O nome em seu pulso

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Helen Hiorns Tradução: Flávia Côrtes


Copyright © 2013 do texto: Helen Hiorns Copyright © 2015 da edição brasileira: Farol Literário Todos os direitos reservados ao autor. Título original: The name on your wrist Publicado originalmente em inglês pela Random House Children's Publisher UK. DIRETOR EDITORIAL: Raul Maia EDITORA: Vivian Pennafiel EDITORA ASSISTENTE: Camila Lins TRADUÇÃO: Flávia Côrtes PREPARAÇÃO DE TEXTO: Eliane de Abreu Santoro REVISÃO: Fernando Penteado e Vivian Miwa Matsushita CAPA: Sérgio Frega IMAGEM DE CAPA: ©JenkoAtaman/Dollar Photo Club EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Cristiane Viana - Estúdio Chaleira Texto em conformidade com as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Hiorns, Helen O nome em seu pulso / Helen Hiorns. – São Paulo : Farol Literário, 2015. Título original: The name on your wrist. ISBN 978-85-8277-089-4 1. Ficção - Literatura juvenil I. Título. 15-02565

CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura juvenil 028.5

1a edição • maio • 2015 Farol Literário Uma empresa do Grupo DCL — Difusão Cultural do Livro Av. Marquês de São Vicente, 446, Cj. 1808 – Barra Funda CEP 01139-000 – São Paulo/SP Tel.: (0xx11) 3791-9575 www.farolliterario.com.br


‘ Para Hannah, que foi paciente com minha impaciência e acompanhou tudo, do começo ao fim.



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O reinado de Tom III Esta é a primeira coisa que lhe ensinam quando você entra na escola, antes de lhe ensinarem a se limpar e dar descarga depois de usar o banheiro; e antes de ensinarem a responder à chamada. Mas nem precisava. Seus pais lhe contam quando você está aprendendo a dizer seu nome; repetem inúmeras vezes enquanto você está aprendendo a dar seus primeiros passos vacilantes; é a sua canção de ninar quando você não pode ficar acordado até tarde. E, quando você entra na escola, as orientações são repetidas. Passam a fazer parte de sua psique. A partir do momento em que ele aparece pela primeira vez, você não revela a ninguém o nome em seu pulso. Ao longo dos anos, aprendi a aceitar que os seres humanos são incríveis. Quando estão com calor, sua pele produz suor, que então evapora para resfriá-los, e isso afeta o xixi. O sal também. Todos esses mecanismos se equilibram mutuamente. O corpo é uma intrincada teia de sistemas, todos projetados para manter algumas reações químicas funcionando, e toda essa incrível ciência biológica é envolta em algo que você pode abraçar. Os seres humanos têm sobrancelhas para impedir que o suor escorra até os olhos. Tudo tem um propósito. Todo corpo humano é um milagre.   7


Eu gosto de corpos. Gosto de pensar sobre o fato de que, por baixo da superfície da minha pele, a hemoglobina transporta oxigênio e dióxido de carbono; sobre o fato de que isso é possível devido à troca de ligações e que tudo se resume a uma questão de atração e partículas. Isso realmente faz você pensar, saber que você é uma pessoa com consciência e mente, mas também é apenas uma máquina delicada, com mecanismos adequados para lidar com algumas mudanças. Se as mudanças são muito grandes, então você pode ter queimaduras de sol, ou morrer. No entanto, eu não gosto de pessoas. Pessoas são previsíveis e imprevisíveis ao mesmo tempo: parece que, sempre que você deseja que alguém o surpreenda, a pessoa continua a mesma; e aqueles que pareciam legais estragam tudo de uma forma ou de outra. As pessoas geralmente tomam decisões idiotas, mas é pior que isso: elas têm razões idiotas para essas decisões; porque elas estavam em cacos e foram forçadas a se reerguer, para ser de um jeito que provavelmente nunca pretenderam ser. Sempre pensei que seria melhor se as pessoas existissem simplesmente em um nível físico e não nos níveis emocionais e espirituais mais complicados que também vêm junto. Em suma, Tom Asquith precisava ir embora. Como namorado, ele era mais ou menos; gostava de rotina e de aparências. Então, eu seria levada para jantar e exibida pelos corredores de um jeito quase humilhante e quase lisonjeiro, dependendo do meu humor no dia. Ele me perguntava como eu estava e realmente parecia gostar de mim — talvez não tanto quanto ele gostava da ideia de ter uma namorada e a vaga perspectiva de autossatisfação, mas isso não mudava o fato de que a coisa toda tinha sido baseada em uma mentira. Bem, mais do que uma mentira, na verdade. Com o Tom, eu era uma pessoa completamente diferente do que eu tinha sido com o Tomas (e com o Thomas antes 8


