Fazendo 95

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FAZENDO 95 o boletim do que por cรก se faz

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gratuito

dezembro 2014

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FAZENDO

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Sumário

Ficha Técnica

Crónica

Directores aurora ribeiro tomás melo

António Dacosta por carlos bessa .9504

Coordenadores albino de pinho fernando nunes rita mendes silvia lino

Literatura

Conjunto Homem, Jácome Armas por pedro lucas

Colaboradores ana calado ana lúcia almeida carlos bessa eduardo isidro francisco henriques gonçalo cabaça helder marques da silva joel neto luís andrade miguel machete orlando guerreiro pedro lucas rui pinto sara soares sean paton tiago valim tiago rosas vitor vargas

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Ciência

Caça à Térmita por orlando guerreiro .9508

Arquitectura

Auditório nas Lajes do Pico por rui pinto .9514

Cinema

História dos Açores tiago rosas por fernando nunes

Revisão sara soares

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Paginação tomás melo

História

Projecto Gráfico ilhasCook

Património Baleeiro por francisco henriques .9522

propriedade sede

9900 horta ilustração: Phlegm

Dança

Leva de Cheia por tiago valim .9528

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FAZENDO

assoc cultural fazendo

rua conselheiro medeiros nº 19

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periodicidade tiragem

mensal

500 exemplares

impressão

o telégrapho

registado na erc com o nº125988


FAZENDO 95 Editorial

As capas dos jornais tentam moldar a opinião pública? Então a capa do Fazendo é assim.

Tal como há diferentes tipos de filmes há também diferentes tipos de jornais, desde os documentais aos de ficção, passando pelos cómicos e pelos romanceados. Se a maioria da imprensa está mais dedicada em desviar as atenções do que realmente importa, no Fazendo procuramos o contrário, contabilizamos peças de teatro e não furtos de velocípedes. O Jornal Fazendo procura escrever os Açores aqui e agora. Os jornais sempre tentaram moldar o mundo e quase sempre com sucesso. O Fazendo assume-o e sem interesses económicos vai continuar a ser a voz e a escrita da comunidade e da cultura açoriana.

Tal como nos anos anteriores, o jornal reinventa-se, mudando toda a sua imagem, alguma da sua estrutura, não mudando nada dos seus ideais. Nesta sétima temporada o Fazendo diminui em tamanho mas aumenta em conteúdo. Talvez chame menos a atenção no balcão do café (por ser mais pequeno) mas o leitor pode dedicar-lhe mais tempo, passar mais páginas, ler mais letras gordas ou mesmo ler o Fazendinho em voz alta. Tudo para que possamos dedicar-nos a aprofundá-lo, sem nos ficarmos pelas aparências.

Os jornais sempre tentaram moldar o mundo e quase sempre com sucesso.

Após um legado de vários extraordinários designers o Fazendo foi agora desenhado pelas ilhasCook que tentam aproximar o jornal do leitor e dos colaboradores, criando espaços para todos. As ilhasCook são designers multidisciplinares: filmam, desenham, projectam,

escrevem, fotografam, educam. Têm desenvolvido conceitos, estruturas, objectos, espectáculos e tudo o que promova a comunicação entre as gentes. A grande novidade é o suplemento, o Fazendinho, para os mais novos lerem, desenharem, interagirem.

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ilustração: Happycentro

Após treze anos na reitoria da Universidade dos Açores, o Professor Doutor António Manuel Bettencourt Machado Pires publica nesse ano do século passado o livro: “O Homem Açoriano e a Açorianidade”, escrevendo parágrafos como este: “A ilha em que nascemos é um eixo do Cosmos, uma pequena-pátria, um mundo de referências matriciais [...], um ponto de regresso ideal, uma Ítaca em que cada um é o Ulisses da sua própria e secreta mitologia”. A RTP Açores exibe o telefilme “O Feiticeiro do Vento” de José Medeiros. Pedro de Merelim, pseudónimo de Joaquim Gomes da Cunha (São Pedro de Merelim, 1913 – Angra do Heroísmo, 2002), historiador e etnógrafo dos Açores, reedita “Os Hebraicos na ilha Terceira”, súmula anteriormente publicada na

Tomás Melo

A ilha em que nascemos é um eixo do Cosmos [...] um ponto de regresso ideal, uma Ítaca em que cada um é o Ulisses da sua própria e secreta mitologia

Fernando Nunes revista Atlântida (1968) e César Gabriel Barreira publica “Um Olhar sobre a Cidade da Horta”, editado pelo Núcleo Cultural da Horta. Esse é também o ano em que a Áustria, a Suécia e a Finlândia se juntam à União Europeia, desaparece o conhecido desenhador Hugo Pratt, e o poeta irlandês, Seamus Heaney, vence o prémio Nobel da Literatura. *

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olhar, esquecer, esperar no centenário de

António Dacosta sair da ilha permitiu-lhe entrar em contacto com outras maneiras de pintar, particularmente com artistas que estavam mais ou menos a par de tendências e correntes novas Carlos Bessa

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Os jornais enchem-se diaria-

mente de ressentimentos e malquerenças, de queixas e desastres. Mas também podem ser um repositório de alegrias, mesmo que breves. Hoje, gostaria de partilhar o meu agrado por dois eventos locais recentes, relacionados com António Dacosta (1914-1990), figura maior da arte portuguesa: o lançamento do livro António Dacosta. A Clarividência da Saudade, de Assunção Melo e a inauguração da exposição António Dacosta, um pintor do século XX, exemplarmente comissariada por Francisco Pedroso Lima, patente ao público no Museu de Angra do Heroísmo. E gostaria de o fazer parafraseando o pintor, quando, ao referir-se (1943) a Mário Eloy, diz “Nada de equívocos. É preciso olhar, esquecer e esperar”. Porque a expressão parece assentar a Dacosta que nem uma luva. Soube olhar, esquecer e esperar. E nesse entretanto condensou uma força que transbordou em pintura e contaminou as últimas décadas do século passado, dando expressão a um universo pessoal. Um universo criado, em parte, a partir de uma mundividência local, terceirense, que começaria a tomar forma aos


crónica

Embora tenha pintado toda a vida, os quadros do período entre 1947 e 1975 são escassos, evidenciando uma necessidade interior de maturação

vinte e poucos anos, depois de ter saído da ilha (1935). Partir deixa sempre em nós, portugueses, uma espécie de vazio a que chamamos saudade. Uma saudade carregada de imagens, cheiros e emoções. Dacosta transfigurou-a, pintando a ilha sem recurso a topos naturalistas, numa época em que eles eram, ainda, recorrentes no nosso país. Primeiro, com laivos sur-realizantes, depois com a força mítica da memória, numa leveza que se abeira do mundo encantado da infância. Anos mais tarde, poria em verso parte dessas mesmas inquietações: “Tudo verde até ao mar / (…) A redonda cúpula de vidro azul // De súbito / Estas flores o cheiro a pedra queimada / (…) e já lembrando ao longe / O que agora aqui é fresco e verde / E amargo como a baga de faia / Que menino meti na boca e trinquei.” (A Cal dos Muros, 1994). Sair da ilha permitiu-lhe entrar em contacto com outras maneiras de pintar, particularmente com artistas que estavam mais ou menos a par de tendências e correntes novas. E vamos encontrá-lo ligado ao surrealismo português, tendo sido pioneiro desse movimento em Portugal, juntamente com António Pedro, com quem expõe, em Lisboa (Ex Poem, 1940). Mau grado o incêndio (1944) que levou a maior parte desses quadros, salvaram-se alguns desse período, que nos mostram o contágio entre os dois Antónios, o jovem Dacosta e o maduro Pedro. O bastante, mesmo assim, para deixar entre os que vieram a seguir uma aura, aumentada certamente pela sua ida, em 1947, para Paris. O surrealismo que nos nossos dias é socialmente bem remunerado, em parte pelos (e)feitos dalinianos, era, no Portugal de então, uma corrente que entrava em conflito com a estética dominante. Porque nesse tempo ainda havia disso,

