de história. Mas hoje não podemos pensar os museus isoladamente sem o apoio da educação básica no desenvolvimento de projetos que visem o diálogo entre educação e museus, e para que esses dois espaços dialoguem, há todo um processo de organização e acordos entre museus e escolas, sejam eles desde a questão da estrutura e locomoção desses alunos até os espaços e o conteúdo que será trabalhado dentro dos museus. Nas visitas que realizei nos museus, pude observar os tipos de narrativas presentes naqueles espaços. Primeiro, no Palacete Provincial, encontrei narrativas parecidas umas das outras. Todos os museus desse complexo possuem exposições de objetos em tempo permanente. Cada museu possui pelo menos dois monitores como guias pelo espaço. Entrevistando a organização do complexo descobri que cada guia passa por um treinamento e seleção. Todos são alunos de graduação que possuem relação com as áreas de história, turismo, artes. Esses monitores recebem um texto informativo sobre o determinado museu e decoram essas informações que são repassadas para os visitantes. Espera-se que esses monitores saibam conduzir a visitação e instigar os visitantes. Não foi o que presenciei. Todos os guias estavam em modo operante de repetição dos textos passados. O que acontecia é que quando chegava uma turma de estudantes, o guia dava algumas informaGnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020


GNARUS-UFAM - 12 ções sobre o museu para a turma, em seguida deixava os alunos a vontade para explorarem o local, e a responsabilidade de se trabalhar questionamentos e instigar os alunos ficava a cargo dos professores que se faziam presente. Mas e quando não há professores por perto para questionar os turistas ou visitantes que não estejam ligados a uma instituição de ensino? Nas minhas observações, os monitores guias do Palacete Provincial também não são estimulados em dar conta de trabalhar uma narrativa que transforma ou questione os visitantes, logo as narrativas que são construídas, tanto nos murais expostos como as informações dadas pelos guias, são contemplativas e soam de modo atemporal. Olhando através dos discursos, enxerguei que as narrativas dos museus que se encontram no Palacete são do tipo “exemplar”, pois todas mostram o passado como algo a ser preservado e atemporal. Nesse ínterim, o Museu da Imagem e do Som possui várias vitrines com câmeras para a exposição de caráter contemplativo. O Museu de Numismática possui vários painéis informativos para além das vitrines com as moedas expostas, mas também o que sobressai é o caráter contemplativo. Isso se repete em todos os outros museus dentro do Palacete. De forma alguma não quero construir um julgamento sobre o que é certo ou errado sobre as perspectivas de narrativas desses museus, mas como historiador me questiono se há uma preocupação dos organizadores enquanto a efetivação do aprendizado histórico naqueles espaços. Levando em conta a agência dos sujeitos, vejo que não estão isentos de escolhas e disputas de poder através das narrativas que são contadas ali, pois toda a estrutura desses museus possui um propósito e um discurso. Acredito que o tipo de consGnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

trução de consciência histórica vai depender muito do indivíduo que adentra esses espaços, assim como contribuição dos museus sobre a consciência histórica tem um peso significativo. O caso do Museu da Cidade de Manaus é distinto. Esse museu foi construído recentemente e possui exposições interativas, preocupadas com outras questões que vai para além do lazer e diversão daqueles que visitam. Assim como o Palacete Provincial, o museu da Cidade de Manaus atende turistas, instituições de ensino e o público local. Possui nove salas com exposições relacionadas a cidade de Manaus organizadas pelo curador Marcelo Dantas. A primeira exposição é chamada de Mercado. Essa exposição conta com os principais produtos comercializados e vendidos no centro da cidade, plantas nativas da Amazônia, além de outros objetos utilizados pelos moradores da região. Nesse mesmo espaço há um barril com uma tela onde são contadas por vídeos as principais lendas amazônicas. Outras exposições são os Anéis de Crescimento da Cidade, Os Rios Voadores, Arqueologia da Amazônia – essa exposição conta com um vídeo em realidade virtual sobre os achados arqueológicos na Amazônia – além de exposições de arte, fotografias e vídeos, o museu busca trabalhar a interação dos visitantes com as exposições. Realmente se observa um trabalho empenhado da coordenação que contou com a participação de historiadores, artistas plásticos, entre outros, na construção das exposições. O museu da cidade adota a mesma tática de monitores guias em cada exposição. A diferença aqui é justamente como as exposições, no caso as narrativas, estimulam os visitantes a se questionarem. Todas as exposições levantam questionamentos sem a necessidade de um profissional presente para auxiliar.


GNARUS- UFAM - 13 Consigo enxergar no museu na cidade algo mais fluido, assim como Rüsen reafirma sobre a fluidez dos tipos de consciência histórica e como elas se complementam, aqui observei uma transição entre os tipos “exemplar”, “crítico” e “genético”, dependendo claro de quem observa. O fato é que as exposições se mostraram mais propícias ao estímulo de uma consciência mais questionadora, que atravessa as concepções de museus apenas como produto de lazer. Deixo questionamentos sobre o cuidado e atenção que devemos ter com esses espaços. Observamos que as Secretarias de Cultura não estão como destaque nas discussões e pautas dos governos atuais. Os museus ainda permanecem em escanteio num país onde as Ciências Humanas e, principalmente, a História sofre com a desvalorização perante a sociedade e à educação. Defender esses espaços é importante para que não possamos perdê-los novamente. Os museus são espaços essenciais na formação da identidade individuais e coletivas de uma sociedade, merecem atenção para que os discursos construídos nesses locais não sejam defasados, sem que gere incômodo social. Pensar como esses espaços constroem histórias e narrativas, faz-nos refletir sobre a presença dos historiadores nesses locais como obrigatórias para se pensar uma outra história que fuja do saudosismo. Pensar os museus como espaço de diálogo entre história e sociedade, buscar diálogos que rompam os muros da educação escolar, que adentrem em outros ramos e produza conhecimento para uma sociedade que na modernidade, necessita sempre firmar sua identidade coletiva e individual.

Wenderson Macedo de Lima é Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Amazonas. Membro do G.T. Ensino de História e Educação (ANPUH-AM). Vinculado ao Laboratório de Pesquisas, Ensino e Aprendizagens em História da UFAM. Atua como pesquisador nas áreas de Ensino e Aprendizado em História, Didática da História e História Pública.

Referências BARCA, Isabel. (org). Educação Histórica e Museus. Universidade do Minho, 2003. CAINELLI, Marlene. Educação Histórica: perspectivas de aprendizagem da história no ensino fundamental. Revista Educar. Curitiba, p. 57-72, 2006. CERRI, Luís Fernando. Ensino de história e consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. CHICARELI, Larissa S. Experiência museal: por uma Educação Histórica. Revista VII Congresso Internacional de História, XXXV Encuentro de Geohistoria Regional, XX Semana de História. Páginas 3195 à 3205. 2015. LEITE, Marcelo H. Qual é o lugar do museu no campo de pesquisa do ensino de história? Revista XXIX Simpósio Nacional de História. Brasília. 2017 NAKOU, I. Museus e Educação Histórica numa realidade contemporânea em transição. 262 Educar, Curitiba, Especial, p. 261-273. Editora UFPR. 2006 PACHECO, Ricardo de Aguiar. O Museu como lugar de aprendizagem: o tempo histórico. XXVIII Simpósio Nacional de História, Florianópolis – SC. 2015 RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história. Chapecó: Editora Argos, 2004. RODRIGUES, Ana Ramos. O Museu Histórico como agente de Ação Educativa. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Vol. 2 Nº 4, Dezembro, 2010. RÜSEN, Jörn. História Viva: Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. SCHMIDT, M. Auxiliadora. BARCA, Isabel. MARTINS, Estevão de R. (Org.). Jörn Rüsen e o ensino de história; Curitiba: Editora UFPR, 2010.

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Artigo

A FUNÇÃO DOS MISSIONÁRIOS NA ÁFRICA PORTUGUESA DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX Por Girlane Santos da Silva

RESUMO: Este estudo tem como proposta realizar uma análise sobre a função dos missionários na África portuguesa na primeira metade do século XX. Tem ainda o objetivo de analisar as missões, considerando que esta possui um papel fundamental no processo de colonização do continente, uma vez que todas as metrópoles praticaram uma política missionária, marcada por um forte ideal de expansão territorial e de nacionalização. No caso português, para além dessas características, é preciso pensar na atuação recorrente de ações religiosas estrangeiras em seus territórios, aparado pela Conferência de Berlim (1884-1885) e pelas inúmeras transformações, principalmente ao longo dos anos de 1910 e 1920, no qual é visto medidas restritivas e depois benéficas em virtude de várias ordens, tudo isso com o objetivo de promover a manutenção da lógica colonial, embasado em práticas sociais e culturais do Ocidente.

Introdução

M

otivada por uma ausência de trabalhos acadêmicos que contemplem a ação missionária, o objetivo deste trabalho é contribuir para o preenchimento de uma lacuna historiográfica que não abrange em sua totalidade o papel desses religiosos católicos e suas influências no contexto africano. Com isso, visa-se auxiliar no processo de reflexão o papel das missões portuguesas ao longo da história na primeira metade do século XX, bem como sua atuação as considerando como uma importante ferramenta no controle colonial. Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

Assim, refletir sobre a constituição de uma narrativa histórica envolvendo o passado e a produção de uma historiografia,1 é entender que ela está carregada de sentidos e eventos que o historiador, como um tecelão, busca fabricar vários itens, com cuidado e paciência na sua atividade. Em suma, tal exercício está carregado de significados e concepções que descrevem realidade individual em que está inserido. Enquanto a observação histórica,2 a investigação do historiador será tenta reconstruir um passado que não presenciou, a partir JUNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. História: a arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru, SP: EDUSC, 2007. p. 14 – 15. 1

BLOCH, Marc. Apologia da História ou Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 2


GNARUS- UFAM - 15 dos resultados que conhece e de suas experiências, ele fica refém de registros e vestígios deixados por alguém ou por vários indivíduos que procura compreender na atuação do homem no tempo. Nesse sentido, compreender a consolidação de uma narrativa e observação histórica nos conduzem para uma interpretação de uma produção histórica que contempla compreensões muitas vezes veladas por nossas experiências e concepções do mundo, com isso o saber que produzimos está marcado por nossos entendimentos. Sendo assim, vez ou outra, historiadores e demais cientistas nos apresentam outras formas de encarar a realidade e entendê-la como tal. Dessa maneira, Edward Said - como crítico literário e entusiasta de um estudo inovador – condiciona-nos a percorrer um caminho cujo Oriente deve ser despido de padrões eurocêntricos e encarados a partir de suas próprias dinâmicas e formas de funcionamento, no qual a produção relacionada ao orientalismo deve estar associada à compreensão de que as narrativas históricas antes construídas estão repletas das vivências ocidentais, e assim, seu julgamento.3 Deste modo, Said (2007) acaba por nos alertar para a construção da imagem de um “mundo” oriental que não corresponde a sua totalidade e o indispensável movimento de desconstrução e reconstrução que devemos fazer sob nossas formas de encarar a realidade. Nesse sentido, a história cultural como abordagem metodológica que abriga as diferentes possibilidades de tratamento de um determinado tema, não se limita a analisar produções culturais oficiais, mas também para as práticas e dinâmicas populares com o

SAID, Edward W., Orientalismo - O Oriente como invenção do Ocidente. Tradução: Rosaura Eichenberg, São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. 3

advento da Nova História Cultural, isto é, visa nos proporcionar para um novo olhar sob práticas e representações culturais consideradas incompensáveis e muitas vezes indesejáveis. Assim sendo, torna-se apropriada essa abordagem à medida que este artigo tem como objetivo analisar o papel das missões, uma vez que esses religiosos utilizaram de representações simbólicas e de mescla religiosas para propagarem o catolicismo e um comportamento considerado civilizado. Com isso, fazendo uso de nova historiografia da Igreja, esta que surge como forma de responder lacunas originárias da ausência de uma compreensão aprofundada sob as dinâmicas históricas, políticas e religiosas.4 Adotamos como método uma discussão historiográfica, a partir das novas interpretações sobre esses indivíduos e as transformações que estes promoveram e sofreram durante o primeiro quartel dos anos de 1900. Com feito, foi construído uma pesquisa cuja reflexões abrangem uma perspectiva de atuação desses agentes históricos nacionalizadores.

Missões Católicas, sua funcionalidade e o Estado Português Como ponto de partida para essa compreensão, retomamos à Conferência de Berlim (1884 -1885) e a Partilha da África (Ver mapa 1), onde países como Inglaterra, França, Portugal e outras nações definiram fronteiras e novos espaços ocupação, isto é, promoveram assinatura de tratados e asseguraram a liberdade de deslocamentos de ordens religiosas, independentemente de sua nacionalidade e MEA, E. África a História das missões cristãs no Ocidente. In: SAMPAIO, T. H; SANTOS, P. T; SILVA, L. H (Orgs). Olhar sobre a História das Áfricas. Curitiba: Editora Prismas, 2018.p. 23. 4

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GNARUS-UFAM - 16 outras medidas ligadas à expansão econômica e política das metrópoles.5

sem distinção de nacionalidade ou de culto, todas as instituições e empresas religiosas, científicas ou de caridade, criadas e organizadas para esses fins ou que tendam a instruir os indígenas e a lhes fazer compreender e apreciar as vantagens da civilização.” (ATA GERAL DA CONFERÊNCIA DE BERLIM, 1885, p. 3)

Mapa 1

Fonte: M’BOKOLO, 2011, p. 362 Expõem-se que com a ocorrência da Conferência de Berlim foi garantida o transite religiosa, assim os missionários ganharam o direto de circulação no continente, uma vez que o objetivo da conferência era de estabelecer uma ocupação mais efetiva dos países europeus em território africano, reunindo os representantes das principais potências da época, são elas: Rússia, França, Grã-Bretanha, Dinamarca, Espanha, Alemanha, Império Otomano, Portugal, Alemanha, Bélgica, Holanda, Estados Unidos, Suécia e Império Austro-Húngaro. Essas nações tinham o intuito de regular as condições para o desenvolvimento do comércio e da civilização em certas regiões da África, assim assegurando a todos os povos a livre circulação comercial sobre os principais rios africanos que desaguavam no Oceano Atlântico, além de prevenir eventuais conflitos e zelar pelo bem estar das populações “indígenas”, dessa forma ficou assegurado: “Todas as Potências que exercem direitos de soberania ou uma influência nos referidos territórios (....) protegerão e favorecerão,

HERNANDEZ, Leila Lopes. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. 2 ed. São Paulo: Selo Negro, 2008, p. 61. 5

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Sendo assim, as missões católicas - de forma geral - surgem na primeira metade do século XX, como uma ferramenta de caráter nacionalizador e expansionista, sob justificativa de que África necessitava passar por um processo de civilização. Dessa maneira, ao longo desse período, cristianizar e civilizar surgem como sinônimos,6 pois a necessidade de se expandir era latente e sem o auxílio missionário. Em suma, essa empreitada não obteria sucesso. Afinal, os deveres de educar os valores morais eram desses religiosos, cabendo a eles a árdua tarefa de evangelizar e adequar as populações africana as concepções ocidentais, utilizando-se de um discurso cristão como meio de legitimar suas ações sob indivíduos pagãos. Deste modo, percebemos que Portugal, nesse período, por se encontrar com altas dívidas agrárias, com poder bélico extremamente limitado e sofrendo com pressões externas, principalmente da Inglaterra; passou a incentivar a ida de missões católicas estrangeiras a suas posses e detinha a posse de Moçambique e Luanda por direito histórico.7 No entanto, ao decorrer da primeira metade dos anos de 1900, inúmeras transformações ocorGUIRRO, L. A. Ensinamos o que é “necessário”: comentários sobre as missões católicas portuguesas no Boletim da Agência Geral das Colônias (1926 – 1928). In: SAMPAIO, T. H; SANTOS, P. T; SILVA, L. H (Orgs). Olhar sobre a História das Áfricas. Curitiba: Editora Prismas, 2018. Cap. 13, p 211 – 222. 6

CABAÇO, José Luiz. Moçambique: Identidades, colonialismo e libertação. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007, p.91 7


GNARUS- UFAM - 17 reram em solo português, primeiro contra a atuação desses religiosos; e por segundo, em favor de suas práticas.

motivada por fatores que iam da descristianização dos povos europeu até a superação da Companhia de Jesus.

Isto significa dizer que com a queda da monarquia portuguesa em 1910, devido a inúmeros fatores que variam de insatisfação econômica, questões nacionalistas, a um poder considerável detido pela Igreja em pleno século XX, presenciamos o fim de benefícios monetários e suspensão de algumas atividades missionárias em solo português.

Com efeito, a instituição eclesiástica participou de uma política de restauração da cristianização intitulada “romantismo missionário”, no qual foi visível o anseio pelo retorno de uma época de fervor de religiosos e ações da fé, pois os cristãos passaram a idealizar o retorno de práticas missionárias desdobrada em outros tempos.

No entanto, com a necessidade crescente de expandir e ocupar seus territórios no ultramar, o governo republicano anticlerical reconhece as necessidades das colônias se tornaram mais tênues; por isso, a partir de 1919, várias medidas são providenciadas a favor das missões católicas, sendo reforçadas com a ascensão do Estado Novo.

Em História a Igreja Católica (2006),9 os vários autores, ao analisarem a atuação da missão colonial às “jovens igrejas”, apresentam uma série de associações, ordens e irmandades que são fundadas a partir desse “novo fôlego” cristão.

Gabriela Alejandra (2014),8 ao discutir sobre o processo de restauração de uma ordem eclesiástica e o avanço do liberalismo econômico, após a queda de Napoleão Bonaparte (1815) e nos anos que sucederam, apresenta-nos um quadro em que as missões conseguiriam um êxito maior entre pessoas simples e cidadão do campo. Paralelo a isso, grupos liberais se opunham de modo incisivo às atividades missionárias, pois consideravam suas doutrinas intolerantes, autoritárias e fechadas, mas também prejudicial por induzir pessoas a abandonarem a leitura de jornais e livros não religiosos, além da não participação em organizações não-religiosas. No entanto, apesar das duras críticas à Igreja Católica, esta presencia ao longo do século XIX e primeiras décadas do XX, um grande impulso missionário após 300 anos de decaída, PEÑA, Gabriela Alejandra. História da Igreja: Vinte Séculos Caminhando em Comunidade. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2014, p. 362. 8

Associando esse fato ao avanço dos meios de comunicação, locomoção, condições de vida e controle político em outros continentes, África e Ásia tornaram-se o foco desse movimento de expansão, afinal esses religiosos sensibilizavam-se com o infortúnio das populações, compreendidas como destituídas de progresso e civilização. Pois, José Luiz Cabaço ao discutir sobre a identidade, colonialismo e a libertação de Moçambique,10 nos apresentado uma contextualização em que a colônia moçambicana, até 1891, praticamente, “não existia” e o controle português nesse território era ínfimo, muitas áreas ainda se encontravam sob domínio de Estados africanos, como líderes bantus ou de xeques, associando esse fato com a forte pressão sobre suas fronteiras pelo império inglês e a Britihs South African Company (BSAC), que fez se tornar urgente o LENENWEGER, J; STOCKMEIER, P; BAUER, J. B; AMON, K; ZINHOBLER, R. História da Igreja Católica. São Paulo, Loyola, 2004. 9

CABAÇO, José Luiz. Moçambique: Identidades, colonialismo e libertação. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007, p.91 10

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GNARUS-UFAM - 18 processo de ocupação. Nesse sentindo, o envio de representantes portugueses e missionários para essa área fora fundamental, no entanto, tal prática foi deveras afetado devido à instabilidade nas políticas coloniais praticadas em Portugal, no qual presenciamos o fim de uma monarquia em 1910, logo em seguida a insurgência de uma República Anticlerical e liberal até o período que sucedeu a ascensão do Estado Novo em 1933. A relação do catolicismo com o Estado português foi intensa ao longo dos séculos, sendo a instituição eclesiástica a principal responsável pelo advento da colonização da América portuguesa, tal fato assegurou certa imponência da Igreja Católica durante os séculos XVIII e XIX, dessa forma a aproximação do Estado monárquico com o clero era algo evidente. Jorge Miranda (2013), ao realizar uma análise sobre a relação do catolicismo com a monarquia constitucional, apresenta-nos essa intensa relação a partir das Constituições11 da monarquia liberal e seus pontos em comum, no qual pode-se destacar a declaração aberta a religião católica apostólica romana como religião oficial do Estado português. No entanto, o desgaste ocorreu de forma inevitável, à medida que o avanço das ideias liberais se intensificava, pois a Igreja gozava de uma posição predominante e os não-católicos encontravam-se em uma posição teatral quanto à questão jurídica. Por vezes, a prática do catolicismo foi encarada como dever por parte do cidadão luso, no qual a censura promovida por bispos sobre o dogma e a moral deveria ser veemente acaConstituição de 1822; Constituição de 1826 e Constituição de 1838. 11

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tada, ou seja, apenas aos estrangeiros eram permitidos os exercícios particulares e prática de fé distintas, essas obrigações estão descritas principalmente na Constituição de 1822 e 1826, essa primeira ainda prescrevia a ocorrência de missas na abertura da Assembleia de voto e o juramento religioso por parte dos deputados. Enquanto a Carta Constitucional e a Constituição de 1938 estabeleciam que absolutamente ninguém poderia ser perseguido por motivo religioso. Para contextualizar melhor a relação entre a Igreja Católica e ascensão do regime republicano, João Medina (2001), em A Democracia Frágil: A primeira República Portuguesa (1910 – 192612), direciona-nos a apreender um cenário em que a hostilidade para a religião foi se manifestando logo nos primeiros dias da revolução por uma torrente de diplomas que retomavam as medidas pombalinas de expulsão e as ordens religiosas, como também para a laicização da sociedade portuguesa. Com ascensão de uma República liberal em 1910, era questão de tempo que o Estado tomasse iniciativa de promover cortes e a limitação de poder detido pela Igreja Católica em Portugal, o que veio a acorrer a 20 de abril de 1911,13 com a publicação da Lei de Separação do Estado e da Igreja. Nesse sentido, os anos que abarcaram a primeira metade do século XX são recheados de medidas que em determinados momentos retém o poder e a influência da Igreja Católica. Dentre elas destacamos lançado e aprovado o Estatuto Orgânico das Missões Católicas MEDINA, João. A Democracia Frágil: A Primeira República Portuguesa (1910 – 1926). In: TENGARRINHA, J. (Org). História de Portugal. São Paulo: Enesp, 2001 12

Essa lei contava com 196 artigos, no qual o objetivo implicava na distinção da atuação do Estado português e do catolicismo, regulamentando de forma exaustiva a separação de incumbência de ambas, no entanto, essa regulamentação carregava por trás um caráter de descolonização do país. 13


GNARUS- UFAM - 19 em 1926¸ no qual o ministro das colônias João Belo reconhecia a importância das atividades católicas em território luso, é reforçado a importância da formação missionária para atuação nas colônias. Pois, era evidente as várias dificuldades enfrentadas por missionários, em especial os jesuítas, derivadas de uma ausência de preparo mais adequado do novos missionários,14 seja no âmbito da comunicação, seja na diferenciação das características das sociedades locais e informações sobre essas comunidades africanas, além da ausência de um planejamento estratégico, propiciando a execução de diversos métodos e técnicas ao longo do tempo com objetivo de impor normas da ortodoxia religiosa e política, mas que nem sempre apresentaram resultados positivos. Posteriormente, Portugal, em 1941, publicou um novo estatuto que regulamentava o Acordo Missionário e criava em conformidade uma Concordata entre a Santa Sé e o estado português, fundando três dioceses. Assim, Lisboa continuaria a enviar subsídios para as ordens missionárias, reforçando sua atuação no campo de ensino, através da instalação de mais escolas técnicas e liceus em território africano, dessa forma assegurando vários direitos as Igrejas Católicas. Dessa forma, acompanhar as políticas missionárias promovidas pela Igreja Católica e pelo governo português ao longo da primeira metade do século XX, significa presenciar uma série de mudanças relacionadas ao processo de colonização da África, como as práticas utilizadas para reforçar as relações de poder entre as metrópoles e as colônias, ou seja, o papel das missões nesse processo histórico e seu eventual impacto nas sociedades africa-

nas. Assim, isto nos revela uma interferência drásticas no modo de vida, na compreensão de mundo, na relação com outro e demais aspectos ligados a uma perspectiva sociocultural dos indivíduos em África, bem como a seu desemprenho como agentes nacionalizadores em terras ultramar. Afinal, o cristianismo foi um importante elo entre África e Europa, até os críticos mais ferrenhos e anticlericais das instituições religiosas as encaravam como uma importante ferramenta no processo de aculturação e civilização dos “indígenas. Isto significa dizer que as missões como um importante aparato da igreja, em especial a católica, possuem uma influência fundamental nas questões referentes ao colonialismo, principalmente se considerarmos a inflexibilidade do eurocentrismo sob as tradições e o saber-fazer africano. Dessa forma, os ensinamentos e dogmas cristãos foram sumariamente impostos, sem considerar as especificidades étnicas e culturais.15

Considerações Finais Discutir e analisar um estudo sobre presença missionária no mundo ocidental, é enxergar um quadro de renovação religiosa na primeira metade do século XX,16 que foi se dinamizando e multiplicando com a vinda de congregações novas em África, ocasionando o surgimento de uma historiografia missionária ainda pouco explorada. Isto significa dizer que há toda uma rede envolvendo dinâmicas sociais, políticas e religiosas que ainda não foram exploradas de forma mais assídua, deiM’BOKOLO, Elikia. África Negra. História e Civilização Tomo II (Do século XIX aos dias atuais). Bahia: EDUFBA, 2011, p. 504. 15

MEA, E. África a História das missões cristãs no Ocidente. In: SAMPAIO, T. H; SANTOS, P. T; SILVA, L. H (Orgs). Olhar sobre a História das Áfricas. Curitiba: Editora Prismas, 2018. Cap. 13, p 19 – 23. 16

PEREIRA, Z. Os jesuítas em Moçambique. Aspectos da acção missionária portuguesa em contexto colonial (1941-1974). Lusotopie, n°7, 2000. p. 92 – 93. 14

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GNARUS-UFAM - 20 xando assim o campo das missões ausente de uma reflexão analítica e crítica aprofundadas sobre as influências e impactos dos missionários católicos sobre as populações africanas ao longo do século dos anos de 1900. Com isso, compreender a história e o papel das missões em solo africano é um caminho para se entender inúmeras questões relacionadas à invasão e à exploração desse continente ao longo século XX, dentre elas podemos destacar a atuação colonial das metrópoles, a fomentação de políticas internacionais com o objetivo de estabelecer um domínio sobre as populações nativas, os missionários como agentes condutores de ideais nacionalistas, entre outros. Alguns autores17 nos alertam para as várias possibilidades de pesquisas ligadas ao tema, que para além de elucidar uma perspectiva religiosa, condiciona-nos a construir uma narrativa que contemple o processo de expansão política, econômica e social de uma Europa Ocidental sob um lugar a ser supostamente civilizado. Dessa maneira, torna-se imprescindível entender o processo colonial através do ponto de vista missionológico, porque ao longo dos trabalhos expostos, presenciamos esses missionários católicos como agente coloniais que se utilizaram de formas de colonizar o homem africano, em especial, àquelas relacionadas às doutrinas e às crenças. Assim, sua atuação fora como de representantes de um governo colonial cujo objetivo era implementar uma lógica ocidental, isto é, a portuguesa para povos que tinham sua própria forma de observar o mundo, ocasionado o surgimento do que viria a se chamar de cristianismo “africanizado”. MEA, E. África a História das missões cristãs no Ocidente. In: SAMPAIO, T. H; SANTOS, P. T; SILVA, L. H (Orgs). Olhar sobre a História das Áfricas. Curitiba: Editora Prismas, 2018. Cap 1, p 19. 17

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Girlane Santos da Silva é Graduanda em História, UFAM

Referência Bibliográfica ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru, SP: EDUSC, 2007. BARROS, José de Assunção. O Campo da História. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. BLOCH, Marc. Apologia da História ou Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. DERMATINI, Zeila de Brito Fabri; CUNHA, Daniel de Oliveira. Missões religiosas e educação nas colônias de povoamento da África Portuguesa: algumas anotações. International Studies on Law and Education, 20, maio-ago 2015. CABAÇO, José Luiz. Moçambique: Identidades, colonialismo e libertação. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007. HERNANDEZ, Leila Lopes. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. 2 ed. São Paulo: Selo Negro, 2008. LENENWEGER, J; STOCKMEIER, P; BAUER, J. B; AMON, K; ZINHOBLER, R. História da Igreja Católica. São Paulo, Loyola, 2004. MEDINA, João. A Democracia Frágil: A Primeira República Portuguesa (1910 – 1926). In: TENGARRINHA, J. (Org). História de Portugal. São Paulo: Enesp, 2001. M’BOKOLO, Elikia. África Negra. História e Civilização Tomo II (Do século XIX aos dias atuais). Bahia: EDUFBA, 2011. MIRANDA, J., “Sobre a lei de separação do Estado da Igreja de 1911”, Direito e Justiça, vol. especial 1 (2013). Disponível em: https://plataforma9.com/congressos/coloquio-internacional-missionacao-e-poder-colonial-em-angola-e-mocambique-no-seculo-xx.htm Acesso em 01/12/12. PEREIRA, Zélia. Os jesuítas em Moçambi-


GNARUS- UFAM - 21 que. Aspectos da acção missionária portuguesa em contexto colonial (1941-1974). In: Lusotopie, n°7, 2000. pp. 81-105. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/luso_12570273_2000_num_7_1_1360. Acesso em agosto de 2019. PEÑA, Gabriela Alejandra. História da Igreja: Vinte Séculos Caminhando em Comunidade. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2014. SAID, Edward W., Orientalismo - O Oriente como invenção do Ocidente. Tradução: Rosaura Eichenberg, São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. SAMPAIO, T. H; SANTOS, P. T; SILVA, L. H (Orgs). Olhar sobre a História das Áfricas. Curitiba: Editora Prismas, 2018. SILVA, K. V; SILVA, M. H. Dicionários de Conceitos Históricos. 3º ed. São Paulo: Editora Contexto, 2017. Fontes: Acordo Missionário Entre a Santa Sé e a República Portuguesa. Disponível em: http://www. vatican.va/roman_curia/secretariat_state/ archivio/documents/rc_segst_19400507_missioni-santa-sede-portogallo_po.html Acesso em: 17/10/2019 Ata Geral da Conferência de Berlim. Disponível em: https://mamapress.files.wordpress. com/2013/12/conf_berlim.pdf Acesso em: 17/10/2019

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Artigo

A UTILIZAÇÃO DO ACORDO DE ALVOR COMO FONTE PARA O ENSINO DE HISTÓRIA Por Alexandre da Silva Santos e Girlane Santos da Silva RESUMO: Esta discussão tem como proposta utilizar o Acordo de Alvor como fonte para o Ensino de História. Com o objetivo de discutir sobre o uso de fontes documentais no processo de ensino e aprendizagem de temáticas pertinentes às lutas de libertação na África pós Segunda Guerra Mundial. Desta maneira, entende que promover o debate, para assim alcançar a reflexão, em alunos da educação básica, significa mediar o ensino para contribuição formativa e identitária dos discentes. Além disso, insere-se esses indivíduos no meio social, cultural e político – tudo em virtude de as aulas de histórias não serem, neste cenário, algo simplista e restritivo à marcos cronológicos. Sendo assim, os diálogos promovidos redimensionam a importância social da área na formação de jovens que sinalizam a valorização do intelecto e do posicionamento crítico. Para tanto, possibilita ao acadêmico da educação básica conhecer parte dos processos históricos relacionados à libertação de Angola, sobretudo aqueles oriundos da década de 1950 com a formação de partidos políticos que iriam, em 1975, estabelecer com Portugal um tratado de transição de governos. Assim, este estudo visa, particularmente, ampliar a discussão sobre procedimentos metodológicos para o ensino em uma fase escolar responsável pela formação de valores diversos em jovens e adolescentes. Palavras Chaves: Umbanda; Identidade; Resistência

Introdução

A

historiadora Circe Maria Fernandes Bittencourt, ao analisar as concepções que regeram o ensino de História no Brasil nos faz entender que a maneira como os conteúdos programáticos são ensinados em sala de aula, nem sempre estiveram em alinhamento com o que orienta os Parâmetros Curriculares Nacional, sobretudo o PCN de História para a educação básica, no ensino médio. Deste modo, este estudo surge da inquietação de buscar compreender como realizar

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um ensino de História das Áfricas, em um primeiro momento, a partir do uso de fontes como o Acordo de Alvor, alinhado às orientações que o PCN de História pontua para o ensino de temas relacionados a esse aspecto do conhecimento histórico. Nesse sentido, fazendo uso de uma pesquisa de natureza bibliográfica, pautada em fichamentos temáticos de leituras sobre História das Áfricas, Ensino de História e História de Angola, para a construção deste estudo, em fase inicial de pesquisa. Após isso, a etapa descrita teve o intuito também de indagarmos as seguintes proble-


GNARUS- UFAM - 23 máticas a respeito do tema: Como realizar um ensino de História das Áfricas capaz da promoção de debates, através da interdisciplinaridade? A fim de buscar respostas para tais indagações, este estudo se organiza do seguinte modo: a) realiza uma descrição panorâmica do ensino de História; e b) Faz observações de que como podem ser trabalhados os conteúdos programáticos desse campo do saber histórico a partir de documentação oficial para alunos da educação básica. Dessa maneira, visa contribuir para a crítica relacionada ao processo de ensino e aprendizagem em História das Áfricas, atualmente, nas escolas brasileiras, sobretudo na etapa em que os alunos estão na fase da adolescência e ressignificando o mundo cultural e social que os cerca, isto é, constituindo suas identidades. Logo, o entendimento do que representa isso, à luz de um conhecimento histórico, significa contribuir para a formação sociocognitiva desse indivíduo.

