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Artigo

MOTIVAÇÕES, CONTRADIÇÕES E PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA SOCIAL DAS PROSTITUTAS JUDIAS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO NO INÍCIO DO SÉCULO XX. Por João Paulo Carneiro Resumo: Este artigo propõe discutir os mecanismos de autopreservação identitária das imigrantes judias que aportaram na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Não pretendemos discorrer amplamente sobre a prostituição no qual foram submetidas e também passa ao largo as demandas e processos políticos referentes às questões imigratórias. Deter-nos-emos especificamente nas relações de solidariedades entre as prostitutas denominadas de forma estigmatizada como as polacas, suas estratégias de sobrevivência as exclusões sociais e como saltaram do anonimato para protagonizarem de forma a atingirem a preservação da memória social do grupo. Palavras-chave: Memória social; Preservação identitária; Polacas: Prostituição

Introdução

pano de fundo do comércio denominado “tráfico da

A

escravidão branca”. Entretanto, a saída fora às

s polacas, termo designado para todas as prostitutas estrangeiras e que se tornou processualmente

um

rótulo

que

estigmatizava especificamente as mulheres judias. Oriundas do Leste Europeu que buscavam nas Américas a tão sonhada dignidade, devido os conflitos de perseguições étnicas e as condições de miserabilidade. Portanto, as judias que imigram para o Brasil nesse período são pertencentes às camadas despossuídas economicamente, traçando assim, o

criações de associações de ajuda mútua para suprirem as necessidades de reafirmações de identidade étnicas e religiosas. Nasce a Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita (ABFRI), instituída em dez de outubro de 1906, construção de uma Sinagoga própria e um cemitério – Cemitério Israelita

de

Inhaúma,

como

estratégia

de

sobrevivência e preservação da memória social as exclusões sofridas.

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G N A R U S | 60 Ressaltamos a relevância para a historiografia as questões que são incômodas no âmbito social,

construção contribuíra para a preservação da memória social das polacas?

referente à pesquisa, citamos a comunidade judaica da cidade do Rio de Janeiro, que apontamos (alerta) como segmento social no esforço de lançar no

Antecedentes históricos

labirinto do esquecimento a memória das polacas.

O velho continente encontrava-se em crise

Nessa perspectiva encontramos uma farta pesquisa

econômica e intensifica-se com o advento da

documental na obra Kushnir (1996), nos fora possível

Primeira e da Segunda Guerra Mundial. O consenso

vislumbrar esse universo tão doloroso para essas

entre os autores pesquisados quanto a principal

“guerreiras” no romance baseado em fatos reais

motivação da imigração dos judeus concentra-se

Largman (2008) e uma contribuição singular para

necessariamente no que abarca a miséria e as

compreendermos as repressões sexuais da cultura

perseguições. Portanto sem esperanças e trabalho

brasileira e as especificidades do erotismo da colônia

para o desenvolvimento de uma vida melhor viam-se

a contemporaneidade de Priore (2011). Quanto às

obrigados a imigrar.

questões de formação ideológica da identidade na

Canclini (2013). No contraponto das interpretações

“Assim, se em 1880, cinco milhões de judeus viviam em territórios da Europa Oriental – parte oeste do Império Russo, Polônia, Leste do Império Austro-Húngaro que incluía a Galícia e România -, sessenta anos mais tarde, quatro milhões haviam fugidos da pobreza, das ondas anti-semitas – os progms – e do serviço militar com destino às Américas, à Palestina, à África do sul, à Austrália etc”1

do universo da prostituição estrangeira e seus

Com o fim da primeira guerra e as novas políticas

códigos sociais, destaca-se a obra Rago (1991). No

imigratórias brasileiras, o país se torna bastante

que tange ao processo imigratório no Brasil, temos a

atrativo para o aumento do contingente imigratório

contribuição de Oliveira (2002).

dos judeus do Leste Europeu. Entretanto, de acordo

sociedade brasileira e a construção antropológica da etnia, corroborou para a discussão do conceito de identidade Oliveira (1976) e o conceito de identidade na pós-modernidade Hall (2014) e