estética dominante. Imperava um gosto académico, fechado nos processos e modos do século XIX, de pendor naturalista, quando não cheio de laivos românticos. Que contaminava não só a pintura como a literatura. Que sabia Portugal das vanguardas? Quase nada. De norte a sul, passando pelas ilhas, vivia-se um atraso económico, social e cultural quase atávico, que Eça retratara e ironizara já no século XIX e que merecera de Antero um poderoso libelo. Mas, em tirando a geração do Orpheu, que explodira em Lisboa (1915) com força de escândalo, o país não tinha saído da I Guerra Mundial rumo ao desenvolvimento, apenas conseguira a censura, o medo, a fome, a polícia. Dacosta atraca, em 1935, numa Lisboa em plena afirmação do Estado Novo, que quererá glorificar-se através de uma bem montada operação de propaganda chamada Exposição do Mundo Português (1940). Onde, aliás, lhe recusam colaboração. Felizmente, pôde sair e rumar à capital das artes. Não sem que, antes, o Secretariado de Propaganda Nacional o tivesse colocado na categoria de “esperança”, como diz ironicamente Mário Cesariny em A Intervenção Surrealista (1966), ao atribuir-lhe, em 1943, o Prémio Amadeo de Souza-Cardoso. Paris vai, no entanto, exercer nele um efeito restritivo: “foi uma desilusão. Pela primeira vez senti-me desterrado. Vivia-se a ressaca da guerra em condições terríveis”. Aos poucos, substitui a pintura pela escrita. Embora tenha pintado toda a vida, os quadros do período entre 1947 e 1975 são escassos, evidenciando uma necessidade interior de maturação. A pintura e o desenho mantiveram-se apenas residualmente, fruto da relação com amigos e parentes. Colabora com

jornais e deambula pela capital parisiense, convivendo com artistas e escritores, servindo muitas vezes de guia aos compatriotas recém-chegados. A escrita é um modo de se manter ligado à arte, refletindo quer sobre o que se expunha em Portugal e noutros lugares, quer sobre as mais variadas manifestações artísticas. Num registo que tem muito do baudelairiano flâneur, ou, como diz Miriam Dacosta, “Gostava da vida, de uma certa preguiça da vida…” Depois, casa-se, divorcia-se, escreve, convive, secretaria, até que conhece Miriam e lhe nascem dois filhos. Aos poucos, a pintura regressa e com tal intensidade que Dacosta se torna um nome incontornável da história da arte portuguesa do século XX. Com uma obra que passa do pesadelo e da ameaça iniciais para uma serenidade feliz, luminosa, de matriz matissiana. Uma obra que se mostra em Angra e em Lisboa, no ano do centenário do seu nascimento. E que mereceu a Assunção Melo um belo estudo, editado pela DRC.

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Entrevista com o Morcego Tomás Melo

Nome Gonçalo Cabaça

Idade 41 Profissão Artista de Efeitos Visuais

O que é que pequeno-almoçaste? Dois kiwis em casa e no café uma bola saloia com queijo e galão. Se o Conde Drácula viesse cá às ilhas onde o levarias? Ui, O Conde Drácula... a lado nenhum, dava-lhe um mapa e o horário do cruzeiro do canal. Talvez lhe indicasse um dentista e um cabeleireiro. Qual é a semelhança entre o Pico e o Faial? Ilhas: em poucas horas voltas ao local de partida. Se não gostas de chuva o que é que estás aqui a fazer? Neste momento não estou, mas gosto do facto de ser claramente sazonal, o verão para estar com os outros e o inverno recolher e desenvolver projectos impossíveis em dias de sol.

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Na escola que outra “disciplina” deveria ser obrigatória? Mais disciplinas? Acho que deviam ser menos e mais abrangentes. A escola devia ser mais para resolução de problemas e os problemas não se separam em blocos de 45 minutos uma vez por semana. É muito fácil falar mas garantidamente que não era mais uma disciplina que faria diferença. Os processos mais construtivos que assisti foram sempre resultado de entusiasmo de “profs”, de alunos, de juntar e não de separar.

Porque é que tens alguns projectos na gaveta? Porque uns são mais importantes do que outros. :) O que é que odeias na internet? Twitter e Pinterest - dispersão Que forma de arte é que te aguça os caninos? A que me faz ter vontade de parar de fazer o que estava a fazer para experimentar algo diferente. É muito eclético isto dos estímulos, ultimamente dança.

o verão para estar com o inverno recolher e de projectos impossíveis em


intervenção

Capítulos A divulgação da Poesia feita nos Açores. Luís Andrade

O que é que gostavas de ter nascido? Não sei como responder a isto, só me ocorre “Zé Brasileiro, Português De Braga”. Gostavas de ir morrer longe? Longe dos pensamentos dos outros? Muitos animais afastam-se para morrer, para não atrair predadores ao resto da manada, para não lhes interromper o movimento. A maior parte das vezes deve ser o grupo que os expulsa mas eu gosto da ideia de um indivíduo se afastar por si próprio, se apaziguar com o fim, dar sossego ao instinto de sobrevivência e meditar morte a dentro

os outros e esenvolver m dias de sol

Poderia começar por dizer que os Capítulos vão ser apenas mais uma compilação de poesia, mas o facto e de facto não é só nem apenas isso, ora vejamos; dez autores, dois poemas (originais) por autor, quatro publicações ao longo de um ano e trezentos exemplares por publicação. A tudo isto serão adicionados ficheiros áudio com as vozes dos próprios poetas. Este não é um qualquer projecto capitalista de uma editora na ânsia de engordar os seus capitais com a cultura de todos nós. Os Capítulos são um conjunto de vontades e confluência de energias criativas ligadas à escrita e aos dizeres poéticos, onde as inspirações mais ou menos boémias se tornam realidade e a teia marítima que separa de forma tão cáustica o Arquipélago e se transforma numa auto-via de palavras que no futuro serão recordadas e quem sabe também cantaroladas na brisa oceânica deste Atlântico imenso. O objectivo deste projecto é então a pura, simples e sincera divulgação dos escritores “sem nome” que habitam nestas ilhas arquipelágicas. Como nota de término, acrescento que estas publicações estão de páginas abertas a todos aqueles que queiram divulgar as suas palavras, sentimentos... Os interessados poderão enviar as suas obras para o seguinte email: capitulospoesia@gmail.com.

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literatura

Conjunto Homem

jácome armas A recente edição pela Companhia das Ilhas, com as ilustrações do pintor Pedro Solá e uma “embalagem” mais jeitosa que as tais folhas agrafadas Pedro Lucas

A primeira vez que li Conjunto Homem, quando o Jácome o acabou de escrever há alguns anos, entusiasmou-me sobretudo o humor acutilante da sua escrita e a refnada crítica ao New Age que está subjacente, luta em que nos unimos passados alguns anos da puberdade. A minha reduzida capacidade de analisar o objecto que tinha em mãos na altura (na verdade eram só algumas folhas agrafadas) deixou-me ao lado de outras ideias bem mais interessantes que o livro contém. Felizmente a recente edição pela Companhia das Ilhas, com as ilustrações do pintor Pedro Solá e uma “embalagem” mais jeitosa que as tais folhas agrafadas, deu-me a oportunidade de o reler com uma perspectiva mais alargada (e conhecimentos que, embora muito superfciais, sempre me permitem identifcar melhor as referências às ideias dos “ilustres” a quem o livro é dedicado).

ilustração: Pedro Solá

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Para abrir

, isto não é um artigo de crítica. Nem o Fazendo se dá a ares de espaço para resenhas, nem este escriba tem bagagem intelectual para uma análise crítica aprofundada a este livro, não obstante o facto de ter o seu autor em grande estima pessoal e condições praticamente nulas para escrever sobre o seu trabalho com um mínimo razoável de objectividade.

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Esses ilustres são Gonçalo M. Tavares, António Damásio, Godel, Wittgenstein,


O bicho é difícil de enfiar em qualquer prateleira, e não perde coerência por isso

ambiente

Falando de Ambiente

environmentally speaking Sean Paton Encontrar uma página de ambiente no que é na sua essência um jornal cultural pode parecer estranho a alguns. O que é que arte e cultura têm a ver com ambiente? E porque haveríamos de nos preocupar com coisas como plástico no que parece ser uma ilha bastante orientada para a preservação dos seus ambientes quase pristinos?