2 O ensino de História e a História das Áfricas Os Parâmetros Curriculares para História1, orientam-nos a entender a dimensão temporal – inscrita na memória coletiva partilhada – das identidades e dinâmicas dos processos e assim situa as ações humanas em suas complexas relações de interação. Por conseguinte, promove uma leitura pontual e significativa da produção e do papel histórico das instituições sociais, políticas e econômicas das práticas de diferentes grupos e atores sociais. Em outras palavras, em sala de aula, um ensino de história orientado a partir dessa perspectiva - em particular à História das Áfricas possibilita fazer no aluno, pensar o continente africano diferente de uma visão europeia ou 1

BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino Médio. Parte IV – História. Brasília: DF, 1998.

de senso de comum, sobretudo de sentidos oriundos de narrativas que foram construídas desde o século XIX. Para André Bueno, em História da África: debates, temas e pesquisas para além da sala de aula, de 2019, revela-se que a partir da promulgação da Lei 10.639, de 2003, deu-se início a um processo de desconstrução dessa perspectiva para jovens alunos da educação básica, a fim de que fosse por eles conhecidos as tradições, conflitos, história, cultura e sociedades africanas. Logo, Bueno destaca que “a ausência de conhecimentos sobre a África forçou uma necessária reformulação de nossos modos de construir e ensinar história. Esse imenso continente, em suas multifacetadas expressões, exige uma abordagem diferente daquelas concebidas pelos meios eurocêntricos2.” Nesse sentido, o ensino de temas relacionados aos temas africanos e afro-brasileiros exige do professor uma abordagem diferente daquelas concebidas pelos meios usuais. Com efeito, compreendemos que um dos caminhos se dá por uma epistemologia construída a partir de uma experiência sociocultural e histórica dos povos africanos. Logo, a interdisciplinaridade se torna fundamental para os estudos africanos e, consequentemente, para o ensino. Essa perspectiva está alinhada às premissas que os Parâmetros Curriculares Nacional, PCN, sobretudo de História, pois orienta-nos em sala de aula para a promoção de uma educação inscrita em valores humanísticos na formação moral e cultural do indivíduo – e o mais importante – está em compreender do ponto de vista histórico as transformações sociais e econômicas. 2

BUENO, André. Introdução. In: BUENO, André; DURÃO, Gustavo; GARRIDO, Mirian. (Orgs). História da África: debates, temas e pesquisas para além da sala de aula. Edições Especiais Sobre Ontens. Ebook, 2019. p.7

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GNARUS-UFAM - 24 Nesse bojo, a partir dos pressupostos apresentados indagamos como o professor pode utilizar a documentação para a promoção dessa abordagem de ensino de História das Áfricas?

sociais envolvidos na produção de testemunhos, compartilhamento de memórias; como também na compreensão de especificidades existentes em leituras e análises de documentos variados.

Antes de avançarmos nessa discussão, é preciso esclarecer que a Lei 10.639/2003 determina a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares do Brasil, como o trecho a seguir exemplifica:

Assim, ainda houve a promulgação de uma outra lei 11.645/2008, que traz as seguintes alterações da 10.639/2003: O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber

Art. 1 o O art. 26-A da Lei n o 9.394, de 20

que o Congresso Nacional decreta e eu san-

de dezembro de 1996, passa a vigorar com a

ciono a seguinte Lei:

seguinte redação:

Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro

“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensi-

de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguin-

no fundamental e de ensino médio, públicos

tes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

e privados, torna-se obrigatório o estudo da

“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensi-

história e cultura afro-brasileira e indígena.

no fundamental e médio, oficiais e particula-

§ 1 o O conteúdo programático a que se

res, torna-se obrigatório o ensino sobre His-

refere este artigo incluirá diversos aspectos

tória e Cultura Afro-Brasileira.

da história e da cultura que caracterizam a

§ 1o O conteúdo programático a que se

formação da população brasileira, a partir

refere o caput deste artigo incluirá o estudo

desses dois grupos étnicos, tais como o

da História da África e dos Africanos, a luta

estudo da história da África e dos africanos,

dos negros no Brasil, a cultura negra-brasileira

a luta dos negros e dos povos indígenas no

e o negro na formação da sociedade nacional,

Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e

resgatando a contribuição do povo negro nas

o negro e o índio na formação da sociedade

áreas social, econômica e política pertinentes

nacional, resgatando as suas contribuições

à História do Brasil.

nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados

§ 2 o Os conteúdos referentes à história e

no âmbito de todo o currículo escolar, em

cultura afro-brasileira e dos povos indígenas

especial nas áreas de Educação Artística e de

brasileiros serão ministrados no âmbito de

Literatura e História Brasileiras3.

todo o currículo escolar, em especial nas

Esses aspectos se sustentam ao fato de que o ensino de história, de um modo geral, deve levar em consideração os diferentes agentes 3

BRASIL, Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003.Altera a Lei nº 9.394, de 20 de novembro de 1996. Inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília.

Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)4 4

BRASIL, Lei nº 11.645, de 10 de março de 2003.Altera a Lei nº 9.394, de 20 de novembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília.


GNARUS- UFAM - 25 Logo, percebemos que tais mudanças contribuem para avanços em escolas que trabalham a questão da valorização étnica e cultura afro-brasileira, e ainda auxiliam na difusão de práticas de ensino quanto ao reconhecimento da importância - da parte do aluno, a saber - da cultura afro para formação cultural brasileira. Para tanto, Andréa Giordanna Araújo da Silva5 orienta-nos a entender que fazer uso de documentos oficiais, significa transitar por uma rede complexa de saberes e práticas institucionais, ideológicas, disputas políticas e verdades variadas. Dessa maneira, elucidar os processos históricos que estão relacionados a tais categorias e à documentação em si, consiste-nos em apreender que o professor contribui para a formação histórica do aluno. Em suma, há uma interpretação de um tempo presente em uma perspectiva mais funcional e pragmática de nosso passado histórico. Por sua vez, Circe Maria Fernandes Bittencourt6 expõe que na função de transformar o ensino a ser ensinado e convertido em saber apreendido, da parte do discente, o professor - sobretudo o de história - auxilia a construção de interpretações sobre o cotidiano. Assim, a interdisciplinaridade para a promoção da interpretação de documentos, perpassa por metodologias sustentadas no diálogo e no debate; com isso, o ensino de História das Áfricas atinge dimensões de apreensão que estão para além de um saber de senso comum, este que o aluno traz para a sala de aula a partir de suas experiências de mundo. SILVA, Andréa Giordanna Araujo da. Os documentos oficiais e ensino de história nos anos iniciais do ensino fundamental: objetivos e conteúdos. In: BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton; ZARBATO, Jaqueline. Aprendendo História: Ensino. União da Vitória: Edições Especiais Sobre Ontens, 2019. p.57-65 5

3 O Acordo de Alvor e o Ensino de História das Áfricas Kalina Silva e Maciel Silva (2017) em Dicionário de Conceitos Históricos, ao mapearem os principais termos ligados ao campo da História, nos apresentam uma breve historiografia e suas concepções, ambos têm a preocupação de ressaltar a importância de considerarmos as especificidades de cada localidade e temporalidade para que não possamos cair no ledo engano da homogeneização e anacronismo, assim entendemos que a: “Fonte Histórica, documento, registro, vestígio são todos os termos correlatos para definir tudo quilo produzido pela humanidade no tempo e no espaço; a herança material e imaterial deixada pelos antepassados que serve como base para a construção do conhecimento histórico7.” Nesse sentindo, Carl Pinsk e Tania Luca8, ao discutirem sobre o uso de documentos como fonte e uma memória evanescente, utilizam a Carta de Pero Vaz Caminha como exemplo de mutabilidade de fonte, mas também como link para fazermos conexões com o passado, no qual esse documento tem uma forte relação com o sentido que empregamos, isto significa dizer que a interpretação que temos sobres os vestígios de tempos atrás estão carregados por nossas subjetivadas e concepções, assim nossas produções são marcadas por nossas experiências como sujeitos críticos de sua época9. Dessa forma, pensando na fonte como vestígios carregados de significados deixados por homens e mulheres marcados por suas crenças de mundo e valores morais.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008. 6

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GNARUS-UFAM - 26 Por seu turno, o Acordo de Alvor10 é um documento elaborado e assinado no período de 10 a 15 de janeiro em Alvor, Algarve, em Portugal. Ele visava realizar as negociações do processo de transição do colonialismo português para a independência política de Angola, em 1975. Com isso, se fizeram presentes os movimentos (grupos) angolanos envolvidos nessa seara, como o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), Frente de Libertação de Angola (FNLA), e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA). O documento elaborado a partir desse acordo foi estruturado em onze capítulos, com sessenta artigos que tratam de temas como: “Da independência de Angola”, de ser “Ilícito qualquer acto de recurso à força”, “Do alto-comissário”, “Do governo de transição”, “Competência do governo de transição”, “Dos refugiados e das pessoas reagrupadas”, “Eleições em outubro”, “Da nacionalidade angolana”, “Dos assuntos de natureza financeira”, “Criação de um banco emissor”, “Da cooperação entre Angola e Portugal”, “Das comissões mistas” e dos “Desacordos entre Portugal e Angola” Desse modo, o docente pode começar a discussão em sala de aula, elucidando pontos de contatos e de diferenças dos processos de independência do Brasil e de países africanos como Angola, a partir da exposição inicial do Acordo de Alvor, que diz-nos: ILÍCITO QUALQUER ACTO DE RECURSO À FORÇA ARTIGO 6.º O Estado Português e os três movimen-

“Acordo entre o Estado Português e a Frente Nacional de Libertação de Angola - “FNLA”, o Movimento Popular de Libertação de Angola - “MPLA” e a União Nacional para a Independência Total de Angola - “UNITA””, Fundação Mário Soares / António Arnao Metello. Disponível: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11007.001 (2019-12-11) Acesso em outubro de 2019. 10

Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

tos de libertação formalizam, pelo presente acordo, um cessar-fogo geral, já observado, de facto, pelas respectivas Forças Armadas em todo o território de Angola. A partir desta data, será considerado ilícito qualquer acto de recurso à força, que não seja determinado pelas autoridades competentes com vista a impedir a violência interna ou a agressão externa11.

Com efeito, o docente pode fazer com que o aluno entenda que houve conflitos armados nos estados africanos - como em Angola - e resultou em mortes dos dois lados, como expõe um trecho do Artigo 6º, para que assim haja um diálogo pacífico durante a transição de governos. Nesse ínterim, promove-se no aluno o entendimento de um contexto de produção para que haja a compreensão das relações que a disciplina de história, sobretudo ao de História das Áfricas. Desse modo, observa-se que o ensino não fica limitado à grande temas ou ainda há visões unívocas e eurocêntricas das sociedades africanas, mas orientado a partir de uma visão pautada em experiências humanas em seu tempo, geralmente dramáticas e de testemunho. Com base nisso, faz-se mais sentido - da parte do aluno - compreender que o trecho do Acordo de Alvor, a seguir, elucida essa preocupação humanística que o documento traz à tona, como também proporciona, através do debate, fazer com que o discente se veja no lugar do outro em um cenário de guerras e tensões. “Acordo entre o Estado Português e a Frente Nacional de Libertação de Angola - “FNLA”, o Movimento Popular de Libertação de Angola - “MPLA” e a União Nacional para a Independência Total de Angola - “UNITA””, Fundação Mário Soares / António Arnao Metello. Disponível: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11007.001 (2019-12-11) Acesso em outubro de 2019. p.1 11


GNARUS- UFAM - 27 DOS REFUGIADOS E DAS PESSOAS REAGRUPADAS ARTIGO 38.º Logo após a instalação do Governo de Transição serão constituídas comissões partidárias mistas, designadas pelo Alto-Comissário e pelo Governo de Transição, encarregadas de planificar e preparar as estruturas, os meios e os processos para acolher os angolanos refugiados. O Ministério da Saúde e Assuntos Sociais supervisionará a acção destas comissões.

ARTIGO 39.º As pessoas concentradas nas «sanzalas da paz» poderão regressar aos seus lugares de origem. As comissões partidárias mistas deverão propor ao Alto-Comissário, ao Governo de Transição, medidas sociais, económicas e outras para assegurar às populações deslocadas o regresso à vida normal e a reintegração nas diferentes actividades de vida económica do país.12

Considerações Nesse sentido, a utilização de fonte como instrumento didático auxilia no processo de ensino e aprendizagem a medida que aproximamos o passado com elementos palpáveis para esse aluno, afinal a história como disciplina é encarada como algo distante da realidade e do contexto de vida desse discente, assim é fundamental que façamos uma refle“Acordo entre o Estado Português e a Frente Nacional de Libertação de Angola - “FNLA”, o Movimento Popular de Libertação de Angola - “MPLA” e a União Nacional para a Independência Total de Angola - “UNITA””, Fundação Mário Soares / António Arnao Metello. Disponível: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11007.001 (2019-12-11) Acesso em outubro de 2019. p.6 12

xão envolvendo os acontecimentos anteriores com o cenário atual. Afinal, pensar o papel do professor como mediar o conhecimento e condutor a construção de uma opinião crítica, para formação de indivíduos questionadores na sociedade da sociedade em que estão inseridos requer ferramentas didáticas que viabilizem essa ação e a fonte documental mostrou-se útil nesse papel. Porém, como dito anteriormente o seu uso deve ser pensando com cautela e maestria, a medida que se um lado podemos direcionar a reflexão de outro pode-se levar a conjecturas anacrônicas e errôneas. E ao apresentarmos o contexto africano é necessário ainda mais cuidado, afinal o estereótipo de não desenvolvida ainda permeia o imaginário coletivo do coletivo escolar existe e suas extensas redes de relações políticas, econômicas e culturais revelam uma complexidade que não pode ser ignorada. Assim, utilizar documentos que exponham a soberanias de nações sob o domínio colonial, ao mesmo tempo rompe com a ideia de atraso, afinal presenciamos um movimento de resistência contra o que é considerado civilizado, além de expor as várias faces dessa luta contra o imperialismo português, uma vez que o Acordo de Alvor é comporto por três representações angolanas. Dessa forma, usar esse acordo como fonte documental requer domínio do contexto e das relações sobre a história de Angola do século XX, ela pode proporcionar a elucidação das facetas políticas que a permeiam e principalmente a intensa luta traçada por populações africanas por suas liberdade e independência do julgo colonialista de Portugal. Com isso, conduzimos nossos alunos a reconhecerem o protagonismo dessas populações angolanas, a dissociarem a ideia da Europa como padrão de desenvolvimento e Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020


GNARUS-UFAM - 28 enxergarem as dinâmicas que compõe o continente africano.

Alexandre da Silva Santos é Mestre em Letras e Mestrando em História pela UFAM. Girlane Santos da Silva é Graduanda em História pela UFAM.

Fonte “Acordo entre o Estado Português e a Frente Nacional de Libertação de Angola “FNLA”, o Movimento Popular de Libertação de Angola - “MPLA” e a União Nacional para a Independência Total de Angola - “UNITA””, Fundação Mário Soares / António Arnao Metello. Disponível: http://www.casacomum. org/cc/visualizador?pasta=11007.001 (2019-1211) Acesso em outubro de 2019.

Referências BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008. BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino Médio. Parte IV – História. Brasília: DF, 1998. BRASIL, Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de novembro de 1996. Inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. BRASIL, Lei nº 11.645, de 10 de março de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de novembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília.

Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

BUENO, André. Introdução. In: BUENO, André; DURÃO, Gustavo; GARRIDO, Mirian. (Orgs). História da África: debates, temas e pesquisas para além da sala de aula. Edições Especiais Sobre Ontens. Ebook, 2019. p.7 SILVA, Andréa Giordanna Araujo da. Os documentos oficiais e ensino de história nos anos iniciais do ensino fundamental: objetivos e conteúdos. In: BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton; ZARBATO, Jaqueline. Aprendendo História: Ensino. União da Vitória: Edições Especiais Sobre Ontens, 2019. p.57-65 SILVA, K. V; SILVA, M. H. Dicionários de Conceitos Históricos. 3º ed. São Paulo: Editora Contexto, 2017.


GNARUS- UFAM - 29

Artigo

DEBATE ACERCA DA LUTA DOS CAMPONESES NO BRASIL A PARTIR DOS RELATÓRIOS DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE A CNV, A GUERRILHA DO ARAGUAIA E OS POVOS DA FLORESTA Por Gabriel Cruz Carneiro e Yannara Moreira Gomes RESUMO: Neste artigo o que buscamos é o protagonismo do sujeito camponês na luta e resistência no campo, em busca uma quebra com a negação da existência de conflitos pelas forças armadas e a partir disso, o artigo discutirá primeiro a sessão do relatório da Comissão Nacional da Verdade referente os direitos violados dos camponeses e as lutas no campo, expondo as direções e as articulações projetadas nesse conjunto documental, depois iremos abordar de forma a tentar fomentar o debate sobre duas lutas especificas apresentadas nas páginas do relatório, a Guerrilha do Araguaia e os “Povos da Floresta”, fazendo uso dessas duas lutas na expectativa de exemplificar os horrores cometidos aos camponeses no contexto de antes, durante e até posterior a Ditadura e também, especificamente em relação aos Povos da Floresta, de ambientar mais a discussão no contexto da Amazônia, por conta de uma necessidade de ampliação do debate acerca das ações e conseqüências do período de governo militar no Norte do país. Partimos das páginas dos relatórios da CNV na construção deste artigo, fazendo uso de diversos autores que buscaram discutir a questão da terra no Brasil, ou buscaram centrar seus debates nas lutas especificas que escolhemos privilegiar nesta proposta de debate que é este artigo, e assim, a partir das contribuições ímpares destes autores, e dos documentos de importância inestimáveis presentes nos relatórios da comissão, buscamos traçar esse panorama de debate acerca dessa figura de resistência que é o camponês e o cenário de repressão ferrenha do século XX. Palavras-chave: Camponês, Resistência, Ditadura, CNV.

Introdução

A

luta pela terra é algo que se dá antes mesmo do homem branco pisar nas terras recém invadidas que viriam a ser o Brasil, mas mesmo com os milhares de indígenas que aqui viviam os conflitos eram de forma exorbitantemente menor, ligadas às disputas entre comunidades nativas, sendo realmente agravados com a chegada do colonizador, que trazia

consigo a lógica exploratória e de enriquecimento pela terra, e tal questão se fez em valer em larga escala durante o século XX, com as políticas varguistas e com a Ditadura Civil-Militar, além de ser uma conjuntura que chegou a contemporaneidade do século XXI. A Comissão Nacional da Verdade1 é uma Uma leitura das páginas da CNV permite uma reflexão muito mais sensível e crítica acerca dos processos ocorridos principalmente dentro do contexto da Ditadura, em que este material documental pode ser visto como 1

Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020


GNARUS-UFAM - 30 obra que foi erguida através de lutas e sangue, uma junção de documentos que relatam de forma detalhada e mais esclarecedora possível alguns dos acontecimentos que ocorreram no país antes e durante o Golpe de 1964, que resultou na Ditadura Civil-Militar. Dentro da CNV existem eixos temáticos de lutas específicas de cada movimento, neste artigo será tratado da luta pela terra, da luta no campo, da luta dos camponeses, com ênfase em duas lutas especificas. Nessa perspectiva em relação ao contexto da Violação dos Direitos Humanos dos Camponeses, que é o foco aqui, em que “o objetivo deste [...] é identificar e tornar públicos estruturas, locais, instituições, circunstâncias e autorias de violação de direitos humanos no campo brasileiro, entre 1946 e 1988.2” Em apoio ao grupo de trabalho da CNV, fora criada a CCV, Comissão Camponesa da Verdade, em 2012, “constituída por entidade e movimentos sociais ligados ao campo e por uma rede nacional de professores e pesquisadores3”. Durante o governo do General Médici, a ditadura se encontrava nos seus anos de maior repressão aos seus opositores, sendo tal período classificado como os “Anos de Chumbo da Ditadura”, as forças militares de ordem efetuavam prisões e buscavam desarticular movimentos de organizações de resistência e suprimir o que de forma fantasiosa era colocado como o “perigo vermelho”, ou a “ameaça comunista”, enquanto os militantes revolucionários buscavam se articular em suas tentativas de resistências e lutas. A Amazônia, uma das áreas de lutas a serem tratadas mais a frente, enfrentava uma realidade recheada de conflitos e enfrentamentos, sendo conhecidos popularmente como os “povos da floresta”, recebiam esse nome devido à maneira em que buscavam seus sustentos, através de recursos que eram extraídos uma História vista de baixo, no sentido de dar voz a toda uma gama de diferentes sujeitos que existiram nesse momento de extrema repressão política. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos/Comissão Nacional da Verdade – Brasília: CNV, 2014. p. 93.

da floresta Amazônica e por isso passaram a enfrentar os mais variados conflitos devido as políticas latifundiárias de controle da floresta, para a implantação de projetos que foram iniciados no governo de Getúlio Vargas e perduraram durante o governo militar. Outro ponto de debate e luta na Amazônia a ser retratado neste artigo é a guerrilha e a resistência armada estabelecida na região do Araguaia, seu papel, suas estruturas e conflitos. Compreender as condições que levaram o Partido Comunista do Brasil (PC do B) a dirigir seus militantes a uma região deslocada dos grandes centros urbanos em busca da “libertação nacional” ou do “sonho do socialismo”. Diante de uma monumental escala de intervenção territorial que atinge simultaneamente populações indígenas e camponesas diversas, “estas passam a buscar formas de enfrentamento correspondentes às necessidades de sobrevivência4”. Visto que os povos que ocupavam as terras próximas a esses lugares sofreram um grande impacto com os danos causados, tanto pelo desmatamento quanto pela violência que sofriam pelos militares e dos capangas dos fazendeiros que tinham a conivência das polícias locais para reprimirem os seringueiros que trabalhavam nas regiões e que faziam resistência, o que resultou em diversos casos de mortes e desaparecimentos de seringalistas, como expõe as páginas da CNV. O conjunto de políticas estabelecidas pela ditadura militar no sentido de “integrar” a Amazônia ao “desenvolvimento” do país, mormente àquelas voltadas para implementação de grandes projetos na área de mineração e siderurgia, pecuária extensiva de corte, exploração florestal madeireira e toda implantação de infraestrutura a eles associados, como energia, transporte e comunicação, produziram, em pouco mais de uma década, impactos profundos sobre a vida das populações locais e o meio ambiente em geral.5 PAULA, Elder Andrade. SILVA, Silvio Simione. Movimentos sociais na Amazônia brasileira: vinte anos sem Chico Mendes. Revista Nera, Presidente Prudente, n°13, Julho/Dezembro 2008. p. 107.

2

4

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos/Comissão Nacional da Verdade – Brasília: CNV, 2014. p. 92

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Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

PAULA, Elder Andrade. SILVA, Silvio Simione. Movimentos sociais na Amazônia brasileira: vinte anos sem


GNARUS- UFAM - 31 Em 1975, o SNI entregou ao ministro da Justiça, Armando Falcão, três grandes volumes com informações sobre conflitos de terras no Pará por eles intitulados “Conflitos Relativos à posse da terra no Pará”. Nesses volumes, eram relatados em detalhes questões de terra em praticamente todas as regiões do Estado, em especial àquelas localizadas em áreas de expansão rodoviária no nordeste, sudeste e sul. Com todos esses arquivos liberados é feito uma investigação ao respeito das terras tiradas do povo. Outro ponto de debate e luta a ser retratado neste artigo é a guerrilheira e a resistência armada estabelecida na região do Araguaia, seu papel, suas estruturas e conflitos. Compreender as condições que levaram o Partido Comunista do Brasil (PC do B) a dirigir seus militantes a uma região inóspita e remota em busca da “libertação nacional” ou do “sonho do socialismo”. Comissão Nacional da Verdade: Violação dos Direitos Humanos dos Camponeses A criação da CNV tem por finalidade explícita o que está escrito já em seu primeiro capítulo, em que A criação de uma Comissão Nacional da Verdade, com o objetivo de promover a apuração e o esclarecimento público das graves violações de direitos humanos praticados no Brasil, [...] assegurará o resgate da memória e da verdade sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas no período [de 1946 – 1988], [...] contribuindo para o preenchimento das lacunas existentes na história de nosso país em relação a esse período e, ao mesmo tempo, para o fortalecimento dos valores democráticos.6

Em sua essência, a Comissão tem em seu objetivo mais claro dar luz as graves ações do Estado em articulação com as oligarquias latifundiárias, e do Estado Militar Ditatorial instaurado em 1964, na tentativa de valorizar

e relembrar além da memória dos que foram mortos e desaparecidos no período, busca também deixar claro a população sobre a importância das instituições democráticas e da legitima liberdade de expressão. Em 2009, na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, reuniram-se em Brasília cerca de 1.200 delegados de conferências estaduais, convocados pela Secretaria de Direitos Humanos “[...] para revisar e atualizar o Programa Nacional de Direitos Humanos”7, em que, o então presidente Luis Inácio Lula da Silva assinara a apresentação do programa, ato que deixava clara a necessidade da criação de uma comissão da verdade que pudesse dar conta de “tudo o que passou naquela fase lamentável da nossa vida republicana,”8 buscando que o país nunca mais se encontrasse neste contexto de repressão violenta e que tais atos hediondos nunca mais sejam praticados pelo, ou com a conivência, do Estado. Já em novembro de 2011, a pedido da então ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes, o decreto de lei n 12.528 foi assinado pela então presidenta da República Dilma Rousseff, sendo a lei instaurada de fato em maio de 2012 em cerimônia no Palácio do Planalto “com a afirmação de que a verdade era merecida pelo Brasil, pelas novas gerações e, sobretudo, por aqueles que perderam parentes e amigos.”9 Em suas funções, Os trabalhos da CNV procuraram responder às reivindicações de perseguidos políticos, preso durante a ditadura, que se arriscaram denunciando a tortura sofrida nas dependências militares. Alinharam-se aos esforços dos familiares na incessante busca de informação a respeito das circunstancias da morte e do desaparecimento de seus entes queridos. Dialogaram com instancias estatais que reconheceram a responsabilidade do Estado brasileiro por graves violações de direitos humanos.10 7

8

Chico Mendes. Revista Nera, Presidente Prudente, n°13, Julho/Dezembro 2008. p.106 6

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 20

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 20 9

10

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 20

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 20

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. 2014. p. 23

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GNARUS-UFAM - 32 E lavando nessa perspectiva, indo em relação ao contexto da Violação dos Direitos Humanos do Camponeses, que é a carta foco desse artigo – relatório, em que o objetivo deste “[...] é identificar e tornar públicos estruturas, locais, instituições, circunstancias e autorias de violação de direitos humanos no campo brasileiro, entre 1946 e 1988”11 Em apoio ao grupo de trabalho da CNV, fora criada a CCV, Comissão Camponesa da Verdade, em 2012, “constituída por entidade e movimentos sociais ligados ao campo e por uma rede nacional de professores e pesquisadores.”12 Uma coisa a deixar clara é a importância da temática e da abordagem dessa carta, em que [...] Apesar dos processos históricos de luta por direitos e resistência à expropriação, há um esquecimento da história dos camponeses, tanto em relação ao seu protagonismo (na luta contra a ditadura) como nos processos de reparação.13

Antes de falar de conflitos específicos e relatar as mortes, torturas e desaparecimentos decorrentes destes conflitos, a carta busca fazer uma abordagem teórica acerca da luta de terras na história do Brasil, em que “[...] desde a colonização, [fora] orientada pela lei do mais forte.”14 Que se inicia com a chegada portuguesa no Brasil, primeiramente com a concessão de capitanias hereditárias. Compreender essa estrutura de administração que concentra a terra nas mãos das elites desde o início da história luso-brasileira se faz necessário para entender, dentro dos vários contextos posteriores à chegada portuguesa, e desemborcando no período abordado pela CNV (que vai de 1946 até 1988) que a história não é feita de cortes abruptos, sendo muito mais constituída de processos de continuidade dentro de uma lógica de longa duração.

A ditadura, como comenta a carta, tinha no seio do seu projeto uma gritante contradição, se por um lado os governos militares investiram na modernização do país, a partir de grandes obras de infraestrutura e iniciativas de apoio à indústria nacional, por outro lado trabalharam com o objetivo evidente de impedir, com brutalidade quando necessário, a melhoria das relações de trabalho e a democratização das condições da posse da terra.15

E esse processo de privação do acesso à terra, na Ditadura somente veio a se tornar mais descaradamente repressor, no entanto, existe desde quando começou a se aplicar a ela uma lógica de propriedade, em que o Estado sempre agiu como afirmador dessa separação do uso da terra. Outra pontuação importante da carta é em relação ao contexto político presente nos conflitos, sendo, como já dito, a ação repressora do Estado em articulação com os grandes latifundiários, que buscava desapropriar as terras de uso dos posseiros em favor da monopolização do grande agronegócio, em que este Estado Brasileiro esteve quase sempre ao lado dos grandes invasores de terras e dos beneficiários de fraudes cartorais - fossem empresas, fossem famílias tradicionais – contra posseiros que tiravam delas sua sobrevivência.16

Em seguida, a carta se propõe a falar dos conflitos, das expulsões dos posseiros, das repressões do Estado, das mortes e das torturas acontecidas em diversas áreas do país. Sempre seguindo uma estrutura que começa com uma apresentação e discussão sobre o conflito, depois com um subtópico dedicado as vítimas assassinadas, das vítimas sem dados, dos casos de perseguição e tortura acontecidos e das prisões.

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GNARUS- UFAM - 33 A Guerrilha do Araguaia Durante o governo do General Médici, a ditadura se encontrava nos seus anos de maior repressão aos seus opositores, sendo tal período classificado como os “Anos de Chumbo da Ditadura”, as forças militares de ordem efetuavam prisões e buscavam desarticular movimentos de organizações de resistência e suprimir o que era colocado como o “perigo vermelho”, ou a “ameaça comunista”, enquanto os militantes revolucionários buscavam se articular em suas tentativas de resistências e lutas. No contexto do Araguaia, seguindo o que seria o estabelecimento de uma guerrilha rural, inspirados pelas resistências vietnamitas e pelas ações de Che Guevera, buscavam nessas manobras uma forma de derrubar o governo militar, e nessa perspectiva, o movimento que em êxito conseguiu estabelecer um estrutura de guerrilha de fato fora, como pontua Jeferson Kappes no seu trabalho intitulado “A Guerrilha do Araguaia: a luta armada no campo e suas consequências”, “[...] o PC do B (Partido Comunista do Brasil), que em meados de 1966-67 deslocou os primeiros militantes até o Araguaia e começou a implantar algumas ações de reconhecimento,”17 que, ao invés de centrar seu foco na guerrilha urbana, juntou recursos para se estabelecer no meio rural.

depois de muita organização e diversas tentativas de argumentações do PC do B, de acordo com Kappes, tornou-se insustentável politicamente o “diálogo”, pois os canais de comunicação estavam todos interditados. Outro fator que agravou a situação, foi o AI-5 (Ato Institucional nº 5)19, um Ato que visava a forte repressão e permitia que diversos direitos fossem feridos, sendo pautados pelo governo ditatorial. Nesse período é certo, que a crescente de desaparecimentos, mortes, torturas e a repressão das mais diversas formas, a Guerrilha do Araguaia foi e é ainda hoje um forte marco na história brasileira, sendo considerada como uma página que ainda hoje é negada pelos militares, onde existem relatos e marcas de vítimas que sobreviveram as mãos dos militares, mas a negativa por parte desses homens, mostra que mesmo os vencidos estejam apontando fatos e que tenham provas de tais momentos de repressão, expõem que o lado dos vencidos só é considerado quando e como convém para uma determinada camada populacional elitizada. A guerrilha armada, não era de interesse inicial dos militantes do PC do B, mas acabou por se tornar a única via de possibilidade com o aumento da repressão por parte do Estado. E ligado a isso, o quadro de extrema violência se fazia presença na região, atrelados de forma íntima a questão da terra, em que os grileiros e latifundiários se valiam das fragilidades da lei de posse e de artifícios ilegais para tomar domínio das terras.

Parte das estratégias do partido estava em buscar apoio das comunidades, tornar o movimento mais popular, trazendo um público que viviam nessas localidades, aos poucos o movimento foi ganhando força e notoriedade. Tal ganho de apoio fez com que o Exército instigasse uma imagem negativa para os camponeses e pessoas que simpatizavam com a causa camponesa, sedo classificados, segundo a CNV como ““bandidos” e “terroristas”. Ainda assim, mais alguns camponeses aderiram à “guerrilha.”18.

Enquanto do outro lado da luta, houve relatos que os guerrilheiros tinham apoio das populações, “que embora, poucos pegassem em armas contra o exército, eles ajudavam de alguma forma os “povos das matas” ou “paulistas”, com suprimentos e informações,”20 que desiludidos com o poder público, abraçavam a causa revolucionária.

O contexto inicial da Guerrilha do Araguaia, não fazia uso de forças de fogo, no entanto, com o acirramento do combate no campo, e

Aos poucos os militantes foram caindo, as diferenças de forças eram enormes, o governo investira de forma massiva na sua busca

KAPPES, Jeferson. A guerrilha do Araguaia: a luta armada no campo e suas consequências históricas. 2017. p. 12.

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Instituído em 1968, no governo do General Costa e Silva, o AI-5 é a maior expressão do autoritarismo e da repressão da Ditadura Militar. 20

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GNARUS-UFAM - 34 por reduzir a nada as ações dos guerrilheiros, e tendo derrotado o movimento, os militares se empreenderam na tentativa de “apagar” os rastros do acontecido, tendo o episódio final da repressão a chacina da Lapa, “onde vários dirigentes comunistas do PC do B foram metralhados sem chance de reação e sem oportunidade de defesa.”21. Hoje, a Guerrilha é pouco retratada de forma profunda para a população brasileira, sendo considerada como um movimento de esquerda que buscava apenas manchar a “Gloriosa Revolução de 1964” ou “Revolução Militar”, negando assim, a forte repressão dos militares as forças camponesas e com isso, resta usar de fontes jornalísticas que são registros midiáticos para pautar uma discussão que já deveria ser amplamente exposta para o povo. Principalmente na conjuntura que o país encontra-se, onde comemorações são visitas pelos 55 anos de Ditadura Civil-Militar, Peixoto afirma que o povo continua abandonado, mesmo que não se exista hoje Ditadura militar, o povo permanece esquecido, o campo permanece negligenciado pelo Governo.

cional (PIN) anunciado em 1970, pelo general Emílio Garrastazu Médici que tinha como finalidade a criação de estradas que ligassem as regiões centrais do Brasil a floresta Amazônica e foi uma tentativa também na redução dos conflitos existentes na região quanto a ocupação das terras. A transamazônica, Cuibá-Santarém, BR 364 foram criadas com base nesses projetos. Diante de uma monumental escala de intervenção territorial que atinge simultaneamente populações indígenas e camponesas diversas, estas passam a buscar formas de enfrentamento correspondentes às necessidades de sobrevivência22. Visto que os povos que ocupavam as terras próximas a esses lugares sofreram um grande impacto com os danos causados, tanto pelo desmatamento quanto pela violência que sofriam pelos militares e dos capangas dos fazendeiros que tinham aval da polícia para reprimirem os seringueiros que trabalhavam na região e que não concordavam com as ações, fazendo com que houvesse a morte de muitos seringueiros.