disso), e o fato de nossa relação ter sido baseada em uma mentira nunca tinha sido confessado abertamente, mas era um pouco óbvio. Acho que era mais uma noção; uma mentira metafísica, que eu considerei quase como um insulto. Era como se ele não tivesse que desperdiçar palavras comigo, pois eu era burra o bastante para acreditar cegamente. Meu nome não estava escrito no pulso de Tom Asquith. O problema é que não existem muitas Corins, e, quando as pessoas pensam que estão em um relacionamento com sua alma gêmea, elas agem de forma diferente, como se fosse algo precioso, algo sagrado que precisa ser defendido com todas as forças. Eu sempre achei que fosse essa a razão das estatísticas que nos empurram garganta abaixo nessas revistas, dizendo que as relações entre almas gêmeas têm menos de 1% de chance de darem errado, em comparação com as altas estatísticas de outros relacionamentos. É a ideia de obrigação, na verdade. Se o meu nome tivesse aparecido na pele ligeiramente vermelha e irritada do pulso dele, então ele teria prestado mais atenção em mim nos nossos primeiros anos de escola, ou poderia ter se dedicado e se esforçado um pouco mais para me dar um presente incrível no meu aniversário de dezenove anos, imaginando, sem dúvida, contar aos nossos futuros filhos sobre o primeiro presente que ele me comprou. Para dizer a verdade, o perfume até que era decente, mas não dava uma história. Com almas gêmeas, tudo tinha a ver com história. E, assim, Tom Asquith tinha me fornecido a desculpa perfeita para terminar com ele. Que imbecil. Matei aula para ler um livro na cama (achei que encarar a tela do meu tablet já era esforço mais do que suficiente para uma segunda-feira) e, previsível como sempre, Tom surgiu com seu carro velho em frente à minha casa, dizendo que estava com saudade e perguntando se eu queria sair dali antes que Jacinta me dedurasse e minha mãe descobrisse tudo. É   9


óbvio que eu aceitei, e, depois que ele me pagou um jantar porcaria em um restaurante onde conseguiu um desconto graças a um de seus colegas, ele parou no estacionamento em frente à praia para “conversarmos”. A noite não foi exatamente como ele havia planejado, mas isso a deixou ainda mais divertida. Eu gostava de desapontar as pessoas. Particularmente Tom, que me respeitava a ponto de se esforçar para não parecer muito desapontado quando eu empurrava suas mãos ou me afastava quando ele tentava me beijar, mas carecia da complexidade emocional necessária para disfarçar bem seus sentimentos. Sua expressão meio irritada, meio desesperada era realmente a minha favorita. Algo nos cantos dos lábios dele parecia se afetar seriamente pela gravidade, e ele precisava fazer um esforço enorme para dar um sorriso. Ele tinha algumas poucas expressões de que eu achava que realmente sentiria falta, mas eu tinha certeza de que um outro Thomas iria se materializar em breve para cuidar das feridas do meu coração, teoricamente partido. Com Tom me beijando, seria muito fácil decidir adiar aquilo por mais uma semana. Eu poderia esperar até a segundafeira seguinte (Tom não era bem uma novidade — recentemente, eu estava começando a sentir que toda a minha vida era uma repetição; e era basicamente por isso que tinha chegado a hora de ele cair fora e me deixar sozinha) para retomar o plano. Havia livros suficientes para baixar e manter a rotina por pelo menos mais um mês, mas eu não queria esgotar meu estoque de uma só vez, e, realmente, seria melhor assim. Se eu deixasse aquilo continuar, haveria outro espécime masculino abandonado vagando pelo colégio e se referindo a mim como aquela-que-dá-o-fora e, francamente, eu poderia viver sem Jacinta passando o relatório disso para minha mãe. Seria muito fácil fingir estar com o coração partido por vários Thomas, mas atuar exigia esforço e dedicação. 10