Dito isto, parafraseamos, o historiador Peter Burke,

com a socióloga Lúcia Lippi, os imigrantes desejáveis

trazer à luz da memória as recordações que as

devido

às

aproximações

pessoas desejam esquecer como ofício prioritário do

portugueses, italianos e espanhóis. “Os judeus

historiador. A seguir passaremos a discorrer sobre a

configuravam o aspecto negativo em relação à

trajetória dessas judias. De onde vieram e quais

cultura,

circunstâncias encontraram na cidade do Rio de

diferentes”2.

língua

e

culturais

religião

foram

os

completamente

Janeiro? Como resistiram à exclusão? A construção do

Na cultura judaica havia o peso do dote no ato do

cemitério de Inhaúma fora uma resposta de

casamento. No entanto, as moças judias da Europa

resistência e de reafirmação identitária? Sua

1

KUSHNIR, apud BRISTOW, 1982, p.241.

2

OLIVEIRA, 2002, p.17.

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Leilão de polacas, começo do Sec. XX -Rio de Janeiro

Oriental eram pobres, assim, não havia possibilidade

voluntária, defendendo o contexto que muitas já se

de ascensão econômica via matrimônio, devido à

prostituíam em seus países de origem.

importância desse aspecto cultural, deu-se a criação

Muitas vezes, o tráfico de escravas brancas aparece

“(...) o mais importante a ressaltar é que a grande maioria das escravas brancas participava desse meio, conhecia suas regras e deseja ‘fazer a América’ como prostituta nos principais mercados do prazer. Apesar de todas as fantasias que cercam as histórias do tráfico, muito poucas vinham iludidas ou forçadas.”4

associado a esta corretagem”3. Portanto, estamos

Entretanto Largman (2008) concilia as duas

diante de diferentes visões da trajetória da

perspectivas em seu romance, isto é, admite as

prostituição das judias denominadas polacas. A

relações de engano e também a entrega voluntária.

da figura do agenciador de casamentos, ou seja, mediavam os contatos com os rapazes judeus nas Américas. “Fechando o negócio, isto é, o casamento.

historiadora Kushnir (1996), reforça o aliciamento

“Que destino! Com fome, enganadas, seduzidas ou estupradas, depois cobertas de vergonha e culpa, deixam-se explorar pelos malditos, a mancha do nosso povo. Como se não faltassem problemas, como se a exploração capitalista não fosse suficiente para explorar operários e camponeses. O pior é que há moças que se entregam a esses tipos voluntariamente, sabendo o que lhes aguarda.”5

através dos enganos dos cáftens – agenciadores, e as condições socioeconômicas. Porém, para Rago (1992) levanta a questão como uma escolha

3 4

KUSHNIR, 1996, p.64. RAGO, 199, p.290.

5

LARGMAN, 2008, p.43.

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G N A R U S | 62 Nesse sentido, chegamos ao ponto bastante

ganharem a preferência dos clientes. Acresce que,

interessante e elucidativo através da conciliação das

devido aos prostíbulos “começa a surgir certa noção

visões anteriores, a interpretação realizada por

de prazer sexual (...). Só que, ao frequentar um

Largman (2008) de forma dramática, ficcional, no

bordel, o homem corria o risco de aprender práticas

entanto, baseada em pesquisas de fatos reais.

que ele não poderia de forma alguma transmitir à sua

Portanto,

porém,

esposa”7. Em virtude dessas contradições sociais, as

independente da origem, todas as judias estrangeiras

polacas, são excluídas pelo contexto social, pela

receberam um selo erótico no imaginário da clientela

comunidade judaica que a todo o momento tenta

dos bordéis cariocas, polacas, mulheres de uma terra

construir uma imagem identitária positiva e se não

distante, de culturas e hábitos diferentes, todo esse

bastasse, são odiadas pela classe feminina, oprimidas

contexto abrange um atrativo extremamente erótico.

ao universo do prazer, relegadas a assumirem a

agora

temos

a

origem,

Antes de tudo devemos pensar que as referências de moda, de etiqueta, são as influências da Belle

posição de rainha dos lares que se veem com o seu espaço ameaçado.