Os ditos “povos da floresta” recebiam esse nome devido a maneira em que buscavam seus sustentos, através de recursos que eram extraídos da floresta Amazônica e por isso passaram a enfrentar os mais variados conflitos devido a tentativa de derrubada da floresta, para a implantação de projetos que foram iniciados no governo de Getúlio Vargas e perdurou até os militares.

Um dos seringueiros assassinados foi Wilson de Souza Pinheiro, primeiro líder dos povos da floresta, presidindo e organizando por duas vezes o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Basileia. Sob sua liderança em 1976 os seringueiros criaram um plano intitulado de “os empates às derrubadas” onde todos se reuniam com as famílias e encaminhavam-se para a área de desmatamento e colocava-se a frente das seringueiras com o intuito de impedir que as máquinas derrubassem as árvores e também desmontavam os acampamentos dos peões.

Com a criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), em 1966, foram desenvolvidos meios para que tivesse um incentivo no desenvolvimento da pecuária nessa região, com isso trazendo mais lucros para os fazendeiros. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) criando em 1969, trabalhava em parceria com a Sudam na fiscalização e liberação do financiamento para o projeto que era feito através do banco do Banco da Amazônia S.A (Basa). Também foi criado o Plano de Integração Na-

No começo dos anos de 1980, tornavam-se mais visíveis as imagens da produção destrutiva resultante da expansão capitalista para a Amazônia. O conjunto de políticas implementadas pela ditadura militar no sentido de “integrar” a Amazônia ao “desenvolvimento” do país, mormente àquelas voltadas para implementação de grandes projetos na área de mineração e siderurgia, pecuária extensiva de corte, exploração florestal madeireira e toda implantação de infraestrutura a eles associados, como energia, transporte e comunicação,

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GNARUS- UFAM - 35 produziu, em pouco mais de uma década, impactos brutais sobre a vida das populações locais e o meio ambiente em geral23. Em 1980, Wilson Pinheiro foi assassinado a mando dos fazendeiros Nilo Sérgio de Oliveira e Narciso, por conta de suas ações de resistência foi morto dentro da sede do Sindicato. Outro seringueiro assassinado e de grande reconhecimento é Francisco Alves Mendes Filho popularmente conhecido como Chico Mendes. Iniciou a luta com atos de desobediência dos seringueiros em relação aos patrões. Segundo Elder Andrade e Silvio Simione, tais atos consistiam em burlar o sistema de vigilância implantado pelos fazendeiros e vender os produtos por um preço melhor. Chico Mendes fez parte da diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais que era presidido por Wilson Pinheiro. Em 1975, foi eleito presidente do Sindicato em Xapuri e acabou intensificando sua luta pela causa dos seringueiros, pela floresta e contra a ditadura. A importância da liderança de Chico Mendes nesse movimento nucleado em Xapuri deve-se, sobretudo, à sua formidável capacidade de fazer as conexões entre o particular e o geral. Nesse processo, tão importante quanto o seu resultado imediato – a crítica ao modelo de modernização pautado na destruição da floresta e a elaboração da proposta de Reservas Extrativistas como alternativa a ele – foi a difícil construção de diálogos entre atores sociais e interlocutores diversos24. Apesar da causa em comum entre os ambientalistas e os seringueiros a proximidade, não ocorreu de maneira tão harmoniosa de início. Chico liderou em 1985, a organização do Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros, que contou com a participação de mais de 100 seringueiros, e serviu para a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros como uma entidade representativa. “As lideranças do STR de Xapuri, preocupadas em atender as demandas de sua principal base social, os seringueiros, começam a defender a ideia de que a resolução efetiva dos conflitos passava necessariamente pelo reconhecimento de seus direitos sobre a área total de suas colo23 24

PAULA; SILVA. 2008. p. 106 PAULA; SILVA. 2008. p. 108

cações”25. Chico Mendes pregava que os benefícios derivados da manutenção da floresta são maiores do que o valor que se obtém com a sua derrubada, e foi essa a sua matriz ideológica, que o tornou tão reconhecido nacionalmente e internacionalmente, em 1987 ganhou o prêmio Global 500 da ONU. Reconhecimento esse que não agradou a todos, ocasionando a sua morte em 22 de dezembro de 1988, quando fora assassinado pelo fazendeiro Darly Alves da Silva e seu filho Darci Alves Pereira. Conclusão Discutir a história das lutas camponesas no Brasil é de extrema necessidade por se tratar de figuras historicamente marginalizadas dentro da sociedade, esta que se afirma por meio de uma tendência progressista ligada a uma crescente urbanização que distancia e menospreza os que moram afastados dos grandes centros, e além disso, esses povos passam por uma histórica condição de resistência em relação a políticas oligárquicas que concentram as terras e o latifúndio, em direção a uma desmedida política de exploração dessas populações. Nesse sentido, o debate acerca do homem do campo é indispensável por partir de uma demanda histórica de valorização desses povos e uma necessidade contemporânea de protagonizar o campo como espaço de conflitos e de resistência. Referências Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos/Comissão Nacional da Verdade – Brasília: CNV, 2014. 216p. – (Relatório da Comissão Nacional da Verdade; v, 2) EXAME ABRIL. A resistência dos seringueiros: Conheça a história de Chico Mendes. Disponível em: https://exame.abril.com.br/ brasil/a-resistencia-dos-seringueiros-conheca-a-historia-de-chico-mendes/. Acesso em: 23/05/2019. 25

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GNARUS-UFAM - 36 GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e Descaminhos dos Movimentos Sociais no Campo - 3 edição. Editora Vozes Ltda Petrópolis 1991 KAPPES, Jeferson. A guerrilha do Araguaia: a luta armada no campo e suas consequências históricas. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Ciências Sociais) – Universidade Federal de Fronteira do Sul, Chapecó, 2017. Disponível em: https://rd.uffs.edu.br/ handle/prefix/1152 Acesso em: 1º maio 2019 MEMORIAL DO CHICO MENDES. Disponível em: http://www.memorialchicomendes.org/ chico-mendes/ . Acesso em: 23/05/2019 MEMORIAS REVELADAS. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/ pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%203. pdf. Acesso em: 10/05/2019 MIGUEZ, José Mário. Reforma Agrária: A farsa no vale do Araguaia – 1897. PAULA, Elder Andrade. SILVA, Silvio Simione. Movimentos sociais na Amazônia brasileira: vinte anos sem Chico Mendes. Revista Nera, Presidente Prudente, n°13, Julho/Dezembro 2008. PEIXOTO, Rodrigo Corrêa Diniz. Memória social da Guerrilha do Araguaia e da guerra que veio depois. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 6, n. 3, p. 479-499, set.-dez. 2011.

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Artigo

ENTRE WILLIAMSPORT E URUCARÁ: a trajetória do missionário Clinton Thomas dos EUA ao Amazonas através de fontes orais Por César Aquino Bezerra e Júlio Claudio da Silva RESUMO: Nosso trabalho se propõe a investigar a trajetória do missionário da Igreja de Cristo, Clinton Thomas, dos EUA ao Brasil, entre as décadas de 1950-1990. Esta pesquisa ancora-se na metodologia da História Oral, que, através de entrevistas, possibilita o registro do processo de construção de memórias ou memórias compartilhadas sobre eventos históricos ocorridos no chamado tempo presente. A Igreja de Cristo nasceu de movimentos evangélicos nos Estados Unidos, no início do século XIX, espalhando-se para outras nações. A missão instalou-se no Centro-Oeste do Brasil em 1948, e o trabalho missionário avançou para outros estados. Clinton Benjamin Thomas (1930-2007) e Phyllis Eleanor Thomas (1934), naturais de Williamsport, Pensilvânia, iniciam seu serviço missionário na região Norte em 1956. Em 1965, com seus três filhos, chegam em Urucará, Amazonas, para fundar a primeira igreja protestante da cidade, em um momento que a presença da Igreja Católica, e até do próprio Estado, era frágil na região. As ações dos missionários, não restritas à área religiosa, se desenvolveram em Urucará por três décadas. Dessa forma, este artigo registra e analisa as memórias de dois colaboradores, Thomas Joel Thomas e Renato Braga Vieira, sobre a trajetória de Clinton Thomas, de Williamsport à Urucará, a atuação religiosa e social do pastor Clinton e da igreja evangélica no interior amazonense, suas relações e tensões com os moradores da cidade, com a Igreja Católica e as autoridades. Palavras Chaves: Clinton Thomas, Urucará, Igreja de Cristo, História Oral, Protestantismo na Amazônia.

Introdução

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maior parte das investigações sobre o cristianismo na Amazônia ainda tendem a concentrar-se na religião católica, contudo, trabalhos recentes, como os de Carvalho (2015), Oliveira e Pinto (2017, 2019), e Torres Neto (2019), têm buscado perceber a entrada de agentes protestantes na região; assim, o presente artigo volta-se a investigar a atuação religiosa e social de um missionário protestante na região Norte do Brasil.

Registros de viajantes a partir de 1853 indicam que a Amazônia se tornara destino das missões protestantes norte-americanas, não apenas por motivações proselitistas, mas também por razões comerciais1, pois as potências estrangeiras reconheciam a importância da Amazônia. Nos relatos dos primeiros missionários na Amazônia, é possível considerar que “a ideia de um povo escolhido por Deus para espalhar a fé cristã ao mundo desprovido do protestantismo não está dissociada das ideias de progresso norte-americano” 2, des1 OLIVEIRA; PINTO, 2017. 2 Ibidem, p. 106.

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GNARUS-UFAM - 38 velando uma mentalidade civilizadora. Entretanto, o proselitismo protestante apenas se tornou possível após a proclamação da República, ancorada no estado laico e na liberdade religiosa. Os bispos católicos da Amazônia, ao que parece confrontados em sua hegemonia, percebiam o protestantismo como um perigo não apenas doutrinário, mas também geopolítico3; desse modo, denunciavam a presença protestante como uma ameaça à integridade do território brasileiro e que precisava ser combatida. Portanto, o protestantismo amazônico se configura como missionário e conversionista, ou seja, realizado por estrangeiros, que vêm à região em busca de conversões.4 Através do trabalho dos primeiros missionários, foram preparadas as bases para as igrejas evangélicas estabelecerem-se no Norte do Brasil. Junto a isso, a segunda metade do século XX parece ter sido marcada pelo empenho da Igreja Católica em garantir, junto aos fiéis do Baixo Amazonas, a hegemonia das doutrinas do cristianismo estabelecida por Roma5. Nesta conjuntura de possíveis tensões e tentativa de controle da Igreja Católica sobre os seus fiéis, a família do norte-americano Clinton Thomas chega na pequena cidade amazonense de Urucará em 1965, instalando uma missão religiosa, fundadora da primeira igreja protestante da cidade.6

História oral e memória: ouvindo as vozes Com nosso recorte entre os quarenta anos de Clinton Thomas no Brasil, 1956-1996, nos enquadramos na história do tempo presente, na construção de “uma narrativa científica 3 LOPES, 2010. 4 OLIVEIRA; PINTO, 2017. 5 CAMPOS, 1995; MAUÉS, 1995; MAUÉS, 2011; CERQUA, 2009. 6 BEZERRA; SILVA, 2018a, 2018b.

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acerca do que vivemos, do que estamos consagrando como memória e, por contraste, do que estamos esquecendo”7. A memória tem flutuações, dependentes das motivações pessoais ou políticas em que é expressa. Ela é construída, social e individualmente, e assim é concebida como elemento em constante negociação, bem como a identidade; ambas estão em disputas em confrontos sociais e intergrupais.8 Esse caráter conflitivo se faz presente em memórias familiares, nas memórias de grupos menos formais, em grupos políticos ou ideológicos, onde se embatem objetivos, conflitos, litígios, como aliás, pode ser a trajetória de Clinton Thomas. Como metodologia para os estudos na história do tempo presente e a memória, apropriamo-nos da abordagem da História Oral, que nos permite registrar testemunhos e acessar “histórias dentro da história” e, ampliar as possibilidades de interpretar o passado. Através da História Oral, serão realizadas entrevistas “com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do presente”9. Estudar as experiências que esses indivíduos efetuaram e elaboraram permite problematizar generalizações sobre acontecimentos e conjunturas. A entrevista pode ampliar a percepção histórica, e permitir a “mudança de perspectiva”10, ouvindo vozes antes não privilegiadas pela historiografia. A entrevista, na história oral, nasce da interação entre o entrevistado e o entrevistador – dois autores – e pela narração o entrevistado transmite o acontecimento que viveu, ou seja, “ele se constitui (no sentido de tornar-se algo) no momento mesmo da 7 MOTTA, 2012, p. 34. 8 POLLAK, 1992. 9 ALBERTI, 2014, p. 155. 10 Ibidem, p. 166.


GNARUS- UFAM - 39 entrevista”11. Não sendo a narração um fim em si mesmo, já que visa a produção de um documento, o espaço da entrevista institui o uma “bipolaridade dialógica”, pois dois sujeitos estão face a face, com a mediação de um microfone. Quando “os dois se olham”, o pesquisador olha para sua fonte, o narrador olha para seu entrevistador, e, portanto, por suas percepções, modela seu discurso, durante a “troca de olhares”.12

Brasil. Casado, voltou a residir em Urucará em 2015. Tomé contava com 53 anos na ocasião de nosso encontro.14 Renato Braga Vieira nasceu em 06 de janeiro de 1948, em Urucará, Amazonas. No momento da entrevista, contava com 70 anos. Seu Renato é casado, aposentado, ainda reside em Urucará, e trabalhou com a família Thomas durante 29 anos, como marceneiro e outros serviços manuais.15

Todavia, Motta (2012) alerta ao equívoco de considerarmos memória e história como sinônimas; assim, persiste a necessidade de uma reconstrução crítica e não somente restaurar memórias, compreendendo que estas tanto são fontes históricas quanto fenômenos históricos. Não podemos considerar o relato como a própria “História”, ou seja, quando “a entrevista, em vez de fonte para o estudo do passado e do presente, torna-se a revelação do real”.13 Como fonte, a entrevista precisa ser interpretada e analisada.

Clinton Thomas e a Igreja de Cristo

Como registra Silva (2016), a História Oral tem se consolidado no estudo de questões da história recente da Amazônia, afirmando a produção do conhecimento acadêmico como contribuição para o desenvolvimento do interior do país. Portanto, com a história oral, lançamo-nos ao desafio de ouvir as vozes plurais da Amazônia, para a partir de suas memórias, apreender os processos históricos, sociais e culturais envolvidos na trajetória de Clinton Thomas. Na tessitura desse artigo, estaremos em diálogo com dois colaboradores: Thomas Joel Thomas, nasceu em 11 de janeiro de 1964, no estado do Colorado, Estados Unidos. Conhecido como “Tomé”, ele trabalhou em fábricas e oficinas de mecânica nos Estados Unidos e 11 ALBERTI, 2014, p. 171. 12 PORTELLI, 2010, p. 20. 13 ALBERTI, op. cit., p. 158.

Clinton Benjamin Thomas nasceu em 28 de setembro de 1930, em Williamsport, no estado da Pensilvânia, filho de Benjamin e Lucinda Thomas, e formou-se no Johnson Bible College em 1955.16 Sua companheira, Phyllis Eleanor Thomas, nasceu em 26 de dezembro de 1934, também em Williamsport. Desenvolveram sua experiência e trajetória religiosa na Igreja de Cristo na Pensilvânia, segundo Tomé Thomas: “Desde criança, iam na mesma igreja”, e após o casamento “foram juntos para o colégio, como casal”. O casal teve três filhos: Timothy Benjamin Thomas (1956), Theodore Andres Thomas (1959) e Thomas Joel Thomas (1964)17. A Igreja de Cristo nasceu a partir do Movimento Stone-Campbell, internamente chamado de Movimento de Restauração, como herdeira de movimentos reformadores nos séculos XVIII e XIX nos Estados Unidos. Dois desses movimentos, um liderado por Barton Stone (1772-1844), e o outro liderado por Thomas Campbell (1763-1851) e seu filho Alexander Campbell (1788-1866), ambos ansian14 Dados a partir de entrevista realizada com Thomas “Tomé” Joel Thomas, em 19/08/2017, em Urucará/AM. 15 Dados a partir de entrevista realizada com Renato Braga Vieira, em 19/12/2018, em Urucará/AM. 16BRAZIL CHRISTIAN WIKI. Clinton and Phyllis Thomas. Disponível em http://en.brazilchristianwiki.org/wiki/ Clinton_and_Phyllis_Thomas. Acesso em 15/08/2017. 17 Entrevista realizada com Thomas “Tomé” Joel Thomas, em 19/08/2017, em Urucará/AM.

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GNARUS-UFAM - 40 do por um retorno ao cristianismo primitivo, unidade dos cristãos e a valorização da Bíblia, uniram-se em 1832. Suas congregações são conhecidas como Igrejas de Cristo ou Igrejas Cristãs (Church of Christ/Christian Church). A expansão do Movimento de Restauração pelos Estados Unidos e para outros países resultou na presença de igrejas em praticamente todo o planeta.18 No interior da Igreja de Cristo/Cristãs nos EUA surgiram três correntes. A primeira nasceu em 1906, constituída por um grupo radical, conhecido como A Capella. Dois novos grupos surgiram entre a década de 1920 e 1968. O mais liberal e ecumênico deu lugar à corrente Discípulos de Cristo. Um terceiro grupo formou a comunhão conhecida como Discípulos independentes. Contudo, as congregações dos três grupos apresentam-se como Igrejas de Cristo/Cristãs, referindo-se às correntes apenas quando necessário identificar-se19. No final da década de 1920, a primeira iniciativa missionária da Igreja de Cristo no Brasil foi da corrente A Capella, mas não avançou20. Em 1948, os Discípulos independentes enviaram como missionários para o Brasil o casal David e Ruth Sanders. David, quando ainda era seminarista, teria tido um sonho, onde recebera o chamado missionário para Brasília, capital brasileira. Os Sanders desembarcaram no Rio de Janeiro em 25 de março de 1948, com destino à futura capital. Esperariam a 18 AGOSTINHO JÚNIOR, Pedro. Introdução à História do Movimento de Restauração de Stone e Campbell. Movimento de Restauração. Disponível em http://movimentoderestauracao.com/2008/05/26/ introducao-a-historia-do-movimento-de-restauracao-de-stone-e-campbell/. Acesso em 20/08/2017. 19 Idem. 20 AGOSTINHO JÚNIOR, Pedro. Esboço da presença dos três principais ramos do Movimento de Restauração no Brasil. Movimento de Restauração. Disponível em http://movimentoderestauracao. com/2008/04/14/esboco-da-presenca-dos-tres-principais-ramos-do-movimento-de-restauracao-no-brasil/. Acesso em 20/04/2018.

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construção da cidade do sonho em Goiânia, Goiás, onde instalaram a primeira igreja, em 7 de setembro de 194821. Os registros da Igreja de Cristo indicam que 87 famílias de missionários foram enviadas ao Brasil entre 1948-199822, entre os quais Clinton Thomas e sua família, que chegaram em 1956, e atuaram primeiramente nas cidades de Belém e Macapá, cujas igrejas foram iniciadas em 1952 e 1958, respectivamente23. Permaneceram em Belém “na faixa de 2 anos”, onde nasceu o primeiro filho. Orientados para trabalhar em Macapá, Tomé Thomas relata que a família se mudou para o Amapá, “onde o segundo irmão nasceu”.24 Depois, a família voltou aos Estados Unidos, conforme o colaborador: “59 a 60 ele voltou, passou uns anos lá quando eu nasci”. Nesse período, Clinton Thomas trabalhou “com torno” e foi proprietário de “uma loja de armas no Colorado”, até ser convocado novamente: “mas aí pediram pra ele voltar pra missão”25. A família de missionários procurou uma cidade sem igrejas para iniciar um novo trabalho. A cidade escolhida foi Urucará, no estado do Amazonas. O que teria levado os missionários a escolher essa cidade e implantar uma congregação protestante, em 1965?

O missionário em Urucará Chamado de volta ao Brasil, Clinton Thomas “veio pra essa área de Urucará”. Após Belém, a viagem até Urucará se deu via fluvi21 Sem autor identificado. Um breve histórico sobre Lloyd David Sanders. Movimento de Restauração. Disponível em http://movimentoderestauracao. com/2009/02/12/um-breve-historico-sobre-lloyd-davidsanders/. Acesso em 17/10/2018. 22 O MENSAGEIRO DAS IGREJAS DE CRISTO, abril a julho/1998, p. 2. Acervo pessoal/GEHA/CESP. 23 AGOSTINHO JÚNIOR, Pedro. Op. cit. 24 Entrevista realizada com Thomas “Tomé” Joel Thomas, em 19/08/2017, em Urucará/AM. 25 Entrevista realizada com Thomas “Tomé” Joel Thomas, em 19/08/2017, em Urucará/AM.


GNARUS- UFAM - 41 al; seria “a primeira vez” que a família viajava naquela direção. O processo de construção das memórias de Tomé Thomas não justifica a escolha de Urucará: “ele queria uma área nova onde não tinha igreja (...) queriam achar cidade que não tinha igreja cristã. Em Urucará foi uma”. Poderia ter sido outra? “Tinha cinco assim (...) então, aqui era uma, então ele ficou”. Em sua narrativa não havia nada de específico em Urucará: “chegou aqui e resolveu ficar”26. Localizada na região do baixo Amazonas, Urucará deriva seu nome da junção de duas palavras indígenas: “uru”, que significa cesto de palha, e “cará”, inhame. A cidade originou-se do povoado de Santana da Capela, fundada em 1814, por Crispim Lobo de Macedo. A freguesia de Nossa Senhora Santana da Capela foi criada em 3 de maio de 1880, sendo elevada à vila de Nossa Senhora Santana de Urucará em 12 de maio de 1887, desmembrada do município de Silves. Em 1892, o nome do município foi alterado para simplesmente Urucará. Em 1930, o município foi suprimido e seu território anexado à Itacoatiara, sendo restabelecido em 1935. Em 1938, a sede do município recebe foros de cidade, e a comarca é criada em 1952. Em 1981, uma emenda constitucional desmembra parte do território para a criação de São Sebastião de Uatumã.27 Região marcada pela hegemonia do catolicismo, Urucará e o Amazonas atravessaram a década de 1960 com transformações para a Igreja Católica. Primeiramente, conforme Silva (2018), a carência de sacerdotes, que marca a paróquia de Urucará desde sua fundação, foi suprida quando o arcebispo de Manaus convidou a missão canadense de Scarboro (Scarboro Foreign Mission Society) para as-

sumir a Paróquia de Itacoatiara, e consequentemente atuarem nos municípios limítrofes, inclusive Urucará. Os cinco primeiros padres de Scarboro chegaram em julho de 196228. Nesse ínterim, um evento, o Concílio Vaticano II, de significado global para o Cristianismo acontecia no Vaticano. Aberto em 11 de outubro de 1962, o Concílio Vaticano II foi “marco na modernização litúrgica e doutrinal da Igreja Católica”29, através do qual “a Igreja Católica abriu-se mais ao mundo”30. Novas direções para o ecumenismo e a pastora católica estavam entre as mudanças, implantadas a partir de então. Outro acontecimento importante é a criação da Prelazia de Itacoatiara, em 13 de julho de 1963, através do papa Paulo VI, oito anos após a criação da então Prelazia de Parintins31. Atualmente, a Prelazia, além de Itacoatiara, onde está situada a Catedral Nossa Senhora do Rosário, é composta pelos municípios de Itapiranga, São Sebastião do Uatumã, Silves, Urucará e Urucurituba32. Foi nessa conjuntura, de transformações para o catolicismo na região, que Clinton, Phyllis, Timothy, Theodore e Thomas desembarcaram em Urucará. Até a década de 1960, de acordo com Thomas Joel Thomas, e como registra Silva (2018), “o padre só vinha uma vez por ano, durante a festa (...) Não sei qual era a festa naquele tempo, eu acho que era Santana”. Porém, “depois que ele chegou, aí mandaram o padre, pra ficar aqui, permanente”. Apesar da provável influência da chegada de um pastor protestante na cidade, cabe destacar que este era também o momento de transformações na Igreja Católica, o que reflete-se no maior cuidado e atendimento a 28 SILVA, 2018

26 Entrevista realizada com Thomas “Tomé” Joel Thomas, em 19/08/2017, em Urucará/AM.

29 SILVA, 2018, p. 130.

27 CÂMARA MUNICIPAL DE URUCARÁ. História. Disponível em http://www.ale.am.gov.br/urucara/o-municipio/historia/. Acesso em 13/09/2017.

31 CERQUA, 2009.

30 Ibidem, p. 143. 32 SILVA, 2018.

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GNARUS-UFAM - 42 seus fiéis, bem como as relações com as outras religiões, pois não obstante as animosidades possíveis entre as duas igrejas cristãs, havia amizade entre os religiosos, “porque a maioria era canadense, então eles conversavam em inglês”, e inclusive “os padres vinham visitar ele”. Os padres “norte-americanos sempre se deram bem”, entretanto, com a mudança dos sacerdotes, “os mexicanos não se deram tanto com o meu pai”33. Uma característica da primeira igreja protestante de Urucará é sua proximidade com a Igreja Católica: “porque a igreja já fica na praça, é bem próximo”. Apesar da proximidade, Tomé Thomas é categórico em afirmar que não ocorriam tensões entre os fiéis, se encontrando na direção de suas reuniões religiosas: “Não! Não! Não! Nessa parte...”, porém, “só barulho de festa quando tinha alto falante...” Como durante as festividades na Igreja Católica era usado um alto falante, isso atrapalhava os cultos evangélicos, “porque o programa de um era diferente que do outro né”34. Sem entrar em detalhes, Tomé atesta que havia diferenças: “Sempre tem, a diferença de quem está certo ou errado (...) Mas se você precisa ajuda de alguém, você não vai brigar com aquela pessoa”. Dessa forma, o missionário “era aceito... porque ele ajudava em outras áreas, além da igreja”. Seu trabalho alcançava “a comunidade em geral, tanto faz católico ou da Igreja de Cristo”. Com isso, reitera o papel fundamental do missionário na cidade: “O papai era a única pessoa, naquele tempo, que podia correr pra ele”.35 Seu Renato Vieira, mesmo após muitos anos ao lado do Pastor Clinton, “lá eu tra-

balhei muito, foi 29 anos eu trabalhei com ele, com o velho, num trabalhei mais porque ele foi embora né”, continuou católico. Em seu processo de construção da memória, recorda que frequentou a Igreja de Cristo em alguns momentos: “nós ia na dele quando era, vinha pessoal do... visitantes né do Estados Unido, aí ele convidava nós e nós ia lá quando era casamento, aniversário... a gente ia lá na dele né”. Contudo, revela que o missionário protestante tinha ações semelhantes: “E aí ele vinha aqui na nossa também, fazia a mesma coisa. A mesma oração que a gente fazia, ele fazia lá na dele, ele fazia aí na nossa também. Ele era chegado com o padre, não era assim uma pessoa que ficava implicando com ele né, padre com pastor”36. O pioneirismo da família Thomas e da Igreja de Cristo em Urucará, bem como o crescimento das igrejas evangélicas no município, refletem-se nos números oficiais. Segundo o Censo IBGE de 2010, 4.052 pessoas em Urucará se declaravam como evangélicos, ou seja, a cidade possui um quarto de população evangélica37. Para Oliveira e Pinto38, “o crescimento das igrejas evangélicas no Estado do Amazonas coincide com a própria expansão demográfica das cidades e com o surgimento de novas comunidades rurais ao longo dos rios amazonenses”. Graças aos seus conhecimentos médicos, Clinton Thomas dedicou-se a atender aos moradores da região, suprindo a precariedade histórica de saúde no município. Nas memórias de Tomé Thomas, Pastor Clinton ajudava pessoas doentes e feridas, “porque não tinha... não tinha outro para ajudar né”. Esses conhecimentos tiveram origem na sua

33 Entrevista realizada com Thomas “Tomé” Joel Thomas, em 19/08/2017, em Urucará/AM.

36 Entrevista realizada com Renato Braga Vieira, em 19/12/2018, em Urucará/AM.

34 Entrevista realizada com Thomas “Tomé” Joel Thomas, em 19/08/2017, em Urucará/AM.

37IBGE. Urucará. Censo Demográfico do Brasil de 2010. Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/am/ urucara/panorama. Acesso em 17/09/2017.

35 Entrevista realizada com Thomas “Tomé” Joel Thomas, em 19/08/2017, em Urucará/AM.

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38 Oliveira e Pinto, 2019, p. 56.


GNARUS- UFAM - 43 mãe, que “era enfermeira”, e de forma autodidata, “ele tinha os livros, estudava antes de vir... era um dom de Deus que ele tinha”. Tomé relata que “qualquer coisa as pessoas corriam com ele naquela época”39. Seu Renato reforça essa visão: “Então quando eles chegaram aqui, ele era o médico daqui da cidade, médico bom, muito bom, se ele aplicasse um remédio pra pessoa podia dizer, ia ficar bom mesmo”. Portanto, “era gente todo dia ali, ó, na fila, e ele atendendo, é, ele só não atendia fora de hora, na hora que não era hora de ele atender, colega... hum, nem fosse lá, [risos] ele gritava com o pessoal, ele era assim, pois é.” 40 As relações com as autoridades da cidade de Urucará teriam sido problemáticas em algumas ocasiões, recorda Tomé Thomas: “Porque é... política você tem que estar de um lado ou de outro, se você não está... de acordo com o prefeito, você se torna um contra né, inimigo... e já que ele não participava na política, sempre perseguiam ele.”. Os prefeitos, “alguns se davam com ele, e outros não”. Também policiais, “tinha alguns que não gostavam dele”, já que o pastor Clinton procurava manter-se livre das questões políticas da cidade. “Porque ele era independente do... do que o prefeito queria né”. Clinton Thomas “não gostava de som alto e ele reclamava sempre”, e como os habitantes “diziam que pagavam direito, então era um motivo de encrenca (...) era pelo alto falante e barulho, naquele tempo, que perseguiam ele”. Como era de conhecimento público onde aconteciam as reuniões evangélicas, “eles faziam barulho né, sabendo que ele tinha o culto”41. A fala de seu Renato também nos é reve-

39 Entrevista realizada com Thomas “Tomé” Joel Thomas, em 19/08/2017, em Urucará/AM. 40 Entrevista realizada com Renato Braga Vieira, em 19/12/2018, em Urucará/AM. 41 Entrevista realizada com Thomas “Tomé” Joel Thomas, em 19/08/2017, em Urucará/AM.

ladora de algumas dessas tensões: “Olha, é o seguinte, ele não era muito chegado com esse pessoal aí. Juiz, delegado, essa gente toda ele nunca era chegado assim né. Ele conversava com eles, mas não era do gosto dele não, porque aborreciam ele né”. E o barulho é destacado novamente: “Porque o pessoal botava som alto por aí né e ele ia lá, e esculhambava, quando não ele desligava o aparelho doutro, e aí uma vez acabou dando uma cadeia pra ele. É. Ele era brabo, naquele tempo ele era muito brabo, não botasse aqueles autofalante ali, hum... [risos]”42 Essas tensões nos permitem pensar em uma trajetória atravessada pela noção de “Poder”, a qual nos envia diretamente aos domínios da Nova História Política. Os objetos da História Política, além dos antigos enfoques, abrange “as relações políticas entre grupos sociais de diversos tipos”, “as relações interindividuais (micropoderes, relações de poder no interior da família, relacionamentos intergrupais)”, e “o campo das representações políticas, dos símbolos, dos mitos políticos, do teatro do poder, ou do discurso, enfim”43. Torres Neto nos leva a questionar como estruturam-se as “relações de poder pela construção e disputa de espaço religioso na Amazônia, isto, outrossim, com o uso de estratégia de ação social”44. Assim também, à luz da trajetória de Clinton Thomas e da nova história política, é necessário analisar como essa noção de poder se manifestou nas relações entre a denominação estrangeira e o catolicismo popular no norte brasileiro, bem como com as demais lideranças em Urucará. Após trinta anos em Urucará, o casal Thomas retornou definitivamente aos Estados Uni42 Entrevista realizada com Renato Braga Vieira, em 19/12/2018, em Urucará/AM. 43 BARROS, 2008, p. 109, grifo do autor. 44 TORRES NETO, 2019, p. 50.

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GNARUS-UFAM - 44 dos em 1996.45 A inserção social de Clinton e Phyllis Thomas lhes garantiram o título de Cidadãos de Urucará em 1999, bem como a homenagem com seu nome na primeira Unidade Básica de Saúde. Para além da atividade missionária, muito provavelmente o exercício de outras ações os situou em uma posição estratégica e legitimadora na sociedade de Urucará.46

em uma realidade social pautada pela fragilidade da presença do Estado, e como os missionários procuram suprir essas carências. O destaque à atuação social da família Thomas desvela como essas ações legitimaram sua presença na cidade aos olhos dos moradores, como indicado nos processos de construção de memória de Thomas Joel Thomas e Renato Braga Vieira, mas também os levou a tensões com os poderes locais.

Considerações Finais

A metodologia da História Oral nos torna possível acessar as “histórias dentro da história”48, encontrando colaboradores que estiveram em contato com o missionário Clinton Thomas. A trajetória de Clinton Thomas e Phyllis Thomas, e seus três filhos, nos dois países; as ações missionárias em três estados do Brasil; a atuação médica, educacional e mecânica; a influência na sociedade urucaraense, suas relações com outros missionários e com sacerdotes, as relações de poder, seu protagonismo sobre o mercado religioso dominado pela Igreja Católica, a permanência da igreja após sua saída, e outras problemáticas: essas e outras questões podem ser levantadas, apontando as possibilidades de pesquisa, e que poderão ser conhecidas através das narrativas dos próprios amazônidas, sobre aquilo que viveram.

Torres Neto (2019) argumenta haver uma lacuna sobre as narrativas protestantes, relativo à formação do pensamento social na Amazônia, pouco visibilizada “em razão talvez, da hegemonia católica que estabeleceu historicamente nos escritos de viajantes”47. Ao investigar a trajetória de Clinton Benjamin Thomas e da Igreja de Cristo, procuramos nos inserir nesse universo de pesquisas, bem como instigar pesquisadores para analisar a trajetória da Igreja de Cristo no Brasil, movimento septuagenário que parece não ter despertado ainda interesse científico. A atividade missionária da família Thomas na região Norte do Brasil enquadra-se dentro de um movimento mais amplo de crescimento do protestantismo no Brasil e do papel das missões estrangeiras nessa conjuntura, especialmente no Amazonas. Não apenas Urucará foi alvo de investidas protestantes norte-americanas no século XX, mas a análise desse caso nos permite entender parte de suas estratégias nesses processos de estabelecimento e relações com o catolicismo dominante. Entretanto, igualmente é necessário considerar a imersão dos religiosos norte-americanos 45 BRAZIL CHRISTIAN WIKI. Clinton and Phyllis Thomas. Disponível em http://en.brazilchristianwiki.org/wiki/ Clinton_and_Phyllis_Thomas. Acesso em 15/08/2017. 46 Após 54 anos de casamento, Clinton faleceu em 21 de abril de 2007, em Knoxville, Tennessee. 47 TORRES NETO, 2019, p. 20.