Russel, Oliver Sacks e Freud, e o Jácome garantiu-me que foi a eles a quem roubou as ideias. Apesar desse saque estamos perante algo muito diferente de uma mera colagem de ideias alheias. A reciclagem é total e, embora formalmente construído como uma demonstração matemática, está (felizmente) muito longe da tradição textual académica. Trata-se, na forma, de uma demonstração lógica, constituída por proposições, axiomas, teoremas, etc, estilisticamente entra no plano poético (por vezes da parábola), e tematicamente no flosófico, mas na realidade todas estas regras são subvertidas. Essa é uma das valências, objecto híbrido por natureza o bicho é difícil de enfiar em qualquer prateleira, e não perde coerência por isso. Conjunto Homem está dividido em três partes - Lógica, Percepção e Sentimento - e usa dois personagens principais como estereótipos - um matemático e um guru - que, pela sua visão redutora do mundo, vão sendo maltratados ao longo das páginas (com, diga-se de passagem, excelente efeito no domínio da exemplifcação). Há um movimento que se vai criando durante o livro, parte da frieza racional no início e desemboca nos afetos. Os artifícios formais da de-

monstração e o encadeamento sequencial dos vários quadros que nos vão sendo apresentados cria, inicialmente, a ilusão de uma rigidez matemática, ilusão essa que se desconstrói a si própria até que nos desembrulha um ideal profundamente humanista. Uma apologia às relações humanas e do homem com a natureza, que se move entre os extremos do binómio razão/sentimento. Neste sentido há um paralelo do livro do Jácome com a obra principal de Baruch Espinoza, Ética, que é inevitável (para lá das mais óbvias parecenças formais). O livro de Espinoza também se desenvolve como uma demonstração geométrica. Começa com conceitos “simples” sobre Deus e a natureza que se vão construíndo e complexifcando cada vez mais, chegando cada vez mais próximo duma descrição filosófica do que é o ser humano até que atinge aquilo que era a intenção inicial do autor: uma justificação lógica do dever ético; um apelo racional à ética nas relações humanas. O do Jácome consegue ser mais poético. Esconde quase sempre toda a bagagem flosófica e ciêntífca da qual parte, e dissolve-a por várias camadas de signifcado. No fm chega a algo muito simples, e muito bonito.

É muitas vezes a pincelada do artista, a caneta nas mãos do escritor ou as palavras do actor no palco que trazem à luz a hipocrisia das boas intenções humanas. A vasta e variada vida oceânica, os montes verdes e arredondados e os rudes restos da acção vulcânica que são o pano de fundo do Faial e dos Açores podiam dar-nos a falsa impressão de que tudo está bem neste pequeno pedaço de paraíso. Sendo ecologista há 30 anos, à minha chegada ao Faial em Maio de 2013 depois de atravessar o Atlântico desde Bonaire, nas Caraíbas Holandesas, fiquei agradavelmente surpreendido por ver os contentores de triagem e as ruas limpas. Andando ao longo da doca, no meio dos visitantes que vieram para ver baleias sinto um aperto no coração quando olho para baixo e vejo milhares de pontas de cigarros e pedaços de plástico que juncam o chão da marina. Não foi necessário muito tempo para perceber que não estava sozinho e com a Isabel Gallagher e muitas outras mãos desejosas de ajudar, criámos o “No more Plastic Bags for the Azores”. Sendo que se estima que 80% do lixo oceânico tem a sua origem em terra, limpar as costas não se mostrou suficiente. Por isso iniciámos a acção de limpar as ribeiras, em que estamos a trabalhar neste momento. Juntos podemos fazer a diferença. + sobre a última limpeza na pg. 9519 *

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ciência

Outras Formas de

uma unidade experimental Produção AquaLab, recentemente criada no IMAR-DOP de Pescado Eduardo Isidro

investigador do IMAR-DOP/UAç

A pesca é uma atividade coleto-

ra, ou seja, uma atividade que se limita a colher ou a capturar os organismos vivos aquáticos selvagens. Em complemento, fala-se, hoje em dia, muito da aquicultura como forma alternativa de produção de pescado. Nos Açores, poucos se aperceberão que a aquicultura é uma atividade milenar, parente da agricultura, tendo surgido muito provavelmente ao longo do processo de sedentarização e socialização da humanidade e da sua necessidade de se libertar da dependência de uma cadeia alimentar natural, que apresenta uma produção demasiado variável e dificilmente capaz de lhe garantir o alimento diário necessário em quantidade, diversidade e qualidade. Os primeiros registos da atividade, envolvendo a cultura de carpas, encontraram-se na China e datam de cerca de 3500 a.C., e muitos outros registos foram encontrados em civilizações com história bem documentada: e.g. Japão, Índia, Egipto e Roma. E foram muito possivelmente os Romanos que introduziram a aquicultura na Península Ibérica, cultivando ostras e peixes, acrescentando, assim, valor à exploração de salinas e à atividade de extração do sal. Na Europa, sobretudo na Europa central e ao longo da idade média e da idade moderna, os fossos dos castelos, os reservatórios dos palácios e mosteiros, os rios e os lagos foram muito frequentemente utilizados para produzir peixe destinado à alimentação (usualmente carpas e trutas, mas não só). A Idade Moderna (1453 a 1789 d.C.), período em que se iniciou o processo de globalização que levou à fusão de conhecimentos adquiridos de uma forma independente por diferentes civi-

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lizações e culturas, e em que houve uma troca e introdução intensa de espécies vegetais e animais por todo o mundo, foi também um período de expansão da aquicultura. Na idade contemporânea, a partir de 1700, começou-se progressivamente a dominar, para as espécies então tradicionais, as técnicas de controlo e indução de postura e de crescimento de larvas em cativeiro. No século XX, um século de avanços tecnológicos sem precedentes na história da humanidade e em que se alterou profundamente a postura antropocêntrica que se vinha mantendo com o mundo, houve uma diversificação enorme de espécies cultivá-

Nos Açores, poucos se aperceberão que a aquicultura é uma atividade milenar, parente da agricultura veis e uma industrialização e intensificação enorme da produção. A produção intensiva, utilizando métodos cada vez mais tecnológicos de controlo e de seleção de espécies com procura de mercado e com alto valor comercial, foi o mote forte do século XX. Contudo, à medida que o século XX se ia dissipando e se ia aproximando o século XXI, mais se iam integrando preocupações e conceitos ecológicos na produção. No século XXI, estando a produção em aquicultura próxima dos 50% daquilo que nos é fornecido pela pesca, mas em

que 90% da produção está localizada na Ásia e em que a Europa apresenta uma balança altamente deficitária que terá de corrigir de uma forma competitiva (a Europa produz cerca de 4% do total e importa muito do pescado que consome), o conceito que se está a estudar e a querer implementar é o de Aquicultura Multitrófica Integrada (IMTA). Este conceito baseia-se na produção inicial de peixes, moluscos ou crustáceos e no reaproveitamento do excesso de nutrientes fornecidos para o cultivo de organismos extrativos (bivalves, algas e até vegetais em sistemas hidropónicos), criando-se uma cascata de nutrientes, matéria e energia e um sistema de bio remediação que se assemelha ao funcionamento natural dos ecossistemas e, logo, sem desperdícios e impactos ambientais adversos. Os cenários possíveis dentro deste conceito, que está totalmente de acordo com os princípios da economia azul, são muito diversos e dependentes da combinação de espécies que se pretendem cultivar, e não são difíceis de imaginar quer em terra quer no mar. Nos Açores, em particular, consigo imaginar (e sem esgotar a imaginação), a produção de goraz ou de pargo, interligada ao cultivo de macroalgas e ao cultivo de lapa-burra. Ou seja, um sistema em que o excesso de alimento fornecido ao peixe, é utilizado pelas macroalgas, que serão, por sua vez, usadas para alimentar a lapa-burra. É um pouco neste sentido que se tem estado a trabalhar no AquaLab (uma unidade experimental recentemente criada no IMAR-DOP), investigando-se aspetos do cultivo individual de espécies que posteriormente possam ser utilizados num sistema IMTA.


intervenção

“Essa coisa de

é só para

dos

bolseiros

gastarem o dinheiro

contribuintes...!”