— Ei! — murmurei, agarrando o pulso de Tom e entrelaçando meus dedos nos dele. — Temos que voltar logo. Tom, com seu rosto a centímetros do meu, não parecia exatamente convencido por aquele argumento; ele me puxou e nos beijamos novamente, ele prendendo minhas mãos contra a janela atrás de mim. O carro de Tom era um daqueles antigos, com uma marcha manual, sem utilidade nenhuma, adicionada apenas como objeto nostálgico e sentimental, para deixar o carro com um ar vintage. Aquilo era a cara do Tom, com seu apreço ridículo pelas aparências e sua falta de valorização do prático. Ele gostava do fato de o mundo pensar que éramos almas gêmeas, mesmo sabendo que não éramos. Ele achava que aquilo o tornava interessante. E Tom Asquith era tudo, menos interessante. Ainda assim, aproveitando o ângulo em que estávamos e o fato de que ele estava concentrado em passar para o meu lado do carro sem se machucar na marcha de mentira, foi muito fácil cravar minhas unhas embaixo de seu protetor de pulso e abrir o fecho. Etiqueta social não se aplica ao comportamento de potenciais almas gêmeas na privacidade de seu próprio carro, e, como estávamos agora na idade em que a busca costuma começar, foi um movimento perfeitamente válido e quase justo. Tudo para manter minha reputação no colégio em plena luz do dia. Não que antes isso tenha me impedido de algo. Os livros de História dizem que, por tradição, as almas gêmeas devem tirar os protetores de pulso somente na noite de núpcias. Eu não acredito em boa parte do que está escrito nos meus livros de História, um monte de besteira, mas ainda há muita superstição sobre isso, que você não deve dormir com alguém, a menos que tenha visto seu nome no pulso do outro. Eu nunca fui boa em seguir regras. Tom me beijou no pedacinho de pele embaixo da minha orelha e sussurrou algo que soou um pouco como um “Eu te   11


amo”, no momento exato em que tirei o protetor de pulso, virei a palma de sua mão e li o nome que estava escrito ali. Teana. Aquilo tinha ficado interessante. A cicatriz avermelhada no pulso de Tom Asquith trazia o nome de uma das garotas menos populares do colégio, que estava na parte inferior da cadeia social (era cruel, mas adolescentes são sempre cruéis). Por isso, não era de se admirar que Tom, um cara popular e bem relacionado, fosse tentar evitar aquilo o máximo possível. Eu era sua distração atual contra o que poderia ser o resto de sua vida: Teana Briggs, que, apesar de sua posição social, era uma das meninas mais legais que eu já conheci, que tinha cortado todo o cabelo e o vendido para caridade e cujos pais eram tão rigorosos que não permitiam que ela sequer pensasse em buscar sua alma gêmea antes da maioridade. Tom estava certamente se rebelando contra as expectativas deles, se é que ela era a Teana certa. — Oh! — exclamei, estremecendo e me afastando dele, de olhos arregalados, numa perfeita expressão de choque. — Teana? — Corin — ele resmungou, afastando-se tão rápido para esconder o pulso que bateu a mão no comando de marchas. — Olha, eu posso explicar. As pessoas se sentiam nuas sem os protetores cobrindo o nome. Era desconfortável. Não era natural. Me divertindo com aquilo, verifiquei se meu protetor estava firme no lugar. Eu também não gostava de ver. Eu nunca tinha visto o pulso de outra pessoa antes, e aquela imagem ficou gravada em minha memória. — Como? — perguntei, a voz chegando ao nível de histeria quando destranquei o carro e abri a porta. — Então você só... você recebeu um nome transplantado ontem e se esqueceu de mencionar isso? 12