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GNARUS- UFAM - 45 Amazônia: a trajetória de Clinton Thomas entre os EUA e o Brasil e a Igreja de Cristo em Urucará-AM (1956-1996). In: Anais do 3º SISCULTURA Seminário Internacional Sociedade e Cultura na Pan-Amazônia. Manaus: EDUA, 2018a. v. 3. p. 1151-1165. BEZERRA, César Aquino; SILVA, Júlio Cláudio da. História Oral e Memória: Clinton Thomas e a Igreja de Cristo em Urucará. In: BARBOSA, Keith Valéria Oliveira et al (Org.). Anais IV Encontro Estadual de História: ensino de história no Amazonas, democracia e desigualdades. Manaus: UFAM, 2018b. p. 96108. CAMPOS, Pe. Manuel do Carmo. A decadência do catolicismo popular na região parintinense (1955-1975). Revista de Cultura Teológica. 1995, p. 109-117. CARVALHO, Sandro Amorim de. O povo do livro: uma história da inserção do protestantismo em Manaus (1888-1944). Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História. Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2015. CERQUA, Dom Arcângelo. Clarões de fé no Médio Amazonas. 2ª ed. Manaus: ProGraf- Gráfica e Editora, 2009. LOPES, João da Silva. Sociedade, relações de poder e religiosidade no Alto Rio Negro a partir das representações de Dom Frederico Costa. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História. Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2010. MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular e controle eclesiástico. Um estudo antropológico numa área do interior da Amazônia. Belém: Cejup, 1995.

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Artigo

O TRABALHISTA: DISPUTAS POLÍTICAS E O GOLPE CIVIL-MILITAR NO AMAZONAS (1960-1964) Por Jandira Magalhães Ribeiro

RESUMO: Este estudo tem por tema principal o uso da fonte primária, o Jornal O Trabalhista. Desde sua fundação, em 1960, o periódico se notabilizou como um dos mais importantes jornais do estado do Amazonas, participando de forma efetiva da vida político-partidária do estado até agosto de 1964, quando por ordem do então governador Arthur Cezar Ferreira Reis, foi obrigado a encerrar suas atividades, mesmo destino do jornal A Gazeta, também de propriedade da empresa Difusão S/A. Assim, este projeto tem por objetivo analisar as disputas político-partidárias no estado do Amazonas, a partir do periódico O Trabalhista. Pretende-se analisar as desavenças políticas entre Plínio Coelho e Gilberto Mestrinho, a repercussão do golpe civil-militar e da deposição de Plínio Ramos Coelho, bem como compreender os motivos de seu fechamento pela ditadura, essa analise consiste tanto na fonte primária quanto no embasamento bibliográfico que teremos através de textos como o dos autores Boris Fausto, Carlos Fico e Marcos Napolitano que trazem temas voltado ao regime, além de autores locais que vão fundamentar o contexto local analisado no periódico. Palavras Chaves: Plínio Coelho, ditadura militar, golpe, O Trabalhista.

Introdução

E

ste estudo tem como objetivo apresentar a análise do periódico O Trabalhista no seu período de circulação, que foi de 1960 a 1964. Desde sua fundação, em 1960, ele se notabilizou como um dos mais importantes jornais do estado do Amazonas, participando de forma efetiva da vida político-partidária do estado até agosto de 1964, quando por ordem do então governador Arthur Cezar Ferreira Reis, foi obrigado a encerrar suas atividades, mesmo destino do jornal A Gazeta, também de propriedade da empresa Difusão S/A. Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

O periódico era editado pelo líder trabalhista Plínio Ramos Coelho, governador eleito do Amazonas em duas ocasiões (1954 e 1962). No entanto, a fundação do periódico coincide com um momento de ruptura entre as principais lideranças petebistas – Plínio Coelho e Gilberto Mestrinho – e vai se tornar importante porta-voz das posições políticas do então ex-governador. Assim, temos por objetivo analisar as disputas político-partidárias no estado do Amazonas, a partir do periódico O Trabalhista. Pretende-se analisar as desavenças políticas entre Plínio Coelho e Gilberto Mestrinho, a


GNARUS- UFAM - 47 repercussão do golpe civil-militar e da deposição de Plínio Ramos Coelho, bem como compreender os motivos de seu fechamento pela ditadura. Ao ser analisado, discutido e compreendido todo o contexto político vivido pela sociedade amazonense nesse período, entendemos a relação estreita entre o periódico e as personalidades políticas do Amazonas na época, já que um de seus editores chefes era Plínio Ramos Coelho, este foi governador do estado duas vezes: a primeira em 1955, participando do fim do governo Vargas com seu trágico suicídio; e depois foi Governador em 1963, porém deposto em 1964 com o golpe militar. Coelho era filiado ao PTB, partido esse que apoiou o governo Vargas e em 60 a eleição de Henrique Lott (candidato a presidente) e João Goulart (candidato a vice-presidente), entretanto Plínio vai contra o partido e apoia o movimento Jan-Jan (que elegeu Jânio Quadros - Presidente – e João Goulart Vice-presidente). Para demonstrar essa parte da História do Amazonas, nosso estudo seguiu os seguintes passos: a) entender o contexto político que o País e o Estado do Amazonas se encontravam, depois foi feito o processo de conhecimento do periódico O Trabalhista, no qual foram executadas a catalogação. No segundo momento, através da digitalização das fontes que estão sob posse do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, conferir no arquivo as edições dos anos de 1960 a 1964. Ali, existem alguns periódicos que já estão deteriorados por conta de diversos fatores como o tempo, como foram armazenados, e como foram manuseados por outros pesquisadores. Toda essa análise de como o jornal se comporta no seu período de circulação será trabalhada de forma que mostrará o que se era

publicado, quem era os financiadores do jornal, quais propagandas eram mantidas neles e qual era o público que este tentava atingir com seus artigos, sendo dividido em dois períodos importantes que marca uma ruptura no Jornal, isto é, o que seria o período Antes do Golpe de 64, e o período pós 1º de abril de 1964, com a instauração do Golpe Civil Militar.

2. Para uma leitura da História, a partir de periódicos Ao fazermos uma pesquisa que tenha como fonte primária um periódico, devemos entender primeiramente de qual forma devemos analisá-lo para que possamos de maneira simples alcançar os objetivos nesse processo. Para começarmos a fundamentação da pesquisa através dele, precisamos apreender que os jornais não são produzidos para se tornarem fontes históricas. Segundo Jesus, R.M., Anjos, H.T., Costa, M.R., Rodrigues, P.M.M (2015) “esse é um potencial adquirido posteriormente”. Visando esse contexto podemos perceber que um periódico pode ser usado como fonte para a construção da História da Imprensa, mas também para a outras áreas da história como a política que é o caso deste estudo. Tendo como objetivo uma análise das disputas políticas no estado do Amazonas até o fechamento do periódico O Trabalhista, podemos que um veículo de comunicação também é um lugar de memória, como defende Maduell (2015) ao falar de jornais impressos. Segundo Tania Regina (2018), em História dos, nos e por meio dos periódicos, esta nos esclarece que os jornais deram um novo folego para a pesquisas no Brasil a partir de 1970, principalmente no meio acadêmico devido à eclosão dos movimentos operários. Através disso, pode ser notado a consolidação de

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GNARUS-UFAM - 48 uma relação de estreitamento entre a diversificação temática e a escolha de periódicos como fontes, estas estão carregadas de significados e intencionalidades. Consoante ao pensamento de Tania Regina (2018), Rafael Saraiva em O jornal impresso como fonte de pesquisa: delineamento metodológicos (2015) nos previne sobre os riscos que o historiador corre ao realizar de modo precipitado e superficial uma análise em relação ao conteúdo produzido. Assim, o pesquisador deve estar consciente quanto aos interesses e às ideias que são defendidas pelo periódico, dessa forma se torna fundamental conhecer e reconhecer o posicionamento da instituição, principalmente em relação às medidas do governo e ao público receptor, afinal os fatos que são descritos nem sempre podem ser tidos como fieis da realidade, com isso: O que está escrito nele nem sempre é um relato fidedigno, por ter por trás de sua reportagem, muitas vezes, a defesa de um posicionamento político, de um poder econômico, de uma causa social, de um alcance a um público alvo etc., advindos das pressões de governantes, grupos financeiros, anunciantes, leitores, grupos políticos e sociais, muitas vezes de modo dissimulado, disfarçado1.

No artigo A ditadura militar e a censura no jornal impresso (O Estado de SãoPaulo) da autora Amanda Rodrigues (2014), é apresentado um contexto de produção de narrativas (impressas e televisivas) que beneficiaram consideravelmente a ascensão e manutenção do poderio militar no Brasil, principalmente através da utilização de propaganda. Com isto, teremos jornais importantes, como O Correio, promovendo artigos que pediam a saída do presidente João Gulart, enquanto no Jornal da Tarde poderá ser visto receitas de bolo como forma de preencher lacunas deixa1 REGINA, 2015, p. 6

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das por matérias que foram censuradas. Nesse contexto histórico e político é importante expor que mesmo que a “grande” imprensa esteja relacionada de maneira direta à derrubada de Jango do poder, existiam periódicos que estavam constantemente fazendo publicações contra o governo golpista, elas não eram controladas pelos militares, se calasse à censura. Isto foi a arma fundamental para combater as críticas.

3. O contexto político amazonense e a relação com periódico O Trabalhista (1960-1964) O periódico O Trabalhista passou a circular na cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas, entre 1960 a 1964. A sede do jornal nos anos de 1960 e 1962 ficava localizado na Avenida Getúlio Vargas, nº 891, Centro. Naquele período de 60 a 62, o jornal tinha a seguinte tabela de preços: “assinatura para o país, anual – Cr$ 1.000,00 e semestral – Cr$ 600,00, para a entrega à domicílio, em Manaus, a assinatura custava anual – Cr$ 1.500,00 e semestral Cr$ 800,00 e o preço do exemplar era de Cr$ 10,00”2. A partir de 1963 a 1964, o periódico muda de endereço e sua sede passa a ser na Rua Saldanha Marinho, nº 465/437, Centro, e tinha as seguintes tabelas de preços “assinatura anual Cr$ 5.000,00, semestral Cr$ 3.000, número avulso Cr$ 50,00 e número atrasado Cr$ 60,00”3. A periodicidade do jornal era diária, entretanto não se tem todas as edições no arquivo do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), a estrutura do jornal nos primeiros anos era bem confusa, entretanto, todos os jornais na época eram assim no decorrer do tempo. O jornal era voltado para um público 2 O Trabalhista, Manaus, 9 jul. 1962 3 O Trabalhista, Manaus, 1 ago. 1964


GNARUS- UFAM - 49 mais elitizado e para os trabalhadores letrados, falava constante e exclusivamente de política até meados dos anos de 1963. Diante deste cenário, na esteira do golpe civil-militar que em 1964 derrubou o presidente João Melchior Goulart e inaugurou um período de 21 anos de profunda ruptura da ordem constitucional e do estado de direito democrático, houve início de uma intensa perseguição política aos setores mais progressistas da sociedade. Direitos políticos foram perseguidos, mandatos cassados, jornais censurados e ocupados. A tortura e a repressão se tornaram a tônica, mesmo que possamos encontrar importantes focos de resistência ao regime. O Congresso Nacional sofreu uma operação limpeza e alguns partidos – como o PTB – se tornaram alvo preferencial dessa perseguição. Nos estados, essa limpeza política seguiu uma trajetória semelhante à ocorrida no âmbito federal. Governadores foram depostos4, deputados e vereadores tiveram seus mandatos cassados, o funcionalismo público sofreu profundas represálias. Neste contexto, no Amazonas existia um cenário político importante, Plínio Ramos Coelho foi governador do Estado entre 31/01/1955 a 30/01/1959, logo após veio Gilberto Mestrinho que governou entre 31/01/1959 a 30/01/1963. Nesse período, houve uma estremecida na relação entre Plínio e Gilberto, pois na eleição de 1958, Mestrinho foi eleito e não havia sido uma eleição com apoio unânime do partido PTB, pois a legenda apoiou a candidatura de Mestrinho, enquanto Plinio apoiou a candidatura de Vivaldo Lima. 4 Em 09 de outubro de 1964, o Correio da Manhã publicou reportagem de uma série intitulada “Visita ao réu sem crime” que tinha como manchete: “Seixas Dória ainda não sabe por que foi preso. Na reportagem, o governador deposto afirmava: “Mas afinal, por que fui e continuo preso? Seria então a minha permanência na prisão decorrência da minha firme e intransigente posição em favor das reformas? Estava eu comprometido por acaso com qualquer movimento subversivo? Evidentemente, não.”

A despeito da disputa em torno da sucessão de Plínio e da preferência deste pelo nome de Vivaldo Lima, na campanha eleitoral de Mestrinho percebe-se claramente a opção por enfatizar a continuidade da “obra de Plínio, o carinho de Plínio para com a gentinha”. Torna-se interessante observar que o PTB assumira a alcunha de “partido gentinha”, utilizada para depreciá-lo. Para D’Araújo, a prática governista associada a uma crescente atuação na área sindical rendeu ao partido “certa plasticidade, permitindo identificá-lo como um ‘partido dos pobres no poder’”5.

Em 1962, houve eleições para governador do Estado e o eleito foi Plínio Coelho. Nesse novo processo surgira novamente a aliança entre Mestrinho e Coelho, intermediada por Arthur Virgílio Filho para que Plínio fosse eleito ao cargo de governador. Ao ser eleito pela segunda vez governador do estado do Amazonas, ele assumiu o estado em uma situação financeira bastante precária, tanto que Mestrinho já lamentava as dificuldades econômicas que o estado atravessava em 1962, no ano da eleição. Assim, Plínio toma diversas atitudes que deixaram os opositores bastante insatisfeitos, como reintegração de posse de bens materiais que pertenciam ao governo e estavam sob posse de pessoas comuns e utilizavam como bens particulares, como carros, motores e telefones, além da exoneração de centenas de servidores públicos. Com efeito, o governo apostou no estímulo da industrialização no estado e isso fez com que fossem criadas três empresas estatais que pudessem direcionar os investimentos privados para os setores de desenvolvimento econômico regional. Porém, essa iniciativa gerou um grande desgaste a Coelho por conta das classes tradicionais e conservadoras da elite amazonense. 5 QUEIRÓS, 2016. p.56

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GNARUS-UFAM - 50 Voltando a ser eleito novamente a governador em 1962, Plínio assumiu o cargo em 31 de janeiro de 1963, entretanto, devido ao seu desgaste político - tanto no período da sua primeira eleição - quanto depois do apoio ao movimento Jan-Jan, em 1960, na eleição presidencial; isto é, em virtude de ter ido contra seu partido, o PTB, que apoiava Henrique Lott e Jânio Quadros para presidente e vice, respectivamente. Coelho governou até ser deposto de seu cargo após o golpe de 64. Ele tentou de inúmeras formas se manter no poder para não ser deposto, assim como fazer declarações que se contradiziam de forma gritante, como declarar que “a revolução fez ressurgir um Brasil mais autêntico e liberto da pequena minoria que queria implantar um regime comuno-social-castrista”6. Sendo que no dia primeiro de abril, fez um discurso de defesa ao presidente deposto João Goulart nas rádios da Guanabara. Essa mudança de posicionamento pode ter sido uma forma bem indiscreta de manter seu cargo de governador do estado, pois ele tomou diversas inciativas que visavam agradar ao governo golpista, levando o secretariado do governo, chefes, subchefes e diretores a pedirem exoneração para os novos “funcionários públicos”, para que assim se encaixassem nas exigências da “revolução” (digo golpe). No Amazonas, o governador Plínio Ramos Coelho (PTB) teve seu mandato cassado em 14 de junho e seus direitos políticos suspensos por dez anos. Sua deposição ocorreu durante seu discurso na cerimônia de abertura do VIII Festival Folclórico do Amazonas, no estádio General Osório (Jornal do Commercio, 03/06/1964). O governador deixou o es6 Fala de Plinio em seu discurso ao reassumir a chefia do governo amazonense após sua viagem, retirado do seguinte artigo: QUEIRÓS. C.A.B. O Trabalhismo de Plínio Ramos Coelho e o Golpe de 1964 no Amazonas. p 62. Revista Mundos do Trabalho, vol. 8, nº 15, 2016.

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tádio General João Osório acompanhado pelo General Jose Alípio de Carvalho, comandante do 27º Batalhão de Caçadores. À noite, Plínio Coelho transmitiu seu cargo para o Presidente da Assembleia Legislativa do Amazonas, Anfremon Monteiro. Com a deposição do líder trabalhista, Arthur César Ferreira Reis, que havia sido Superintendente do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (1953-1955) e Diretor do INPA (1956-1958), tomou posse no dia 27 de junho, em cerimônia realizada no prédio do Instituto de Educação do Amazonas, onde na ocasião funcionava a Assembleia Legislativa. Antes disso, no dia 10 de abril de 1964, foi divulgada a primeira lista dos 102 nomes que tiveram seus direitos políticos cassados. Dos 40 deputados federais, quase metade (19) pertencia ao PTB, incluindo Gilberto Mestrinho, ex-governador do Amazonas, mas eleito deputado federal por Roraima. O PTB se tornou o principal alvo do regime e pretendia se consolidar através do silenciamento/eliminação da oposição e o parlamento foi mutilado!7 Na mesma ocasião da prisão de Plínio Coelho e da interdição da Assembleia Legislativa, Arthur Reis ordenou o fechamento dos jornais O Trabalhista e A Gazeta, ambos pertencentes ao grupo Difusão, sendo seus redatores enquadrados na Lei de Segurança Nacional. O então ex-governador do estado era editor chefe do Jornal O Trabalhista que fora fechado em 1964, ele utilizava o jornal como 7 A Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça, subcomissão da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, propôs à Casa a realização de sessão solene para a devolução simbólica dos mandatos de deputados federais arbitrariamente cassados pela ditadura implantada em nosso país em 1964. À proposta inicial, bem acolhida pela Mesa Diretora, logo se somou a ideia da presente publicação, destinada a apresentar à população os parlamentares cujos mandatos foram cassados e as circunstâncias em que a representação política na Câmara dos Deputados foi autoritariamente atingida por medidas de exceção. (AZEVEDO, 2012)


GNARUS- UFAM - 51 um local para expor sua opinião política, jogar indiretas a seus adversários, assim como criticar outros governos anteriores, como também realizar críticas ao posterior ao seu primeiro mandato. O periódico também era utilizado para publicar alianças e desavenças entre a figura pública e política de Plinio Ramos Coelho. Após o golpe civil-militar de 1964 e a deposição do governador Plínio Coelho, os periódicos O Trabalhista e A Gazeta são fechados pelo governador Arthur Cezar Ferreira Reis. O procurador do estado, Leandro Tocantins, declarou que o fechamento dos dois jornais “foi um imperativo das conclusões do inquérito policial-militar que enquadrou os seus diretores e redatores incursos na Lei de Segurança Nacional”. O presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Amazonas, Miranda Braga, que era secretário dos jornais interditados, foi enquadrado na LSN e se encontrava foragido da justiça. Tal atitude levou a Associação Amazonense de Imprensa, sob a presidência de Aristophano Anthony, a redigir um ofício endereçado ao governador, apelando para que os dois jornais que se encontravam ocupados pelas forças da Polícia Militar fossem autorizados a voltar a circular normalmente8. Entretanto, o senador Desiré Guarani atribuiu ao fechamento dos periódicos à publicação de um ofício do Tribunal de Contas da União, indicando nomes de pessoas que teriam deixado de prestar contas de verbas recebidas da SPVEA quando Arthur Reis era superintendente, o que caracterizaria uma pequena vingança pessoal9. O parlamentar solicitou ao Ministro do Interior, Cordeiro de Farias, que se fizesse uma averiguação da gestão de Arthur Cezar Ferreira Reis na SPVEA, o que 8 Jornal do Commercio, 13/08/1964 9 Estado de São Paulo, 10/09/1964; Correio da Manhã, 11/09/1964

levou o então governador do Amazonas a enviar um telegrama, solicitando que se fizesse uma devassa em sua administração; tudo isto a fim de que “sua gestão fique a coberto de qualquer dúvida”10. O periódico pertencia a empresa Difusão S/A, não se sabe ao certo quem são os donos da empresa, se pertence ao Plínio Ramos Coelho ou de sua família, ou se ele apenas é o editor chefe do jornal. Segundo Figueiredo Plinio Coelho, não era só o editor como também o proprietário do Jornal. Enquanto os jornais no Amazonas não davam mais uma palavra sobre Mestrinho, no tocante a Plínio, que continuava a editar os diários de sua propriedade, O Trabalhista e A Gazeta, a inclemência não tinha limites11.

Porém, são muitas as discordâncias em relação à propriedade do periódico, o que nos limita apenas a saber que os donos do mesmo era a Difusão S/A. Partindo desse contexto, podemos identificar que o jornal de 1960 a 1961 era financiado pelas seguintes propagandas: “A Pernambucana e Fábrica Baré”.12 Propagandas essas que vinham sempre nos rodapés, e são encontradas nas páginas 2 e 3 dos periódicos. Nelas, existiam outras publicações de divulgação de serviço em menor escala no corpo do jornal, porém elas se diversificavam, pois não eram as mesmas empresas ou clínicas odontológicas que estavam em todas as edições, como a propaganda das lojas “A Pernambucana” e a “Fábrica Baré”. Por ser patrocinado apenas por essas duas empresas, o periódico foi um jornal extremamente político e não noticiava o que podemos chamar de notícias comuns de acontecimentos do dia a dia da sociedade amazonense, existiam outras propagandas, mas não eram fixas como essas duas empresas. 10 Correio da Manhã, 10/08/1964 11 FIGUEIREDO, 2013, p.136 12 O Trabalhista, Manaus, 1 mar. 1962

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GNARUS-UFAM - 52 Na edição de 1º de setembro de 1962, o periódico vem com uma característica a mais, não só noticia o que vem acontecendo na política amazonense, enaltecendo o Plinio Ramos Coelho que nesse momento é candidato a governador do estado, como também faz campanha eleitoral para Coelho e seu aliados, como pode ser observado em: “Para suplente do candidato a senador Arthur Virgílio Filho nossa indicação é: Desiré Guarani e Silva”.13 O que é interessante de se mostrar nessa análise é que em 1961 o periódico demonstra a sua grande insatisfação com o atual governo que no caso é o de Gilberto Mestrinho, onde se encontra severas críticas sobre a administração do “pupilo” de Coelho, o que comprova o rompimento entre Coelho e Mestrinho por conta das estratégias políticas adotadas pelo PTB e as adotadas por Plínio, além de que este último estava concorrendo à prefeitura de Manaus nesse período. Maternidade Balbina Motivo para roubalheira e demagogia Não precisa ser profeta para adivinhar o pensamento e os de um governo como do senhor Gilberto Mestrinho, cuja exaltação não decorre de uma obra administrativa que tenha conquistado o coração do povo e sim as facilidades com que ele abre os cofres do tesouro estadual do Amazonas para propaganda publicitária de sua administração. Quem tem oportunidade de pelo Brasil afora conhece a vontade e a sede de alguns picaretas da imprensa em vir ao Amazonas, em dar a sua bicada no já fabuloso e lendário “novo Amazonas” do mui ilustre governador Mestrinho.14 Aqui para nós os volantes dos desesperados O desespero dos governistas mais e mais vem se acentuando neste quase fim de campanha. E já passaram agora da simples

ameaça para a provocação direta. Esperam com isso, certamente que de nossa parte haja uma reação para então poderem justificar os atos de violência que têm caracterizado esse governicho em todos os momentos. Exemplo dessa atitude vergonhosa e antidemocrática, é o que vem acontecendo com os volantes do governador, pagos pelos cofres públicos, cujos encarregados não só passam dizendo impropérios e infâmias rua afora, como também para os veículos em frente a residências de correligionários do líder Plinio Coelho proferindo desaforos e imprecações.15

Já em 64 começa a se publicar outras matérias no O Trabalhista, como procissões que aconteceram na cidade sobre a rainha do carnaval16. Nisto, o jornal passa a ter muitas propagandas, gerando uma receita maior e fazendo com que ele tenha uma circulação maior na cidade. Nesse contexto, o periódico O Trabalhista, no dia 13 de junho de 1964, um dia antes da cassação oficial de Coelho, funciona normalmente publicando sobre as listas que sairão no dia seguinte a respeito das cassações dos políticos, e entre eles estava Plinio Ramos Coelho, o governador do Amazonas, como o trecho a seguir esclarece: Plinio Coelho, em agosto do ano passado, em telegrama dirigido ao então presidente João Goulart, pedia o fechamento do COT, PUA, e outras entidades esputas que tomavam conta da Nação. Colocou-se o governador como pioneiro de uma nova era, já implantada no Amazonas.17

Em 26 de junho de 1964 sai uma pequena nota no periódico, a manchete é imensa e na primeira página do jornal: “Agora é a vez de Jango contar o que foi a revolução”18, mas o texto era essa pequena nota que dizia que o ex-presidente viajaria para a Europa para falar seu ponto de vista sobre a “revolução” 15 O Trabalhista, Manaus, 12 nov. 1961 16 O Trabalhista, Manaus, 13 fev. 1964

13 O Trabalhista, Manaus, 1 set. 1962

17 O Trabalhista, Manaus, 13 jun. 1964

14 O Trabalhista, Manaus, 12 nov. 1961

18 O Trabalhista, Manaus, 26 jun. 1964

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GNARUS- UFAM - 53 de abril. Em 27 de junho sai outra reportagem falando sobre a chegada de Arthur Reis, onde dizia que “o mundo oficial amazonense compareceu, ontem, ao aeroporto de Ponta Pelada para receber o novo governador do Estado”19. Assim, fica registrado oficialmente a saída de Coelho do governo e o reconhecimento pelo jornal que foi conhecido em Manaus como de propriedade dele, assume um novo governador indicado pelos militares. Entretanto, como já dito antes, Arthur Reis e Plínio Coelho eram desafetos e Reis manda fechar os Jornais O Trabalhista e A Gazeta no dia 10 de agosto de 196420.

Considerações finais Este estudo trouxe uma nova perspectiva sobre o pouco do conhecimento que se tem sobre o golpe civil-militar no Amazonas, pois muitas pessoas que viveram no período afirmam que a ditadura não chegou aqui, mas com esses dados e as análises do jornal podemos confirmar que sim, houve ditadura no Amazonas. Uma ditadura que resultou em exílios, tortura, prisões e censura, esta última podemos conferir com o fechamento dos jornais O Trabalhista e A Gazeta. Jornais que representavam as duas maiores lideranças, o PTB que eram Plinio Ramos Coelho, eleito governador do estado duas vezes e deposto do seu segundo mandato; e Gilberto Mestrinho, que até o Golpe de 64 havia sido eleito governador uma vez. Além do contexto voltado para o golpe de 64, foi possível entender como se formaram as relações de poder no estado, relações essas que se mantem até hoje com os “novos/

velhos políticos” que vêm sendo ingressados por esses mesmos nomes citados na citação de Queirós. Com essa pesquisa e muitas outras que estão surgindo através do incentivo do Laboratório de Estudos sobre Trabalho e Ditadura – LETRAD, da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, começaremos a pensar de forma mais crítica e procurar fontes, mesmo com as dificuldades encontradas no caminho por conta do acesso do pesquisador ao arquivo. Pesquisas com essa temática podem responder as seguintes indagações: existiu ditadura, tortura, um DOPS, onde os presos políticos eram interrogados e torturados, houve censura, fechamento de meios de comunicação e imprensa, morte, exilio no Amazonas, como em outros estados? O periódico O Trabalhista, mesmo circulando pouco tempo, cerca de 4 a 5 anos até seu fechamento, foi muito importante na construção da sociedade amazonense, principalmente no foco político, onde de 60 a 63 foi dedicado exclusivamente a isso, e em 64 começa a se adequar aos parâmetros da ditadura, mas sempre trouxe uma ou outra notícia chocante no período do golpe, acreditando que esse também seja um dos motivos do fechamento, fora o seu desafeto com o Arthur César Ferreira Reis, governador indicado pelo governo militar para assumir no lugar de Coelho.

Jandira Magalhães Ribeiro é Graduanda do curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM.

19 O Trabalhista, Manaus, 27 jun. 1964 20 FIGUEIREDO, 2013, p.138.

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Artigo

O “TRISTÃO” DE THOMAS MANN: A ARTE EM EXÍLIO Por José Bosco Ferreira de Sá Junior

RESUMO: Pretende-se, neste texto, explorar os pontos de encontro entre: Tristão e Isolda e “Tristão”, de Thomas Mann. Ao lado dessa proposição inicial ocorrerá uma breve análise das analogias possíveis entre a história moderna e a ópera wagneriana, de 1859. A partir desse duplo exercício, notar-se-á a estrutura em que o escritor alemão elaborou tais diálogos no conto analisado. À parte isso, implicações estéticas e sociais, condizentes ao período de produção da narrativa, serão também elementos comentados. Em linhas gerais, analisarei os capítulos nove e onze da narrativa, particularmente relevantes por conterem, de modo significativo, o diálogo verificado entre as obras. Por fim, tenciono a exposição de um breve quadro analítico da vida do autor naquele período – início do século XX. Dessa maneira, a estrutura de argumentação do texto divide-se em cinco seções. Cada trecho, em gradação, exibirá a configuração e referências utilizadas no texto estudado. Palavras Chaves: Tristão e Isolda, Thomas Mann, Literatura, Arte.

Introdução

E

m “Tristão”, Thomas Mann fala sobre o estado da arte, em seu tempo, com bases em Tristão e Isolda – o conto medieval – e na ópera homônima de Richard Wagner. Lançada originalmente em 1903, a história analisada neste texto diz respeito ao início da carreira do escritor. Naqueles anos, ele havia publicado apenas um romance de grande porte, Os Buddenbrook (1901). E, nas décadas seguintes, sua produção esteve marcada pela composição de diversos contos e novelas1.

1 O conto “Tristão” foi publicado originalmente em 1903, na coletânea de narrativas curtas Tristão e out-

A maior diferença temática entre sua primeira obra e as que se seguiram encontrase na preocupação do autor em definir o papel social da arte no início do século XX. Se em Os Buddenbrook, a decadência de uma família de comerciantes foi sua pedra de toque, nas demais narrativas, o estado da arte será longa ras histórias. Para mais informações sobre a publicação do conto na Alemanha, ver: HAMILTON, 1985, p. 116117-118. Já, no Brasil, a história integra a compilação Os famintos e outras histórias, lançada pela editora Nova Fronteira, no início da década de 1980. A publicação brasileira teve várias edições desde seu lançamento. Até o instante, temos apenas essa tradução disponível no Brasil, de modo que a análise encontrada nas páginas seguintes terá como base a versão citada anteriormente, ou seja: publicada pela Nova Fronteira e traduzida por Lya Luft. Finalmente, essa versão está baseada na seguinte publicação alemã, intitulada: Erzahlungen (1958).

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GNARUS-UFAM - 56 e extensivamente discutido. Para além de “Tristão” são vários os romances, contos e novelas de sua autoria, marcados pela “crise da arte no Ocidente europeu”. No entanto, a singularidade desse conto, no trato à questão, conecta-se ao próprio instante da vida de Thomas Mann. Em 1903, ele ainda era influenciado por sua formação eminentemente aristocrática. Se esta característica nunca o abandonaria, é certo que no decorrer de sua vida, ela sofreria algumas mutações, sobretudo à luz dos acontecimentos políticos e sociais pós-1914. No conto então vê-se a existência nobiliárquica da arte, corrompida pela vida comercial do cotidiano vil e empobrecedor da vida capitalista. Tais temas, e a própria história, serão estudados através da exposição dos argumentos básicos da narrativa. Inicialmente, faremos uma descrição sinóptica do conto, comentando seu enredo. Em seguida, buscaremos responder a perguntas suscitadas pela própria história, como a razão – se há alguma – da referência a Tristão e Isolda, e aos pontos de aproximação entre o conto moderno, a narrativa medieval e a música de Richard Wagner. Certamente, resolveremos algumas questões a partir de breve investigação sobre o universo social do escritor. Para isso, utilizarei largamente trechos da biografia Irmãos Mann: as vidas de Heinrich e Thomas Mann, publicada no Brasil pela editora Paz e Terra, e escrita por Nigel Hamilton. Apesar disso, ressalta-se que a literatura e, portanto, a arte, será essencial para o desvelo das implicações sociais e estéticas de produção do conto “Tristão”. Com efeito, analisarei minuciosamente os capítulos nove e onze da intriga narrativa, porque neles há a essência da proposta de Thomas Mann, assim como o Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

desenrolar definitivo da história. Deste modo, pretende-se estabelecer um justo diálogo entre expressão estética e sociedade – tida aqui, obviamente, segundo suas implicações históricas e temporais –, objetivando por fim traçar um interessante quadro analítico sobre a narrativa em questão. O “Tristão” de Thomas Mann: estrutura e argumento Em 1903, Thomas Mann já era um autor celebrado e conhecido pela publicação de Os Buddenbrook (1901). Apesar do reconhecimento, suas demais obras, aquelas que o tornariam famoso, como pensador e ensaísta, não haviam sido publicadas2. À época, o escritor contava apenas 27 anos, e seu apogeu como literato ainda seria atingido. No entanto, no início do século XX, já se pode notar alguns traços característicos de sua escrita literária, e que mais tarde o transformariam em referência. A ironia, as descrições densas, decadência europeia e as reflexões acerca do papel da arte e do artista, em âmbito social, faziam-se presentes. A última, apareceu timidamente no fim de Os Buddenbrook, e fora extensivamente lapidada no decorrer de sua carreira. Fazendo referência a um escrito de Heinrich Mann, irmão de Thomas, à diferença visível entre o “grande romance” e as narrativas que se seguiram, sobretudo “Tristão” e Tônio Kröger, o biógrafo Nigel Hamilton destaca que: “elas partiam de onde Os Buddenbrook parara; as lições de Tolstói e do naturalismo do século XIX agora 2 A saber: A montanha mágica (1924) e Doutor Fausto (1947). A primeira delas solidificou-o como um dos grandes intelectuais de seu período, e a potência inventiva da segunda, para a crítica literária, representa o auge narrativo de Thomas Mann. Entre suas novelas, as mais conhecidas, cito Tônio Kröger (1903) e A morte em Veneza (1912) como narrativas que o tornariam conhecido tanto por suas narrativas épicas e de fôlego, quanto por aquelas de menor duração, isto é: contos e novelas.


