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ENTREVISTA: BRUNO LEAL Por Fernando Gralha e Cindye Esquivel

N

osso entrevistado deste número é o que

Humanidades Digitais”, além de também se dedi-

podemos considerar um historiador

car aos estudos Judaicos no Brasil. Historiador com

multimídia, caminha por guerras, pre-

vasta produção acadêmica é doutor em História so-

conceitos, novas tecnologias e redes sociais é o cri-

cial pela UFRJ e professor da Universidade Federal

ador da Rede Social “Café História” - a maior rede

Fluminense. Tudo isso faz do professor Bruno Leal

social online de história da internet1, coordenador

um ótimo “papo” no campo da História, da mídia e

de uma rede de pesquisadores unidos pela língua

da produção acadêmica, esperamos que gostem

portuguesa e pela inclusão da perspectiva digital

tanto do “papo” como nós.

em seus horizontes de pesquisa, a “Associação das

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http://cafehistoria.ning.com


G N A R U S | 154 O senhor poderia começar falando sobre o processo de criação da rede social Café História? Quando e como surgiu a ideia, o que o motivou a criá-la? A ideia base do Café História surgiu os durante meus anos de graduação, entre 2003 e 2008. Eu cursava as faculdades de história e de comunicação social. Com o passar dos anos, eu me convenci cada vez mais que essas minhas duas áreas de formação podiam dialogar muito mais. E aí, eu gostaria de deixar bem claro uma posição que eu defendo com bastante veemência em meu trabalho: todo historiador é um comunicador. A comunicação está presente em cada aspecto do ofício do historiador. Artigos, teses, conferências, aulas, pesquisa, divulgação. O problema é que nem sempre nos damos conta dessa premissa. E quando não nos damos conta disso, não pensamos de forma sofisticada na elaboração das nossas estratégias de comunicação. Isso foi pra mim um grande motivador. E, claro, na época, eu estava bastante entusiasmado com os recentes avanços tecnológicos: redes sociais, popularização da banda larga, o iPhone, e etc. Tínhamos as ferramentas ideais para aproximar ainda mais a história da comunicação. Meu desejo era criar um espaço para trocas entre pesquisadores e divulgação

da história. Algo que, vale dizer, não existia. Tentei

várias plataformas. Criei blogs e comunidades no Orkut. Não foram experiências tão bem sucedidas, mas eu segui adiante. Nos primeiros dias de 2008, conheci uma plataforma norte-americana chamada Ning. Em resumo, o Ning – palavra chinesa que significa “paz” em português – permite que qualquer pessoa cria a sua própria rede social. O Ning era gratuito, altamente intuitivo e encontrava-se disponível em língua portuguesa. Na mesma hora eu entendi que era daquilo que eu precisava: de uma rede social online de história. Foi assim que começou o Café História, quase como uma epifania. Trabalhei dias e dias seguidos. O processo criativo levou aproximadamente duas semanas. Foram várias etapas: criação do nome, desenho das seções, inserção dos primeiros conteúdos, desenvolvimento da identidade visual e, por fim, divulgação. Na primeira semana, tínhamos mais ou menos 50 pessoas cadastradas na rede. Depois de um mês, já tínhamos rompido a casa dos mil usuários. Nos anos seguintes, a rede continuou se expandido. Hoje, temos mais de 60 mil perfis cadastrados. Mas nosso alcance vai muito além. Além do Ning, que continua sendo nossa "espinha dorsal", nós temos também

um canal no Youtube, o Café História TV, além de


G N A R U S | 155 perfis no Facebook, Twitter, Google Plus e Insta-

Bem poucos agem desta forma. Felizmente. Por se-

gram. Alcançamos por volta de 500 mil pessoas, no

rem colaborativas, as redes sociais podem funcio-

Brasil e no exterior.

nar sozinhas, no seu próprio ritmo. Mas uma coisa é certa: quanto mais intenso for o trabalho de media-

Como o senhor avalia hoje as características dessas interações que o Café História medeia? Como vê o desenvolvimento disso? As pessoas o procuram para divulgar coisas, conversam? A internet é um ambiente bastante imprevisível. Nenhuma fórmula é lá muito confiável para explicá-la. No entanto, há alguns comportamentos que se repetem no ambiente virtual. Em uma rede social, você tem vários tipos de usuários: há aqueles, por exemplo, que interagem todo os dias com a rede, são pessoas que passam boa parte do dia inteiro conectadas, comentando notícias, abrindo fóruns, enviando mensagens para outros participantes, publicando textos. Esses tipos são raros e desenvolvem um profundo sentimento de propriedade da rede. Há outros, por outro lado, que são mais low profile, que acessam a rede apenas para ler, mas nunca para comentar. E essas são apenas duas gradações de usuários. Há ainda aqueles que