Époque, ou seja, período de grandes transformações

Tendo em vista que a noite não pertencia a uma

políticas e diversas manifestações artísticas. Assim

dama do lar. A vida noturna, nas casas de espetáculos,

também, momento de forte moralismo e repressão

nos cafés, nas praças, vão tomando os contornos dos

sexual. A mulher, tema amplamente pesquisado por

ares europeus em busca dos novos lazeres e em busca

Priore (2011), encontra-se a margem de vivenciar o

dos prazeres proibidos, assim, as noites cariocas com

prazer sexual. Como figura meramente reprodutora e

os indesejáveis cafetões e suas amantes, suas esposas,

para tal tese buscava-se embasamento na religião,

suas mantenedoras do mercado do prazer – as

nas sanções sociais e até médicas.

prostitutas. Afinal, qualquer mulher só nas ruas,

Toda e qualquer referência à França trazia no seu bojo status sociais, isto é, frequentar cabarés, teatros com dançarinas de can-can, e ter relações sexuais com as prostitutas francesas era o mesmo que experimentar o que tinha de mais moderno e de mais

dentro dos paradigmas sociais da época, em tese, se enquadrava como uma mulher de “vida fácil”. Em suma até que provasse ao contrário, seria uma possível mercadoria para os aliciadores ou acareada pelas autoridades policiais.

luxuoso – as cocotes. “Por outro lado, havia as polacas, que substituíram as mulatas e as portuguesas e representavam a miséria”6. Naturalmente devido às

Colégio, sinagoga e o cemitério: solidariedade na construção da identidade

concorrências entre as estrangeiras e as mulatas na

Desde já precisamos entender que a cultura judaica

zona do baixo meretrício da antiga Praça Onze, as

está profundamente imersa em seus preceitos

polacas pela cútis clara e olhos verdes e azuis por

religiosos. De acordo com as interpretações das

muitas vezes se passavam por francesas para

autoridades religiosas israelitas da Torá. “Das filhas

6

7

PRIORE, 2011, p.85.

Ibdem, p. 87.

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Túmulo de mulher israelita em Inhaúma, Rio de Janeiro-RJ>

de Israel não haverá quem se prostitua no serviço do

Largman (2008) relata em seu romance as dores e os

templo, nem dos filhos de Israel haverá quem o

sofrimentos da exclusão. “Sarah, inicialmente ficara

faça”8. Do mesmo modo, aos praticantes do mercado

revoltada por não deixarem que ela fosse dizer as

do prazer, vetava-se a entrada das polacas nas

preces no Yom Kippur numa sinagoga (...) era

sinagogas, nas festividades religiosas e o seu

considerada impura, suja, e o desprezo (...) era

sepultamento respeitando as tradições judaicas

insuportável”9. Assim, nasce no dia dez de outubro de

determinando

demais

1906, na cidade do Rio de Janeiro, a fundação da

sepulturas, ou seja, sendo enterradas junto aos muros

Associação Beneficente Funerária e Religiosa

do cemitério. Em suma nem no momento da morte

Israelita. “Tal ato marca a criação de uma organização

havia um espaço democrático.

associativa para autoproteção e socialização de

8

9

o

Deuteronômio, 23, p.17.

distanciamento

das

LARGMAN, 2008, p.31.

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G N A R U S | 64 mulheres e homens que participavam do comércio e

anteriores”16. Portanto, segundo Carneiro (2017)

prática da prostituição estrangeira na cidade”.10

“para esses processos múltiplos, diversos, plurais, nas

Segundo o professor e antropólogo Oliveira “(...) identidade é um fenômeno que emerge da dialética

dimensões culturais é que devemos observar no âmbito da questão das polacas aqui apresentada”17.