GNARUS- UFAM - 57 foram repelidas e se desenvolveu um ‘estilo intensamente melancólico’, profundamente pessoal, repleto de um ‘Eu’, torturado, enredado e irrevogavelmente unido ao dilema do artista e da sociedade. “Depois de dois grossos volumes de vida mercantil hanseática finalmente alcançamos a Arte’ ”3. Sob essa ótica, então, vê-se algo novo na escrita de Thomas Mann. A manifestação disso encontra-se na própria intriga narrativa de “Tristão”, um conto sobre duas personagens em “exílio”. Toda a ação da história transcorre no sanatório Einfried, dirigido pelo Dr. Leander, proeminente figura da medicina – segundo nos conta o narrador. O prédio, de natureza clássica, atende a pacientes que sofrem de diversas mazelas. Desde tuberculose a enfermidades menores. Seus responsáveis, Dr. Leander, Srta. Von Osterloh e Dr. Müller, dividem-se nas seguintes funções, respectivamente: administração e cuidado a casos graves, manutenção do prédio e tratamento a doenças menores. Além desse corpo básico de funcionários, temos pacientes e outros empregados, citados no conto de acordo com a necessidade do narrador4. Entre os doentes, encontramos dois das três principais personagens da trama: Sra. Gabriele Klöterjahn e o escritor Detlev Spinell. Gabriele Klöterjahn foi a Einfried para tratar-se, inicialmente, de um mal na traqueia. Há quase um ano, a esposa do rico comerciante de mesmo sobrenome teve um filho, e, em função do complicado parto, viu3 (HAMILTON, 1985, p. 118). 4 Além dos personagens citados no corpo do texto, temos: Sra. Spatz, amiga da Sra. Klöterjahn, elas conhecem-se no sanatório; Anton Klöterjahn Júnior, filho do comerciante com sua esposa adoentada; o Dr. Hinzpeter, médico da família Klöterjahn, mencionado apenas no início da narrativa; e a Sra. Höhlenrauch, esposa de um pastor protestante. À parte aqueles que, de fato, possuem ligação com a protagonista, os outros personagens têm aparições episódicas, pouco relevantes para o desenrolar da narrativa.

se enferma e fraca. Seu estado de saúde foi piorando, até o dia em que “escarrou sangue” e houve a suspeita de tuberculose. Segundo o médico da família, a mulher não estava com a doença, um alívio. Entretanto, era necessário que ela se retirasse da vida urbana, e que se submetesse ao tratamento em um hospital de alta referência. O local escolhido foi o sanatório Einfried, e, lá, ela conheceu Detlev Spinell. Se muitas linhas do conto foram dedicadas ao passado e enfermidade da Sra. Klöterjahn, pouco o narrador nos forneceu sobre a biografia do escritor. Dele, sabemos apenas que conseguiu publicar um livro, de capa e estilo excêntricos – algo aplicável à sua própria personalidade. Ademais, não se conhece muito sobre sua carreira e doença, que não foi nomeada claramente. Quando questionado pela esposa do comerciante a respeito, o artista limitou-se a falar sobre “tratamentos em choque” e busca por um “estilo”5. Ou seja: por um lado, o tratamento empregado ao escritor indica uma doença psicológica, mas não há como ter certeza; por outro, no que se refere à sua menção ao “estilo”, o leitor é levado a pensar sobre certa internação voluntária, por ocasião de retiro para a recuperação das forças necessárias à produção de sua arte. Além da Sra. Klöterjahn e do Sr. Spinell, temos o comerciante, marido da primeira, como personagem fundamental para a intriga narrativa. No sanatório, ele passa poucos dias, acompanha a mulher no início do tratamento e logo retorna a Bremen – cidade em que trabalha e vive com esposa e filho. Sua aparição no conto diz respeito a esse primeiro instante e, mais tarde, quando de seu final, no momento em que o quadro de Gabriele 5 “Tratamento… Ah, uns choquezinhos elétricos. Nada que valha a pena mencionar. Vou-lhe revelar o verdadeiro motivo de minha presença aqui. Estou aqui à procura de um estilo” (MANN, 1982, p 116).

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GNARUS-UFAM - 58 Klöterjahn agrava-se surpreendentemente. Os modos do comerciante, segundo a descrição, podem ser lidos como tipicamente burgueses, e não há, em sua personalidade, grande interesse pela arte. O narrador, para compor sua personalidade pitoresca, marcou-o com certa fascinação provinciana pelos maneirismos ingleses. No caso do conto, podemos qualificá-lo facilmente como um típico parvenus6. Em termos estruturais, a narrativa segue um tradicional desenvolvimento “quinário”. Dividida em 13 capítulos inominados, podemos enxergar sua estrutura através do modelo a seguir: capítulos um, dois, três e quatro identificam-se à introdução, apresentação das personagens e construção do cenário de ação; já os trechos cinco, seis e sete referem-se aos primeiros contatos e conversações entre a Sra. Klöterjahn e o Sr. Spinell; enquanto que os capítulos oito, nove e dez dizem respeito ao desenvolvimento da questão central, a ser resolvida no conto; por fim, onze, doze e treze encerram a narrativa, com os episódios da carta enviada ao comerciante, pelo escritor, a morte de sua esposa e o encontro do Sr. Spinell com o filho da Sra. Klöterjahn – um bebê robusto e de saúde invejável. De modo geral, o enredo desenvolvese em torno da relação entre a esposa do comerciante e o escritor. O conto, em oposição à narrativa medieval, não exibe o adultério claro, e apenas alude a uma proximidade espiritual entre as personagens. Antes do casamento, Gabriele Klöterjahn foi pianista e se dedicava a emocionantes saraus com o pai, um comerciante com dotes artísticos, violinista. 6 “Usava suíças à maneira inglesa, e roupas inglesas, e ficou encantado ao descobrir em Einfried uma família toda de ingleses, pai, mãe e três belos filhos com sua ‘nurse’, que estavam morando ali pela simples razão de não saberem aonde ir. Com essa família ele partilhava um bom café inglês todas as manhãs” (MANN, 1982, p. 112)

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Através da leitura do conto, percebe-se que o ponto de encontro entre ela e o Sr. Spinell está na arte, algo claro nos capítulos nove, dez e onze. No primeiro deles, há uma cena em que a Sra. Klöterjahn toca uma série de melodias, noturnas de Chopin e o tema de Tristão e Isolda, a ópera wagneriana de 1859. Por meio da escuta da aria composta por Richard Wagner, e interpretada ao piano pela esposa do comerciante, o escritor fictício percebe de súbito o decaimento, a tragédia da outrora pianista. Em sua visão, a Sra. Klöterjahn abandonou a arte, a existência pura e pudicícia de virgem, para viver em desgraça espiritual com um comerciante bruto e inconsciente – apesar do proeminente sobrenome. Notase esse conflito, entre arte e vida terrena, por meio da carta enviada pelo Sr. Spinell a Anton Klöterjahn, mas o seu deflagrar ocorre anteriormente, em uma interessante cena musical – permeada por acentuada sensualidade e emoção. O conto moderno, o medieval e a música de Wagner Não se vê a música na obra de Thomas Mann como algo surpreendente. Entre seus leitores e críticos, sabe-se do lugar cativo e, em muitos casos, da obsessão do escritor com a relação entre literatura e música. Muitas de suas obras contêm alusões a melodias e trechos musicais, com aquela que verificamos em Doutor Fausto (1947) sendo a mais conhecida e bem desenvolvida delas. Em “Tristão”, temos a música de Wagner como elemento central, sobretudo porque foi empregada como salto definitivo para a compreensão do destino dos protagonistas do conto. Antes da cena musical, o Sr. Spinell não


GNARUS- UFAM - 59 conseguia dar forma a seus pensamentos sobre a “vida de esposa” de Gabriele Klöterjahn. Uma vez escutando o tema e narrando cada traço de sua elaboração apaixonadamente, ele fora como que tomado pela urgência da forma – da atribuição de uma estrutura ao decaimento perceptível na vida de sua amiga. A saber, a forma aparecerá integralmente no capítulo onze, como carta. Por enquanto, para a surpresa de ambos, naquele dia ocioso no sanatório Einfried, havia uma partitura singular disponível e a pianista não se furtou ao prazer dionisíaco da execução musical. Ao seu lado estava o escritor, acompanhando cada nota e desvendando os mistérios da composição wagneriana. Em “Tristão”, o ponto de encontro entre a narrativa medieval e a moderna também ocorreu nessa cena. Para além das possíveis semelhanças estruturais, Thomas Mann utilizou os motivos da história tradicional – especificamente: o não lugar do amor entre Tristão e Isolda – para expor sua opinião sobre a posição da arte na modernidade. No conto, essa postura foi simbolizada pelo escritor, Sr. Spinell – figura anacrônica e quixotesca. Podemos, no entanto, fazer mais equiparações entre os protagonistas de ambas as obras – pois, veja: a Sra. Klöterjahn e o Sr. Spinell poderiam atender à alcunha de Isolda e Tristão; já o comerciante bufão à de Rei Marco. Obviamente, a relação entre as obras não se dá somente nesse nível, o de espelhamento entre as personagens. Como se disse, Thomas Mann nos apresenta uma das leituras sobre o amor de Tristão e Isolda. Se, na narrativa medieval, esse sentimento aparece como protagonista, influenciando o destino das personagens, em “Tristão”, a arte ocupa o papel central. Assim, a impossibilidade verificada no conto medieval fora

transportada pelo autor para a modernidade, e posta sob a figura do artista exilado. Esse estado, altamente paradoxal, direciona a arte para um enorme dilema: aceitar ou não a modernidade? No caso do conto, vê-se claramente a resposta negativa, e o escritor, Sr. Spinell, segue, mesmo após a morte da Sra. Klöterjahn, no sanatório, isto é: em exílio. A música de Richard Wagner, por outro lado, possui papel fundamental no estabelecimento da ponte literária proposta por Thomas Mann. Ele não se refere imediatamente ao conto medieval. Sua base para a composição da obra foi a intensa melancolia presente na ópera de Richard Wagner, que ele tanto conhecia, desde a infância e adolescência em Lübeck: “[...] o que realmente despertava o entusiasmo de Thomas, além de Schiller e de seus livros, era a música. Desde a infância escutara sua mãe ao piano, tocando os Études e Nocturnes de Chopin. Prestava ainda mais atenção quando ela cantava. Seu repertório compreendia uma coleção de Lieder – Mozart e Beethoven, Schubert, Scumann, Robert Franz, Brahms, Lizst e Wagner – que Thomas jamais esqueceria, arranjos de Eichendorff e poemas de Heine, que se tornaram parte do seu ser, sua propriedade. E se o novo “naturalismo” que estava escandalizando Berlim só encontrava um “tênue eco” em Lübeck, o Teatro Municipal apressou-se em levar ao palco a obra de Richard Wagner”7.

E Richard Wagner, assim como o filósofo Friedrich Nietzsche, foi uma figura relevante na formação de Thomas Mann como intelectual. Sua paixão por música, e sobretudo por Wagner, apareceu em outros instantes de sua vida. Mesmo nos dias em que o autor se entrincheirava, “combatendo com espírito e palavra”, a ascensão nazista 7 (HAMILTON, 1985, p. 71)

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GNARUS-UFAM - 60 na Alemanha da década de 1930. Todavia, por ora, ele era apenas o apaixonado entusiasta do compositor antissemita, e não disfarçava seu esforço em tentar, quando pudesse, relacionar seus escritos a procedimentos musicais.8 Nota-se, então, a relação de Thomas Mann com a música, algo motivado desde a infância pela mãe pianista. Mais tarde, seu filho, Klaus Mann, resumiria a paixão de Thomas pela ópera wagneriana da seguinte maneira: “Era sempre o mesmo ritmo, a um tempo arrebatador e violento, sempre aquela canção que se avolumava em soluços e júbilo. Era sempre Tristão”9. Percebe-se, assim, que Thomas Mann utilizou o tema de Tristão e Isolda para dar ensejo a um momento decisivo de seu conto. Dessa maneira, ele explorou uma interpretação ao amor impossível do casal de nobres medievais, condenados ao adultério marginal até o fim de suas vidas. Esse drama foi transportado para a arte, e a tragédia da vida da Sra. Klöterjahn pode ser estendida à do Sr. Spinell – artista levemente enlouquecido, em exílio. Já a ópera de Richard Wagner, no conto, foi a ponte temática, espécie de mote para os três níveis narrativos: o do conto moderno, o medieval e a música.

Carta endereçada ao Sr. Klöterjahn A impressão causada pela performance musical da Sra. Klöterjahn foi tamanha que o 8 Ao comentar a evolução estilística de sua capacidade como narrador, Thomas Mann assinala, em Esboço de uma vida: “Aqui pela primeira vez captei a ideia de compor uma prosa épica como se fosse uma textura mental de temas diferentes, como um complexo musicalmente relacionado. […] Em particular o leitmotiv linguístico […] não foi manipulado à base de reflexos puramente externos e naturalistas como em Os Buddenbrook, mas transfigurado no domínio mais cristalino das ideias e emoções, e, dessa maneira, elevado da esfera mecânica para a musical” (MANN apud HAMILTON, 1985, p. 118). 9 (MANN, K. apud HAMILTON, 1985, p. 71)

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escritor, Sr. Spinell, não se furtou a escrever uma carta. Seu destinatário foi o marido de sua amiga, o rico comerciante. Nela, ele expõe claramente o drama pessoal e desvirtuamento provocados pelo homem grosso, pouco afeito à vida artística. Para provocar impacto sobre o leitor do escrito, o autor da carta utiliza uma cena narrada pela Sra. Klöterjahn, de sua vida, ainda como solteira, em Bremen. Naqueles tempos, ela passava as tardes com suas seis amigas, costurando ou falando sobre a vida, em intenso abandono e inocência juvenis. Quando não o fazia, a Sra., que à época ainda era Srta. Gabriele Eckhof, ocupava-se em saraus com o pai, acompanhando-o ao piano. No entanto, em um desses dias ociosos, ela foi interrompida, e teve a existência modificada pelo comerciante. Ele apareceu, vindo dos arbustos, com o pai – o casamento estava definido. Segundo o Sr. Spinell: “Aquela cena foi um final. Por que chegou ali, para estragar tudo, para interrompê-la com o curso de sua vida feia e vulgar? Era uma apoteose serena e comovente, banhada na beleza crepuscular da decadência, decomposição e morte. Uma estrutura antiga, refinada demais para ter vitalidade e ação, chegava ao fim de seus dias; suas últimas manifestações eram as da arte: notas de violino, repassadas daquela melancólica compreensão que amadurece para a morte […]”.10 Nota-se, no tom do excerto citado, enorme tom acusativo. O crime cometido pelo comerciante evidenciou o fim definitivo do estado anterior, de beleza pura, simbolizado pela figura de Gabriele Eckhof, futura Sra. Klöterjahn. Em seguida, o escritor caracteriza o Sr. Klöterjahn como gourmand e dotado, de modo surpreendente, com as faculdades do bom gosto estético para mulheres. 10 (MANN, 1982, p. 137)


GNARUS- UFAM - 61 Logo em seguida, o escritor fictício continua sua denúncia ao mundo desprovido de beleza, representado pela figura do marido, arauto da modernidade: “[…] é uma constatação, uma simples constatação psicológica de sua personalidade – uma personalidade totalmente desinteressante para a literatura.

semelhantes. Em dado momento, a figura da Sra. Klöterjahn, lida por ele como a da própria arte e o pecado de seu marido aparecem descritos da seguinte maneira:

[…] faço essa constatação porque sinto

vida, deu-lhe o seu sobrenome ordinário, fez

impulso de clarificar seus pensamentos e

dela uma esposa, uma dona-de-casa, uma

ações, porque é minha tarefa irrecusável neste

mãe. Rebaixou aquela beleza da morte, uma

mundo chamar as coisas pelos nomes certos,

beleza fatigada, tímida, que florescia num

e fazê-las falar, iluminando o inconsciente.

ócio aristocrático – degradou-a na lida das

O mundo está cheio do que chamo o “tipo

coisas cotidianas […]”.12

inconsciente”, e não o suporto! Não suporto todos esses tipos inconscientes, toda essa vida embotada, ignorante e obtusa ao meu redor, esse mundo de uma ingenuidade irritante! ”.11

Nesse instante, percebe-se claramente a oposição entre mundos sugerida pela história. No caso do conto, ela ainda não assume as proporções magnânimas de A montanha mágica (1924), romance em que Thomas Mann suspenderá tempo e espaço, numa trama épica sobre o futuro e formação de um jovem singelo: Hans Castorp. Todavia, através da fala do Sr. Spinell, o distanciamento entre a vida cotidiana e a artística aparece como eixotemático. O “tipo inconsciente” aproximase, então, da massa amorfa e desprovida de espírito, ou seja, da própria modernidade. Detlev Spinell trata a esse mundo e seus integrantes de maneira afastada, colocandose no outro polo: o da arte adoentada, e posta em exílio por sua sociedade. Há nele toda a consciência, senso crítico e estético, que faltam ao “tipo inconsciente”, dominante no universo descrito na carta. No desfecho do escrito, o Sr. Spinell segue com suas considerações negativas sobre o mundo cultivado pelo comerciante e seus 11 (Idem, 1982, p. 137)

“[…] o senhor desviou a vontade dela, tão sonhadora, arrancou-a do seu jardim selvagem para a vida, e para a feiúra (sic) da

É, portanto, sob esse clima de intensa denúncia que o escritor finaliza a carta: “Permita que lhe diga que o odeio, senhor. Odeio-o, e ao seu filho, como odeio a vida que representa, o eterno oposto e inimigo da beleza. Não posso dizer que o desprezo. Não isso. Sou sincero. O senhor é o mais forte. Tenho apenas uma arma para combatê-lo, que é espírito e palavra, o nobre instrumento dos fracos. Hoje fiz uso dela. Pois esta carta – também nisso sou sincero, meu senhor – não é senão um ato de vingança; e se uma só palavra nela foi penetrante, inspirada e bela para atingi-lo, para fazê-lo sentir uma força diferente, para abalar por um momento esse seu robusto equilíbrio, me sentirei feliz [...]”.13

A carta fora enviada ao Sr. Klöterjahn que, ao lê-la, encolerizou-se, e resolveu pedir satisfações ao reles escritor. Enquanto o comerciante denunciava a conduta errática e ridícula do Sr. Spinell, sua mulher convalescia em quarto contíguo. Ela morria enquanto o marido vociferava contra o medíocre artista. E, se a cena nos parece absolutamente dramática, triste, Thomas Mann esforçouse por torná-la excêntrica, fazendo gracejos 12 (MANN, 1982, p. 138) 13 (Idem, 1982, p. 138-139)

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GNARUS-UFAM - 62 sobre a caligrafia de Detlev Spinell, por exemplo. Nesse conto, Thomas Mann optou pelo equilíbrio, aparentemente impossível, entre humor e melancolia profunda. As personagens descritas na narrativa morrem, e não apenas espiritualmente. Algumas delas, como a do escritor, estão enlouquecidas, e há que se perguntar os motivos para essa descrição outonal da modernidade. Seria a denúncia do próprio autor ao estado da arte em seu período? Talvez, mas sua resposta a essa questão é variegada, e menos melancólica e romântica como se imaginaria. Além de “espírito e palavra”, Thomas Mann utilizou a paródia ao drama medieval, e sua ironia fina, para fazer troça a todos, inclusive à falência progressiva da expressão dionisíaca. “Tristão”, portanto, oscila entre denúncia e humor, características aplicáveis a dois mundos. Um, irrevogavelmente decadente e em tratamento, que é o da arte; e outro, desprovido de qualquer beleza estética: o do cotidiano burguês.

Considerações finais Neste texto, pretendi retomar traços biográficos do autor, e colocá-los ao lado de uma de suas narrativas de juventude: “Tristão”. Para além disso, tencionei identificar pontos de encontro entre a história moderna, o conto medieval Tristão e Isolda e a ópera de Richard Wagner. Notadamente, as obras alemãs, de Thomas Mann e Richard Wagner, utilizam motivos semelhantes, e a permanência do mito europeu sobre o adultério, chegando ao início do século XX, levanta algumas questões sobre a percepção desses artistas acerca de narrativas tradicionais. Muitas delas serviram à literatura.

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Em Thomas Mann, outros exemplos podem ser citados. Após A montanha mágica (1924), ele iniciou a tetralogia, José e seus irmãos, publicada na década de 1930. Nela, a biografia do judeu José, também relevante ao mundo cristão, foi utilizada para levantar hipóteses sobre a suposta “origem comum” dos cristãos-protestantes alemães. Mais tarde, já no fim de sua vida, Thomas Mann realizou interessante releitura do mito de Fausto. Desta vez, o autor elevou sua referência à condição de análise do presente europeu, sobretudo do povo alemão, através da figura do músico fictício Adrian Leverkühn. Constatou-se, por outro lado, a relevância da música em sua formação como escritor. Richard Wagner, e outros foram-lhe essenciais, ainda, na exploração de novas técnicas de composição literária. Esse eixo característico de seu estilo não aparece de modo latente em “Tristão”. Contudo sua integral referência ao tema do amante de Isolda, e centralidade da aria ao destino das personagens, revela outro traço marcante em sua narrativa. A música erudita foi fundamental não somente na juventude, mas por toda a carreira dele como escritor e intelectual. Ao lado da música, a condição da arte, um tema retomado em todas as suas narrativas, parece-nos o traço mais importante do conto analisado. Através dela, o quadro analítico da história atinge a essência do problema explorado pelo autor. Temos a arte violada, simbolizada por Gabriele Klöterjahn, e a arte doentia, expressa por Detlev Spinell. O decaimento social proporcionado pelo capitalismo, por outro lado, foi descrito através da figura do comerciante Anton Klöterjahn. Essas três personagens preludiam grandes temas na obra de Thomas Mann, escritor regularmente preocupado com a função social do artista na modernidade.


GNARUS- UFAM - 63 Por ora, ou quando da publicação do conto “Tristão”, seu tratamento ao tema oscilou entre o humor e a melancolia profunda. Décadas mais tarde, seus escritos demonstrarão, progressivamente, a impossibilidade do humor, mas sua ironia característica nunca será abandonada. A arte será a via mestra pela qual Thomas Mann poderá explicitar suas considerações sobre as crises atravessadas por sua nação. E, novamente, ele questionará sua importância junto à sociedade. Em outras palavras, na Primeira e Segunda guerras mundiais14, como figura atuante na República de Weimar, exilado nos Estados Unidos ou, brevemente, como alemão repatriado após o segundo confronto bélico entre nações europeias. A “questão da arte” e o “dilema social do artista” serão temas de uma vida inteira, assim como a paixão pela música. Em “Tristão”, por fim, esses elementos surgem como motes temáticos e narrativos fundamentais para a compreensão do universo criativo do jovem Thomas Mann. José Bosco Ferreira de Sá Junior é Graduado em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), mestrando do Programa de pós-graduação em História Cultural (PPGHUFAM) e bolsista Fapeam.

Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. HAMILTON, Nigel. Os Irmãos Mann: as vidas de Heinrich e Thomas Mann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. MANN, Thomas. “Tristão”. In: Os famintos e outras histórias. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1982. p. 107145 MANN, Thomas. Ouvintes alemães: discursos contra Hitler (1940-1945). Tradução de Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. REUTER, Yves. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Rio de Janeiro: Difel, 2007. TOMÁS, De Inglaterra (1996): “Tristán e Iseo”. In: La leyenda de Tristán e Iseo, I. de Riquer (ed.), Selección de lecturas medievales, 43, Madrid: Siruela, 1996. TODOROV, TZVETAN. As estruturas narrativas. Tradução de Leila Perrone Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2006. (Debates; 14 / dirigida por J. Guinsburg). WISNIK, José Miguel. “A paixão dionisíaca em Tristão e Isolda”. In: CARDOSO, Sérgio et al. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das letras, 1987. p. 195-227.

Referências bibliográficas GAY, Peter. As represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann. 14 MANN, Thomas. Ouvintes alemães: discursos contra Hitler (1940-1945). Tradução de Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Nessa obra, temos aquele que, talvez, seja o maior exemplo da intensa atividade pública a qual Thomas Mann se dedicou. Durante a Segunda Guerra Mundial, o escritor enviava textos para a BBC inglesa, que os retransmitia via rádio para a Alemanha. Com sua narração, o teor dos escritos, mensagens curtas, dizia respeito a uma série de denúncias ao regime nazista, Adolf Hitler e inflamava o povo alemão a se revoltar contra o governo autoritário.

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GNARUS-UFAM - 64

Artigo

O USO DA ARTE COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DA HISTÓRIA INDÍGENA E AFRO-BRASILEIRA Por Gleici Vidal Osório e Girlane Santos da Silva

RESUMO: Este trabalho tem como proposta discutir a utilização da Arte como ferramenta metodológica para o ensino de História Indígena e Afro-brasileira com os alunos do Ensino Médio da Escola Estadual professor Jorge Karam Neto. Visa com isto promover um debate a cerca desta temática, pois, como profissionais da educação, é de conhecimento público que o ensino sempre está relacionado há outras ciências, ou seja, a integração de saberes. Por saber que a Arte tem uma relação direta com a história, como podemos ver no pioneiro estudo da arte da Educação, Ana Mae Barbosa (1936), no qual seus estudos defendem a Abordagem Triangular que consiste em conhecer a história, fazer arte e saber apreciar uma obra. Dessa forma, isto conduz o aluno a conhecer a história para produzir e refletir resultados críticos. Assim, esta pesquisa surgiu a partir da necessidade de se criar formas que envolvessem e aguçassem a curiosidade dos discentes para temas históricos, regionais. Palavras Chaves: Arte, Ensino de História, História Indígena e Afro-brasileira.

Introdução

A

partir da conquista pleiteada por movimentos sociais relacionados à valorização do papel do negro na sociedade brasileira e problemáticas ligadas aos direitos dos povos indígenas, bem como à concepção sobre a atuação de ambos na formação da identidade nacional e outras questões referentes ao protagonismo dessas populações, têm-se a aprovação da Lei 10.639/03 e posteriormente a 11.645/8, que impõe a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena, em especial nas disciplinas de Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

educação artística, literatura e história brasileira em todos os estabelecimentos educacionais no país nos níveis fundamental e médio. Assim, a necessidade por utilizar práticas e metodologias de ensino que abordem essa temática tornou-se latente por parte dos educadores, tendo em vista que seu papel como mediador de conhecimento é fundamental no processo de ensino e aprendizagem. Com isso, essa pesquisa surge como uma reposta para as demandas relacionados aos conteúdos que abarquem o teor da lei, pois a desvalorização e depreciação dessas populações ainda


GNARUS- UFAM - 65 encontra-se presente no cotidiano de alunos, à medida que renegam ou encobrem seus traços, origens e crenças, afinal as heranças deixadas por esses indivíduos estão presentes até hoje na literatura, cultura, arquitetura e vários outros aspectos que estão presentes no cotidiano1. O objetivo desse artigo é apresentar a arte como uma ferramenta de ensino de história utilizada na Escola Estadual Professor Jorge Karam Neto, situado na Zona Leste de Manaus, para um corpo de aluno do Ensino Médio, no intuito de se trabalhar com a valorização da história e da cultura dessas populações, a partir da produção de pinturas e produção de quadrinhos que narram lendas típicas desses sujeitos. Afinal, pensamos a arte como um instrumento de integração de saberes, pois “o representar com a imaginação o mundo da natureza e da cultura e o exprimir sínteses de sentimentos estão incorporados nas ações do produtor da obra artística. ”2 Com isso, essa pesquisa procura, além de expor os resultados de um trabalho atividade multidisciplinar, promover uma discussão acerca de um histórico das Leis 10.639/03 e 11.645/08, como também realizar uma reflexão sobre o papel do professor, da História e da Arte para o Ensino.

O papel do professor no contexto atual Durval Muniz3, ao refletir sobre a constituição de uma narrativa histórica envolvendo o passado e a produção de uma historiografia, afirma que esta está carregada de sentidos e eventos que o historiador, como um tecelão, busca fabricar vários itens com cuidado e paciência na sua atividade. Dessa forma, revela que o saber histórico é como 1 CONCEIÇÃO, 2019, p.2 2 FERRAZ; FUSARI, 2010, P.21 3 MUNIZ, 2017.

fruto de uma tecelagem partilha de universo cultural. Em suma, carregada de significados e concepções que descrevem sua realidade. Assim como Marc Bloch4 que nos chama atenção para a observação histórica, no qual o historiador será aquele que tenta reconstruir um passado que este não presenciou, a partir dos resultados que conhece e de suas experiências. Em síntese, ambos nos conduzem para uma interpretação de uma produção histórica que contempla interpretações, muitas vezes, veladas por nossas experiências e compressão do mundo; com isso, o saber que produzimos está marcado por nossas interpretações e concepções. Dessa maneira, refletir sobre o papel do professor de história no processo de ensino/ aprendizagem é necessário pensá-lo como um agente mediador do conhecimento, aquele que observa o processo histórico e inquieta seus alunos a partir das indagações promovidas por ele, que muitas vezes, é aquele que acende a faísca da curiosidade no aluno, além de ser o indivíduo que conduz o discente a novos caminho rumo ao saber, como afirma Paulo Freire (1921-1997), isto é, ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção5, ou seja, o docente não é apenas um mero transmissor, o professor precisa do discente, não mais como ouvinte, mas ser participativo do ensino (FREIRE, 1996)6. 4 BLOCH, 2001.

5 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e terra, 1996. P.12 6 Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém. Por isso é que, do ponto de vista gramatical, o verbo ensinar é um verbo alguém. Do ponto de vista democrático em que do processo de conhecer, ensinar é algo mais que um verbo transitivo-relativo. Ensinar

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GNARUS-UFAM - 66 Atualmente, essa é a visão do docente, mas vale salientar que nem sempre foi dessa forma, durante muito tempo o docente era visto como o único detentor de conhecimento, o que falava era tomado como a verdade, não se tinha olhar do profissional que faz a ligação entre o conhecimento e indivíduo e a troca de saberes. Por essa razão, defendemos o ensino/ aprendizagem de trocas e entendemos o professor atual como o grande incentivador do saber. No entanto, não é um trabalho fácil, porque é um dos profissionais menos valorizado no país, e fora os vários empecilhos, muita das vezes, ele vira companheiro da frustração por querer fazer algo que melhore suas aulas e isso não é permitido. Quando falamos dessa forma, parece que estamos sendo pessimistas sobre a profissão, mas não, apenas estamos querendo esclarecer a falta de preparo de muitas profissionais. Um problema que começa na academia, onde percebemos muitos recém-formandos saírem despreparados para uma vida real, que muitas das vezes estão longe das teorias trabalhadas na universidade. Claro não podemos generalizar, percebemos que existem estudiosos preocupados com a temática, isto é, disposto a debater novas formas de ensino/aprendizagem que ajudem o trabalho do professor, como podemos analisar na obra: Ensino de história: sujeitos, saberes e práticas, que surgiu do “V encontro Nacional Perspectiva de ensino de História”, em 2004, organizados pelos autores Ana Maria Monteiro, Arlette Medeiros Gasparello, inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente me situo, mas também do ponto de vista da radicalidade metafísica em que me coloco e de que decorre minha compreensão do homem e da mulher como seres históricos e inacabados e sobre que se funda a minha inteligência que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. transitivo-relativo. Verbo que pede um objeto direto – alguma coisa – e um objeto indireto – a FREIRE, Paulo, 1996. p.12

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Marcelo de Magalhães. Os artigos do livro fala das formas que o ensino se apresenta no Brasil7, mostrando um preocupação ao tema. Este é o diálogo que queremos defender, para assim preparar o futuro docente para o mais próximo possível das realidades, principalmente na formação do professor que irá ministrar as aulas, na educação básica em escolas públicas, porque a linha entre o que deveria ser e a vida real é grande. Podemos até ter um preparo para o ensino libertador, crítico e reflexivo, mas esbarramos no sistema, que nos obriga a um ensino muitas vezes tradicional, ou seja, àquelas aulas expositivas em forma de monólogo, cansam o aluno e o professor. Para tentamos ter uma prática de ensino/aprendizagem crítica e reflexível, o papel do professor é fundamental, por essa razão trazemos a nossa experiência docente na ideia de sermos o facilitador.

História e Arte para o Ensino Primeiramente falaremos do ensino de história, como exposto anteriormente, em 2004, onde ocorreu o “V encontro Nacional Perspectiva de ensino de História”, e dos trabalhos apresentados que resultaram na obra Ensino de história: sujeitos, saberes e práticas, na qual os trabalhos demonstram a preocupação com o ensino da disciplina história. Em suma, traz o diálogo de uma história em processo de constituição que permite uma relação com diversas perspectivas, tornando o ensino mais plural. Em outras palavras, “O fato de o campo se constituir de forma interdisciplinar possibilita o diálogo com diferentes enforque 7 MONTEIRO, Ana Maria F.C. GASPERELLO, Arlette Medeiros. MAGALHÃES (Org). Ensino de história: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro Mauad X: FAPERJ. 2007.