ção e dinamização, maior será a qualidade das interações que ocorrem nesta rede. E sim, as pessoas me procuram bastante para divulgar eventos, conferências, livros, revistas, programas, etc. No fundo, as mensagens que recebo todos os dias vão muito além disso. Certa vez, uma professora me escreveu pedindo ajuda. Ela tinha brigado com a coordenadora pedagógica da escola em que trabalhava e queria saber o que fazer. Em outra ocasião, um homem me enviou a foto de um colar e pediu que o Café História avaliasse a peça, pois ele queria realizar um leilão. Já perdi a conta de quantos trabalhos escolares recebi para serem feitos e pedidos de orientação de trabalho de conclusão de curso. Muitos desses casos passam anos-luz do propósito da rede. Mas eles mostram o quanto o Café História se tornou uma referência nos últimos anos. É bastante legal testemunhar esse reconhecimento.

participam de fóruns, mas não os abrem, aqueles que conversam entre si, mas não interagem com o conteúdo, etc. Gosto de pensar rede social como uma cidade. Uma rede social, tal qual uma cidade, possui muitas vias, pessoas diferentes, zonas urbanas desiguais, assimétricas, coisas que fogem ao controle, etc. Os usuários do Café História, em geral, são muito bons. São pessoas bem informadas, educadas, que gostam de colaborar e compartilhar informações. Há exceções, evidentemente. Vez ou outra aparecem negacionistas do Holocausto, fanáticos religiosos ou gente que está ali para fazer propaganda política ou simplesmente desestabilizar o ambiente, o chamado troll. Mas isso é minoria.

O senhor consegue saber o perfil do seu público? É específico da área de História ou outros profissionais também se associam ao Café História? Há aproximadamente três anos, eu fiz uma pesquisa espontânea com usuários do Café História. Foram cerca de 800 respondentes. Embora não seja uma pesquisa muito recente, acho que as coisas não mudaram tanto desde então. Essa pesquisa revelou, por exemplo, que a rede é acessada por pessoas de todos os estados brasileiros. A maioria, contudo, provém de São Paulo e Rio de Janeiro, com 18,3% e 17,1%, respectivamente. Em termos de faixa etária, a maior parte dos nossos visitantes, 38,2%, é formado por pessoas que possuem mais de 40 anos.


G N A R U S | 156 54% são mulheres e 46% são homens. 30,5% pos-

ato pós-guerra, contudo, muitos judeus letões con-

suem superior incompleto e 27,3%, completo.

testaram a história contada por Cukurs. O aviador

49,6% são solteiros e 35,1% casados. A maior parte

foi apontado por vários sobreviventes do Holo-

(80,3%) acessa a internet de casa, sendo o Café His-

causto na Letônia como um dos principais respon-

tória acessado quase todos os dias ou semanal-

sáveis pela morte de milhares de judeus durante a

mente para mais da metade. A maior parte dos usu-

ocupação nazista, além do incêndio de sinagogas,

ários são de classe média. Quase 70% já cursou ou

perseguições, violação de cemitério judaico, desa-

cursa a faculdade de história.

propriação de imóveis, entre outros crimes bastante graves. Em 1944, perto da Letônia cair nova-

O senhor recentemente terminou seu doutorado, a qual temática ele se refere? Como foi a experiência da pesquisa? Fiz meu doutorado no Programa de Pós-Graduação em História Social, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eu trabalhei com uma questão que é bastante conhecida pelas pessoas, principalmente por causa da mídia e da cultura de massa, que produziram muito material a respeito, mas que ainda é muito pouco explorada pela historiografia: criminosos nazistas no Brasil. Eu pesquisei, mais especificamente, o caso do letão Herberts Cukurs. Cukurs era um aviador famoso na Letônia do pré-guerra. Na década de 1930, ele realizou dois voos de longa distância com aviões que ele próprio construiu. O primeiro até a Gâmbia, na África, e o segundo até Tóquio, no Japão. Por conta desses dois raides, ele se tornou uma espécie de herói nacional. Ganhou prêmios, reconhecimento internacional e até mesmo uma propriedade do governo letão. Na década seguinte, contudo, Cukurs desempenhou um papel muito menos nobre. Durante a ocupação nazista da Letônia, ele colaborou com os alemães. Ele fez parte de um grupo colaboracionista chamado “Comando Arajs”. Cukurs disse que foi apenas mecânico das forças de ocupação, além de soldado no front russo, movido pelo anticomunismo e pelo medo de uma nova ocupação soviética. No imedi-