A ciência é a constante procura por respostas, sejam elas sobre estrelas, peixes, pedras, o que provoca uma doença, ou como curá-la. Silvia Lino

Um cientista

começa por fazer uma licenciatura, faz um mestrado, um doutoramento e depois... como é que trabalha como cientista? Esse, é o problema em Portugal. A carreira existe em papel mas está congelada e não entram para os quadros das universidades, investigadores há mais de 10 anos. Então, qual a alternativa para os cientistas mais jovens? O governo encontrou uma solução a curto prazo: “bolsas”. Não são contratos de trabalho, são “subsídios de manutenção” para que possam viver enquanto fazem ciência em exclusivo. E se por um lado têm objectivos a cumprir como qualquer trabalhador, não têm nenhuma das “regalias”. Quando acaba uma bolsa, sem direito a qualquer subsídio de desemprego, só lhes resta candidatarem-se rapidamente a outra. O que é que faz de um médico, um médico? Um médico estuda durante 5 anos para tirar um curso de medicina geral e mais 4 a 6 anos para tirar uma especialidade. Quando termina o longo curso por uma universidade pública, inicia um estágio num hospital e começa a receber como médico em início de carreira. Para além disso, pode dar consultas num consultório privado. Um advogado? Um advogado estuda durante 4/5 anos, termina o seu curso e, reconhecido pela ordem, pode ser contratado por uma entidade pública, por uma entidade privada ou pode ainda abrir um consultório. E um cientista? Um cientista estuda a vida toda. Aliás, a vida dele é mesmo estudar. Se hoje temos vacinas que nos protegem contra doenças que chegaram

a ser responsáveis pela morte de 90% da população, como o sarampo e a varicela na América do Sul, foi porque cientistas estudaram durante vários anos sobre essas doenças e como travá-las. Tudo o que aprendemos sobre a vida na escola devemo-lo a eles, que se dedicaram a estudar para que possamos compreender um pouco melhor o mundo. A ciência é a constante procura por respostas, sejam elas sobre estrelas, peixes, pedras, o que provoca uma doença, ou como curá-la. A ciência faz-nos progredir como sociedade. Mas hoje, não há muitas alternativas de trabalho na ciência. Quantas empresas querem cientistas nos quadros? Quantas fundações privadas ou públicas os contratam? A resposta é: poucas. O país e as regiões autónomas não reconhecem o valor humano de quem trabalha em ciência. Um cientista não é bolseiro porque quer. Ninguém, no seu perfeito juízo ambiciona esta vida instável, sem

ilustração: Bolseiros Precários

Um bolseiro, não é um privilegiado. É um remediado... resta saber quanto tempo sobreviverá

www.precarios.net

qualquer perspectiva de progressão ou reconhecimento profissional. Um bolseiro é um “nim”: nem trabalhador, nem desempregado. O que faz um médico ou um advogado se ninguém reconhecer o valor da sua profissão? Desiste e vai fazer outra coisa...? Um bolseiro, não é um privilegiado. É um remediado... resta saber quanto tempo sobreviverá. *

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Pulgas em casa depois das férias

Ciên

“Ca uma década Se fazes ciência nos Açores, sobre os Açores ou nasceste nos Açores e estás a fazer ciência fora, escreve um artigo sobre o teu trabalho para o jornal Fazendo

vai.se.fazendo@gmail.com

Ana Calado

conteúdo disponibilizado pelo programa: ciência na imprensa regional

Já lhe aconteceu chegar

de férias e ter pulgas em casa? E até pensa, mas como é possível se o meu cão ou gato estiveram noutro sítio? A pulga do cão e do gato (Ctenocephalides felis) tem algumas características muito curiosas. Desde logo, prefere alimentar-se do sangue destes animais do que picar as pessoas. Desenvolvem-se dentro de casa durante todo o ano e apenas vemos as pulgas adultas que são 10% da população total. Cada fêmea liberta, durante uma semana, 50 ovos por dia que caem nos tapetes, cobertores, sofás, etc. Esses ovos passam por fases intermédias de desenvolvimento, larvas e pupas. As larvas vivem no ambiente doméstico e alimentam-se de fezes das pulgas, de pedacinhos de pele humana e animal e de outras matérias orgânicas que encontram nos sofás, tapetes, etc. Tal como uma borboleta num casulo, a pulga adulta desenvolve-se na pupa e aí pode ficar durante muito tempo. A saída para o ambiente acontece quando sente uma vibração ou movimento e, portanto, “sente” que existe um animal por perto. Nessa altura salta para a pele

para picar e obter uma refeição de sangue. Quando os animais estão em casa as pulgas desenvolvem-se continuamente, preferem o cão ou gato, e as pessoas nem se apercebem. Mas, e no regresso de férias? Qual o motivo de abrir a porta de casa e estes irritantes parasitas saltarem para nós? Quando uma casa fica vazia, ou seja sem movimento, todas as pulgas ficam retidas na fase de pupa à espera de um movimento para a sua saída. Este movimento pode ser, simplesmente, a porta de casa a abrir. Ao mesmo tempo, as pulgas saltam, mas sem preferência de animal e então parasitam o cão, o gato e o Homem. Notas finais: - Se tiver animais em casa mantenha-os livres de pulgas com produtos que eliminem todas as fases do desenvolvimento larvar que são a maioria das já conhecidas pipetas. - Reduza a quantidade de tapetes. - Lave semanalmente as roupas e locais onde os animais descansam. - Se vir pulgas em casa ou nos animais consulte um médico-veterinário.

Apenas vemos as pulgas adultas que são 10% da população total *

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Quem é este cientista? Orlando Guerreiro, nasceu em Setúbal, em 1977. É licenciado em Engenharia do Ambiente e fez mestrado em Gestão e Conservação da Natureza. Chegou aos Açores em 1996 para fazer a licenciatura e mais tarde trabalhou na recolha de dados em embarcações de pesca Açorianas. É agora aluno de doutoramento no Departamento de Biologia da Universidade dos Açores, no campus de Angra do Heroísmo, onde faz o seu trabalho de investigação acerca das térmitas no Grupo da Biodiversidade dos Açores - GBA.


ncia que se faz por cá

ciência

aça à Térmita” Orlando Guerreiro

depois do: “que raio de bicho da madeira é este?” A primeira

referência às térmitas (e não térmicas como muitas pessoas dizem) foi em 2004 quando um morador de Angra do Heroísmo, que já não suportava mais viver com estes insectos que lhe destruíam a casa, levou alguns exemplares à universidade para saber “que raio de bicho da madeira era aquele”. Desde então passou uma década e muito trabalho foi realizado pelo Grupo da Biodiversidade dos Açores.

Ao longo do caminho percorrido na última década de investigação fizemos parcerias com universidades nacionais e internacionais, institutos nacionais, empresas privadas e com o governo regional. Com estas parcerias conseguimos trazer o conhecimento de diversos

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Hoje sabe-se que no arquipélago não existe apenas uma, mas sim quatro espécies de térmitas - duas subterrâneas, uma de madeira seca e uma outra de madeira húmida (ver imagem). O problema das térmitas não é apenas um problema da cidade de Angra do Heroís-mo mas sim de quase todo o arquipélago (apesar de não haverem registos na Graciosa, Corvo e Flores, é possível que venha a ocorrer). Para já, decorre um plano de controlo e tentativa de erradicação para a térmita subterrânea, a espécie Reticulitermes flavipes, presente na Praia da Vitória. A térmita de madeira seca Cryptotermes brevis (a primeira a ser referenciada nos Açores e actualmente pior praga urbana) está a ser monitorizada desde 2010 em todas as ilhas e localidades afectadas. Com formações, oficinas e sessões de esclarecimento o objectivo é que a população esteja bem informada acerca das formas de combate e controlo da espécie C. brevis. Existe ainda um livro e o sítio na internet (http://sostermitas.angra.uac.pt/) onde os mais interessados podem consultar gratuitamente toda a informação sobre térmitas.

Com o meu trabalho de investigação no âmbito do doutoramento esperamos fazer mapas de risco para todas as espécies existentes no arquipélago e pesquisar atrativos químicos para a espécie C. brevis.

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Não é apenas um problema da cidade de Angra do Heroísmo mas sim de quase todo o arquipélago dos Açores

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investigadores tendo sido já produzidas um total de 6 publicações em revistas internacionais, 1 em revistas nacionais, 1 livro e cerca de 12 capítulos de livros. Apesar do trabalho produzido e de vários projectos em curso sabemos que não sabemos tudo. Na realidade, temos a perfeita consciência que o caminho já percorrido é uma etapa de várias que se seguem na geração de mais conhecimento, e com este, na formação de novas parcerias e obtenção de melhores e mais inovadoras soluções para este problema que afecta directa ou indirectamente a maioria dos Açorianos.