GNARUS- UFAM - 67 e perspectivas de análise”,8 de modo que a história pode ser trabalhada juntamente com outros saberes. Outra obra que podemos analisar quanto a preocupação com ensino de história e as práticas saiu do “II encontro Nacional Perspectiva de ensino de História”, em que se evidencia o saber histórico na sala de aula, organizada por Circe Bittencourt9, que apresenta como o ensino é um desafio para professores. Assim, ela fala das necessidades e dificuldades na utilização de diferentes recursos, como o observado em um dos textos intitulado “História e Dialogismo da Antonia Terra”, onde há uma discussão à respeito da relações da história com a arte, em que o aluno usa a obras como fonte, e vivencia seu tempo de aprendizagem, ao mesmo tempo em que analisa o documento10. Partindo desse ponto, legitimamos a relação da história com a arte, pois o fazer artístico leva o aluno a buscar entender seu meio e contexto daquilo que é visto ou retratado. Nesses estudos apresentados, percebemos que poderíamos usar a arte de forma para o ensino/aprendizagem de história, mas procuramos estudos no campo das artes que também legitimasse o alinhamento ideal. Sendo assim, no primeiro momento na 8 MONTEIRO, Ana Maria F.C. GASPERELLO, Arlette Medeiros. MAGALHÃES. 2007. p.07 9 BITTENCOURT, Circe (Org). O saber histórico na sala de aula. 7 ed. São Paulo, Contexto, 2002. 10 A introdução de estudos de desvendar as múltiplas relações diálogicas incorporadas às obras humanas, amplia a oportunidade dos alunos conhecerem contextos históricos complexos, que se expandem em ressonância no tempo que se materializam em obras e acontecimentos. Possibilitam, ainda, escaparem de explicações casuais, e simplistas, indo de encontro a construções de olhares substanciosos, recheados de referências culturais, contexto históricos (...) Isto é, orienta-se por um roteiro de pesquisa e de investigação que esbarra em épocas, vozes e contextos que emergem de muitos recantos, de muitas gerações, que ressoam, ainda, no presente, já que é no presente que os alunos estão falando, dialogando, construindo um novo enunciado, uma nova obra. (BITTENCOURT, 2002, p. 103).

graduação de artes, percebemos que os conhecimentos da história e da arte tinham uma relação direta. O primeiro contato com esse conceito foi nas aulas de Fundamentos da Educação em Artes, ao conhecer a abordagem triangular defendida pela pesquisadora, Ana Mae Barbosa (1936), em Teoria e prática da Educação Artística (1975). Ela diz que o indivíduo precisa conhecer a história, fazer arte e saber apreciar uma obra,11 levando-nos a pensar como poderíamos casar as duas disciplinas e trabalhar as questão interdisciplinar, revelando uma preocupação a respeito do ensino/aprendizado em artes, na qual, muitas vezes é olhado sem importância ou até mesmo como não fosse uma profissão. O segundo contato, tivemos em teorias que demonstram a relação arte/história, como na tese Processos Socioartísticos Em Moacir Andrade: Estilo E Artes Plásticas Na Amazônia12, de 2018, do professol Valter Mesquita. Neste estudo, ele revela três dimensões em que está o artista, e que podem ser chamadas de estruturas, elas são: a dimensão formal, à qual é visível aos olhos de quem observa e é através dela que conseguimos chegar nas demais, como a dimensão histórica, dimensão sociocultural; essas que estão inseridas no contexto histórico e meio que cerca o indivíduo. Partido dessa premissa, percebemos mais uma vez a ligação das duas disciplinas.

Uma experiência docente Ao primeiro contato com a educação básica pública, o choque entre a realidade de uma escola com zonas carentes e a formação acadêmica é latente. As aulas são diferentes 11 BARBOSA, Ana Mae. Teoria e prática da Educação Artística. São Paulo: Cultrix, 1975. 12 LOPES, Valter Frank de Mesquita, Processos Socioartísticos Em Moacir Andrade: Estilo e Artes Plásticas na Amazônia, 2018 (Tese de doutorado - UFAM).

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GNARUS-UFAM - 68 de tudo que pensamos e idealizamos, quem olha de fora, e nunca experimentou uma sala de aula, pode até questionar se o professor na sua formação não passou por um estágio que o ajudasse para não se chocar com a realidade. Há nisso uma diferença considerável entre a Universidade e a realidade escolar, que mesmo tendo o estágio, ao assumir o espaço escolar como mediador de conhecimento, o contraste é impactante, pois percebese a desvalorização e a falta de recursos financeiros. Paralelo a esse cenário, no atual contexto, ser professor é algo desafiador, afinal têm-se presenciado ataques ferozes aos docentes; como também, presenciar crianças e adolescentes sem perspectiva de futuro, sem vontade de estudar, que não conhecem ou não reconhece suas raízes étnicas. Com isso, para tentar mudar essa realidade, a necessidade por ferramentas e práticas educacionais que valorizem traços afrobrasileiros ou indígenas torna-se fundamental no contexto educacional. Por essa razão, falaremos da nossa experiência vivida na Escola Estadual Professor Jorge Karam neto, situada na zona leste de Manaus. Nessa escola, notou-se a necessidade de aprofundamento de temáticas ligadas ao campo da história indígena e afro-brasileira, não que os alunos nunca tenham ouvido sobre, mas como não despertou interesse, não se importaram e nem lembravam, pois, ao serem questionados em algumas aulas, as respostas eram: “Já ouvir falar, mas não lembro”; “Não achei importante”. Em síntese, eram histórias tristes e era visível o desconforto por alguns, pois os temas traziam discussões a respeito de características que uns aparentavam não querer ter. Percebi que teria de fazer algo para mudar Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

essa realidade, mas não sabia como. Até que em umas das reuniões do corpo docente, tomei conhecimento sobre atividades pedagógicas feita na escola, uma espécie de feira, chamada de Workshop com temas como países, literatura, e envolvia artes, culturas e histórias; enfim temas colhidos anualmente, e despertava o interesse do aluno. Então passado essa feira, no mesmo ano soube que havia projetos de iniciação cientifica, como o chamado PCE, financiado pela Fapeam, e assim fiz um primeiro sobre a temática da abolição, ainda em 2016, com resultado satisfatório, mas que atingiu poucos alunos. No ano de 2017, não fiz projeto, mas umas das professoras coordenadora do Pérola negra, que era uma apresentação cultural feita na escola, chamou-me para fazer algumas oficinas. Fiz e tive a ideia de usar a arte no ano seguinte. E em 2018 voltei com o projeto PCE, uma continuação do projeto passado, mas agora, envolvendo a arte, em que incluía oficinas, entrevistas com artistas de raízes afrobrasileira e uma apresentação cultura em parceria com a professora Lidiana Canto, apoio dos professores Charles Pereira e Ana Carolina Nunes. A atividade foi um sucesso e com alcance maior percebemos a maior aceitação dos alunos sobre suas raízes. Em resumo, foi bastante recompensador perceber em alunos que não se aceitavam como negros, uma mudança, isto é, estavam se reconhecendo. Em 2019 iniciamos um novo projeto do PCE, financiado pela Fapeam, que não só trabalha a cultura afro-brasileira, mas também a cultura indígena, porque percebi que era um tema pouco conhecido e comentado pelo os alunos. Por essa razão, a proposta da pesquisa que estou coordenando esse ano


GNARUS- UFAM - 69 foi que os alunos escolhidos para o projeto pesquisassem sobre a história e cultura afrobrasileira, como também a indígena, para aplicar na elaboração de uma revista em quadrinhos sobre lendas afro e Amazônicas. E para isso nos baseamos em teóricos como Lopes (2018), Barbosa (1976) e Terra (2002). Os alunos já iniciaram suas atividades e para escolha dos seus ilustradores da revista, organizaram uma oficina de pintura, ministrado pelos artistas plásticos Will Barbosa e Junior Gonçalves, com o tema “Lendas Amazônicas e afro”. A próxima etapa consistirá em palestras nas salas de 1ª ano, 2ª e 3 ª anos, para falar sobre a história e cultura afro-brasileira e indígena, preconceito e leis. A última fase é a construção da revista e uma apresentação cultural com a participação do corpo discente escolar. Com base nos estudos feitos, trazemos a nossa experiência do uso da arte como ferramenta para o ensino da história afro-brasileira e Amazônica, na qual apresentamos que é possível o uso de outras disciplinas como auxiliares para o processo de ensino e aprendizagem, através da interdisciplinaridade.

Considerações Finais Evidenciamos que o projeto desenvolvido na Escola Estadual Jorge Karam, em Manaus, procurou contribuir para a fomentação de um aluno dotado de consciência histórica, cultural e valorização da sua identidade étnico racial, à medida que foi detectado um processo de desvalorização desse reconhecimento, desmitificando assim estereótipos que reduzem afrodescentes e indígenas a uma parte não significativa da sociedade. Segundo Mônica Lima (2006), o ensino

de história da África, afro-brasileiro e povos indígenas são essenciais para a compreensão da própria historicidade e identidade do povo brasileiro, considerando que o fluxo de escravos africanos que veio para o Brasil chega a 40% dos 11 milhões de indivíduos que vieram para as Américas e assim “(...) fez com que amplas áreas do planeta mantivessem contatos permanentes e sistemáticos com a África, num ir e vir de pessoas, ideias, tecnologias, ritmos, visões de mundo.”13, além dos povos tradicionais que aqui habitavam antes de 1500. A ausência de uma reflexão sobre uma identidade étnica e racial logo nos primeiros contatos, apontam no mínimo para uma ausência de uma discussão mais assídua no que concerne a Lei 10.639/03 e 11.645/08 e sua obrigatoriedade no ensino público regular. Assim, a execução de atividades envolvendo outras ferramentas e práticas de ensino e aprendizagem são fundamentais para compreensão do processo de formação e aceitação de uma identidade étnico-racial, consequentemente, no reconhecimento dos aspectos da cultura e religiosidade negra e indígena que estão presente no seu cotidiano. Gleici Vidal Osório é Professora concursada da Secretária de Estado e Educação – SEDUC e da Secretária Municipal de Educação, possui graduação em História pelo Centro Universitário do Norte (Uninorte) e em Artes pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Girlane Santos da Silva é Graduanda do curso de História da Universidade Federal do Amazonas e membro do Grupo de EstudosGea da Universidade Federal do Amazonas e do Polis – Núcleo de Pesquisa em Políticas, Instituições e Práticas Sociais.

13 LIMA, 2008, p.71

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GNARUS-UFAM - 70 Referências ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru, SP: EDUSC, 2007. BARBOSA, Ana Mae. Teoria e prática da Educação Artística. São Paulo: Cultrix, 1975. BLOCH, Marc. Apologia da História ou Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BITTENCOURT, Circe (ORG.) e outros. O saber histórico na sala de aula. 7 ed. São Paulo, Contexto, 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e terra, 1996. P.12. FUSARI, Maria Felisminda de Rezende e; FERRAZ, Maria Heloisa C. de T. Arte na educação escolar. São Paulo: Cortez Editora, 2002. LIMA, Mônica. História da África: temas e questões para a sala de aula. CADERNOS PENESB. ISSN: 1980-4423. Nª 7 (2006), p. 68 – 101. LOPES, Valter Frank de Mesquita, Processos Socioartísticos em Moacir Andrade: Estilo E Artes Plásticas Na Amazônia, 2018 (Tese de doutorado - UFAM) MONTEIRO, Ana Maria F.C. GASPERELLO, Arlette Medeiros. MAGALHÃES (Org). Ensino de história: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro Mauad X: FAPERJ. 2007.

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Artigo

SAÚDE INDÍGENA EM TEMPOS DE SEGREGAÇÃO (1870-1910) Por Francisco Adriano Leal Macêdo e Shirley Pereira Cardoso RESUMO: Este texto se propõe primeiramente a analisar a presença da população indígena no final do século XIX e início do XX, notadamente entre os anos 1870 e 1900, na capital da Província do Amazonas, procurando perceber como estes foram atendidos e registrados ao receberem cuidados médicos em um momento de profundas alterações econômicas, políticas e sociais que a região amazônica experimentava. O antropólogo Carlos de Araújo Moreira Neto nos dá informações importantes ao explicitar os mecanismos pelos quais os indígenas deixaram de ser maioria para transformar-se em minoria. Dentre suas explicações, podemos destacar a redução de seus territórios motivados pela presença de seringueiros, castanheiros diante da pressão das sociedades por esses produtos cada vez mais demandados. Segundo Moreira Neto, após 1870, será crescente a rejeição ao índio e ao tapuio, este último com décadas de convívio com as sociedades regionais. O momento posterior a 1870 coincide com uma grande entrada de imigrantes nacionais e estrangeiros na região; expansão da economia gomífera; mudanças profundas nos modos de vida da população amazônica e não menos importante um permanente estado de presença epidêmica na província como a cólera, varíola, malária, febre amarela, sarampo, entre outras, firmarão presença permanente na região. Como sabemos, as vítimas mais frágeis e suscetíveis diante dessas ameaças crescentes eram os membros da população indígena. Além disso, a partir dos anos 1890, ocorre na cidade de Manaus um conjunto de transformações urbanísticas, por meio de políticas de saneamento e embelezamento que visam atender a uma demanda específica. De modo que esse processo se deu de forma desarmônica e desigual, uma vez que foi encetado pela elite extrativista e tais interferências no espaço urbano caracterizaram um projeto político e social que não contemplaram a todos e acabou negligenciando indígenas, trabalhadores urbanos, pobres, doentes e desvalidos. Portanto, pretendemos capturar informações que nos permitam entender como essa população foi tratada pelos registros oficiais, uma vez que a política em voga era a de negar e ocultar a presença indígena na cidade, posto que estes em algum momento tiveram que receber e recorrer aos socorros públicos, essa hipótese é factível visto que a questão da saúde começava a assumir importância para o desenvolvimento econômico da nação, e sua inserção no mercado de trabalho tão concorrido. No momento seguinte, refletiremos sobre como a trajetória de conquista dos direitos indígenas no Brasil tem sido lenta, longa, tortuosa, contraditória e deslegitimada. Antigos problemas parecem retornar constantemente. O Estado se afirmou repetidas vezes como um aparelho funesto para os grupos e etnias indígenas que dividiam/dividem o País, sobretudo na atual conjuntura política, onde assistimos perplexos aos diversos ataques do presidente da república para com os povos indígenas, na tentativa de diminuir ainda mais os direitos dessa população. Para demonstrar essas questões, faremos conexões com o tempo presente como esforço de desvelar algumas pistas sobre os tempos de segregação e silêncio a que os indígenas brasileiros vêm sendo submetidos até a contemporaneidade.Palavras Chaves: Umbanda; Identidade; Resistência

Indígenas e indigentes

L

política de concentração de poder do Segundo Reinado privou as Províncias de autonomia política para decretar e formular regulamentos segundo suas próprias necessidades, deste modo, a Província

do Amazonas estabelecida em 1852, não dispunha de um quadro administrativo capaz de resolver as inúmeras dificuldades pelas quais passava. Um de seus maiores desafios era solucionar os problemas referentes ao campo da saúde, uma vez que os surtos Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020


GNARUS-UFAM - 72 epidêmicos eram constantes na região tais como varíola, malária, febres intermitentes entre outras, carecia também de material, de profissionais habilitados para o atendimento médico, de uma instituição de saúde capaz de dar assistência à população local e de recursos para dar conta de tais necessidades. A Junta Central de Higiene Pública foi criada a partir do decreto nº 598, instituído em 14 de setembro de 1850. Foi nessa ocasião que se oficializou que os assuntos sanitários seriam responsabilidade do Estado. Essa junta encontraria dificuldades em se tornar efetiva por conta de problemas de infraestrutura, trazendo complicações para o atendimento dos doentes e para o saneamento básico na cidade. No meio cientifico e da medicina, durante o século XIX, era consensual que as doenças estavam diretamente ligadas aos miasmas – ou seja, emanações de odores de animais em estado de putrefação e ambientes sem saneamento adequado – que aliados ao clima tropical da região, asseveravam os surtos de epidemias. Esses eram os postulados centrais da época, autorizados amplamente pelo saber médico. A partir do último quartel do século XIX podem ser identificados ações de beneficiamento da saúde pública. Isso se expressa principalmente nos processos de urbanização e de embelezamento da cidade, catapultado pelo aquecimento da economia gomífera da época. Ruas calçadas, aterros, limpezas de igarapés, projetos de arborização das praças e construções de pontes marcaram os esforços de saneamento do espaço urbano. Pretendia-se com isso combater a origem das doenças – os miasmas – que segundo os saberes da época proliferavam as doenças e surtos epidêmicos. Apesar desses esforços, a conjuntura patológica da cidade não se Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

modificou como o esperado e as epidemias não cessaram. Apresentamos abaixo um excerto de um relatório provincial de 1873, a respeito dos atendimentos realizados pela Enfermaria Militar, único estabelecimento hospitalar da província.

Enfermaria Militar: A sua direção marcha muito

regularmente,

aos

esforços

do

Cirugião-mór de brigada honorário, Dr João Pedro Maduro da Fonseca. No ano findo, ali estiveram em tratamento 705 doentes das seguintes classes: Praças de linha . . . . . . . . . . . . . . . 398 Corpo provisório . . . . . . . . . . . . . . 190 Armada imperial . . . . . . . . . . . . . . 102 Polícia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 Indigentes . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

Desses enfermos falleceram 16 militares e 4 indigentes. A falta de uma casa de caridade, concorre para que ali continuem a ser medicados os desvalidos. Parte do edifício destinado á Enfermaria Militar, ainda é ocupado inconvenientemente pelo corpo provisório, de maneira que não há a necessária distinção entre os enfermos das diferentes classes e moléstias.

Fonte: Relatório á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas apresentou na acta da abertura das sessões ordinarias de 1871, o presidente, Cel. José de Miranda da Silva Reis.


GNARUS- UFAM - 73 Nota-se na fala proferida pelo Dr. João Pedro Maduro da Fonseca, então Inspetor da Saúde pública a preocupação quanto à carência de instituições de saúde a fim de tratar os doentes e algo que nos chama a atenção quanto à ênfase que dá ao fato de a Enfermaria Militar receber “até os indigentes”. Ao longo da pesquisa, verificamos que o termo “indigente” é constantemente utilizado nos registros presidenciais e hospitalares. Consideramos como “indigente” a população extremamente pobre, deste modo parte integrante desta categoria seriam os membros da população indígena. Como vimos, o estado sanitário da Província do Amazonas era demasiado insalubre, epidemias faziam constantemente vítimas pela capital e interior. Febre amarela, febres intermitentes e varíola eram uma das doenças mais registradas pelas autoridades no período estudado. Socorros eram remetidos ao interior com frequência, a fim de acudir os doentes, bem como a constituição temporária de lazaretos e enfermarias aos enfermos na capital e no interior. Na falta de um hospital de caridade parte desses doentes que eram socorridos pelo Hospital Militar, repetidas vezes percebemos o descontentamento, na fala dos presidentes da província, quanto a esta situação. De modo que em 1880 seria inaugurada a Santa Casa de Misericórdia de Manaus, que passaria a cuidar dos doentes de classe social menos abastadas como os desvalidos e indigentes que necessitassem de tratamento. Por vezes esta entidade teve de ser ampliada, na medida em que suas enfermarias, com todos os leitos ocupados, não davam conta de abrigar tantos enfermos, suas despesas eram custeadas pelo governo. Com relação aos indígenas mencionados nesta pesquisa, concluímos que durante

o processo histórico brasileiro, a política indigenista que seria a política do Estado destinada às populações indígenas foi marcada pela intensa interferência do poder público articulado ou não com órgãos civis e religiosos, visando a inserção do índio à sociedade. Entretanto, ao longo dos anos, tal medida mostrou-se contraproducente em decorrência da relutância dos povos autóctones em mudar seus hábitos e sua dificuldade em se ajustar ao modo de produção capitalista. Podemos concluir por fim que no que concerne ao campo da saúde não houve nenhum conjunto de medidas que visassem especialmente o atendimento adequado a esta população. A despeito da criação da Santa Casa de Misericórdia que como vimos abrigou e cuidou de uma parcela considerável de indígenas mascarados como indigentes, bem como do Hospital de Beneficência Portuguesa que ainda de maneira modesta cedeu alguns leitos para também atender uma parcela desta população. Tais medidas, no entanto, não se configuram em políticas de atendimento especial aos indígenas, isso ocorrerá somente a partir do ano de 1910 com a criação do Serviço de Proteção ao Índio que teoricamente seria o órgão responsável pelo cuidado dos indígenas. Os tempos de segregação continuam: o caso do SPI O Serviço de Proteção ao Índio perdurou por 57 anos, partindo da década de 1910. Afirmamos que a partir da criação desse órgão, teria ocorrido uma política de atendimento especial aos indígenas. Em sua operação, o SPI não foi nenhuma utopia. Em muitos pontos, os tempos de segregação continuaram século adentro. As opostas Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020


GNARUS-UFAM - 74 visões de mundo e o etnocentrismo que têm sido uma constante na relação com os indígenas permaneceram. Essas situações do passado lançaram ao nosso presente relações de causalidade direta. Talvez a principal dessas ressonâncias seja que as intenções sempre são “nobres”, e desejam apenas “salvar” os indígenas da selvageria, sendo que é um discurso que sempre descambam em verdadeiros etnocídios. Segundo Darcy Ribeiro, a chegada dos europeus foi, para os indígenas, espantosa. Os índios logo perceberiam a hecatombe que caiu sobre eles. Na visão europeia, os índios representaram à primeira vista a inocência, uma visão edênica de um povo sem males. Apesar de estarem previamente legitimados pela bula papal a cristianizar aquele povo, eles os viram numa forma de humanidade como se fosse antes da expulsão do paraíso. Mas “nenhuma inocência conteve o europeu em sua sanha de subjugar ao cristianismo e à honra de Deus e pela prosperidade cristã”.1 Isso se expressou nas doenças trazidas e a gana por riquezas do europeu que levou a escravizarem o índio “desfez, uniformizando o recém-descoberto paraíso perdido”. Esse antagonismo permaneceria, sob nomes diversos, e sobreviveria até os nossos dias, quando os indígenas brasileiros são sacrificados em nome do agronegócio. O SPI desejou “pacificar” e “proteger” os indígenas brasileiros. Essa instituição usava de discursos sobre salvacionismo para empreender controle e capitalização do trabalho dos índios. Essa abordagem camuflada lançou mão de mecanismos sutis e justificados como “o abraço amigo do governo”. Para penetrar nessa teia de incompreensões que Ana Lúcia Vulfe Nötzold 1 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: companhia das letras, 2006. p. 41.

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e Sandor Fernando Bringmann desenvolveram suas pesquisas, em uma análise a contrapelo de fontes, para perceber as construções de sentido que transborda a realidade dos indígenas que viam os “civilizados” com suas câmeras e a palavra mágica dos séculos XIX e XX – o “Progresso”. Em primeira análise, a concepção de proteção não se referia a resguardar os territórios indígenas tradicionais, pois “estas políticas [...] estavam dentro das estratégias do SPI de construir índios “melhores”, isto é, pequenos agricultores e cidadãos obedientes, conservando e aproveitando apenas algumas poucas “virtudes” indígenas2. Seguindo essa lógica civilizatória, as novas versões de colonizadores seguem na perspectiva de pacificar e controlar esses povos autóctones segundo um regime disciplinar que lhes era estranho. Nesse ponto, os autores fazem a opção metodológica de analisar os regimes disciplinares que povoavam os redutos do SPI. Segundo a premissa de Michel Foucault, o poder disciplinar era aplicado nas instalações montadas para “pacificar” e “civilizar” os indígenas. Os conceitos de “pacificação”, “avanço da civilização” e “silvícolas x civilizados” carregam consigo uma carga de etnocentrismo indisfarçável, sendo que essa instituição governamental partia do princípio hierárquico sobre os níveis de cultura, referindo-se aos índios como opostos aos civilizados. No vídeo produzido pelo SPI sobre uma expedição ao chamado Rio das Mortes, essas terminologias são repetidas exaustivamente; é interessante apontar o tom épico que é dado pelo narrador àquelas incursões em terras indígenas, sempre adjetivando os exploradores de “bravos”, 2 NÖTZOLD, Ana Lúcia Vulfe; BRINGMANN, Sandor Fernando. O Serviço de Proteção aos Índios e os projetos de desenvolvimento dos Postos Indígenas: o Programa Pecuário e a Campanha do Trigo entre os Kaingang da IR7. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 10, Dezembro de 2013. p. 3.


GNARUS- UFAM - 75 “corajosos”, “intrépidos”. Essa narrativa deseja dar a ver a face filantrópico do órgão indigenista3. Apesar de toda a construção de uma verdade oficial, não nos faltam evidências dos ataques diretos aos modus vivendi dos índios. Raça, salvacionismo, entre outros elementos, foram usados como subterfúgios para esconder a expansão do poder do Estado e seus mecanismos. O SPI, gestado na primeira República, permaneceu até a década de sessenta porque o Estado brasileiro desejava corpos dóceis, produzindo segundo a lógica capitalista de mundo. Esse processo tem outra ressonância sombria, uma vez que selava o túmulo com o sufocamento da memória e manipulação das narrativas oficiais. O “abraço amigo” do governo federal produzira um filme mostrando as “maravilhas do progresso” entre os índios que trabalhavam no posto da IR7. Trata-se da implantação da agropecuária e da agricultura com mão de obra indígena, visando fazer desaparecer à força um modo de organização social sui generis dentro de um país que desejava inserir-se no seio de um sistema-mundo capitalista4. Esse tratamento ainda mantinha o caráter de “indigentes”, conforme discutido no tópico anterior. Cada fragmento desses vídeos apresenta discursos oficiais que queria mostrar o sucesso que eram as intervenções do SPI. A tentativa de inserção dos indígenas numa lógica de mundo “civilizada” pode ser vista desde vestimentas para crianças e adultos aos moldes dos expedicionários até o maquinário de produção em massa que era levado para o território dos índios. Por outro lado, os tão 3 FORTHMANN, Heinz. Rio das mortes. Serviço de Proteção aos Índios, 1947. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=1N7bYnxTkro&t=3s.

4 SCHULTZ, Harald. Um posto indígena da IR7. Serviço de Proteção aos Índios, 1946. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Da4TegbmjeY. VELLOZO, Nilo Oliveira. Uma visita aos nossos índios. Serviço de Proteção aos Índios, 1943. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kRyUBDrTXFA.

pregados benefícios na qualidade de vida dos donos das terras que estavam sendo invadidas não vinham. Uma lógica de trabalho regulada pelo tempo investindo a vida e os produtos não vinham para os indígenas. Quando haviam prêmios para alguns que em tese teriam produzido mais, estava uma lógica de “dividir para conquistar”, para desarticular esses indígenas enquanto grupo – clássica estratégia da colonização. Por último, essa intervenção do SPI iria também fomentar as belicosidades entre indígenas e posseiros e colonos, já que estes últimos arrogariam as terras onde os índios fincavam os seus postos. Considerações finais: algumas razões do silêncio O “destino” de que falava Darcy Ribeiro tem sido, até hoje, um estado continuado de exploração por parte dos dirigentes infiéis ao povo, ávidos pelo lucro que põe acima de qualquer outra coisa. Seja dos massacres dos primeiros dias, até a erosão das florestas e terras que persistem até hoje tanto quanto à crescente injustiça social. Como dizia Walter Benjamin, o lampejo de um passado anterior – dos tempos da colonização portuguesa – lançava uma fagulha nos séculos XIX e XX, fazendo arder novamente uma antiga fogueira cujas brasas nunca haviam se apagado. Esse salto dialético vestiria com novas roupagens o salvacionismo que outrora os Jesuítas tomaram como baluarte. Os padres, nos séculos iniciais de colonização, diziam querer salvar as almas dos nativos; agora, esses pretensos heróis brancos viriam salvar seus corpos; levar a civilização; tirá-los da barbárie; pacificá-los. Estes, assim como os padres das reduções jesuíticas, esqueceram de perguntar a visão de mundo do Outro.

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GNARUS-UFAM - 76 Da perspectiva do índio, não seria o homem branco que precisaria de salvação? “A sobrevivência ou a extinção de uma grande nação indígena” é uma questão muito mais complexa do que dava a entender o discurso oficial do SPI. A revelia de tudo isso, o grande contraste se faz presente – o fato ocorrido e a história escrita sobre ele. O sacrifício e o genocídio parecem ser preços pequenos a se pagar por aquele que veio substituir Deus por ocasião de sua morte: o Progresso. O Brasil produz apenas bens primários. Muitos recursos naturais, mas continua a colonização. As privatizações, as políticas do Estado neoliberal que favorece os interesses estrangeiros – tudo isso são as dinâmicas que afetam os indígenas no Brasil. O grau de desconfiança por parte dos que sofrem o roubo de suas terras pelo Estado atingem altos níveis, pois os indígenas possuem a consciência de que sua versão da História nunca é contada, colocada em perspectiva ou contexto. A grande mídia pega a sua imagem gravada, edita, põe uma legenda e a notícia está pronta – dando o enunciado que desejar. A perspectiva indígena é atacada por todos que não a compreendem; os lucros nunca irão para eles. As tentativas de “comprar a consciência” dos habitantes do Vale do Xingu para a construção da hidrelétrica são fortemente divulgadas, sob o discurso de diálogo pacífico. Em outras palavras, essa versão mostra um país em que o respeito pelos direitos humanos e indígenas estão na vanguarda, e até órgãos como a FUNAI aparece corroborando com esse discurso oficial. De repente, todos parecem saber o que é melhor para os indígenas melhor do que eles mesmos. O grande conflito entre o processo civilizador contínuo, marcado pelo poder despótico do capital e outras formas de Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

pensar a vida, está representado pelas reiteradas tentativas de silenciamento do líder indígena Raoni Metuktire, posicionado contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte. “Não destruímos a beleza que nos cerca”; “Nós não somos porcos”; “Eu não quero dinheiro” – são falas proferidas por indígenas durante o documentário. São evidências de uma existência desligada da lógica capitalística. Uma outra inteligência que cresce paralela à do restante da Nação. Sobre essa dimensão do movimento indígena contra a infantilização de si mesmos, Davi Kopenawa dirá que os seus saberes não são, de maneira alguma, menores; só muda a maneira de pensamento. Diz Kopenawa: “Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados”5. São dois mundos ainda em disputa, seja olhando o final do século XIX ou períodos mais próximos ao nosso presente, um padrão perturbador permanece: o poder Estatal continua tratando os indígenas como indigentes, sem preocupação com sua saúde ou cosmogonias e modos de viver.

Francisco Adriano Leal Macêdo é Mestrando em História do Brasil, PPGHB da Universidade Federal do Piauí Shirley Pereira Cardoso é Mestranda em História, PPGH da Universidade Federal do Amazonas.

5 KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro — 1 Ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2015.


GNARUS- UFAM - 77 Referências: FORTHMANN, Heinz. Rio das mortes. Serviço de Proteção aos Índios, 1947. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=1N7bYnxTkro&t=3s. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro — 1 Ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2015. NÖTZOLD, Ana Lúcia Vulfe; BRINGMANN, Sandor Fernando. O Serviço de Proteção aos Índios e os projetos de desenvolvimento dos Postos Indígenas: o Programa Pecuário e a Campanha do Trigo entre os Kaingang da IR7. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, São Leopoldo, v. 5, n. 10, p.147-166, dezembro de 2013. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: companhia das letras, 2006. SCHULTZ, Harald. Um posto indígena da IR7. Serviço de Proteção aos Índios, 1946. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=Da4TegbmjeY. VELLOZO, Nilo Oliveira. Uma visita aos nossos índios. Serviço de Proteção aos Índios, 1943. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=kRyUBDrTXFA.

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Artigo

VESTÍGIOS DE UMA SOCIEDADE: A NECRÓPOLE DE MIRACANGUERA EM ITACOATIARA Por Paulo César Marques Holanda e Cristiano da Silva Paiva

RESUMO: A necrópole de Miracauera (Itacoatiara – AM) está localizada às margens do Rio Paraná da Trindade. Os cablocos que moram na região sempre se mantiveram em uma organização social para a manutenção da memória da cerâmica ali encontrada. Para o desenvolvimento desta pesquisa, realizou-se primeiramente um levantamento de informações bibliográficas que se mostrou desafiante e gerou maior familiaridade com a problemática, em áreas como arqueologia, antropologia da arte, etnologia e órgãos oficiais como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Os demais dados trabalhados foram coletados em trabalho de campo à comunidade próxima da Costa do Miracauera. Conhecer outra cultura, e no caso específico a indígena, possibilitou visualizar aquilo que foi exposto em sala de aula sobre geografia cultural, espaço e cultura material, algo que na vida desses povos é cotidiano, mas para muitos em nossa sociedade se torna utópico. O que poderia possibilitar a nós (ocidentais modernos) um modo específico e outro ponto de vista para pensar nossa sociedade. Os estudos sobre sociedades indígenas têm demonstrado a ineficácia da aplicação de conceitos ou de categorias exteriores a elas. Assumindo esta postura, abrimos as portas para o diálogo entre nossa cultura (do investigador) e a cultura que pretendemos compreender. Palavras Chaves: cerâmica indígena; cultura; etnoarqueologia.

Introdução

A

cerâmica apresenta formas estilísticas e funcionais variadas dentre os povos indígenas brasileiros e representa um universo de produção que inclui diferentes períodos históricos. Seu desenvolvimento ocorre com técnicas diferenciadas de produção e complexidade, desde a coleta de matéria-prima até os polidores feitos de sementes ou pedras. Um ofício totalmente manual e realizado em sua maioria, apenas por mulheres, transmitido de geração em geração. Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

A necrópole de Miracauera (Itacoatiara – AM) está localizada às margens do Rio Paraná da Trindade. Os cablocos que moram na região sempre se mantiveram em uma organização social para a manutenção da memória da cerâmica ali encontrada. Por isso, esta pesquisa adentrou no universo cerâmico pelo viés da geografia cultural, antropologia da arte e etnoarqueologia. Entendemos que a arte torna-se plataforma para expressões complexas e profundas no pensar, essa necessidade segundo Geertz (1997), surge em vários outros segmentos da cultura: na religião, na moralidade, na ciência,


GNARUS- UFAM - 79 no comércio, na tecnologia, na política, nas formas de lazer, no direito e até na forma em que organizam sua vida prática e cotidiana. Nesse sentido, o presente trabalho objetiva entender a cerâmica indígena encontrada em Miracauera, e sua importância para os povos que habitam a Amazônia. Em trabalho de campo foi possível verificar a riqueza histórico-cultural, além da diversidade físiconatural. Este proporcionou a oportunidade de vivenciarmos, na prática, as relações entre o espaço da natureza e o espaço construído ao longo do percurso. No ensinar e aprender das ciências humanas é importante trabalhar com o espaço concreto para melhor assimilação do conteúdo trabalhado na disciplina. O “ver, tocar, sentir” o espaço presente mobiliza as sensações e percepções, no processo da construção dos conceitos geográficos. Realizando o estudo do meio, fez-se a leitura do espaço geográfico e a sua dinâmica, proporcionando a articulação entre a teoria e a prática.

