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Resenha

O LUTO COMO CHAVE DE SUPERAÇÃO. UM CONVITE À LEITURA DE: “Melancolia de Esquerda” Por Pedro Gabriel Torres de Assis

TRAVERSO, Enzo. Melancolia de esquerda – Marxismo, História e Memória. Tradução de André Bezamat. Editora Âyiné, 2018. 495 páginas.

N

o filme 8 Mile – A rua das ilusões o personagem interpretado por Eminem é um jovem de periferia que tenta crescer no mundo das batalhas de rap ao mesmo tempo em que toca sua vida instável em um lar repleto de conflitos. Sua mãe é viciada em drogas, portanto cabe ao personagem principal assumir o papel de pai para sua irmã mais nova, uma vez que não há a figura do patriarca na casa – possivelmente mais um dos milhares de casos de abandono paterno. Em uma inversão da esfera social, ele, um jovem branco, é quem corresponde a minoria no gueto em que vive, de formação majoritariamente negra. Na última cena, onde finalmente o protagonista consegue o tão sonhado duelo final com Papa Doc (seu antagonista), Eminem subverte toda a lógica do embate. Sabendo

se tratar de um alvo fácil de ataques para seu oponente, o rapper promove uma busca em todo o seu passado, uma perfeita aplicação de sua “memória”, para, então elencar em seus versos todas as amarguras e derrotas na vida. Fala sobre o quão falho ele é para a sociedade do self made man. Em resumo, seus versos cumprem uma verdadeira função de destruição de sua própria imagem. Seu efeito é arrasador, diante de uma plateia catatônica, que se vê sem reação diante da apresentação. E, claro, de seu próprio oponente, que uma vez sem “armas” para atacá-lo, não produz sequer um verso e é derrotado. Traverso certamente não viu o filme do rapper norte-americano ou o considerou para produzir a sua obra, no entanto, poucas produções poderiam apreender uma melhor representação daquilo que o livro do historiador italiano trata: a capacidade de transformar

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GNARUS - 168 um cenário de sucessivas derrotas em um triunfo final. A obra Melancolia de esquerda: Marxismo, História e Memória do historiador italiano Enzo Traverso(1957) foi traduzida pela editora Ayné, na coleção Aut-Aut, dedicada a pensadores de Esquerda. Traverso, um historiador italiano com passagens pela Universidade de Picardie, e atualmente lecionando na Universidade de Cornell, se propõe justamente a debater as relações travadas da “memória” com a Esquerda e seu passado. Contando com aproximadamente 500 páginas, é, sobretudo, uma forma de aprender a lidar com as sucessivas derrotas impostas aos movimentos revolucionários. A introdução da obra de Traverso faz um interessante link com a Memória – termo que atualmente se aborda de uma maneira banal na historiografia, o que contribui para sua queda em ambiguidades que mais dificultam a comunicação do que propriamente ajudam. A tradição marxista sempre teve o seu respaldo e a crença na consequente vitória sobre a opressão e a sociedade de classes, utilizandose do passado. Contudo, já não haveria mais um projeto para o futuro, uma vez que a queda do Muro de Berlim, o fim da URSS e o triunfo do capitalismo fechavam as cortinas do turbulento século XX. O que há, a partir de agora, é um passado a ser rememorado, com ares nostálgicos. E lamentado. Ela, a Memória, está lá, mas, somente de maneira fragmentada e des-