entre indivíduo e sociedade”11. Na perspectiva dos

Os dois principais pilares na construção identitária

estudos culturais as identidades não são mais “fixas”

são a criação do colégio e da sinagoga. Apontando

e “estáveis” como era apresentada no sujeito do

assim, para os caminhos da educação e da

iluminismo12, ou seja, um sujeito construído em sua

religiosidade

identidade essencializada (Hall, 2014). Com os

preservação da memória étnica. Na organização

teóricos pós-modernos, a visão identitária passa a ser

houve a direção de homens e mulheres, entretanto,

“instável”, “fragmentada”, “inacabada”, “deslizante”,

as mulheres lideraram majoritariamente. Havia

flutuante”13. Tais mudanças são apontadas pelo

critérios para os ingressantes na associação e um

especialista através de cinco

descentramentos14

do

como

construção

identitária

e

deles era professar a fé judaica. A associação cobrava

sujeito da modernidade. O indivíduo descentrado

uma

segundo Hall (2014) é identificado como aquele que

marginalizados,

tem novas identidades, ou seja, híbrida. Canclini

manutenção da sinagoga própria, do colégio de

(2013) faz a seguinte abordagem sobre o termo

educação primária18, socorrer os associados quando

“hibridismo”: “Entendo por hibridação processos

enfermos e assistência fúnebre.

socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para formar novas estruturas, objetos e práticas”15.

Estruturas

ou

práticas

discretas

denominadas pelo o autor, não são puras, isto é, já sofreram mudanças no processo de hibridações. Assim, compreendemos as transformações sociais neste trabalho com o auxílio de Canclini (2013) e Hall (2014), na visão identitária que “elementos culturais distintos que se atenuam formam um terceiro elemento que carrega parte dos elementos

10

KUSHNIR, 1996, p.95. OLIVEIRA, 1976 apud BERGER & LUCKMANN, 1971, p. 195. 12 Iluminismo foi um movimento intelectual que ocorreu na Europa do século XVIII, e teve sua maior expressão na França, palco de grande desenvolvimento da Ciência e da Filosofia. Além disso, teve grande influência no contexto cultural, social, político e espiritual em diversos países. 13 HALL, 2014 p.28. 11

mensalidade a

para

auxiliar

arrecadação

os

judeus

viabilizava

a

Por outro lado, temos a comunidade dos “puros”, imigrantes judeus que tentavam construir uma identidade positiva na sociedade brasileira através do sucesso

no

mercado

de

trabalho,

de

fato

abominavam toda e qualquer associação com os “impuros”. Conforme exposto por Gruman (2006) “Se o judeu é atraído pelo dinheiro, e o dinheiro está intimamente relacionado à prostituição, associa-se o judaísmo e a prostituição estigmatizando toda a comunidade”19. Entretanto, diante das autoras citadas anteriormente, há uma discordância da 141º

Às tradições do pensamento marxista; 2º A descoberta do inconsciente de Freud; 3º A linguística estruturalista de Saussure; 4º No trabalho de Michel Foucault; 5º O movimento feminista. 15 CANCLINI, 2013, p.XIX. 16 CARNEIRO, 2017, p.99. 17 Ibdem, p.99. 18 Linguagem de acordo com a legislação vigente da época. 19 GRUMAN, 2006, p. 90.

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G N A R U S | 65 análise do antropólogo, pois, a prostituição se

clarifica a divisão da comunidade judaica dos

tornara um negócio e a figura da meretriz como uma

chamados os “puros” e os “indesejáveis”, ou seja,

mercadoria negociável e lucrativa não só para os

marginalizados socialmente e geograficamente. No

judeus, mas, para todos os estrangeiros e brasileiros.

entanto, com a construção do cemitério os corpos já

Sendo assim, o muro da separação social estava

não são mais sepultados de forma excludente, isto é,

intimamente ligado aos preceitos moralistas do

junto

judaísmo, aos preceitos moralistas do catolicismo

anteriormente. Além disso, os túmulos possuem

lusitano, naturalmente a dicotomia puro/impuro, se

identificação para receberem visitações, festejos e

relacionava a presença das polacas no seio social, na

celebrações. Afinal os “indesejáveis” garantem o

verdade era o grande incômodo e vergonha. Desse

direito de descansarem no campo santo, são também

modo as polacas encontram abrigo identitário na

guardiões das tradições ritualísticas israelitas e

Associação Beneficente Funerária e Religiosas

reúnem dessa forma a preservação da identidade e da

Israelita (ABFRI).