Materiais e Métodos Para o desenvolvimento desta pesquisa, realizou-se primeiramente um levantamento de informações bibliográficas que se mostrou desafiante e gerou maior familiaridade com a problemática em áreas como arqueologia, antropologia da arte, etnologia e órgãos oficiais como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Os demais dados trabalhados foram coletados em trabalho de campo na comunidade próxima da Costa do Miracauera. Este teve saída no dia 29 de abril na Praça da Saudade, centro de Manaus e mais 10 paradas ao longo dos dias foram feitas, se dividindo entre os modais terrestres e fluviais. Foi

utilizada câmera fotográfica, caderno de campo como elemento essencial da pesquisa, no qual permitia as anotações ao longo do trajeto. Assim como as observações de especificidades da área da necrópole. Resultado e Discussões A Importância da Memória e Cultura Cerâmica O fazer cerâmico é compreendido pelos registros orais e não é tarefa comum a todas as etnias indígenas, possuindo diferentes formas para cada local, explicitando a riqueza e diversidade cultural presente dentre estes povos. Ribeiro (1987) afirma que só na arte cerâmica a criatividade indígena encontra materiais capazes de conservar-se sob quaisquer condições. Perpetuando este ofício como campo específico da cultura material, onde constatamos uma produção rica em detalhes, exuberante em cores e nas mais diversas formas. Uma das áreas que se dedica a cultura material é a etnoarqueologia, esta oferece diferentes meios para que se possa interpretar o registro arqueológico, referenciando todo o contexto etnográfico, a produção, padrões e utilização da cultura material. Constituindose como fonte valiosa de evidências para levantamentos etnográficos de povos e sua relação intríseca para com seus materiais. Silva (2000) afirma que essa abordagem proporciona estudos sobre os padrões de subsistência e assentamento, produção e utilização da cutlura material. Estas questões são relevantes para estudiosos de todo o continente americano e tornaram-se básicas na arqueologia amazônica. O levantamento bibliográfico acerca desta produção mostrou que há poucos trabalhos referentes à cultura material. De acordo com Lima (1987), é essencial o esforço de reconstituição das culturas, utilizando elementos da cultura Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020


GNARUS-UFAM - 80 material que por muitos é considerada uma temática pouco nobre. Segundo a autora:

A Cerâmica da Costa do Miracauera – Paraná da Trindade (Itacoatiara/Am)

Em trabalhos mais recentes, vimos assistindo à retomada do interesse pela cultura material, agora não mais calcado nos antigos propósitos evolucionistas e difusionistas dos primórdios da Antropologia, mas sim no reconhecimento do objeto como a materialização do comportamento dos membros de uma determinada sociedade, comprometido com o entendimento das culturas na sua totalidade1.

A formação do Miracauera, localizado no Paraná da Trindade tem origem indígena. Essa terminologia significa, segundo Stradelli (1929, p. 527), “mira = gente, nação, povo; cauera = osso, ossada; Mira-cuéra = mortos; Mira can-uéra = osso de gente; Mira can-uératyua = cemitério, lugar de ossos de gente”. Na etimologia tupy significa “onde tem osso de gente”, no caso um cemitério.

Entendemos que os objetos e tecnologias adquiriram a capacidade de se transmutarem em elementos variados, adequando-se ao cotidiano e ao ritual entre os povos. A etnografia de Barcelos Neto (2004) enfatiza as relações sociais que os índios Wauja, do Alto Xingu, estabelecem com os seres da alteridade e a produção material. O autor explora essas relações entre humanos e nãohumanos (os apapaatai), refletindo sobre a posição que a arte ocupa nesse panorama. Em outras palavras, a cerâmica constitui uma relação entre lugar e espaço, o espaço é o movimento, e espaços possuem suas próprias memórias.

Esta explicação e relação com a terminologia se deve ao fato que, durante o campo foram encontrados fragmentos de cerâmicas (figuras 01 e 02) em um dos terrenos percorridos. Além disto, há no local, a presença de numerosas manchas de solos pretos, de cor cinza escuro, somada com a riqueza de cacos de cerâmica, os quais apontam haver existido ali uma ocupação indígena.

Os objetos deste modo são mediadores entre domínios distintos, aproximando o mundo animado do inanimado, e fortalecendo sua importância como representação artística destes povos. Van Velthem (2003), ao pesquisar os Wayana, observa que a ordem cósmica é considerada como parte da ordem social, onde a estética está ligada ao universo cosmológico, cuja lógica é partilhada pela produtora e pelo grupo receptor. A análise da cosmologia, dos mitos destas sociedades, propõe que ideias já consolidadas na nossa cultura sejam submetidas a análises e a rigorosas críticas. 1 LIMA, 1987, p. 173

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Figura 01 e 02: Vestígios arqueológicos de cerâmicas na Costa do Miracauera. Fonte: PAIVA, C.S.2017.


GNARUS- UFAM - 81 De fato, é uma área que foi ocupada por indígenas, como destacado. Existem relatos de Barbosa Rodrigues em 1982 que atestam e descreve esta região como a necrópole do Mirakanguéra. Como pode se observar nos escritos de Rodrigues: Designam por esse nome, que quer dizer osso de gente que existiu, de mira, gente, kang, osso e kuera, que existiu, o terreno que ha seculos foi um extenso cemiterio de uma grande população que habitou nas proximidades, por dilatados annos. Occupa este cemiterio, verdadeira necropole, um espaço ao longo da costa, de mais de meio kilometro, e pelo interior se estende a grande distancia, fóra o que tem sido arrebatado pelas aguas; facilmente se distinguem seus vestigios a dous metros abaixo da superfície do solo e a seis ou oito acima das aguas, no tempo da vasante. Desde a boca do Arauató até S. José do Amatary, todo o terreno è levado annualmente pelas aguas do rio Amazonas, que o excava, fazendo com que as terras desabem, levando comsigo não só arvores da floresta primitiva, como a matta de nova apparição e os cacaoaes que estão ahi hoje plantados. A’ custa dessas terras vaise alargando o paranã e augmentando-se a ponta da ilha da Benta2.

geométricos, além da decoração plástica que destacava detalhes específicos, tais como seres humanos sentados e com as pernas representadas3.

A principal riqueza arqueológica do Brasil, sem dúvida é a cerâmica indígena. A pesquisa e a divulgação do assunto na Amazônia – sobretudo em nosso Estado – são quase nulas. Inexistem referências sobre os vasos da necrópole indígena de Miracauera – que significa “osso de gente que existiu”. Para Silva (2013) (apud JOBIM, 1948), Miracauera, “na sua mudez álgida, reflete os vestígios da extinta raça dos Aroaqui, e da civilização que ela trouxe, e não a obra de uma civilização estrangeira pré-histórica”. E Silva (2013) também cita que o zoólogo suíço Emílio Goeldi (1859-1917) escreve: “Até hoje uma só voz se levantou, declarando positivamente que os construtores dos aterros sepulcrais de Marajó não são pré-históricos, que foram os Nheengaíbas, um ramo colateral dos Aroaqui. Foi Barbosa Rodrigues que chegou a este resultado pelo estudo comparativo da cerâmica funerária de Miracauera (Serpa), no vale amazônico”.

No museu Nacional da UFRJ é possível encontrar algumas urnas funerárias (figura 02) recuperadas e guardadas em seu acervo. Eles descrevem que: (...) foram recuperados diferentes tipos de urnas funerárias e outros vasilhames relacionados aos rituais fúnebres. Os corpos eram cremados e as cinzas guardadas nessas urnas que tinham bojo, gargalo e tampa. Havia peças mais elaboradas, certamente para pessoas de posição elevada dentro do grupo. A cerâmica do sítio de Micarangüer (posteriormente denominada de fase Guarita) recebia um banho de tabatinga (tipo de argila com material orgânico) e eventualmente uma pintura com motivos 2 RODRIGUES, 1892, p. 2

Figura 03: Urnas funerárias miracanguera com restos humanos cremados. Fonte: Museu Nacional. Disponível em: <http://museunacional.ufrj.br/guiaMN/ Guia/paginas/7/miracanguera.htm>. Acesso em: 15/07/2017 3 Site do Museu nacional, 2018. Disponível em: < http:// www.museunacional.ufrj.br/guiaMN/Guia/paginas/7/ miracanguera.htm>

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GNARUS-UFAM - 82 Barbosa Rodrigues também notou que o sítio arqueológico era voltado para a direção do nascer do Sol (Leste). Ele encontrou muita dificuldade para identificar a tribo responsável por aquelas obras de arte, já que as tribos da região não possuíam cerâmicas tão evoluídas quanto aquelas. Dada a complexidade das cerâmicas, Rodrigues avançou em seus estudos em seu artigo Antiguidades do Amazonas: A necrópole de Mirakangüéra (1892a), avança na descrição das vasilhas, na análise funcional e na interpretação do significado etnográfico. Ele também dividiu as vasilhas em oito classes funcionais: 1) Iukaçauas; 2) Kanguera reru; 3) Kamuci; 4) Kamuci uaçu; 5) Yaraki-çaua; 6) Kanguera-çaua; 7) Dauitibá; 8) Tykuçaua. É possível observar a divisão e a descrição no quadro abaixo em que foi possível adaptar do livro citado no parágrafo anterior.

Tabela 01: Classes funcionais das vasilhas. Fonte: BARBOSA RODRIGUES, 1892. Adaptado por PAIVA, C.S., 2017. Nº. de Nomenclatura Descrição Ref 1ª Iukaçauas ou as que encerravam osurnas ossuar- sadas completas, sem ias terem sido levadas ao fogo e que em baixo relevo representam diferentes partes de uma figura humana com indicação de sexo. 2ª Kanguera reru as que guardavam ou urnas ossu- ossadas queimadas arias e partidas, algumas semelhantes às primeiras e outras sem indicar forma alguma humana e destituída de relevos

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Kamuci ou urnas cinerarias

Kamuci uacu

Yaraki-çaua ou taça das libações

Kanguera-çaua ou taças cinerarias

Dauitibá (ou panellas votivas)

Tykuçaua

as que continham o pó e as cinzas das ossadas. Estas urnas têm a forma de um pote e raras vezes têm indícios de partes do corpo humano o grande pote no qual dissolviam a tinta e misturavam o pó e as cinzas dos ossos com forma de panelas mais ou menos ornadas, algumas com emblemas zoomorfos, em relevo em que se derramava a tinta incinerada. São ornadas com emblemas antropomorfos e zoomorfos em que depositavam os viveres para o morto. Ornadas de desenhos, por gravura ou pintura e de emblemas zoomorphos e alguns antroporaorphos espécie de hydria dos gregos, que servia para derramar a tinta nas kangueraçauas

Após a descrição das vasilhas e urnas, Barbosa Rodrigues procedeu aos desenhos como poder observado nas figuras 03 e 04. Com isto, é possível relacioná-las às descrições da tabela acima o desenho, forma e estrutura. Após o destaque para a Necrópole do Miracauera, é possível destacar os modos de vida da população ribeirinha presente neste terreno. Como se sabe, na Amazônia seus habitantes tentam preservar sua cultura, apesar da desestruturação provocada pelo capital, como ocorreu e ocorre em várias regiões brasileiras.


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Figuras 04 e 05: Cerâmicas da necrópole do Miracauera Fonte: Legado Universal. Disponível em: < http://legadouniversal.com.br/o-povo-perdido-daamazonia/> Acesso em: 15-07-2017. Relação Homem e Cerâmica As grandes questões humanas sobrevivem nas obras, é por meio delas que se conhecem os valores e saberes de outros povos, e é na obra que aparecem as sobrevivências, atemporais e que ressurgem. A relação observada entre homem e matéria não se limita apenas ao reconhecimento de peso, cheiro, gosto, dureza, fragilidade, etc. Esta relação está baseada em simbolismos e subjetividades que residem na capacidade humana de estabelecer associações entre eventos e “coisas”. Sendo simbólicas e alegóricas remetendo-nos à vivência de um povo, e encorajando os homens a tomar posse do seu papel nessa história. Seeger (1980) interpreta a cultura material como parte importante da vida das pessoas. O que elas fazem, decoram e usam são parte integrante de sua cultura. Ignorar essas coisas é um erro tão grande quanto concentrar-se somente nelas. O pesquisador em campo, por sua vez, deve ter preocupação com o detalhamento das cadeias operatórias de produção e descrever sucintamente todas as fases do processo, até seu uso e descarte

final. A argila é marcante por sua utilidade e potencialidade expressiva, possuindo a dualidade de servir as necessidades materiais assim como as espirituais de muitos povos. Segundo Gould4 “não podemos entender a pesquisa etnoarqueológica como formulação de analogias concretas e diretas em relação aos dados etnográficos, pois nem sempre, possuem correlatos arqueológicos ou até mesmo a própria visibilidade arqueológica é precária”. O mesmo defende a ideia de que as interpretações de registros arqueológicos deveriam ser feitas em conjunto com outros modelos interpretativos. Tendo em vista a construção da pesquisa em parceria com campos distintos. Em sua pesquisa dentre os Asuriní, Silva5 “registra que em sua permanência de campo (setembro, outubro e novembro de 1997) contou 223 vasilhas em toda a aldeia. Fazendo a média de distribuição, seria obtido um total de 14 vasilhames por unidade doméstica”. Dado que nos revela a ampla conexão deste material dentre os indivíduos de povos 4 GOULD, 1974, p. 15 5 SILVA, 2000, p. 112

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GNARUS-UFAM - 84 tradicionais, seja por razões de ordem estética ou simbólica. No processo do fazer com a argila, o corpo precisa estar em ação. Não somente o corpo possui relação com a cerâmica, como também o mito. Este surge com o sentido da verdade e é detentor de conceitos morais e filosóficos, além de ser revelação da origem das coisas. Para grande parte das sociedades indígenas da América a cerâmica surge do combate entre as forças do céu e da terra, com que o homem, acaba sendo beneficiado. Lévi-Strauss (1986) ressalta que:

A ideia de que o oleiro ou a oleira, e os produtos da sua indústria, têm um papel de mediadores entre as forças celestes de um lado e as terrestres, aquáticas ou octonianas, por outro, faz parte de uma cosmografia que não é exclusiva da América6.

Observa-se que em praticamente todas as culturas, o ser humano, propiciou em suas relações com a terra diversas formas de trabalhar a argila, seja na construção ou na técnica da modelagem. Um mundo com culturas tão diferentes, mas que possuem semelhança em dar forma à argila, seja com materiais, formas ou funções da cerâmica. A ceramista munida da matéria-prima se vê facilitada no trajeto de exploração do seu imaginário consciente ou inconsciente. Sendo a cerâmica, fruto de uma sincronizada harmonia entre dois corpos distintos e ao mesmo tempo complementares.

Conclusão As contradições, totalidades e as articulações que ocorrem na relação sociedade e materialidade, e o modo como 6 STRAUSS, 1986, p. 107

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essas contradições são contempladas pelo pensamento científico evidenciam uma necessidade de alargar as bases da produção do conhecimento voltadas para essa questão. A relação sociedade e materialidade bem como todo saber e todo conhecimento sobre o mundo e sobre as coisas há muito tempo tem estado condicionado pelos contextos históricos, ecológicos, culturais, geográficos nos quais se produz e reproduz as variações da formação social. É precisamente na contradição entre adesão e recusa da violência presente no momento do contato interétnico, que se encontra o que Oliveira (2015) chama de subversão mitológica da história. Pois o envolvimento com as coisas se transformou, na medida em que o caminho para virar homem branco tornou-se parte do cotidiano desses povos. Conhecer outra cultura, e no caso específico a indígena, possibilitou visualizar aquilo que foi exposto em sala de aula sobre geografia cultural, espaço e cultura material, algo que na vida desses povos é cotidiano, mas para muitos em nossa sociedade se torna utópico. O que poderia possibilitar a nós (ocidentais modernos) um modo específico e outro ponto de vista para pensar nossa sociedade. A Amazônia é (re)conhecida internacionalmente por suas paisagens exuberantes e continentais, nas quais o homem configura como parte indissociável, quase imobilizado no âmago da natureza, como se fosse possível a existência no mundo contemporâneo de uma natureza intocada. Neste processo, a história do homem na Amazônia é marcada por silêncios e ausências que acentuam a sua relativa invisibilidade e velam os traços configurativos da sua identidade. Desse modo, adentrar o universo identitário dos povos amazônicos implica


GNARUS- UFAM - 85 considerar um mundo de ambiguidades, trata-se de percorrer caminhos que se cruzam e se contrapõem, mascaram diferenciações sociais que têm entravado processos de emancipação social e política. Os estudos sobre sociedades indígenas têm demonstrado a ineficácia da aplicação de conceitos ou de categorias exteriores a elas. Assumindo esta postura, abrimos as portas para o diálogo entre nossa cultura (do investigador) e a cultura que pretendemos compreender. Ressalta-se também ser necessário que haja outras discussões sobre esta temática, uma vez que para o avanço da ciência é necessário o surgimento de questionamentos e problematizações. Paulo César Marques Holanda é Mestrando no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas na Universidade do Estado do Amazonas Cristiano da Silva Paiva é Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Amazonas

Referências BARBOSA RODRIGUES, J. 1892a. Antiguidades do Amazonas. A necrópole de Mirakangüéra. Vellosia. Contribuições do Museu Botânico do Amazonas (Arqueologia e Paleontologia, 1885-1888) 2: 1-40.

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GNARUS-UFAM - 86

Artigo

A QUESTÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL E A LUTA PELA TERRA: UMA BREVE DISCUSSÃO HISTORIOGRÁFICA Por Gabriel Cruz Carneiro e Yannara Moreira Gomes RESUMO: Não se pode discutir quaisquer questões referentes aos conflitos sobre a terra sem antes buscar dar voz ao protagonismo do camponês nesses espaços de lutas, e nesse sentido, se faz necessária uma discussão que remonte os vários momentos de conflitos e resistências na história do país na tentativa de tornar claro o quão longínqua se faz a história das disputas de sangue pela terra no Brasil, e nesse sentido, o presente artigo busca construir um panorama geral que percorre do início da colonização do que viria a ser Brasil, até os anos da ditadura, tendo esse limite temporal sido escolhido por conta do período republicano em seu nascimento e com incidência maior no contexto do governo militar, o grande marco temporal da longa duração das sangrentas lutas e das firmes resistências camponesas em relação as disputas de terra, servindo também esse recorte-fim como forma proposta de trazer uma base historiográfica as discussões mais contemporâneas acerca do tema, objetivando fomentar, a partir dos diversos trabalhos evocados, terreno para um debate atual, mas também de séculos, acerca dos conflitos pela terra, menos na tentativa de esgotar as questões a serem discutidas e mais na busca por uma abertura de espaços de diálogo. Partindo desta problemática, reunimos os trabalhos de diversos autores que discutem historicamente a questão fundiária no Brasil, desde o início da colonização portuguesa até os anos de repressão levados a cabo pela Ditadura Civil-Militar, em que nós, a partir destes primorosos trabalhos, buscamos privilegiar as ações de resistência camponesa, como as articulações sindicais, ou ações de guerrilha, presentes já no período republicano, mas também os conflitos e as políticas centralizadoras e elitistas em todo o processo histórico brasileiro. Palavras Chaves: latifúndio, concentração de terras, camponês, trabalhador.

Da Chegada Portuguesa à Ditadura: Uma Breve Discussão

A

questão da terra no Brasil é uma problemática que existe desde antes do território ter essa nomenclatura, começou precisamente com a chegada dos portugueses naquele que seria um “Novo Continente” e não deixou de existir até os dias de hoje, como José Luiz Alcantara Filho e Rosa Maria Oliveira Fontes pontuam em seu artigo chamado “A formação da propriedade e a concentração de terras no Brasil1”, em que “o Brasil está entre 1 ALCÂNTARA FILHO; FONTES, 2009, p. 64

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os países mais desiguais do mundo, [...] por todo o território brasileiro é possível identificar grandes disparidades sociais, dentre elas na distribuição de renda e de terra2. A terra foi e ainda é grande motivo de lutas e de mortes por todo o solo brasileiro e nesse sentido Lucas Guedes Vilas Boas comenta em seu “Considerações sobre a concentração fundiária no Brasil” em que essa [...] concentração de terras reverbera em inúmeros processos, como a migração cam2 FILHO, José Luiz Alcantara; FONTES, Rosa Maria Oliveira. A formação da propriedade e a concentração de terras no Brasil. Revista de História Econômica & Economia Regional Aplicada, [S. l.], 2009, p. 64.


GNARUS- UFAM - 87 po-cidade e a especulação fundiária. A violên-

dividiu todo o território brasileiro per-

cia no campo é uma mazela da sociedade

tencente a Portugal em faixas, que foram

brasileira, uma vez que vários camponeses

entregues para a administração de pessoas

são assassinados todos os anos na luta pela

próximas ao rei ou de membros da nobreza

terra e por melhores condições de vida e tra-

lusitana. Os donatários “possuíam o direito

balho, sobretudo no Norte e Nordeste, as

de nomear autoridades jurídicas ou adminis-

quais apresentam os maiores índices de con-

trativas e de instituir um sistema tributário

centração do país.3

em sua capitania.”6

Os problemas em relação à terra no Brasil são [...] reflexos da construção histórica da formação da propriedade. Essa herança provém da própria dinâmica de funcionamento da colônia e das leis vigentes nesse período, as quais introduziram disparidades

Essas capitanias dividiram o Brasil em 15 extensões de terras que se tornaram propriedades dos fidalgos, tendo como uma herança o sistema de coronelismo implantado posteriormente no Brasil, e constitui o que comentam Rosaly Rocha e José Cabral no artigo “Aspectos históricos da questão agrária no Brasil” em que

na distribuição de terras e, posteriormente, na concepção mercadológica da terra4.

A situação da terra como objeto de lutas e repressão por parte do Estado começou a com chegada do colonizador lusitano, que chegara a um lugar em que não existia a lógica da terra como propriedade, sendo naquele contexto usada como bem público, de uso livre pelos nativos, mas com a chegada portuguesa e do seu estabelecimento naquele território, a Coroa Portuguesa acabou por reivindicar para si o controle daquelas terras, e com o objetivo de controlar a maior área possível de território e impedir invasões estrangeiras, sobretudo inglesas e holandesas, o futuro Brasil acabou por se tornar “[...] palco de uma intensa concentração fundiária, que se principiou com a constituição das capitanias hereditárias”5, e nesse contexto, o então rei Dom João III

a estrutura fundiária brasileira de grande propriedade formou-se a partir daí. Os grandes latifúndios escravistas são resultados desta distribuição desigual de terra iniciada com a colonização brasileira. “[...] O campo brasileiro é resultado deste processo histórico que culminou em um campo desigual.”7

Percebendo os diversos problemas que essa organização de uso da terra criara, como ofensivas indígenas, o alto custo do controle de longas extensões de terra e o baixo retorno financeiro foi instituído o sistema de sesmarias no Brasil, sendo essa uma concessão de terra que o capitão donatário dava a uma pessoa de sua confiança (geralmente da nobreza), para que gerisse e cuidasse da gleba por certo período. O indivíduo que recebia a concessão da sesmaria deveria cumprir determinadas condições,

3 BOAS, Lucas Guedes Vilas. Considerações sobre a concentração fundiária no Brasil. Revista Eletrônica Geoaraguaia, Barra do Garças, 2018, p. 33. 4 FILHO; FONTES, op cit., p. 64. 5 BOAS, op cit., p. 34.

6

Ibidem, p. 34.

7 ROCHA, Rosaly Justiniano de Souza; CABRAL, José Pedro Cabrera. Aspectos Históricos da Questão Agrária no Brasil. Revista Produção Acadêmica. Tocantins, ju. 2016. p. 76

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GNARUS-UFAM - 88 como pagamento do dízimo, o cultivo da terra num prazo máximo de um quinquênio, entre outras. No Brasil, as sesmarias foram utilizadas principalmente para o plantation da cana-de-açúcar, sobretudo no litoral nor-

mas com o declínio da escravidão principalmente pelo fim do tráfico negreiro, e dos passos dados a abolição da escravatura, as relações acabaram por se modificarem para o uso de uma mão-de-obra assalariada.

destino, onde eram construídos os afamados engenhos e havia segregação espacial entre a casa-grande e a senzala8.

A plantation seria um modelo baseado na monocultura, nas grandes extensões de latifúndio e na exportação das espécies cultivadas, [...] essas unidades de produção adotavam modernas técnicas, ou seja, apesar de utilizarem a força de trabalho da mão de

Até esse momento, a questão da terra esteve atrelada ao controle do Estado português, sendo os territórios de posse estatal e cedidos a nobres para o uso e controle, já a partir de 1850, como a Lei de Terras, a terra passara a ser transformada em mercadoria, rompendo com o sistema de sesmarias, o que acabou por privilegiar as elites e oligarquias agrárias já constituídas no país, quando na resolução da Lei

obra escrava, do ponto de vista dos meios de

seus artigos afirmavam que quem já pos-

produção, das técnicas de produção, os euro-

suísse um pedaço de terra, ganharia o doc-

peus adotaram o que havia de mais avança-

umento de sua posse, e que as terras sem

do .

proprietários, doravante a efetivação da

9

Rocha e Cabral comentam sobre as sesmarias dizendo que esse sistema de doação “[...] ocasionou a formação das grandes propriedades com a configuração do sistema do latifúndio brasileiro [...] e não favoreceu a pequena propriedade. E sem a pequena propriedade, o latifúndio constituiu a unidade econômica básica da colônia. ”10 Ou seja, o contexto da concentração de terras e da segregação das classes baixas da sociedade já se construiu no raiar da colonização, em que o controle do Estado em favor da elite nobre (mais tarde elite burguesa) se tornou o modus operandi de toda a história brasileira posterior a chegada dos portugueses. As relações de trabalho usavam dos preceitos étnicos em que o escravo, negro, era tratado como mercadoria e força de trabalho,

lei, pertenciam ao Estado brasileiro. Deste modo, a terra só poderia ser obtida por meio de compra, troca ou por doação estatal, beneficiando os latifundiários11.

Em teoria, com a Lei da Terra, “qualquer cidadão brasileiro poderia se transformar em proprietário privado de terras, [porém] para ocorrer o direito à propriedade era necessário pagar certo valor a coroa.”12. É importante notar o que está atrelado a essa nova forma de organização sobre a terra, agora sendo tratada como mercadoria, e nesse sentido a Lei da Terra era o casamento do capital com a propriedade privada, com uma intenção implícita de evitar que o ex-escravo, agora livre, e o imigrante chegado ao país, adquirissem o acesso à terra, perpetuando então a desigualdade social e fundiária que, de forma amálgama, privilegiara as elites. Falou-se do fim da es-

9 Ibidem, p. 35.

11BOAS, Lucas Guedes Vilas. Considerações sobre a concentração fundiária no Brasil. Revista Eletrônica Geoaraguaia, Barra do Garças, 2018, p. 36.

10 ROCHA; CABRAL, op cit, p. 77.

12 Ibidem, p. 77.

8 Ibidem, p. 35.

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GNARUS- UFAM - 89 cravidão, mas a exploração para o cultivo da terra continua presente, e uma das formas de uso exploratório da força de trabalho desenvolvidas nesse novo contexto era o aviamento, que funcionava com o

do, como Bernardo Fernandes comenta em seu artigo “Brasil: 500 anos de luta pela terra”, em que “a luta pela liberdade desdobrara, igualmente, na luta pela terra.”14 E seguindo o debate de Fernandes, este comenta que

trabalhador – quase sempre impelido a

[...] os ex-senhores de escravos trans-

este trabalho pelas deletérias condições de

formados em senhores da terra passaram

vida em que se encontra – recebe adiantam-

a grilar a terra. E para construírem a trama

ento da Casa Aviadora, que funciona como

que dominaria as terras do Brasil, explor-

uma espécie de intermediário entre o peão

aram os trabalhadores. Estes transformaram

(seringueiro) e o exportador. Como não

florestas em fazendas de café ou de gado,

consegue quitar o empréstimo, permanece

mas foram expropriados, expulsos, sempre

num regime praticamente escravocrata,

sem-terra. Assim, nasceu o posseiro, aquele

tendo que trabalhar até conseguir saldar

que possuindo a terra, não tem o seu domí-

a dívida, algo que muitas vezes não acon-

nio. A posse era fruto do trabalho e o domí-

tece .

nio era resultado do poder15.

13

Esse sistema, que ainda funciona nos dias de hoje, é em si uma espécie de escravidão contemporânea, quando além desse sistema de endividamento (que por si só já se caracteriza como uma prática desumana), era também (e continua sendo) perpetuado por uma violenta coerção e opressão dos trabalhadores. Nesse sentido, pode-se afirmar que a escravidão deu lugar ao cativeiro, quando os funcionários eram submetidos a jornadas de trabalho quase intermináveis, como forma de impedir que os trabalhadores livres deixassem de fornecer força de trabalho constante aos grandes fazendeiros, e como sendo o Brasil até meados do século XX um país majoritariamente agrário, o emprego se encontrava quase que somente no campo. Com declínio da escravidão, aqueles antes escravos eram forçados a regimes de trabalho exaustivos, que agora livre, eram obrigados a vender sua força de trabalho aos senhores de terra dentro desse regime agora capitalista que monopolizava a terra. Os homens eram livres, a terra tornou-se cativa, e nesse senti13 Ibidem, p. 37.

Na República Velha, muitos conflitos sobre a terra aconteceram no Brasil, seria o que Bernardo Fernandes coloca como a “guerra contra os camponeses”, e um desses conflitos que marcaram a história do país fora a Guerra de Canudos (1896 – 1897) cuja memória se faz enormemente presente quando se discute lutas de terras, sendo um dos maiores exemplos de resistência camponesa do Brasil, quando Os camponeses sem-terra acamparam na fazenda Canudos em 1893 e passaram a chamar o lugar de Belo Monte. A organização econômica se realizava por meio do trabalho cooperado, o que foi essencial para a reprodução da comunidade. Todos tinham direito à terra e desenvolviam a produção familiar, “garantindo um fundo comum para uma parcela da população, especialmente os velhos e desvalidos, que não tinham como subsistir dignamente”16. 14 FERNANDES, Bernardo Muçano. Brasil: 500 anos de luta pela terra. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. 2 jun 2014. p. 2. 15 FERNANDES, Bernardo Muçano, jun 2014. p. 2 16 Ibidem, p. 3.

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GNARUS-UFAM - 90 É possível perceber uma organização comunitária funcional nas dinâmicas de vivência em Belo Monte, porém, os “rebeldes” canudos, foram tratados “reacionários”, “fanáticos”, subversivos da República, então para o Estado e para os grupos latifundiários, em que “derrotar Canudos significava mais força política entre militares e civis”17. Sendo Canudos o conflito, ou mais precisamente, o massacre, mais sangrento da história do Brasil. Já no século XX, semelhante a Canudos, teve o Contestado, revolta ocorrida no Paraná e em Santa Catarina entre 1912 e 1916, em que ao serem expulsos de suas terras por conta de uma concessão do Estado daquelas áreas para a construção de uma ferrovia que ligaria São Paulo e Rio Grande do Sul, os camponeses daquela área criaram resistência, sofrendo enorme repressão por parte das forças do Estado e da polícia.

cultura”, como uma “[...] frente do autoritarismo para aumentar a sua área de manobra, representou analogicamente a tentativa de agir sobre a terra onde não se havia estabelecido a grande propriedade tradicional.”19 Atrelada a essa perspectiva temos também a discussão que levanta Matheus Arrais em seu “A Marcha para o Oeste e o Estado Novo: A conquista dos sertões” em que o Estado “estabelecia como meta estratégica para a segurança nacional ume efetivo controle sob povo e território [...] a partir do povoamento para o interior.”20 O que, de forma mais clara, seria a expansão do sistema latifundiário, marcado pela baixa produtividade e pela cada vez mais alargada concentração de terras. Vilas Boas comenta que neste contexto, os principais fatores que contribuíram com a Marcha para o Oeste foram os projetos e incentivos governamen-

Indo ao contexto do Estado Novo, governo de Getúlio Vargas, foi instituída uma política de expansão chamada “Marcha para o Oeste”, com o discurso de que era preciso “integrar para não entregar”, em que o processo fora

tais à migração para os estados do Norte e do Centro-Oeste, com doações de terras e incentivos financeiros; a mudança de desempregados vindos do Nordeste e do Sudeste, que buscavam melhores condições de vida e; a ampliação de terras de agricultores paulistas, que já não encontravam mais espaço

marcado pela migração de trabalhadores para a região Norte e Centro-Oeste do país,

livre em São Paulo para aplicarem seu capital e expandirem suas lavouras21.

como forma de povoá-las e de integrar as regiões nacionais. A época julgava-se fundamental ocupar todo o território e integrá-lo, como forma de dificultar possíveis invasões de exércitos inimigos.18

A funcionalidade da Marcha é claramente uma forma de expansão dos territórios cultiváveis, a partir da necessidade de novas terras, agindo, como Otavio Guilherme Velho (1982, p.59) expõe no livro “Sociedade e Agri-

O governo precisava justificar o projeto da Marcha, e para isso fez uso da ferramenta de ressaltar um espírito nacionalista que tinha por objetivo integrar a pátria e superar o subdesenvolvimento. Em seu trabalho, Matheus Arrais apresenta um fragmento do discurso de Getúlio Vargas em 1938 acerca da Ordem e 19 VELHO, Otavio Guilherme. Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

17 Ibidem, p. 3.

20 ARRAIS, Matheus Eurich. A Marcha para o Oeste e o Estado Novo: A conquista dos sertões. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade de Brasília, 2016. P. 4-5.

18 Ibidem, p. 38.

21 Ibidem, p. 39.

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GNARUS- UFAM - 91 do Progresso em que o presidente diz:

“arrendatários”, “colonos”, “moradores” e “pequenos produtores”23

Um país não é apenas uma aglomeração de indivíduos em território, mas é, principalmente, uma unidade de raça, uma unidade de língua, uma unidade de pensamento. Para se atingir esse ideal supremo, é necessário, por conseguinte, que todos caminhem juntos em uma prodigiosa ascensão [...] para a prosperidade e para a grandeza do Brasil.22

Nesse sentido, o governo procurou mascarar os problemas do campo, criando uma ilusão utópica de somente qualidades no sertão, apagando as heterogeneidades e os problemas no campo.

Clifford Andrew Welch, em: “Movimentos Sociais no campo até o Golpe Militar de 1964: a literatura sobre as lutas e resistências dos trabalhadores rurais do século XX”, acrescenta nessa discussão sobre o aparelhamento dos sindicatos pelo Estado dizendo que [...] Para os estadistas vinculados a Vargas, o sindicato oferecia uma maneira de controlar a classe trabalhadora e algumas facções da oligarquia rural concordavam com a ideia, confiantes de que o sindicato patronal sempre seria mais forte e hábil que os trabalhadores.24

Na realidade, existia uma disparidade enorme na questão fundiária que acabou por provocar conflitos, porque enquanto os proprietários de terras fazem uso delas e retiram seus lucros, os camponeses trabalhadores acabam por se verem no regime de exploração das suas forças de trabalho, por não ter posse das terras em que trabalha, assim sendo, a privação da terra acaba por produzir escassez em sua essência, a partir do momento em que conceder a terra apenas aquelas que por ela pudessem pagar, o que acaba por obrigar aqueles que não podem, a se submeterem a condições de subsistência de trabalho. E em um contexto de eminentes conflitos, um dos dispositivos do governo de tutelar a ação dos camponeses era a legalização dos sindicatos aparelhados pelo Estado, como comenta Marcus Dezemone, em seu artigo Conflitos rurais no Brasil: breve exame do século XX, quando [...] a lei somente permitia sindicatos rurais para a categoria dos “empregados rurais”, o que excluía amplos contingentes não enquadrados nessa definição “técnica”, tais como “posseiros”, “meeiros”, “foreiros”, 22 Ibidem, p. 7.

