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Entrevista

MESTRE BIMBA, DIRETOR DA BANDA HARMONIA DO SAMBA: QUANDO O ARTISTA REFLETE A HISTÓRIA Por Diego da Rocha Viana Muniz

A

banda de Pagode Baiano, Harmonia do Samba, teve auge de popularidade, no final anos 90 e início dos anos 2000. Além dos inúmeros pagodes baianos de sucesso, como Vem Neném, Nova Dança, Desafio, Nossa Paradinha, Destrambelhada, Joga o Laço e Comando; a banda, também, sempre dialogou com outros gêneros musicais. O Harmonia Light, foi um álbum especial só com MPBs, Bossa Nova, Pagode Romântico e outros estilos. Chamam atenção as influências de jazz, merengue, salsa etc., no repertório, que iremos detalhar posteriormente. Numa conversa quase informal que tivemos, eu e Mestre Bimba - baixista e Diretor de Harmonia, da banda – falamos sobre as influências de todos esses ritmos e gêneros em seu repertório. Nascido nos anos 90, e vindo de uma família tradicional musicalmente, fui criado ouvindo

tanto músicas “tradicionais” como jazz, samba de raiz, gafieira, MPB e chorinho – classificados como “música boa” pelos mais antigos da família - quanto músicas mais novas que curtia com pessoas da minha geração. Além de escutar desde a infância e ter pesquisado sobre o Axé Music e o Pagode Baiano durante a minha trajetória universitária; o repertório do Harmonia do Samba, desde o começo, me chamou atenção pelo diálogo que fazia entre o Pagode Baiano (com origens diversas que remetem ao samba de roda, samba-chula e o samba-duro), e outros gêneros/ritmos como a salsa, o merengue, o jazz, ritmos relacionados à MPB etc. Lembro da alegria com que conversava com meus professores da UERJ ao mostrar os naipes de algumas músicas. Samba Merengue, como o nome evidencia, é uma mistura extremamente bem sucedida do Pagode Baiano com o Merengue. Os naipes de Uva e Casa do Harmonia são salsas

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explícitas. A introdução de Deslizando, um jazz. Mas e os naipes de Vem Neném – que se encaixa perfeitamente num jazz acelerado – e Elevador? Assim como outras bandas e estudos, a formação daquela musicalidade mostrava claramente a influência histórica do “Caldeirão de Ritmos” da música soteropolitana, que incluía os mais diversos gêneros.1 Quais seriam as referências musicais dos para tamanha hibridez no repertório? Como bons pesquisadores, vamos às fontes!

DIEGO: Durante as minhas pesquisas, as partes que mais tive dificuldade de entender as influências foram o naipe de Vem Neném, e a introdução de Elevador, no primeiro álbum do Harmonia do Samba. Estava numa livraria quando escutei um naipe de jazz muito parecido. Na hora saí correndo para perguntar à moça do caixa que artista era aquele. Como ela me passou o artista errado, mesmo após buscas incessantes, eu nunca consegui referenciar exatamente a qual jazz esse naipe se assemelhava – faço o solfejo dos “metais”. Você se inspirou no jazz pra compor o refrão de Vem Neném? MESTRE BIMBA: Se houve algum tipo de influência foi inconsciente, porque eu quando fiz a música, o arranjo foi baseado no refrão – começa a cantar “Vem neném, neném, vem neném (...)” – o naipe na verdade é o solfejo do refrão. E quando eu fiz, eu não estava

1 DA ROCHA, 2013.

pensando em outra música, não. Foi uma coisa que “veio”. Eu ficava tocando o cavaquinho – “Tém demquitem, quitem, démquitem quitem” – fazendo uma base assim, aí me veio uma ideia do refrão e a partir do refrão eu desenvolvi o restante da música. O arranjo tecnicamente segue a mesma linha. Mas assim, eu sempre ouvi todo tipo de música. Eu ouço jazz, ouço MPB pra caramba, música africana, música de todo tipo. Sempre ouvi muito! E nessa época foi uma época em que eu estava estudando muito, ouvindo muito música, de modo geral. Então provavelmente pode ter acontecido sim. Inconscientemente isso poder ter acontecido. Mas não foi uma coisa de ter ouvido e feito, assim, não. Tudo o que a gente faz aqui hoje, você de alguma forma absorveu de algum lugar. Mas não foi uma inspiração direta não. Uva foi o mesmo fato. Uva é uma “parada” de salsa – solfeja o baixo e os metais “parapápá pará pá pumpum. Taquitiquita (...)” – eu ouvia muita salsa também nessa época. Ouvia muito Michel Camilo, Juan Luis Guerra... eu ouço de tudo! De tudo, mesmo! Eu comecei tocando Fundo de Quintal, Jovelina essas coisas. Toco até hoje com os amigos! Vira e mexe eu faço um sambinha com os amigos. Comecei a tocar Axé, Novos Baianos, aquela coisa. Quando eu comecei a tocar baixo, violão... enfim! Comecei tocando Axé, mas depois migrei para o samba. Samba mesmo, Partido Alto! E foi aí que iniciamos o Harmonia. O Harmonia começou inclusive nessa linha. Os instrumentos eram repique-de-mão, tantã... nossa maior influência era o Fundo de Quintal. Tinha um grupo que eu tocava antes do Harmonia, chamado Expressão do Samba. A partir do Expressão do Samba que o Roque