memória judaica. Em suma o Cemitério de Inhaúma,

Segundo Kushnir (1996), o evento de inauguração causou consequências alarmantes na sociedade carioca e principalmente na comunidade judaica – considerada como “os puros”. Três dias após a inauguração fora registrado nas páginas do jornal A Colunna – órgão da comunidade judaica carioca, assinado por David J. Perez, publicação do dia dois de novembro de 1916. (...) Se esses exploradores estivessem numa cidade onde meus irmãos vivem organizados, com certeza já estariam pagando à sombra do cárcere o crime que praticaram. Ou, por outra, não chegariam a praticá-lo seriam repelidos do nosso meio como se repele a lepra. (...) Quanto a estas objetas criaturas que exploram vilmente a escravatura branca, tenho a dizer-vos que ninguém mais que nós, israelitas, tem se esforçado por fazêlas desaparecer do meio social. (...) No que toca à tradição religiosa, essa gente não nos pertence. Não nos ligamos a eles, nem na vida, nem na morte; portanto, esse cemitério ficará destinado aos ‘cáftens’ e às prostitutas.20

A declaração acima dimensiona o discurso do ódio

aos

muros,

conforme

fora

explicado

rompe com o silencio imposto, torna-se uma ruptura com todo o empenho da comunidade dos “puros” de estabelecerem uma autoimagem sem “manchas morais”. Porém, o que está em jogo não é o esquecimento de um grupo alienígena, mas, de indivíduos que estavam distantes de seus familiares, de idioma e cultura diferenciada e que os laços de identidade social encontravam grandes entraves pelo grupo de pertença. Inicialmente torna-se necessário abarcar que no final da década de trinta houve um declínio na imigração de judias para a prostituição. Em virtude das fortes campanhas anti-tráficos, naturalmente ocorrera o envelhecimento das polacas em atividade no comércio do prazer, a partir da década de cinquenta e sessenta, com isso os reflexos são sentidos na base de arrecadação da ABFRI, que processualmente

vai

minguando

mediante tamanha exclusão social, considerados

administrativamente devido não suportar mais os

como escória, como criaturas objetificadas, de fato

gastos, a saber, as entradas se tornam insuficientes.

20

KUSHNIR, 1996, p.111-112.

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G N A R U S | 66 A associação que se tornara pioneira no movimento

exibido aos domingos às 10h no canal 21 da Net ou

associativo de prostitutas no país, demonstra sinais de

canal 7 Rede Bandeirantes, programa nº 24 exibido

desaparecimento na história. De acordo com relatos

no dia 12 de junho do ano corrente23. Nessa

coletados em entrevista com o compositor boêmio,

reportagem o atual presidente executivo, Jayme

considerado como o “malandro carioca” – Moreira da

Salim Salomão, direto do Cemitério de Inhaúma,

silva, também conhecido no meio artístico como “Kid

aponta as melhorias e ressalta o bom estado de

Morengueira”, por Kushnir (1996), o compositor

conservação. E declara que só não fora possível

sustentou um romance com a polaca Estera

ampliar as melhorias devido o processo burocrático,

Gladkowicer, russa, naturalizada brasileira, nascida

devido o tombamento pela Prefeitura. Enfim, desde o

em 20 de maio de 1907. Chegara ao Brasil em 1927,

início da década de oitenta o cemitério permanecera

com vinte anos já era sócia número 65 da ABFRI. “(...)

fechado, abandonado e sem a realização de

e morreu em 1968 por ingestão de barbitúricos. Por

sepultamentos, ou seja, depois de três décadas os

muitos anos foi namorada do compositor Moreira da

argumentos são os entraves burocráticos do

Silva, que lhe dedicou o samba judia rara”21. Estera

tombamento? Ou seria melhor indagarmos puro

Gladkowicer fora enterrada em Inhaúma e Moreira

esquecimento proposital? Kushnir (1996), uma das

da Silva acompanhara seu funeral. “Estera foi um dos

defensoras aguerridas da manutenção do cemitério

últimos sepultamentos naquele local (...). Moreira da

de Inhaúma defende que durante décadas os túmulos

Silva sabia o que significava o Cemitério Israelita de

ficaram sem identificação por falta de vontade da

Inhaúma para Estera, e por isso a enterrou lá”22.