— Corin! — exclamou Tom, agarrando o meu braço e tentando me impedir de sair do carro. — Corin, você não pode ir, está a quilômetros de casa, você só... olha, vamos conversar sobre isso. — Não há nada para conversar! — minha voz ainda estava histérica. O equilíbrio perfeito entre raiva e tristeza. — Eu não tive a intenção... eu não queria que você pensasse... — Sim, Tom, você queria. — Apenas entre nesta porcaria de carro. — Vou pegar o trem — respondi, começando a chorar (Deus, se atuar ainda fosse uma carreira possível, e não um monumento histórico, eu teria ficado bilionária). — Eu não... não consigo olhar para você agora. Como pôde? Depois que minha irmã...? A menção a Jacinta teve exatamente o efeito desejado: Tom empalideceu e de repente olhou enojado para si mesmo, desconfortável, culpado e chateado ao mesmo tempo. Era engraçado, o jeito como minha irmã conseguia afetar o estado emocional do meu namorado, muito mais do que eu era capaz. — Não posso deixar você pegar o trem. Aquilo lá está vazio. Corin, vamos lá. Eu não posso fazer isso com você. — Você ia fazer muito pior — falei, enfiando as mãos nos bolsos para mantê-las protegidas do frio de janeiro. Afasteime do carro, em direção à estação de trem. Tom gritou algo (poderia ter sido um “Eu te amo”, e, se foi, eu não sei se eu deveria sentir raiva ou pena dele), mas o ignorei e desci em direção à praia. A praia. Um lugar sobre o qual eu não queria pensar. Pelo menos havia ar (congelante) lá embaixo e eu gostava da sensação do vento chicoteando a franja em meu rosto, ainda que me sentisse mais vulnerável desse jeito. Não havia ninguém assistindo (exceto, talvez, Tom, se ele tivesse saído   13


do carro e estivesse pensando em me seguir, mas eu duvidava que ele faria isso), então eu não me importava se estivesse parecendo uma criança mais do que o habitual. Eu gostava do mar, mas, depois que meu pai morreu, minha mãe não queria se lembrar dele toda vez que sentisse a brisa. Ela mudara-se para a praia com ele, mesmo tendo sido uma criança criada no interior, e ela jamais sonhara que o Walden que estava procurando surfasse por diversão e tivesse passado a infância comendo peixe e batata frita em folhas grosseiras de papel reciclado. Ela dizia que nunca gostara de sal na comida, que gostava menos ainda no ar que respirava e que não poderia mais ficar à beira do mar. Naquela época, não íamos discutir com nossa mãe por causa do seu jeito estranho de viver o luto. Nós simplesmente aceitamos, permitimos que ela nos arrancasse dali e adicionamos a praia à nossa lista de coisas a lamentar. Nos mudamos para apenas vinte minutos de distância, era verdade, mas foi o suficiente para garantir que ela nunca voltaria ali: assim que as pessoas terminam a busca, passam a viver vidas simples, com poucas pessoas incluídas. O mundo só é grande quando você está em busca; assim que é encontrado, você aceita que seu lugar é ao lado daquela pessoa. Você não deveria precisar de mais ninguém. Inspirei fundo pela última vez antes de sair dali, desfrutando a sensação da areia sob meus sapatos enquanto caminhava ao longo da praia em direção à estação de trem. Havia uma estrada que levava para a mesma direção, e eu provavelmente chegaria mais rápido por ela, pois hoje em dia eles só fazem os trens andarem quando há um número suficiente de pessoas que querem dar uma volta, então eu duvidava que faria muita diferença. E, se perdesse um trem, eu só precisaria contar uma história triste e paquerar de leve o maquinista para que ele liberasse outro trem. Era moleza. 14


Aquela não era exatamente minha primeira viagem de volta para casa no trem noturno. Aquelas enormes e grosseiras máquinas de metal tinham um certo charme em sua feiura. Enquanto tudo que era novo parecia ser feito de folhas de metal precisamente equilibradas e leves, os trens eram sólidos e brutos. Um pouco ridículos, na verdade. Uma máquina de enorme proporção e cheia de excessos. Tudo havia saído exatamente do jeito que eu planejara. Claro que minha mãe ficaria chateada antes mesmo que eu explicasse a situação com Tom (mais lágrimas seriam necessárias) e Jacinta me perturbaria por horas, porque eu tinha dado motivos para isso, mas, por outro lado, tudo havia funcionado perfeitamente. Eu poderia faltar ao colégio no dia seguinte, alegando coração partido, já que as pessoas ligadas à tal Corin provavelmente estariam devastadas pelo fato de ela ter se apaixonado por outro Thomas que não valia nada. Meus pensamentos estremeceram por um segundo e parei no último degrau que dava para a rua, em frente à estação de trem. Prendi a respiração e olhei fixamente, sentindo as coisas agora mais simples e mais reais do que haviam sido por semanas. Depois de alguns longos segundos, consegui me recuperar, retomando a calma para voltar a andar. Foi apenas um momento de fraqueza. Um estado temporário de insanidade, por ter ficado acordada até tarde planejando como desfazer meus laços com o Tom número três. Mas, ainda assim, lá estava ele. Por uma fração de segundo, pensei ter visto meu pai, morto dez anos antes.

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