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novos

ciência

caminhos

ilustração: Gerd Arntz

para a

Pesca

Tradicional O futuro da pesca nos Açores Helder Marques da Silva DOP - UAç

A pesca

vem-se defrontando com enormes desafios ao longo das últimas décadas. Podemos resumir o cerne desses desafios com a palavra ‘sustentabilidade’. A história da pesca vem indicando que a grande maioria das pescarias são insustentáveis. O mesmo é dizer que os recursos já não suportam o efeito da pesca no longo prazo. A pesca acaba por reduzir os mananciais pesqueiros para níveis críticos o que implica impactos negativos, não só ao nível biológico, mas também nos planos económico e social. Não vale, por isso, a pena justificar económica ou socialmente a necessidade de sobreexplorar um determinado recurso. O organismo das Nações Unidas responsável pela alimentação, a FAO, estima que o subsector da pesca artesanal empregue cerca de 37 milhões de pessoas (90% na Ásia) mais cerca de 100 milhões de pessoas em actividades conexas. A definição desta organização para a pesca artesanal é a seguinte: “Pescarias tradicionais de base individual ou familiar, que utilizam pouco capital e energia, com recurso a embarcações relativamente pequenas, realizando viagens de pesca curtas e orientando-se sobretudo para o abastecimento do mercado local.” As pescarias dos Açores enquadram-se genericamente nesta categoria. Quer se trate da pesca de chicharro, covos, peixe-de-fundo ou mesmo atum com recurso à arte de salto-e-vara estamos sempre perante pesca artesanal. Embora seja um pouco arriscado generalizar conceitos é assumido que a pesca artesanal apresenta várias vantagens

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por contra ponto com a pesca industrial. Entre estas vantagens, contam-se: menores custos de funcionamento e combustível; menor impacto ecológico; maiores oportunidades de emprego; maior versatilidade; e menores custos de construção e de aquisição de equipamentos. Ao longo da última década temos descoberto importantes comunidades de corais frios nos Açores. Estes corais e a sua preservação é considerada uma prioridade dada a sua relevância para o equilíbrio dos ecossistemas do mar profundo. Isto é tão mais importante quan-

o dano provocado pelas artes de pesca com linha e anzol é muitos milhares de vezes inferior ao malefício induzido pela arte de pesca industrial.

to é certo que estas espécies apresentam uma elevada longevidade que pode atingir a bonita idade de 3000 anos. Num trabalho recentemente publicado por diversos colegas sob a liderança de Telmo Morato demonstra-se que, no que respeita ao impacto da pesca sobre corais, o dano provocado pelas artes de pesca com linha e anzol, a que recorremos nos Açores para pesca de espécies de fundo, é muitos milhares de vezes inferior ao malefício induzido pela arte de pesca industrial mais utilizada a nível mundial, o arrasto. Significa isto que, por via da pesca artesanal que utilizamos nos Açores, não obstante algum impacto, directo e indirecto que decorre da sua prática, prejudicamos muito menos e de forma muito menos estrutural as comunidades de que estas espécies de peixes dependem para a sua sobrevivência e para o garante da sustentabilidade desta actividade económica. O futuro da pesca nos Açores passa, por isso mesmo, pela artesanalidade da actividade, pela protecção dos habitats e comunidades fundamentais, pelo estabelecimento de regras adequadas, pela valorização dos produtos da pesca e pela monitorização dos recursos e do ambiente que os sustentam. Dessa monitorização depende a continuidade da nossa actividade, dado sermos a isso obrigados por legislação comunitária, incluindo a demonstração dos respectivos resultados. Em todos estes aspectos, o DOP situa-se como um elemento central à concretização desse desiderato e cá estaremos!


ciência

Pescas

porquê acompanhá-las de perto? Miguel Machete

Nos últimos

30 anos, a exploração pesqueira de diversas áreas e recursos marinhos a nível global tornou-se de tal forma intensiva, que já alguém afirmou (Boris Worm, num artigo publicado em 2006 na revista Science) que, mantendo o nível de pesca actual, se esgotarão todos os recursos disponíveis em meados deste século. Como facto, temos que actualmente cerca de um terço dos stocks marinhos mundiais estão sobreexplorados e que o esforço de pesca praticado continua a aumentar, nomeadamente em continentes como a Europa e a Ásia. Neste contexto é crucial ter informação robusta e pormenorizada sobre as operações de pesca, tecnologias e capturas, incluindo capturas acessórias e acidentais de outras espécies, para além daquelas que são alvo da pescaria. Também é fundamental conhecer o melhor possível o ciclo de vida das espécies comercialmente importantes, os tipos de ecossistema em que se integram e quais os efeitos da acção do homem na exploração destes recursos. Só com estratégias de recolha de informação continuada, abrangente e de longo prazo, se conseguirão definir planos de gestão robustos que permitam a recuperação e manutenção dos stocks a par do estabelecimento de pescarias sustentáveis. É importante sublinhar a frase: “Sem estas estratégias, não há futuro para as pescas”. Perante este cenário, qual a melhor forma de obter o conhecimento, a informação necessária? Com que métodos e em que lugares se podem recolher os dados científicos sobre a actividade da pesca e quem é que pode recolher esses dados? A resposta não tarda: programas de observação de pescas com observadores embarcados. Estas estruturas, espalhadas presentemente um pouco por todo o globo, são responsáveis pelo recrutamento, formação e gestão de observadores. Isto é, pessoas que embarcam nos navios de pesca comercial e que têm como função registar diariamente, toda a informação

ilustração: gerd arntz

coordenador do POPA

conhecer o melhor possível o ciclo de vida das espécies comercialmente importantes

relativa à pesca que se pratica. Esses dados são depois corrigidos e integrados em bases gerais onde ficam armazenados até serem analisados, dando origem a resultados e conclusões sobre o estado da pescaria e recursos explorados. São bons exemplos os programas de observação da NMFS (National Marine Fisheries Service - costa Este e Oeste dos EUA), da NAFO (North Atlantic Fisheries Organization – costa Este do Canadá), do IFOP (Instituto de Fomento Pesqueiro – Chile), do PROBORDO (Programa Nacional de Observadores de Bordo do Brasil) e do POPA (Programa de Observação das Pescas dos Açores – www.popaobserver.org). O POPA, o único programa de observação das pescas instituído e reconhecido como tal em Portugal, surgiu em 1998 com o intuito de garantir a certificação Dolphin Safe para a pescaria de atum com salto e vara nos Açores, mas rapidamente assumiu uma abrangência muito maior. Gerido pelo Centro do IMAR da Universidade dos Açores e actualmente financiado pelo Governo Regional, através da Secretaria Regional dos Recursos Naturais, foi instituído por Portaria regional em 1999 e impôs-

-se como uma ferramenta crucial para a monitorização das pescas nos Açores. Ao longo dos últimos 16 anos produziu mais de 5 milhões de registos sobre a pescaria de atum nos Açores, passando a constituir a maior base de dados deste género em toda a Europa. A informação que produz é integrada nos relatórios de organizações intra-governamentais como a ICCAT (International Commission for the Conservation of the Atlantic Tuna), o ICES (International Council for the Exploration of the Sea) ou em artigos científicos publicados nas mais diversas revistas científicas, tendo sempre o objectivo de promover o conhecimento desta actividade de extração para a sua gestão efectiva. Programas como o POPA, no contexto actual da Política Comum de Pescas e perante as exigências comunitárias no que diz respeito à integração de estruturas de monitorização em cada Estado Membro, terão tendência a surgir mais amiúde. Neste cenário, o modelo que temos na Região poderá certamente servir de exemplo para os novos programas que se deverão implementar.

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Onde São

Para Ti os Açores

algures no mundo alguém é convidado a fazer um retrato das nossas ilhas.

Sara Soares

assinala no mapa onde são os Açores

Anthony Penn Trinidade e Tobago antes de responder às perguntas foi-lhe indicada a correcta localização dos Açores

Que tipo de pessoas pensas que vivem nos Açores? Eu penso que devem ser tipo nativos, tu sabes como no Hawai, lá estão os nativos, as pessoas originais do sítio. Como é que achas que as pessoas vivem nos Açores? Vivem da terra e cultivam muita comida porque é difícil transportar comida para aí. E o que pensas que as pessoas fazem nos Açores? Muita pesca!

aves marinhas. Não deve haver cobras como aqui. Que transportes se usam nos Açores? Eu penso que devem haver alguns carros, pelo menos alguns. Mas maioritariamente bicicletas. O pensas que poderia ser feito nos Açores? Poderiam ser usados para monotorizar outras partes do mundo. Podiam colocar-se estações de “tracking”, como estão aí no meio…

Como será o clima nos Açores? Muito ventoso! Aqui temos ilhas onde as pessoas só vivem de um lado da ilha, por causa do vento, aí deve ser assim também.

Qual achas que é a comida Açoriana mais estranha? Polvo. Em Trinidade, que eu saiba ninguém come polvo. Provavelmente só os chineses, porque eles comem practicamente tudo.