atual direção, pois, constantemente sinalizara o

Rigorosamente falando no final da década de setenta o cemitério de Inhaúma é transferido administrativamente para à Sociedade Cemitério Comunal – mais conhecido como Cemitério Israelita do Caju. De acordo com as pesquisas de Kushnir (1996), o Comunal se responsabilizaria para dar continuidade aos sepultamentos dos associados e também zelar pela preservação do campo sagrado. No entanto, segundo a historiadora, nenhum sepultamento fora realizado. A direção do Comunal recentemente se pronunciara através do programa Comunidade na TV, programa financiado pelo FIERJ – Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro,

documento onde recoloca as identidades nos túmulos. Na reportagem acima citada, verifica-se que

algumas

fotos

e

identificações

foram

recolocadas nos túmulos, após um embate de décadas para a manutenção da memória das polacas. No entanto, a salutar vitória para as polacas chegara no dia 27 de outubro de 2010, onde fora decretado o tombamento definitivo do Cemitério Israelita de Inhaúma pelo decreto nº 32993. Assim sendo, o espaço possui agora amparo legal de preservação, considerando a importância dessas mulheres, outrora sem identidade reconhecida, considerando o espaço como monumento histórico de memória coletiva, reconhecendo que a construção do cemitério fora

21 22

KUSHNIR, 1996, p. 117. Ibdem, p.118.

23

Programa exibido no ano de 2011. Para maiores informações sugerimos o acesso disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=bqjShnSkX4o. Acessado em 02 de abril de 2018.

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G N A R U S | 67 por mulheres que sobreviveram como agentes

indígena

históricos num ambiente de completa hostilidade.

(UNISUAM).

Considerações Finais

Bibliografia

Mesmo diante do contexto de exclusão e marginalização fora possível através dos laços de solidariedade, construírem de maneira singular a preservação

da

identidade

étnica

e

do

fortalecimento da profissão de sua fé. Todo o esforço redundara na trajetória para continuarem a ser o que sempre foram antes do rótulo de polacas: judias, embora, sabedores que as identidades são múltiplas e diversas. Portanto a consagração chegara, a construção do Cemitério Israelita de Inhaúma que cumprira o seu papel mediante ferrenhas oposições e sucessivas tentativas de silenciamento histórico. Enfim, a memória social resgatada, o lugar na história concedido com muito labor e tamanhos dissabores. O que aguardamos atualmente, não como meros expectadores passivos, mas como pensadores

(UCP)

e

Licenciado

em

História

CANCLINI. Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2013. CARNEIRO. João Paulo. Ensino de História: Possibilidades e desafios na perspectiva das relações étnico-raciais no caderno de avaliação do Saerjinho. Rio de Janeiro, 2017. 155 f. Dissertação (Mestrado) apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014. KUSHNIR, Beatriz. O baile de máscaras: mulheres judias e prostituição: as polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996. LARGMAN, Esther. Jovens Polacas: da miséria na Europa à prostituição no Brasil. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. O Brasil dos imigrantes. 2ed. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2002. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, Etnia, e Estrutura Social. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1976. PRIORE, Mary Del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos de sexualidade feminina em São Paulo (1890 – 1939). São Paulo: Ed. Paz Terra, 1991.

inquietos e participativos no processo de toda essa conquista é o retorno de novos sepultamentos no Cemitério Israelita de Inhaúma, sua preservação plena e contínua, lápides identificadas, visitação pública, ou seja, não somente a pesquisadores e comunidades judaicas, mas como patrimônio histórico, esteja ao alcance da população carioca

Revistas REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL. O encanto das Polacas: imigrantes judias na prostituição. RJ. Ano2. N.16, jan.2007.98p. REVISTA CAMPOS DE ANTROPOLOGIA SOCIAL. A prostituição judaica no início do século XX: desafio à construção de uma identidade positiva no Brasil. Paraná, Curitiba. Vol.7, N.1, 2006.99p.

como parte integrante de sua história e a respeitabilidade notória na história e na memória das polacas. João Paulo Carneiro é Mestre em Relações ÉtnicoRaciais (CEFET/RJ), Especialista em Ensino de História (UFRJ), Especialista em Cultura Afro-Brasileira e

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