A formação dos sindicatos no Brasil pode ser entendida como uma luta de uma classe vanguardista revolucionária frente a outra classe elitista reacionário, o que vai de encontro a uma discussão apresentada no livro “História Geral da Civilização Brasileira”, organizado por Boris Fausto, especificamente no capítulo dedicado a questão agrária em que “[...] uma das razões que impediram a constituição de uma consciência camponesa mais reivindicativa foi, no caso brasileiro, a solidez das alianças que se teceram, [...] entre as diferentes frações das elites agrárias e o poder central.”25 No período democrático, de 1946 até 1964, e em consonância com essa problemática da constituição dos sindicatos herdada pelo Estado Novo, os três principais eixos das mobilizações no campo no período “[...] foram o 23 DEZEMONE, Marcus. Conflitos rurais no Brasil: breve discussão do século XX. Revista Cantareira, Rio de Janeiro, nov 2002. p. 4.

24 WELCH, Clifford Andrew. Movimentos Sociais no campo até o Golpe Militar de 1964. Lutas & Resistências, Londrina, p. 60 – 75, set 2006. p. 62. 25 FAUSTO, Boris et al. História Geral do Brasil Republicano: sociedade e política (1930 – 1964). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 155

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GNARUS-UFAM - 92 PCB, as Ligas Camponesas e a Igreja Católica.”26 Para se ter uma

o governo brasileiro investiu maciçamente em pesquisas no setor agrícola, oferecendo inúmeros benefícios e disponibilizando

ideia [...] em 1963, [...] somente no estado

uma verba elevada para tal objetivo. Contu-

de Pernambuco, berço das Ligas Campone-

do, tais investimentos estatais eram efetua-

sas, estes sindicatos de orientação católica

dos em prol do agronegócio, intensificando

respondiam por 200.000 afiliados enquanto

a amálgama existente entre agricultura e in-

que as Ligas possuíam 40.000.

dústria no país.30

27

Parte da justificativa desse “boom” dos sindicatos pode ser atribuída ao governo de João Goulart, “onde a questão da sindicalização rural ganharia um novo tratamento como parte da estratégia de ampliação do apoio político para pressionar o Congresso Nacional na implementação das reformas de base, entre elas a reforma agrária.” 28 E partindo dessa perspectiva, a reforma agrária em si, um dos carros chefes do governo Jango, poderia (e de fato foi) ser tratada pelas elites como um atentado a propriedade privada, um anticapitalismo, por ir contra os interesses elitistas de concentração das terras, funcionando como um dos grandes pilares em que se articulou a derruba de Goulart e o Golpe Civil-Militar, claro, não deixando de lado outras questões que também influenciaram esse processo.

E esse aumento do uso de maquinários na agricultura foi um dos motivos do êxodo rural por parte das elites oligárquicas que preferem o uso das máquinas ao uso de proletários assalariados.

Ao imediato da instauração militar no governo pós-golpe, o Estado

so a terra. Contudo, dificultou o ingresso do

A partir de uma necessidade de suprimir as ações camponesas, o governo do General Costa e Silva lançou o Estatuto da Terra, que prometia uma reforma agrária, mas apenas funcionou como forma de acalmar os levantes populares. Em sua essência [...] a reforma agrária proposta pelo Estatuto não prejudicaria os latifundiários, uma vez que não confiscaria suas terras. O documento permitia a conjugação do uso e ocupação do solo com a manutenção da propriedade capitalista, beneficiando os grandes proprietários rurais e favorecendo seu acesenorme contingente de proletários sem-terra aos meios de produção. De acordo com

[...] efetua uma forte repressão aos mov-

as normas do Estatuto, só haveria desapro-

imentos sociais no campo. [...] Influenciado

priação em situações de graves tensões soci-

pelos EUA, na tentativa de diminuir as tensões

ais.31

sociais no campo e evitar movimentos semelhantes aos de China e Cuba, o governo aprova o Estatuto da Terra, ainda em 1964.

29

Na conjuntura da Ditadura a partir de 1964, 26 Ibidem, p. 5.

Em sua estrutura socioeconômica, o Estatuto acabava por favorecer os latifundiários, como já dito, “favoreceu as grandes propriedades, pois nestas havia-se maiores facilidades de modernização do campo e acesso a crédi-

27 Ibidem, p. 6. 28 Ibidem, p. 6.

30 Ibidem, p. 45.

29 DEZEMONE, 2002, 7

31 Ibidem, p. 49.

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GNARUS- UFAM - 93 to.” 32 Inclusive após o golpe, a resposta do Estado aos movimentos rurais foi a de uma severa política de repressão, criando condições favoráveis para a implementação das políticas necessárias para a afirmação do modelo de desenvolvimento capitalista monopolista, e reprimindo vorazmente ou aparelhando os sindicatos, como comenta Welch33, em que “A Ditadura não perdeu tempo em sua repressão ao movimento sindical dos trabalhadores rurais. Quase 80% dos sindicatos recém-formados tiveram seus registros cancelados”. O que quebra de forma abrupta com as articulações construídas principalmente durante o governo Goulart, em que o governo militar a partir de uma perspectiva corporativista, matinha alguns sindicatos para que estes funcionassem como seu “braço útil” para uma homogeneização do país que viria apoiada na supressão dos movimentos dos trabalhadores.

Gabriel Cruz Carneiro e Yannara Moreira Gomes são Graduandos em Licenciatura em História pela UFAM.

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32 FILHO, FONTES, 2009, p. 68 33 WELCH, 2006, p. 62

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Artigo

AS ATIVIDADES INTELECTUAIS DE ANGOLA (1950) Por Frederico Ricardo de Medeiros Lima e João Paulo Carneiro RESUMO: Este trabalho tem como tema “As atividades intelectuais de Angola em 1950”. Visa apresentar como os movimentos culturais neste país refletem um período marcado por tensões e rupturas sociais mediante a ampliação das críticas ao colonialismo português em território angolano, na medida em que os membros integrantes desses grupos obtiveram contato e colaboração de outras nações que vivenciaram a experiência colonial. Logo, delimita-se este estudo no movimento cultural conhecido por “Novos Intelectuais de Angola”. Grupo formado por jovens jornalistas, escritores e políticos que divulgaram suas ideias de libertação através da revista Mensagem, no início da década de 1950. Isto expõe que desse tempo houveram projetos políticos e culturais diversificados que tiveram no propósito de suas ações a construção de uma nova nação africana. Sendo assim, este estudo objetiva também promover uma reflexão sobre os grupos que tencionaram conquistar a liberdade política de Angola, à luz de uma leitura Pós-Colonial. Para tanto, as reflexões realizadas possuem o intuito de compreender como este evento do processo de descolonização angolana ocorreu e contribuiu para o fomento de uma identidade angolana nos anos de 1950.. Palavras Chaves: Angola, Movimentos Culturais, Pós-Colonialismo.

História e Literatura em Angola

O

escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho, em entrevista à Rita Chaves, pesquisadora com amplos estudos a respeito da relação História e Literatura, principalmente às literaturas africanas de expressão portuguesa, realiza algumas considerações a respeito da interdisciplinaridade entre essas duas áreas do conhecimento humano. Para ele: [...] a história está sujeita ao paradigma da verdade, procura ser mais objectiva, ao

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passo que a literatura está mais próxima da imaginação e da intuição. Certamente que a imaginação também joga um papel fundamental da prática historiográfica, mas trata-se de uma responsabilidade, assombrada apenas por uma coisa que ainda não sei bem o que é e se chama verossimilhança [...]1

Mediante a exposição deste escritor moçambicano, a imaginação é uma forma de tratar e retratar a realidade, e desse modo, projetar no texto como a existência poderia ser ou como ocorreu. Sendo assim, mediante as representações que o tecido textual da 1 CHAVES, 2019, apud COELHO, 2009, p. 153


GNARUS- UFAM - 95 literatura realiza, apreendemos que ele não ocorre como uma experiência estética, mas sobretudo em uma leitura histórica e cultural da realidade pela imaginação, ao passo que à história há o compromisso com a verdade do que ocorreu. No caso de Angola, isto ocorre pelo posicionamento que escritores angolanos vão assumir diante dos debates que foram promovidos também pela atividade literária. Com efeito, eles projetaram no texto as representações das experiências dramáticas que foram vivenciadas pela sociedade angolana durante o período colonial. Nesse ínterim, a década de 1960 foi marcada por conflitos armados que tinham por finalidade a conquista da liberdade política frente à Portugal, uma vez que Angola era colônia do país europeu. Marcelo Bittencourt, historiador com área de atuação de pesquisa em Angola e que apresenta um amplo estudo a respeito desses conflitos, afirma em Nacionalismo, Estado e Guerra e Angola, de 2015, que os conflitos eram direcionados ao combate à presença portuguesa e quem tomou a frente nos campos de batalhas foram grupos políticos, que anos mais tarde, após a independência (1974), iriam entrar em conflitos entre si2. Com efeito, podemos entender que situações como essas corroboram o que João Paulo Borges Coelho afirma sobre a postura dos escritores africanos e como é o papel da imaginação nisso tudo, ou seja, projetar pelo texto uma realidade possível, confrontar o homem diante das dificuldades da realidade3. Quanto às tensões políticas e sociais, Bittencourt, em A criação do MPLA, de 1997, promove uma discussão a respeito das contradições que existiam nos movimentos políticos,

em virtude dos diversos vínculos que ligavam as pessoas, estas moradoras de regiões periféricas chamadas de musseques. Consoante ele esclarece, muitas dessas diferenças se explicam pelo fato de que “essas organizações eram formadas por grupos do mesmo bairro, mesma geração da escola, mesma profissão, mesmo clube, religião ou frequentadores da mesma igreja4”. Sílvio de Almeida Carvalho Filho, em pesquisa histórica envolvendo a literatura como fonte, realiza uma leitura mais apurada dos processos históricos que ocorreram em Angola, sobretudo durante as décadas de 1950 e 1960. Em Angola: História, Nação e Literatura, de 2016, ele compreende que a produção literária em Angola cumpre o papel de contar a realidade presente do país, como também de narrar o passado angolano. Segundo o historiador: “questões como o colonialismo, a formação da nacionalidade, a democracia e o socialismo emergiam como elementos temáticos abordados pelos escritores...5”. Neste sentido, durante o ato da escrita, projetam-se realidades que possuem como pauta as categorias levantadas por Sílvio de Almeida Carvalho Filho e representadas pelos escritores conforme as experiências de mundo em que cada um vai adquirindo, bem como os lugares sociais e culturais por onde irão transitar. Inocência Mata, por sua vez, chega a mesma conclusão que Sílvio de Almeida Carvalho expôs a respeito do papel do escritor angolano e da literatura angolana durante o período de ruptura com a administração colonial. Segundo a autora: “O processo que vai da descolonização ao pós-colonial exige, assim, um novo método de abordagem e diálogo com o mundo global, porque nesta nova conjuntura

2 BITTENCOURT, 2015, p. 231-234

4 BITTENCOURT, 1997, p. 189

3 CHAVES, 2019, apud COELHO, 2009, p. 154-155

5 CARVALHO FILHO, 2016, p. 24

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GNARUS-UFAM - 96 impõe-se a lógica do gesto de abrir espaços6”. Na percepção de Carvalho Filho (2016), isto se refere em muito à formação educacional da intelectualidade angolana, porque eram oriundos de diversos grupos étnicos, sociais e culturais; mas que frequentaram o meu espaço de ensino, os liceus em Luanda. E isso contribuiu para a formação de uma mesma ideologia para lutar contra a administração colonial. Um dos exemplos das consequências da formação dessa intelectualidade se dá pela fundação da revista Mensagem7, veículo de publicação de autores angolanos criado pelo Movimento Intelectuais de Angola, através do engajamento dos escritores Viriato da Cruz e Mário Alcântara Monteiro, na década de 1950. Em síntese, o que eles escreveram revelam para a nossa investigação histórica alguns esforços da parte da produção de uma literatura que propôs contar a história do país, ou ainda, resgatar o passado histórico angolano. Destarte, as produções historiográficas que abordam os estudos entre História e Literatura em Angola, orientam-nos ao entendimento de que o engajamento dos escritores está diretamente relacionado aos grupos sociais, culturais e políticos em que estavam inseridos, como também à posicionamentos ideológicos que serviram de base para promover uma escrita consciente frente aos problemas que a sociedade vivenciava durante a década de 19608. Estes conflitos, oriundos de movimentos políticos que visavam a libertação angolana, sofreram, após os ataques contra instalações militares portuguesas, uma resposta que le6 MATA, 1993, p. 36

7 Ver em: PEIXOTO, Carolina Barros Tavares. Limites do ultramar português, possibilidades para Angola: o debate político em torno do problema colonial (1951-1975). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense, 2009. 8 CARVALHO FILHO, 2016, p. 26

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vou à prisão os líderes dos movimentos, entre eles Agostinho Neto9. Em virtude das prisões, Bittencourt revela que elas “acabariam por proporcionar ainda uma boa amostragem do estrato social dos elementos que se empenhavam na luta anticolonial. Eram em sua maioria funcionários públicos, empregados do comércio, enfermeiros, operários...10”. Desse modo, Carlos Ervedosa11 expõe que a produção literária do país, letrada, é lida na história a partir de quatro grupos, isto é, em 1880, 1896, 1950 e 1957. Ele nos faz entender que os escritores das últimas duas gerações se organizaram em movimentos culturais e tinham enquanto propósito promover o resgate da identidade angolana, bem como denunciar os efeitos das práticas da administração colonial. Dessa maneira, interessa-nos para o nosso estudo o último grupo, que vivenciará as tensões existentes na década de 1950-60, ou seja, das experiências vivenciadas neste período, as pautas dos escritores dessa geração que discorreram sobre a liberdade política e a ruptura com a administração colonial. Para Ervedosa, “A poesia deste movimento é social, reivindicativa...12”, porque os poetas deste período observavam as transformações sociais na sociedade angolana e as denunciavam. Estas mudanças se referem às tensões que se tornaram mais intensas no final dos anos 1950 e tiveram na década 1960 o ápice das tensões deste último período. Logo, viriam a testemunhar os conflitos armados com a administração colonial ao longo da década de 1960. 9 Líder do Movimento pela Libertação de Angola, o MPLA. (VISENTINI, 2012, p 49) 10BITTENCOURT, 1997, p. 189 11ERVEDOSA, Carlos. A literatura angolana. 2ª Ed. Lisboa: União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA), 2015. 12 ERVEDOSA, 2015, p. 36


GNARUS- UFAM - 97 Para elucidar este cenário, recorremos aos apontamentos de Bittencourt que esclarece: [...] a luta pela libertação angolana tem início com o ataque às prisões de Luanda, ocorrido em 04 de fevereiro de 1961, reivindicado em tempo oportuno pelo Movimento pela Libertação de Angola, MPLA. Logo em seguida, em 15 de março de 1961 a União das Populações de Angola, UPA, promove um levante de grandes proporções no norte da colônia13.

Nesse sentido, convém pontuar que o grupo da geração de 1950 iria ser o responsável por duas publicações da revista “Mensagem”, veículo de divulgação da produção literária angolana e que teve como editorial a Associação dos Naturais de Angola14, destacando enquanto presença poetas como Maurício de Almeida Gomes15 e Humberto da Silvã16. Este grupo endossou as críticas ao colonialismo português, abordando temas sobre os problemas dos musseques, sobre Luanda, e sobre a vida urbana como um todo. Mais tarde, a geração de 1957, influenciaria José Luandino Vieira, o maior contista da literatura angolana, que começaria a dar os primeiros passos em sua carreira em participação de coletânea organizada pela Casa dos Estudantes do Império. Os escritores de 1950 deram preferências aos temas, descrições e ao uso da linguagem local em seus respectivos textos. Com o surgi13 BITTENCOURT, 2015, p. 233

14 Entidade cultural composta por escritores locais em resposta à jornalistas estrangeiros que desempenharam atividades literárias em Angola na década de 1940 e 1950. Para mais, ver: ERVEDOSA, Carlos. A literatura angolana. 2ª Ed. Lisboa: União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA), 2015; e PINTO, João Paulo Henrique. A identidade nacional angolana – definição, construção e usos políticos. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense – UFF, 2016. 15 Poeta do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, 1950. (ERVEDOSA, 2015, p. 34). 16 Membro da Associação dos Naturais de Angola, 1950. (ERVEDOSA, 2015, p. 34).

mento do jornal literário “Cultura”, por exemplo; já em 1957, surge uma nova geração de intelectuais angolanos que continuariam o projeto de seus antecessores. Por fim, Ervedosa (2015) relata ainda que em 1958, a Casa dos Estudantes do Império organiza uma seção editorial com o objetivo de publicar escritores ultramarino. É deste fato que ocorre a participação de José Luandino Vieira e a publicação de A cidade e a Infância, que começaria a se tornar uma realidade, em 1959.

A literatura de Angola: Geração de 1957 A historiografia pertinente a este assunto, neste período, discorre que houve um silêncio de sete anos após a dissolução do corpo editorial da revista literária “Mensagem”, em 1950. Este veículo de publicação era integrante de um movimento literário que tinha na proposta explorar o comportamento social e cultural da sociedade angolana17. O silenciamento mencionado relaciona-se a ausência de atividades literárias no que tange a inexistência de um movimento cultural em Angola. Um exemplo é o que percorre os apontamentos de Carlos Ervedosa. Este revela que em 1957 surge o jornal literário “Cultura”, que viria a ser o elemento aglutinador de uma nova camada de jovens que conscientemente assimilariam a lição dos Novos Intelectuais de Angola18, grupo que ficou conhecido também por possui como membro Agostinho Neto19. 17Para aprofundar a questão, ver: PEIXOTO, Carolina Barros Tavares. Limites do ultramar português, possibilidades para Angola: o debate político em torno do problema colonial. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, 2009. 18 Movimento literário que tinha como objetivo promover um debate identitário sobre o que é ser angolano. Para mais, ver: PINTO, João Paulo Henrique. A identidade nacional – definição, construção e usos políticos. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense, 2016. 19 ERVEDOSA, 2015, p. 40

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GNARUS-UFAM - 98 Para avançarmos nesta discussão, tomamos uso de um estudo mais contemporâneo, realizado pelo historiador João Paulo Henrique Pinto, em A identidade nacional – definição, construção e usos políticos, de 2016, que expõe a formação da base de identidade nacional angolana que seria construída a partir da década de 1950. Pinto discorre que ao longo deste período os movimentos culturais em Angola foram se organizando, e que apesar da censura da administração colonial, promoveram discursos identitários por intelectuais que continuaram o legado de outra geração, conhecida como os filhos da terra angolanos20. Este grupo da sociedade angolana ao qual Pinto revela, ocupou cargos de importância em virtude da sintonia com a cultura europeia e a administração colonial ao longo da primeira metade do século XX, em Angola. Conforme os apontamentos de Pinto a respeito desse aspecto da sociedade em Angola, o historiador nos faz entender que apesar de ser possível identificar o grupo devido a sua ocupação social, as fissuras existentes entre os filhos da terra e as respectivas famílias, permitem-nos interpretar que os descontentamentos com a situação colonial já estavam começando a ficar mais evidentes21. O que justifica, como aponta a historiografia mais atual22, que tais fissuras existentes ao longo da primeira metade do século XX fossem publicadas pelos jornais de Angola e a censura à imprensa da parte da administração colonial ao longo dos anos 1950, 60 e 70; estes últimos já em contexto dos conflitos armados. No que se refere a essas tensões sociais, o historiador Washington Nascimento, em estudos sobre a história de Angola, em particular 20 PINTO, 2016, p. 16 21 PINTO, 2016, p. 23 22 Ver: CARVALHO, C, C, de; HOLHFELDT, A. A imprensa angolana no âmbito da história da imprensa colonial de expressão portuguesa. Intercom – RBCC. v, 35. n,2. São Paulo, 2012. Pp. 85-100.

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Gentes do Mato: Os “novos assimilados” em Luanda (1926-1961), de 2013, compreende que em virtude de muitas pessoas da zona rural de Angola se utilizarem de reduzidas possibilidades de ascensão social, institucionalizada pelo Estatuto do Indigenato23, ou seja, quando conseguiram, constituíram-se como em uma elite letrada em Luanda, e saíram do interior para Luanda. Deste modo, o estudo de Nascimento (2013) nos permitiu também apreender que essas pessoas obtiveram acesso ao mundo europeu em um determinado contexto histórico e social, obtendo assim privilégios em decorrência de alguns atributos adquiridos. Como efeito, iniciou se um processo de formação de resistência contra a administração colonial. Não iremos mergulhar nesta discussão, porém, destacamos que esse novo grupo não se via como parte dos grupos locais, apesar de possuírem semelhanças quanto as origens (o mundo rural) e serem negros. Ao contrário, decorrente de uma escolaridade formal que receberam, eles não estabeleceram vínculo familiar com aqueles outros grupos24. Voltando ao que Ervedosa revela sobre o jornal literário “Cultura”, este teve a função de continuar o legado desses grupos ao qual Nascimento (2013) e Pinto (2016) discorrem e que naqueles surgiram escritores que foram de geração após geração, promovendo o resgate e o debate acerca do passado angolano frente as tensões contra a administração colonial. Por conseguinte, jovens como Óscar Ribas25, autor de “Ecos da minha terra” e “Uan23 Para mais ver: NASCIMENTO, Washington Santos. Gentes do Mato: Os “novos assimilados” em Luanda (1926-1961). Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, 2013. 24 NASCIMENTO, 2013, p. 13 25 Escritor e etnólogo angolano que nasceu em 1909 e faleceu em 2009. Reconhecido por ser um


GNARUS- UFAM - 99 ga”; Ernesto Cochat Osório26, com o livro “Calema”, “Capim verde”, e “Cidade” são os exemplos da continuidade da geração de 1950. Eles ajudaram a organizar atividades de promoção de outros escritores, em parceria com outras entidades a partir de 1957, caso da Sociedade Cultural de Angola. Esta instituição foi uma editora que desempenhou a função de publicar os escritores da geração de 1957 e propôs seguir a mesma linha editorial do grupo do início dos anos 50. Fundada no início dos anos 50, ela passou a exercer as atividades de maneira clandestina, em virtude da censura promovida pela PIDE27, cujo trabalho de mobilização das massas acabou por atingir outras cidades próximas a Luanda. Para esclarecer esta situação, tomamos uso também dos apontamentos de Wanilda Lima Vidal de Lacerda, que no estudo O olhar de Pepetela, de 2007, discorre que os movimentos culturais em Angola na década de 1950 passaram a ser vigiados pela administração colonial porque foram entendidos como espaços culturais que poderiam ser utilizados como armas, mediante as tensões que se apresentavam no território angolano28. No caso específico do grupo de 1957, os embates contra a administração colonial estavam cada vez mais evidentes, qualquer tipo de discurso proferido contra a presença portuguesa era interpretado como hostil. Escrever era uma atividade, naquele contexto, que exigia como pressuposto participar ativamente das transformações sociais, culturais e políticas que o país estava atravessando, o que dos principais autores que discorreram sobre o comportamento social angolano. (EVERDOSA, 2015, p.29) 26 Escritor, médico angola e um dos fundadores da União dos Escritores de Angola. (EVERDOSA, 2015, p. 40) 27 Polícia Internacional de Defesa do Estado. 28 LACERDA, 2007, p. 143

justificava o cuidado que o escritor deveria tomar. O jornalista e ensaísta angolano Leonel Cosme destaca em A literatura e as guerras em Angola. No princípio era o verbo, de 2015, que a revista literária “Cultura”, conforme expõe o editorial número 8, de junho de 1959, tinha a intenção pela Sociedade Cultural de Angola ser combativa perante os problemas da vida angolana. Por seu turno, o grupo de 1957, através da Sociedade Cultural de Angola, pretendia possibilitar à juventude a gestação de elementos que despertassem a nacionalidade angolana, quer fosse pela forma, quer fosse pelo conteúdo29. Desse modo, durante os anos de atividades desta geração de escritores, foram realizadas doze publicações, comunicações científicas e literárias, exclusivamente por autores locais. Essas atividades, como podemos observar, corroboram as intenções que Leonel Cosme expõe para fins de conscientização da sociedade angolana em um momento de vigilância da parte da administração colonial. Sendo assim, dos escritores publicados destacam-se: Arnaldo Santos, que viria a ser mais tarde um dos membros fundadores da União dos Escritores de Angola; Costa Andrade, escritor, artista, jornalista e político angolano; Mário Guerra, escritor e jornalista angolano; além de outros. Como podemos observar, boa parte desses intelectuais eram jornalistas e este fato pode ser compreendido pelo forte diálogo que jornalismo, literatura e história - em Angola possuíram no objetivo de promover a discussão sobre temas relacionados ao projeto de libertação30. 29 COSME, 2015, p. 3 30 Para aprofundar esta questão, ver: BITTENCOURT, Estamos Juntos! O MPLA e a luta anticolo-

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GNARUS-UFAM - 100 No intuito de esclarecer um pouco mais este fator, Alexandre Lucas Selombo Sakukuma, elucida que este diálogo com o jornalismo contribuiu para o resgate do passado angolano pela literatura, esta que estava engajada no projeto de conscientização social e cultural para a independência de Angola. No estudo Angola: Deslocamento narrativos em Uanhenga, Xitu e Moisés Mbambi, de 2016, Sakukuma diz-nos que as publicações tinham o intuito de atrair “novos intelectuais dispostos a derrubar o regime colonial pela força da imprensa, o que não chegou a acontecer31”. Desse modo, podemos ver que tanto a imprensa quanto a literatura possuíram um papel aglutinador na história de Angola durante os eventos relacionados ao projeto de libertação. Este contexto é compreendido pelo que Carlos Ervedosa discorre sobre o primeiro número do jornal “Cultura”, isto é, que no editorial o veículo de informação já afirma que “o aparecimento do periódico não é apenas necessidade, mas cumpre desempenhar a função de continuar a marcha de homens de outras épocas...32”. O comentário de Carlos Ervedosa a respeito do editorial revela-nos as mudanças acontecendo durante a década de 1950 e a denúncia dos problemas relacionados à condição do homem angolano, como também o propósito de continuar as atividades que visavam a ruptura com a administração colonial iniciada pelos filhos da terra. Essas transformações iriam produzir, nos anos 60 e 70, uma literatura angolana de resistência, em pleno contexto dos conflitos armados que visavam a independência de Angola, chamada por uma historiografia contemporânea de literatura de nial (1961-1974). Luanda: Kilobelombe, 2008. 31 SAKUKUMA, 2016, p. 78 32 ERVEDOSA, 2015, p. 41

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resistência. Porém, Ervedosa nos chama atenção para o fato de que o grupo de 1957 apresentou o mesmo problema de outros grupos, isto é, a reduzida difusão ao grande público. Esta realidade do grupo comprometeu um vínculo mais estreito com as editoras do país, que não viam na geração do jornal “Cultura” rentabilidade e nem interesse do grande público consumidor33. Convém antes de avançarmos nesta discussão, realizar algumas observações quanto a esse público, editores e escritores desse período. Para isso, tomamos uso dos apontamentos da historiadora Carolina Barros Tavares Peixoto, no estudo Limites do ultramar português, possibilidades para Angola: o debate político em torno do problema colonial (1951-1975), de 2009. Neste estudo, Peixoto discorre que: “[...] o aumento da imigração de colonos brancos para Angola, no início dos anos 1950, abriu uma nova perspectiva entre a pequeníssima elite formada pelos assimilados34”. A administração colonial construiu a partir disso um sistema eficiente de dominação e controle político. Neste contexto, criaram também a possibilidade de formação de uma elite urbanizada, letrada, burocrata, assalariada e de caráter não étnico. Essas ações fizeram parte de uma série de resistências a Portugal que já acontecia desde primeira metade do século XX, provocadas pela intensificação do trabalho forçado das populações locais e o cerceamento social e econômico dos nativos35. Conforme a historiografia pertinente a este assunto aponta36, essas ações reverberaram 33 ERVEDOSA, 2015, p. 43 34 PEIXOTO, 2009, p. 31 35 NASCIMENTO, 2013, p. 71 36 Ver: GUIMARÃES, Rogério da Silva. Musseques de Luanda: Duplos olhares. Luandino Vieira e La-


GNARUS- UFAM - 101 no decorrer das décadas com a intensificação das migrações para Luanda. Com efeito, esta nova possibilidade contribuiu para um desenvolvimento mais intenso de uma conscientização social, cultural e política dos escritores no fim dos anos 50. Em virtude desse cenário, os jovens intelectuais angolanos constituíram militância ou engajaram-se em recuperar um passado angolano para a população de Angola. Diante desse contexto, a produção literária em Angola passou a estar mais envolvida com as questões sociais e políticas. Como resultado, os escritores passaram a distanciar mais as suas obras de temas europeus, passando a escrever sobre assuntos angolanos. Toda essa mudança de postura e perfil da parte da intelectualidade angolana, pode ser explicada também pelos apontamentos da historiadora Amanda Palomo Alves, que em Angolano segue em frente: um panorama do cenário musical urbano de Angola entre as décadas de 1940 e 1970, de 2015. Neste, expõe as tensões políticas que se estenderam ao longo da década de 1950 em Angola, principalmente nas áreas urbanas. A historiadora elucida ainda que essas tensões provocaram a emigração de grupos de estudantes para Portugal, a fim de concluir os seus estudos universitários, e de promover a organização de associações culturais37.

Considerações

mados de 60 e 70, para difundir uma literatura em diálogo com o seu tempo histórico. Assim, os escritores da geração de 1957 organizaram uma seção editorial destinada à publicação dos escritores ultramarinos, cuja responsabilidade de tal atitude ficou a cargo do jovens Carlos Eduardo, político angolano que iria incorporar o MPLA no fim dos anos 50; e Costa Andrade, escritor angolano que se envolveu nos conflitos armados da década de 1960 e 7038. Nesse sentido, percebemos que a historiografia nos informa que essa prática de publicação em Angola, consoante Antonio Carlos Hohlfeldt, em A imprensa angolana no âmbito da história da imprensa colonial de expressão portuguesa, de 2012, em parceria com Caroline Corso de Carvalho, revela ser neste cenário o surgimento de coleções literárias também em outras cidades angolanas, como Sá de Bandeira e Nova Lisboa, ou seja, pela coleção Imbondelo, Bailundo e a de Autores Ultramarinos. Logo, tal aspecto das atividades dessa intelectualidade é resultado de um longo processo que se inicia ainda na década de 1880 e se aglutina após a 2ª Guerra Mundial em virtude da mudança de postura que Portugal vai possuir em relação a Angola, por conta do surto migratório desse período, como também a um posicionamento social e político que a elite local vai assumir, mediante às mudanças estruturais que a administração colonial vai exercer.

deiro Monteiro. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.

Em síntese, observamos ainda que tais práticas e transformações irão possibilitar condições para a existência de grupos que irão construir projetos de nacionalismos e de resistência, promovendo o agravamento de tensões e a conscientização em parte da população frente às consequências negativas que a presença colonial representava. Não à

37 ALVES, 2015, p. 44

38 ERVEDOSA, 2015, p. 43

Carlos Ervedosa e outros autores que discorrem sobre as atividades intelectuais em Angola nas décadas de 1950 e 1960, faz-nos apreender que a difusão do grupo de 1957, tem em destaque a organização da intelectualidade nos antecedentes dos conflitos ar-

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GNARUS-UFAM - 102 toa, que os portugueses através da PIDE irão combater qualquer evidência de luta, contribuindo assim - nos anos vindouros - para a experiência de conflitos armados que ceifou vidas dos dois lados.

Alexandre da Silva Santos é Mestre em Letras e Mestrando em História pela UFAM.

Referências ALVES, Amanda Palomo. Angolano segue em frente: um panorama do cenário musical urbano de Angola entre as décadas de 1940 e 1970. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, 2015. CHAVES, R. Entrevista com João Paulo Borges Coelho. Via Atlantica. n.16, 2009. Disponível no site: https: www.revistas.usp.br/viatlantica/view/50470 Acesso em 10 de maio de 2019. BITTENCOURT, M. A criação do MPLA. Estudos Africanos. n32. Rio de Janeiro, 1997. pp.185-208. BITTENCOURT, Marcelo. “Nacionalismo, Estado e Guerra em Angola”. In. FERREIRA, Norberto (Org). A questão nacional e a tradição nacional-estatística no Brasil, América Latina e África. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2015. CARVALHO, C, C, de; HOLHFELDT, A. A imprensa angolana no âmbito da história da imprensa colonial de expressão portuguesa. Intercom – RBCC. v, 35. n,2. São Paulo, 2012. Pp. 85-100. CARVALHO FILHO, Sílvio de Almeida. Angola: História, Nação e Literatura (1975-1985). Curitiba: Editora Prismas, 2016. COSME, L. A literatura e as guerras em Angola. No princípio era o verbo. Cultura. vol, 34, 2015. pp. 1-6. ERVEDOSA, Carlos. A literatura angolana. 2ª Ed. Lisboa: União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA), 2015. GUIMARÃES, Rogério da Silva. Musseques de Luanda: Duplos olhares. Luandino Vieira e Ladeiro Monteiro. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal do Rio de Gnarus Revista de História - UFAM - FEVEREIRO - 2020

Janeiro, 2012. LACERDA, Wanilda Lima Vidal de. O olhar de Pepetela sobre Angola. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, 2007. MATA, Inocência. História e ficção na literatura angolana: o caso de Pepetela. Portugal: Edições Colibri, 1993. NASCIMENTO, Washington Santos. Gentes do Mato: Os “novos assimilados” em Luanda (1926-1961). Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, 2013. PEIXOTO, Carolina Barros Tavares. Limites do ultramar português, possibilidades para Angola: o debate político em torno do problema colonial (1951-1975). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense, 2009. PINTO, João Paulo Henrique. A identidade nacional – definição, construção e usos políticos. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense, 2016. SAKUKUMA, Alexandre Lucas Selombo. Angola: Deslocamento narrativos em Uanhenga, Xitu e Moisés Mbambi. Tese (Doutorado) Universidade de Lisboa, 2016.


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