Que animais imaginas que se podem ver nos Açores? Tipo cabras e ovelhas e pássaros, muitas

Que tipo de productos pensas que se exportam? Muito marisco e vegetais.

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Poderias viver nos Açores? Não creio. Talvez se eu tivesse nascido aí. Teria que haver algo muito especial, provavelmente uma rapariga, de outra forma não.

eu penso que devem haver alguns carros, pelo menos alguns


arquitectura

Uma baleia? Um barco? Talvez um búzio

o retrato do novo auditório do museu dos baleeiros nas lajes do pico é feito pelo próprio arquitecto

Rui Pinto

Até meados do passado mês

de Agosto, altura em que foi inaugurado o novo auditório do Museu dos Baleeiros, parte das actividades culturais promovidas pelo Museu do Pico eram realizadas num espaço correspondente a um antigo tanque de óleo de baleia, situado numa cave da zona central deste museu. A exiguidade daquele espaço bem como problemas de salubridade criaram desde sempre limitações técnicas de vária ordem, impossibilitando, muitas das vezes, a realização de eventos com o conforto e a qualidade merecida. Um novo auditório com condições plenas tornou-se um imperativo e é nessa sequência que o Museu do Pico adquiriu um terreno vizinho localizado nas traseiras e aí se iniciou o programa de edificação do novo auditório. Foi com grande empenho que participei desde o início neste processo e foi com muita satisfação que aceitei em conjunto com a minha equipa o convite que nos foi feito para o desenvolvimento do projecto deste novo auditório; afinal o conjunto de edifícios que formam o Museu dos Baleeiros localizam-se numa das mais sugestivas e delicadas áreas da vila das Lajes do Pico e são um ícone urbano de grande singularidade arquitectónica que fortemente retratam a ainda tão presente história da baleação açoriana. Os edifícios primitivos que constituem este museu eram sede das antigas companhias baleeiras sedeadas nas Lajes. Foram, em duas fases, alvo de uma qualificada intervenção arquitectónica de recuperação e ampliação realizada pelo Arq. Paulo Gouveia que muito bem ge-

riu as pré-existências com as adições de arquitectura nova e que, no fundo, são a marca deste Museu. É sobre esta realidade, em forma de terceira ampliação, que o novo auditório surge e se constitui com cerca de 90 lugares concebido para a realização de pequenos concertos, simpósios ou projecção de cinema. A nossa proposta assentou desde logo na construção de uma sala que além de servir plenamente as suas funções, se constituísse como uma adição assumidamente cénica e evocativa das sensações marítimas, do universo do mar e das baleias, capaz de produzir sensações e de proporcionar aos seus utentes uma espécie de viagem individual. Uma baleia? Um barco? Talvez um búzio, como referiu um jovem das Lajes.

-se a sabedoria local da construção naval e desenhou-se um auditório estruturado por cavernas, forrado com tábuas corridas - tal como uma lancha – construção que teve um grande empenho e apoio desde a fase de concepção por uma série de carpinteiros da ilha do Pico até à conclusão, obra a cargo da empresa Nascimento Neves & Filho.

Com madeira de criptoméria, utilizou*

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cinema

O cinema resistindo à chuva CINEMA DE VERÃO NO Q.B. Joel Neto que ganha, diz-se, não se mexe. Nós mexemos. E, se a meteorologia não se tivesse revelado especialmente incerta, o mais provável é que tivéssemos atingido este Verão números inusitados. No ano passado, o Ciclo Cinema de Verão, organizado pelo Cine-Clube da Ilha Terceira no Q.B.-Food Court, espaço privado em São Carlos (Angra do Heroísmo), atingiu perto de um milhar de espectadores ao longo de sete filmes. Realizado ao ar livre, versou o cinema clássico, com exibições de Fellini, Orson Wells ou Visconti, e reuniu público de todas as idades, seduzido pela romântica ideia de ver os mesmos filmes que os seus antepassados haviam visto do mesmo modo como, em muitos casos, eles o tinham feito. O sucesso não nos deixou conformados e, este ano, em vez do apoio do Meo, optámos por uma colaboração com as distribuidoras Big Picture e Lusomundo, que nos permitiam, com um esforço financeiro ligeiramente superior, mostrar dois tipos de filmes diferentes: alguns dos principais candidatos aos Óscares na última cerimónia anual da Academia das Artes e Ciências de Hollywood; e, em duas sessões especialíssimas a abrir e fechar Agosto, o supremo mês das férias grandes, duas películas para crianças. O tempo não ajudou. Coincidências cósmicas colocavam repetidamente a pior me*

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Curta Metragem de Anim Tiago Rosas entrevist

O cineasta

cine-clube da ilha terceira

Em equipa

Históri

teorologia da semana na noite de quinta-feira, o dia a que tantos terceirenses já começam a intitular “o dia do cinema”, e ao longo de quase todo o ciclo debatemo-nos com inesperadas dificuldades. Se em 2013 fôramos obrigados a adiar uma sessão, em 2014 tivemos de fazê-lo por duas vezes, e apenas porque não era técnica ou calendarialmente possível fazê-lo mais vezes ainda. Em várias outras fomos obrigados a passar os filmes à chuva ou parcialmente à chuva. E em oito das nove fomos de algum modo condicionados pelo tempo, que persistiu em forçar espectadores a ficar em casa. Mesmo assim, os nossos cálculos apontam para números semelhantes aos do ano passado. Só “O Filme Lego”, para crianças, na verdade o único que não teve de lidar com nenhum tipo de precipitação, reuniu uma audiência bem para cima das duzentas pessoas, levando à lotação completa do jardim, das galerias, do relvado e do muro do parque de estacionamento do Q.B.. “A Rapariga Que Roubava Livros”, “Capitão Phillips”, “Gravidade”, “Um Quente Agosto”, “A Propósito de Llewin Davis”, “Philomena” e “All Is Lost” foram os filmes adultos. “Como Treinares o Teu Dragão” completou o cardápio para crianças. Para o ano há mais, com ou sem chuva. E havemos de continuar a evoluir. Em defesa (também) do cinema popular e do grande público.

Tiago Rosas realizou a “História dos Açores”, uma curta-metragem de animação. Trata-se de um filme de dezoito minutos e onde assistimos a uma visão histórica do arquipélago açoriano através dos tempos e das diferentes épocas socioeconómicas. A narração é do músico/realizador, Zeca Medeiros, que elenca a cultura, as lendas, os mitos e as transformações ocorridas nas ilhas açorianas desde o povoamento até aos nossos dias. A produção é da Anfíbios Filmes, a revisão dos textos de Magda Furtado, contando com um leque alargado de colaboradores, inclusive, a ajuda de Victor Descalzo na realização. À altura da estreia, em 2013, venceu o prémio do público do Panazorean, festival de cinema de Ponta Delgada realizado pela AIPA. O filme será exibido dia 29 de Novembro, sábado, no Teatro Faialense. Aqui fica uma pequena conversa com o realizador do filme.

a cultura, as lendas, os mitos e as transformações ocorridas nas ilhas açorianas


ambiente

Limpar

para termos as ribeiras que queremos Vitor Vargas

Presidente da Junta de Freguesia dos Cedros

ia dos Açores

mação

ado por

Fernando Nunes

Quando é que surgiu esta ideia de realizar esta animação à volta da História dos Açores? Quando cheguei aos Açores (1991) de “arrasto” com os meus pais nada sabia sobre a história deste arquipélago. Aliás acho que o defeito não era só meu, a maioria dos meus amigos que moram no continente muito pouco sabe sobre as ilhas e os jovens de cá pouco conhecimento tinham também... como sempre fui fascinado por história procurei informação mas nada encontrei que um rapaz, com 16 anos acabados de fazer, tivesse paciência para ler... Quando mais tarde auto-aprendi a fazer animação (2005), juntei dois mais dois... levei cinco anos a conseguir juntar as condições...

Sempre gostei da voz dele (Zeca Medeiros) e acho que dá uma ajuda a que o filme não seja só para crianças.

Este filme é um trabalho de equipa, quais foram os elementos de que te rodeaste? O Victor Descalzo (Espanha), o Vincent Sallice (França), o Nuno Arruda, a Magda Furtado e o Sérgio Rezendes.(São Miguel).

Qual foi à altura da estreia a reacção do público? Muito boa, não esperava uma reacção tão boa de 700 almas no teatro, devem ter gostado bastante pois ganhei o prémio do público daquele festival de cinema...