figurada. O leitor em seu primeiro contato, porém, pode se indagar o que seria a Melancolia de Esquerda, que dá título ao livro do historiador italiano. Esta pergunta é logo respondida em alguns trechos introdutórios: “Essa passagem de uma época de fogo e sangue — que, apesar de todas as derrotas, se mantinha decifrável — para um novo tempo de ameaças globais sem um resultado previsível tem um sabor melancólico. Essa melancolia, no entanto, não significa retirar-se para um universo fechado de sofrimento e lembrança; trata-se mais de uma constelação de emoções e sentimentos que envolvem uma transição histórica (…) É a melancolia de uma esquerda que, mesmo aberta às lutas no presente, não foge à autocrítica em relação a seus fracassos do passado; que não se resigna à ordem mundial estabelecida pelo neoliberalismo, mas não pode renovar seu arsenal crítico sem antes se identificar e se irmanar com os derrotados da história” (TRAVERSO; 2018) Para que sustente sua tese, Traverso remonta a pensamentos correntes na tradicional historiografia. A possibilidade de se resgatar a história dos vencidos – remontando a Benjamin – se vê em xeque uma vez que o “horizonte” se reduz em expectativas – um diálogo com Koselleck. Somente há trevas, aonde antes residia esperança no movimento revolucionário de esquerda. Em seguida a tais constatações, Traverso

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GNARUS - 169 dedica-se a elencar uma série de manifestações das potencialidades emancipatórias de sua Melancolia de Esquerda. Passando pelo cinema – Wolfgang Becker e Theo Angelopoulos, como exemplo – e a literatura, onde resgata a figura da boêmia em Baudelaire e Benjamin, Traverso trata também das antigas estátuas dantescas erguidas em homenagem ao regime soviético. Posteriormente depostas, seriam símbolos daquilo que não mais existe. O autor inquire nestes longos trechos de sua obra as potencialidades de um luto revolucionário. No capítulo Adorno e Benjamin: Cartas na meia-noite do século, o autor expõe as trocas de correspondências entre um pessimista Theodor Adorno – com a perda da aura na obra de arte – e um entusiasmado Benjamin – que enxerga possibilidades de emancipação na massificação da cultura. É, porém, no último capítulo, dedicado a uma hipotética aproximação entre Daniel Bensaid e Walter Benjamin que Traverso expõe uma de suas mais interessantes perspectivas: a possibilidade de resistência ao desaparecimento de um diálogo entre passado e futuro. Há aqui uma forte crítica às ideias quase apocalípticas na marcha da História, e, neste caso é quase impossível não relembrar de Fukuyama e suas teorias, bem como as noções de um presente fragmentado, alargado, tão em voga com os pensadores pós-modernos. A noção rebatida por Traverso partiria do princípio de que com o fim da utopia comunista, seria como a História fosse resumida a memórias, tratando-se de um emaranhado de vítimas e catástrofes. Traverso possui uma vasta erudição, uma capacidade rara de conciliar a escrita histórica com a clareza de suas palavras, tornando o ato

da leitura agradável e fluido. Habilidade que não é rara aos historiadores italianos, que parecem ter a consciência de que a inteligibilidade é fundamental em nosso campo. Percebemos a enraizada noção que forma e conteúdo estão plenamente associados e são essenciais no ofício do historiador, tanto quanto se faz necessária a interdisciplinaridade. Traverso tem forte apreço por Walter Benjamin. Isto é facilmente perceptível quando dedica um capítulo inteiro ao intelectual alemão. Está presente na sua escrita a intenção da dor como motor para a superação, e não como estado de inércia. No entanto, sua escrita se mostra mais inclinada à derrota do que a de Benjamin poderia um dia sugerir. E este aspecto, ao avançar da obra, acaba por se tornar um pouco incômodo ao leitor. A forma lânguida com que transmite sua mensagem parece contradizer seu objetivo final de unir luta ao luto. Ainda que sua obra remonte especialmente – mas não somente – ao cenário da esquerda no cenário europeu, Traverso enxerga no Terceiro Mundo um potencial campo de repensar e gerar novas formas de atuação da esquerda. Para o autor, as “políticas de memória” aqui praticadas se afastam da vitimização dos que se foram. Em seu lugar, escrevem uma grande exclamação para recordar que a discussão sobre o passado não deve simplesmente se encerrar. O caso da Argentina pós-ditadura é clássico exemplo.

Pedro Gabriel Torres de Assis é mestrando no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Agência de Fomento CAPES.

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