mente nas mães dos soviéticos, Cukurs deixou o país. Foi para a Alemanha e depois para a França. Em quatro de março de 1946 chegou ao Brasil. Nos primeiros anos no país, Cukurs conseguiu montar uma nova vida. Na então capital federal, Cukurs levou pela primeira vez a Lagoa Rodrigo de Freitas os “pedalinhos”, que até hoje enfeitam esse que é um dos principais pontos turísticos do Rio de Janeiro. O negócio de divertimentos foi um sucesso imediato. Cukurs tornou-se bastante conhecido da população carioca. Era protagonista de várias reportagens. Ninguém sabia naquela época de seu passado de colaboração com os nazistas. Sabia-se apenas o que Cukurs contava aos jornais: de suas proezas como aviador, de sua fuga do comunismo e de seu trabalho de revitalização da Lagoa. Em junho de 1950, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro veio à público denuncia-lo como criminosos de guerra nazista. A notícia caiu como um escândalo. Os jornais se sentiram enganados por Cukurs. A coletividade judaica, organizações não governamentais e setores do legislativo, apoiados em grande parte pela mídia, iniciaram uma enorme campanha pública pela expulsão de Cukurs e contra a sua naturalização, que estava naquele início da década de 1950 muito próxima de sair. A mídia e até mesmo alguns historiadores dizem que as auto-


G N A R U S | 157 ridades brasileiras protegeram Herberts Cukurs, as-

que com certezas quanto a culpabilidade de Cu-

sim como teriam protegido toda sorte de crimino-

kurs. Por isso, nunca o expulsou. Porém, e isso é im-

sos nazistas no período do pós-guerra. Quando exa-

portante dizer, o governo brasileiro também nunca

minamos a fundo o caso, no entanto, vemos que a

lhe concedeu a sua naturalização, nem mesmo

coisa é bastante diferente. A perspectiva da “prote-

quando tinha argumentos para faze-lo. Isso pode

ção” ou do “acobertamento” não funciona muito

ser explicado pela força política mobilizada por vá-

bem. Ela não explica o Caso Cukurs. Cukurs não foi

rias entidades civis organizadas, por setores do pró-

expulso do país, é verdade. Mas a documentação

prio governo, por parte da sociedade brasileira e,

mostra que isso se deu em boa medida pela cons-

claro, por diversas instituições judaicas. No âmbito

trução problemática dos argumentos jurídicos le-

governamental, você encontra ex-integralistas atu-

vantados contra o letão. Os depoimentos dos ju-

ando no caso e até mesmo discursos antissemitas.

deus sobreviventes, que eram a base da acusação,

Porém, nada disso explica o caso a partir do clichê

não tinham sido tomados tendo em vista o rigor ju-

mal ajambrado de que o Brasil favoreceu delibera-

rídico. Minha pesquisa mostra que a própria Fede-

mente criminosos nazistas no longo período do

ração das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro

pós-guerra. É preciso tomar muito cuidado com es-

admitia isso. Não que seus dirigentes duvidassem

sas fórmulas universais e autoexplicativas. Elas não

da palavra dos depoentes. Isso nunca aconteceu.

dão conta da complexidade da realidade brasileira

Mas eles sabiam que aqueles documentos não ti-

no pós-guerra. Enfim, foi uma pesquisa muito difí-

nham força suficiente para convencer o Ministério

cil, mas muito prazerosa de fazer. Para escreve-la,

da Justiça e Negócios Interiores a expulsar Cukurs.

viajei a Letônia e Uruguai. Pesquisei em diversos ar-

Essas evidências se tornaram ainda mais frágeis

quivos no Brasil e no exterior. Lidei com mais de

quando autoridades do Foreign Office, o Ministério

cinco mil páginas de documentos.

das Relações Exteriores da Inglaterra, uma vez abordadas pelo governo brasileiro, não colabora-

Os judeus no Brasil tiveram uma trajetória muito diversa da dos outros judeus pelo mundo?

ram ativamente com a investigação. Os ingleses

Esta é uma pergunta muito difícil de ser

forneceram informações equivocadas sobre o co-

respondida de forma simples. Cada imigrante, cada

mitê que tinha reunido as evidências contra Cukurs

família de imigrante possui uma história bastante

e demoraram uma eternidade para responder as so-

própria. As pessoas sentem e experimentam a vida

licitações brasileiras. Chegaram até mesmo a usar

de uma forma singular. Seus êxitos, insucessos,

uma tática conhecida como wait and see, que con-

ressentimentos,

sistia basicamente em silenciar sobre um tema até

significadas a partir de variáveis objetivas e

que as pessoas interessadas nele simplesmente se

subjetivas. Neste sentido, aqueles judeus que

esquecessem dele. O governo brasileiro, que nunca

vieram para o Brasil construíram trajetórias de vida

colocou o Caso Cukurs ou mesmo a questão dos cri-

diferentes daqueles que foram para outros países.