Fiquei muito surpreendido com a quantidade de lixo recolhido, e especialmente preocupado com a questão do plástico. Continuam a encontrar-se muitos plásticos abandonados de silos e rolos de erva, provenientes de explorações agrícolas.

Acho que todos devemos participar e passar a palavra Não é fácil de compreender, tendo em conta que existem vários locais de recolha de lixo na Freguesia dos Cedros, porque continuam a depositar lixo doméstico, electrodomésticos e entulho nas ribeiras. É muito importante que a comunidade local saiba que este tipo de acções são um ataque ao ambiente, põem em risco o nosso futuro e que são inclusivamente puníveis por lei através de multas (nº 89/2009 de 31 de Agosto).

Por que é que escolheste o Zeca Medeiros para narrar este filme? Sempre gostei da voz dele e acho que dá uma ajuda a que o filme não seja só para crianças. Quanto tempo durou a realizar este filme? Dois anos.

No passado dia 11 de Outubro participei na limpeza de duas ribeiras dos Cedros. Esta acção foi organizada pelo grupo “NO MORE PLASTICS BAGS FOR THE AZORES” e contou com a colaboração da Junta de Freguesia dos Cedros e de voluntários quer dos Cedros quer do resto da ilha.

Qual é o balanço que fazes após conclusão e este tempo passado sobre a exibição do filme? Gostei muito de o fazer, só tenho pena que um investimento tão grande ainda não tenha tido retorno financeiro e ainda não tenha existido abertura da parte das autoridades para colocar o filme nas escolas... acho que valeria a pena...

Como cidadão e Presidente da Junta dos Cedros continuarei a apoiar este tipo de acções de limpeza. Acho que todos devemos participar e passar a palavra. Quero deixar um grande agradecimento a todos os que ajudaram na limpeza do nosso Porto da Eira e das nossas ribeiras. Muito obrigado a todos. *

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história

O Património Baleeiro em debate integrado no projecto Port of Call: The Western Islands Francisco Henriques

Nos últimos

a preservação do património baleeiro não deve depender só de uma estratégia comercial de sucesso

Recentemente, o debate em torno do património baleeiro recebeu novos contributos. Há poucos meses foi proposta uma revisão do diploma que regulamenta o património baleeiro no sentido de ser possível utilizar o património classificado em actividades marítimo-turísticas e incentivar a formação na arte de velejar nos botes. Prática que já foi assumida, no que respeita à formação, pelo Clube Naval da Horta. Por outro lado, na ilha de S. Miguel, o Clube Naval de Vila Franca do Campo tem alertado para a especificidade do bote baleeiro micaelense, do qual existem poucos exemplares, e para a falta de apoios que a ilha de S. Miguel sofre para a recuperação do património móvel e imóvel – botes e lanchas, mas também as infra-estruturas no porto baleeiro do Faial da Terra, e o famigerado exemplo da Fábrica dos Poços de São Vicente, a única fábrica moderna de processamento do cachalote no sec. XX que acabou por ser demolida, restando apenas uma chaminé. Há poucos dias, o Conselho de Ilha de S. Miguel deu eco às reivindicações feitas pelo Clube Naval de Vila Franca do Campo e um dos grupos parlamentares da Região avançou mesmo com uma proposta *

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ilustração: Rockwell Kent

quinze anos houve um avanço notável na patrimonialização da baleação costeira nos Açores. A comunidade apropriou-se de elementos que representam a caça ao cachalote e decidiu preservá-los em museus e noutros contextos. Musealizaram-se Fábricas e Casas dos Botes, reconstruíram-se botes e lanchas utilizadas na faina baleeira, actividade que foi substituída pela observação de cetáceos, símbolo maior do turismo ecológico da região. Patrimonialização e turismo ecológico cruzam-se numa onda de progresso que reforça a identidade regional e transforma a percepção cultural da Natureza.


de resolução que defende a necessidade de inventariar uma componente mais imaterial do património baleeiro, relacionada precisamente com as técnicas de construção naval e as diferenças que poderão existir entre ilhas. Não é nossa intenção discutir estes assuntos importantes, mas queríamos acrescentar duas dimensões relevantes que não têm sido devidamente valorizadas. Em primeiro lugar, a diversidade da indústria baleeira açoriana. Em segundo, a pluralidade das memórias da baleação. A ideia de diversidade parte de uma constatação fundamental: nos Açores não houve nenhuma revolução industrial baleeira, por assim dizer, ou seja, não houve uma substituição automática e definitiva dos sistemas artesanais de processamento do cachalote por uma indústria moderna concentrada em unidades fabris. Pelo contrário, houve sempre uma grande diversidade de estratégias industriais e comerciais, o que resultou numa multiplicidade de estruturas em utilização simultânea. Tomemos como exemplo vários acontecimentos durante o ano de 1938: em São Miguel, uma empresa familiar procurava instalar uma fábrica para fazer o processamento integral do cachalote; mas a poucas milhas, em Santa Maria, a nova armação adquiria novos caldeiros de ferro artesanais para derreter as gorduras do cachalote a fogo nú no porto do Castelo; no norte do Pico, as armações de São Roque uniam-se em sociedade com o objectivo de construir uma nova fábrica, que veio a laborar a partir de 1946, mas no sul da ilha as armações continuariam a utilizar os caldeiros até 1955; nas Flores, o industrial Francisco Marcelino dos Reis pedia autorização para instalar uma fábrica, a qual viria a cobrar 25% do produto de laboração às armações que dela se serviam, a partir de 1944, enquanto nas fábricas de outras ilhas a percentagem seria de 10%. Na Graciosa, na Terceira e em São Jorge, os sistemas tradicionais de caldeiros junto aos portos continuavam a laborar, indiferentes

à introdução de novas tecnologias. Havia baleeiros de todas as ilhas em vários portos, em especial os picarotos das Lajes do Pico que se haviam especializado na baleação nas décadas anteriores. Aqueles que promoviam a industrialização eram os mesmos que mandavam construir novas canoas de madeira para caçar os cachalotes com arpões e lanças, relíquia que crescia em paralelo com a introdução dos maquinismos a vapor. Mais tarde, ao longo dos anos cinquenta e sessenta, encontramos as mesmas diversidades e assimetrias insulares na indústria baleeira. Apesar de por vezes existir concertação de interesses, de tecnologias e de vivências inter-ilhas, o elo regional da baleação não significa que ela tenha sido homogénea. Pelo contrário, foi a sua dispersão por nove ilhas que ditou uma diversidade típica.

Nos Açores não houve nenhuma Revolução Industrial Baleeira A ideia da pluralidade das memórias da Baleação parte de outra constatação fundamental: é insuficiente considerar o património imaterial como uma mera expressão das condições envolventes à construção de botes baleeiros. Como dissemos, as memórias são muito plurais e difusas, e já muito se fez por elas. Há registos em primeira pessoa publicados em livro, houve alguns trabalhos de campo de recolha de memórias e há, sinal dos tempos, várias biografias de actores da baleação na blogosfera e nas redes sociais. Falta, no entanto, uma recuperação sistemática das

memórias que restam em todo o arquipélago. Na realidade, uma recolha que seja sistemática não tem que partir de objectivos pré definidos demasiado rígidos – como a descoberta de métodos de construção naval – mas de uma planificação rigorosa do trabalho de campo que contemple a complexidade das memórias dos actores da baleação. É importante também estar atento a outras experiências de recolha de patrimónios marítimos portugueses e internacionais. No fundo, trata-se de recolher percepções individuais e plurais que revelam relações com o Mar e a Natureza diferentes dos discursos das organizações de carácter ambiental ou patrimonial, ou das instituições políticas regionais e internacionais. As memórias da baleação reportam inevitavelmente a um mundo que já não existe e ganham significado perante as transformações actuais. De que forma se pode concretizar esta proposta? Quando entrevistamos um antigo baleeiro podemos procurar saber a embarcação, a armação ou fábrica a que pertenceu, a mobilidade social que teve (se foi só remador, se chegou a oficial, se foi operário, construtor ou maquinista); perceber quantos familiares teve na baleação, se partilhou com eles a embarcação ou a vaga na armação, na fábrica ou no estaleiro; a tipologia das embarcações em que navegavam, a tecnologia empregue na fábrica ou nos caldeiros, as relações entre o pessoal de terra e o pessoal de mar, além dos portos e as técnicas de navegação nas áreas de baleação e junto aos varadouros. Podemos tentar saber a relação que tinham com os agentes de comércio da primeira venda de óleos e farinhas para exportação, a variação das soldadas, os valores e as formas de pagamento, os investimentos que fizeram com o dinheiro da Baleia, os contratos colectivos e a assistência social do Estado e dos privados. Importa registar quem emigrou, sobretudo após 1957, com ou sem familiares, os destinos de emigração, mas também outros episódios colectivos, como os naufrágios e as mortes a que assistiram, os cultos no mar, as promessas e as dádivas. Finalmente, podemos querer saber as recordações afectivas da baleação, a opinião sobre os patrimónios baleeiros e as actuais representações do passado, e aquilo que acham do whale-watching. Para concluir, é importante notar que, ao contrário do tempo em que se caçavam cachalotes, a actual preservação do património baleeiro não deve depender só de uma estratégia comercial de sucesso, mas de políticas públicas responsáveis por assegurar a diversidade do património móvel e imóvel, bem como a pluralidade das memórias *