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GNARUS - 191 César teve a ideia de fazer o Harmonia, mas antes era samba. Samba mesmo! E os outros instrumentos vieram naturalmente, porque a gente ouvia muito samba de roda, e aí era um pouco de tudo, sabe? Ouvia muito Djavan... a gente ouvia um pouquinho de tudo. Na verdade eu acabei trazendo pra galera esse universo musical. O Harmonia tem influência de tudo quanto é lado. Por isso que nos arranjos das músicas eu sempre coloquei muitas coisas melódicas em muitas divisões, como você falou. De jazz, porque eu ouvi muito jazz também, como John Coltrane, por exemplo. Ouvi muita MPB: Tom Jobim, Chico Buarque que eu ouço até hoje. Djavan nem se fala! É o artista que mais nos inspirou. Todo mundo aqui é muito fã de Djavan! Djavan eu sabia todos os arranjos. Aprendi a fazer arranjo ouvindo o Djavan. Entendi que tinha introdução, uma parte A, uma parte B... e assim eu aprendi a fazer música intuitivamente – porque eu sou autodidata – ouvindo muito esses caras, sacou?! O Harmonia é um grupo popular. Só que o Harmonia não começou com essa ideia de ser popular! A gente fazia música porque a gente gostava de fazer música. E como eu te falei, a gente tinha todas essas influencias. A gente veio tocando sambas, partidos, coisa e tal, e depois foi mudando, porque ouvíamos muito o samba duro. Chama-se samba duro aqui, que é o samba junino, o samba de roda, aqueles bordões de viola... cultura do Recôncavo Baiano. E aí ocorreu essa mistura do samba de lá, com o samba de roda. Trocamos instrumentos, porque o Roque César antes de ir para a bateria, tocava repique-de-mão, exatamente como o Fundo de Quintal fazia com marcação de mão; aí a gente foi trocando. Nós tiramos o repique-de-

mão e botamos repique-de-baqueta. Tiramos marcação tantã e botamos conga. Também influenciado pelo universo próximo da gente, em Salvador, que era o Gera Samba, influência do Terra Samba... falo influência nesse sentido de samba de roda. Antes do Gera Samba ser o É o Tchan, a gente já fazia muito samba de roda, aprendendo muito com eles. Então a gente teve essa influência do samba de roda juntamente com o Axé. O repique, por exemplo, é um instrumento de Axé que foi introduzido no pagode. Assim como o torpedo foi introduzido com o Psirico, mas antes era o surdo do samba, o repique do Axé, congas que é muito tocado na salsa, timbal da Timbalada, do Olodum, foram coisas que a gente pegou. O Harmonia foi pegando um pouquinho de cada coisa. Aliado a isso, todas as influências musicais que tivemos, de jazz, disso, daquilo, nós fomos fazendo esse “Caldeirão”. E como eu disse anteriormente, o Harmonia é uma banda popular porque a nossa música é uma música popular na Bahia, e consecutivamente no Brasil. Mas nunca foi uma coisa de “vamos fazer uma música popular, fácil de fazer, fácil de entender” até porque a gente sempre buscou apurar nossa musicalidade. Chega uma hora em que obviamente você começa a viver de música e abre o mercado em gravadora; vem produção, e tem horas que você tem que pensar comercialmente, porque você sabe que tem que atualizar a sua música, se não você fica pra trás. A gente tem vinte anos de sucesso e tem conseguido conciliar isso, bem. Independente de estar em cima, no meio ou embaixo, às vezes em alta, às vezes nem tanto, mas eu acho que a gente conseguiu manter bem esse papel de atualizar e manter

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GNARUS - 192 nossa música. Não é qualquer banda. A gente tem orgulho de ter mais de vinte anos na estrada. Foi correria! A gente por exemplo, acabou de fazer quatorze shows, em seis dias! Dois shows por dia nos Estados Unidos, ou seja: é bem intenso, e chega uma hora que você tem que pensar também como negócio, sem perder a honestidade e a essência. Eu acho que isso é o mais importante, entende, Diego?