minosos nazistas como ponto principal de sua

Mesmo quando falamos nas trajetórias dos judeus

agenda no pós-guerra, acabou com mais dúvidas do

que vieram para o Brasil estamos falando de um

saudades,

memórias

são

universo bastante diverso. A ideia de “comunidade”


G N A R U S | 158 pode nos passar a falsa sensação de falar de um

houvesse a colaboração de franceses, italianos,

grupo homogêneo, que partilha das mesmas

japoneses, húngaros, poloneses, etc. Isso coloca a

memórias e trajetórias. Mas não é assim. As pessoas

coisa em uma outra perspectiva. Além disso, quanto

são diferentes e isso aparece dentro do grupo de

mais sabemos sobre a presença de criminosos

uma maneira quase sempre muito evidente. Por

nazistas no Brasil ou mesmo da participação

outro lado, a cultura judaica é muito forte. Então,

brasileira na Segunda Guerra Mundial, mais somos

você vai encontrar em vários países algumas

capazes de entender que o Holocausto é um tema

recorrências: rituais religiosos, sinagogas, clubes,

da história que nos diz respeito. O brasileiro ainda

associações, ideologias, querelas, tensões, formas

conhece pouco a história do Holocausto, mas

de organização, militância, etc. Neste ponto, a

conhecemos melhor o tema do que há 20 anos.

trajetória dos judeus no Brasil pode ser aproximada

Hoje, o Holocausto não é mais um box dentro de

da trajetória de judeus que foram para outros

uma capítulo da II guerra.

países, que também reconstruíram suas vidas com base “cultura judaica” (que também é múltipla e não una). Não estamos falando de uma forma, de uma fórmula, mas você vai encontrar similitudes na diáspora, claro.

Ao longo desse tempo de funcionamento do Café História e durante sua trajetória acadêmica e profissional como o senhor avalia o campo da História? Tem notado mudanças significativas? Outra pergunta difícil. (risos). Eu sou bastante otimista quanto a isso. Os historiadores são

Qual o grau de importância que o senhor percebe nos estudos sobre o holocausto na sociedade brasileira?

bastante respeitados em nosso país, na minha

Acho que durante muitos anos os brasileiros viram

Brasileira de Letras, temos historiadores prestando

o Holocausto como algo que dizia respeito

consultoria à diversas empresas, temos muitos

basicamente a judeus e alemães. Algo bem

historiadores na mídia, comentando fatos que em

afastado da realidade brasileira. Essa perspectiva,

anos anteriores eram comentados apenas por

no entanto, tem mudado. Acho que hoje parte dos

cientistas políticos ou sociólogos. Temos ótimos

brasileiros já entende que o aquilo aconteceu com

cursos de graduação e de pós-graduação. A

os judeus durante a guerra é um crime contra a

regulamentação da profissão está sendo discutida

humanidade. Esse crime extrapola nacionalidades

com força total. Os professores escolares já não

ou grupos sociais específicos. É claro que os nazistas

estão mais desamparados: temos mestrados

foram os principais perpetradores. Mas a escala de

profissionais extremamente importantes, como o

violência não seria esta que conhecemos se não

ProfHistória. Nossos eventos estão sempre cheios.

opinião. Nós temos historiadores na Academia


G N A R U S | 159 Os projetos de digitalização vão de vento em

metodologia, na crítica das fontes, uma escrita

pompa. A tecnologia tem nos ajudado. Eu sou talvez

altamente controlada, erudita, que passa pelo crivo

muito novo para fazer comparações com o passado.

dos

Mas eu diria que vivemos um bom momento. É um

desenvolvimento

bom momento para ser historiador.

conhecimento. Não se trata da história do senso

pares,

uma e

história que

sempre visa

em

construir

comum, que é sinônimo de passado. Essa história, Para finalizar temos duas perguntas que já são tradicionais a nossos entrevistados: o que é história? Qual o conselho que o senhor daria àquele aluno do primeiro período que está agora iniciando nos estudos da História? Quando eu penso na história que eu faço na

por fim, pode ser feita tanto para “iniciados” na matéria quanto para os leigos e o grande público. Em relação ao conselho, eu vou repetir o que eu sempre digo aos meus alunos: leia muito, leia de tudo,

seja

perfeccionista,

conheça

outras

universidade, eu penso em historiografia. E aí

disciplinas, continue estudando, acredite na força

estamos nos referindo a uma história baseada em

de sua geração.


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