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música

Do Zepellin ao Drone uma provocação ao pensamento no MAH

Ana Lúcia Gonçalves Almeida

Pode o Museu ser

entendido como “um espaço de provocação de pensamento, envolvendo os públicos no debate de questões relevantes da sociedade contemporânea? Terá esse debate uma dimensão educativa? Como se pode pôr em prática essa dimensão?” As interrogações acima citadas integram o descritivo promocional da conferência “Que lugares para a Educação?” que terá lugar na Fundação Calouste Gulbenkian, a 16 de Dezembro, e em que participarão várias personalidades ligadas a museus nacionais e internacionais. O facto da terceira interrogação apontar precisamente para a forma de viabilizar a dimensão dos museus que promove o debate do contemporâneo comprova o valor marcadamente retórico das questões equacionadas, que mais não são do que um sublinhar de uma visão de Museu, que, não sendo nova, tende a afirmar-se cada vez mais.

Além de exemplificar o funcionamento dos drones, apresentou exemplos credíveis da utilização desta nova tecnologia Era expectável que uma conferência ilustrativa das circunstâncias que rodearam a passagem do ZR-3 USS “Los Angeles” por Angra, aquando do seu voo inaugural de travessia do Atlântico, a caminho dos Estados Unidos, em outubro de 1924, fizesse convergir ao auditório do MAH uma vertente de público que cultiva com apreço eventos e personalidades ligadas à memória da cidade. Por outro lado, fazer uma exposição e demonstração de drones atrairia, supostamente,

Não deixando de ser a “casa das musas” e como tal norteados para a preservação das memórias coletivas, os museus dos nossos dias assumem-se também como um espaço de cruzamento e de confluência de expressões culturais, quer sejam antigas, tradicionais ou contemporâneas. Vai-se ao museu para recordar, para usufruir de legados, mas também para confrontar, questionar e inquirir os caminhos do futuro e da novidade. A obrigação de fazer a comunidade relembrar dados do seu passado recente e a responsabilidade de lhe fornecer informação fidedigna que lhe permita posicionar-se face a novas realidades decorrentes da emergência de novas tecnologias estão, por isso, na origem do encontro “Do Zeppelin ao Drone”, que teve lugar no mês de Outubro no Museu de Angra do Heroísmo e com o qual se assinalou o 90º aniversário da passagem do primeiro objeto voador sobre Angra do Heroísmo. *

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geralmente, alvo de um “estranhamento” nem sempre justificável. Precisamente por isso, se contou com a inestimável participação de um profissional conceituado na área da imagem, Paulo Pereira, que além de exemplificar o funcionamento dos drones, apresentou exemplos credíveis da utilização desta nova tecnologia em áreas tão variadas como o cinema, a proteção civil, a monitorização marítima e ambiental, o mapeamento de terrenos, o apoio à agricultura de precisão entre outras, questionando, paralelamente, o vazio que existe em termos de legislativo e a necessidade de se estabelecerem regras que salvaguardem a reserva de imagem e a segurança das populações. Pode pois um Museu ser um lugar de debate de questões relevantes na sociedade contemporânea?

um outro grupo de frequentadores mais virados para as inovações tecnológicas e, porventura, mais esclarecidos sobre as potencialidades e funcionalidades dos multirotores. A aparentemente insólita associação dos dois eventos nasce, pois, da tentativa consciente de chegar em simultâneo a dois perfis de público, com interesses e vivências diferentes, de forma a gerar uma interação enriquecedora e também a promover a consciência de que a novidade é,

Sem dúvida que sim… Como se pode pôr em prática essa dimensão? Uma das respostas passa, parece-nos, por estar atento a fatores de interesse e discussão na própria comunidade, estabelecendo paralelos com outras questões semelhantes que tenham já sido vivenciadas pela mesma em outros momentos da sua história. Assim, o Museu pode assumir-se naturalmente como voz da memória e, ao completar esse legado de anteriores vivências através do contributo de parceiros credenciados, fornecer informações sustentadas sobre motivos atuais de preocupação, de modo a facilitar uma tomada de posição esclarecida por parte dos seus frequentadores.


Leva de Cheia tudo certinho

dança

Tiago Valim

fora e dentro tá consolando chamarrita tudo estala

assim mesmo fecha a roda salta

torna a saltar chamarrita tudo estala

quebra prá esquerda quebra mais

quebra e tranceia leva de cheia tudo certinho fora e dentro tá consolando chamarrita

Homem da viola:

Viola minha viola Viola minha mulher Quem tem uma mulher viola Toca nela quando quer Um outro cantador:

Oh mestre dessa viola Repenica-me esses dedos Se te faltar alguma corda Tens aqui os meus cabelos

Amigos

, vizinhos e tocadores juntam-se no fim do dia ou na folga de trabalho. É hora de convívio, partilha de histórias e chamarrita. A chamarrita açoreana é um baile tradicional mandado, os participantes formam uma roda virados para o centro do círculo intercalando senhoras e senhores. Um deles tem o papel de mandador e comanda a roda de chamarrita. As expressões dos mandos são comuns entre os mandadores, no entanto existem variações de freguesia para freguesia e de ilha para ilha. Os “mandos” são expressos de forma única e espontânea por cada mandador que pode entrar até em brincadeiras e enganar os outros bailadores com os seus mandos. Originalmente o baile da chamarrita inicia e termina com o mesmo par. Na ilha do Pico existe a tradição do mando, o “vamos á praia”, em que o mandador, com o seu par de braço dado, leva a senhora ao bar para brindar. Tradicionalmente o baile tem duas “pernas”, baila-se uma vez uma roda e depois mais uma. No mando “vamos á praia” volta-se a ir ao bar mas a chamarrita não termina, simplesmente faz-se uma pausa para brindar. Terminada a segunda roda, entram novos bailadores e um novo mandador (caso haja) para que todos possam bailar. O musical da chamarrita é constituído por uma viola da terra, violão, bandolim e viola baixo. Existem também os cantadores, homens ou mulheres que cantam versos, muitas vezes ao desafio. Por vezes são convidados para os bailes tocadores e mandadores, mas tradicionalmente o baile nunca começa sem o tocador da famosa viola da terra. Além do mandador, este tocador é uma das pessoas mais importantes no baile, porque uma chamarrita sem a viola da terra não é chamarrita.

ilustração: Fátima Madruga

Outros versos:

O meu amor, mora longe Mora na ponta do Pico caia chuva, faça vento não há outro mais bonito O vinho que é bom vinho é feito da cepa torta a uns dá o tino e a outros errar a porta. Rapariga não te cases goza a tua boa vida conheço uma casada que chora de arrependida. *

9523

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FAZENDO

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FAZENDO 95 o boletim do que por cá se faz

dezembro 2014

vai.se.fazendo@gmail.com

fazendofazendo.blogspot.com

tirilha

escreve um diálogo para estes desenhos e envia-nos para vai.se.fazendo@gmail.com

texto: Rita Mendes desenhos: Joseph Lewin

rebus

(1 + 5 + 5 + 2 + 4 + 1 + 1 + 3 + 3 + 6)

solução no próximo número

Letras e imagens são usados para formar uma nova palavra ou frase. Deve ser lido da esquerda para a direita. Os algarismos entre parêntesis indicam quantas palavras compõem o enigma e o número de letras de cada uma. As letras fornecidas devem ser compostas com o nome das imagens para formar novas palavras. Quando uma letra surge entre parêntesis deve ser subtraída da palavra da imagem correspondente.

FAZENDO 9 5 2 4 não * * * lucrativo e independente está a ser financiado pela comunidade de leitores colaboradores e parceiros este jornal comunitário,


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