DIEGO: Opa! Se quiser continuar... estou adorando! MESTRE BIMBA: É muita informação, se deixar a gente vai falando! Com certeza você vai ver muita influência de todos os lados. Se eu parar com calma pra ouvir, você vai ver que isso saiu do jazz, aquilo da salsa, do samba, uma melodia de Djavan; um pouco de tudo. Porque eu como Diretor musical e arranjador já escuto, e os caras da banda também escutam pra caramba. Sempre escutaram! E a gente sempre se desafiou a fazer coisas deste tipo. Hoje a gente tem tentado ao máximo se atualizar porque o seu público muda. A menina que tinha vinte anos quando a gente começou, tem quarenta hoje. Quem tinha trinta, está com cinquenta. Quando começou a aparecer na mídia porque o Harmonia tem vinte e seis anos. Ficamos seis anos no anonimato, e em 2000 quando a gente estourou pelo Brasil, que as pessoas começaram a conhecer o nosso trabalho. Então a gente tem que se atualizar, porque vai aparecendo muita coisa, e a música muda. Se você não tentar se atualizar, você fica pra trás. E a gente que depende disso e vive de música tem que estar atento, viu?

Só pra fechar, a gente entende que a nossa música é uma música popular, e muitos não entendem. Entendem que é só mais uma banda que está ali fazendo música pra vender e tal. Na verdade não foi isso. Nosso caso foi o contrário! A gente fazia nosso tipo de música, nossa música é de verdade, porque a gente já fazia isso daí. Eu conheço música, de verdade! Se você citar jazz eu vou te dar vários nomes que eu escuto até hoje. A gente vai falar de música africana, vai falar de música latina, de música instrumental, de MPB... de tudo! Se eu for sentar aqui e falar de MPB, de samba, tudo o que você me falar de samba. Samba é o estilo musical que eu mais tenho propriedade pra falar, pra dizer a verdade! Eu até tenho um grupo de samba: o Samba do Mestre; que a gente toca de vez em quando. Sempre toquei Jovelina, Almir Guineto, Fundo de Quintal pra caramba! Então eu posso sentar e falar de tudo, porque a gente tem influência de todo lado! Mas de fato a nossa música tem uma característica e essência nossa. Tem algo de “verdade” que as pessoas que não conhecem tanto acham que é só mais uma música de mercado. Mas se não fosse uma música de verdade eu acho que não estaríamos aí por vinte anos. Eu sou mais tranquilo, calado. Mas quando se fala de música eu falo muito, mesmo. E volto a dizer, quando se fala de Pixinguinha você não precisa falar nada mais. Você é parente de um dos pilares da música popular brasileira, junto com Noel Rosa, Cartola, Tom Jobim e outros, né? Então não dá nem como comentar sobre Pixinguinha. Dispensa comentários. Parabéns! Que bom você ter nascido de uma família de um maestro tão maravilhoso. E obrigado! Obrigado por ter se interessado por nosso trabalho. É o legado que a gente deixa.

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GNARUS - 193 É o que você escreve hoje que vão ouvir daqui a vinte, trinta anos. A gente nem vai estar aqui mais, mas as pessoas vão entender um pouquinho mais, porque tiveram pessoas que pesquisaram. Nós provavelmente vamos fazer um documentário sobre a nossa carreira porque, de fato, é algo muito extenso. Se a gente for contar como a banda nasceu até hoje, é muita história pra contar. Mas com calma a gente vai fazer. Já estamos idealizando. E é bom que fomenta as pessoas que não conhecem, para gente passar a nossa verdade.

DIEGO: Eu mesmo na família tenho membros mais velhos que são musicalmente mais tradicionais. Sempre tento trazer à tona que vejo influências diversas dos gêneros que eles valorizam, na música de vocês. O Netinho é outro. Aquele CD do Ao Vivo de 1996 (Universal Music) com paralelos na salsa, no chutney de Trinidad e Tobago. Os arranjos... é uma coisa maravilhosa! MESTRE BIMBA: É completamente compreensível a resistência ao nosso tipo de música. O Axé mesmo! O nome Axé foi um termo pejorativo dado por um repórter daqui que gostava de Rock, que acabou “pegando”. Mas por aí você tira que a gente sofreu muito, apesar de ser uma música muito rica! Essa época então - os anos 90 - foi de uma riqueza percussiva! A Timbalada; o Olodum tocou com o Michael Jackson, então não precisa dizer muito. Sem contar a parte harmônica, também. Esse disco do Netinho, que você citou, é um marco. Inclusive a banda era muito boa. Hoje os caras são meus amigos. Naquela época eu “pagava pau”. Já tocava, e tocava

Axé. Para mim aquele CD é muito bom. Para a gente, a música boa é sempre a da nossa época; os arranjos e tal. Pode até ser que sim, eu acho que a música regrediu mesmo à nível de arranjo etc. mas eu também tenho que entender que a música muda, e que eu não posso querer que meu filho sinta a mesma emoção que eu senti ouvindo Djavan, ouvindo Gil, ouvindo o próprio Pixinguinha... ele pode ouvir e receber bem, como pode ouvir e de repente aquilo não passar nada pra ele. Eu tenho que respeitar isso, porque na minha época eu tinha um tio que dizia “música boa era no meu tempo”, que era Nelson Gonçalves, Trio Iraquitan que não me fazia vibrar tanto. Era uma coisa assim “demodê”. Mas é natural porque, para ele, a época dele que era boa. A gente tem que ter um olhar profundo, mas nem sempre nós estamos abertos. Pra eu falar do funk, eu vou ter que olhar mais profundamente, mesmo que eu não goste, eu tenho que ouvir e entender que é uma música de gueto, criada em periferia como a nossa música também é criada em periferia. Nós somos de um bairro humilde de Salvador, que seria uma favela no Rio, e nesses lugares surgem muita coisa natural que as pessoas às vezes não entendem, mas tem uma “verdade” daquele lugar. Se você for analisar com um sentido mais técnico, você terá critérios técnicos. Para as pessoas que estão ouvindo e não entendem de música, elas vão analisar com o coração, e não com a razão. Elas vão ouvir aquilo e dizer se elas gostam ou não. Do nosso primeiro álbum até hoje, a gente sentiu uma necessidade de aprender e evoluir musicalmente. Existia uma simplicidade musical que se aprimorou. Esses arranjos que você fala são todos meus, mesmo. Eu fiz

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GNARUS - 194 todos os arranjos dos três primeiros discos: eu solfejava o naipe, o solo do cavaco... eu solfejava as coisas. Então muita coisa surgiu de fragmentos que eu tinha de várias coisas, inclusive eu tenho um CD instrumental que é um outro lado meu: tem chorinho, tem samba, tem música africana, tem pop... tem um pouco de tudo. Porque ainda que eu use isso no Harmonia, são músicas que eu pude mostrar um outro lado meu que muitos não conheciam. Mas de fato muita gente tem uma rejeição porque pensam que é uma coisa só mercadológica. No caso do Harmonia, nunca foi. Aconteceu de virar uma música popular, mas sempre houve uma “verdade”. Há uma “verdade” ali. Essência de amor naquilo que foi feito.

DIEGO: E sobre a introdução de Elevador? MESTRE BIMBA: Elevador é uma composição de Xanddy, mas os arranjos são meus. O jazz já fazia parte da gente ali – tanto que a gente sempre tocou um pouco disso, então provavelmente você vai encontrar ali. Eu sou autodidata mas comecei a estudar depois, tenho faculdade de música trancada, mas eu estudei bastante sozinho. Do Harmonia, até o sucesso o que eu fazia era autodidata. Tocava muito por intuição. Chega uma hora que você fica limitado, e precisa dar uma estudada, se não você fica pra trás. Mas a ideia sempre foi essa mesmo: trazer elementos de outras músicas e aplicar ali. Eu sempre pensei em fazer.

Diego da Rocha Viana Muniz é Graduado em História pela UERJ (2013), ex-professor da kommun de Sigtuna e Huddinge, bem como da iniciativa privada, na Suécia e atualmente estudante, da Essex University.

Leituras Recomendadas: DA ROCHA, Diego. Que swing é esse?! A Formação Histórica do Caldeirão de Ritmos da Axé Music. Amazon, 2013. GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador. São Paulo: Ed. 34, 2000. MOURA, Milton. Carnaval e Baianidade. Arestas e Curvas na Coreografia de Identidades do Carnaval de Salvador. Tese de doutorado, UFBA. 2001.

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