catálogo | exposição C.ASAS livros de artista livros-objetos

Page 1

EXPOSIÇÃO C.ASAS livros de artista | livros-objetos

CURADORIA E EXPOGRAFIA Fabiola Notari FOLDER Graziela MONTAGEM Cris Marcucci Ana Cris Rosa Célia Alves Lídice Salgot Irene Guerreiro Marcelo Salles (Caixeiro Viajante)

FOTOGRAFIA David Vidad

DE 28 DE JULHO A 29 DE SETEMBRO DE 2022 UNIBES CULTURAL | Rua Oscar Freire, 2500 - São Paulo/SP

ISBN 978-65-00-54067-3

Nos últimos anos, o livro de artista começou a ganhar mais visibilidade no Brasil, sendo protagonista de diversas exposições e feiras de arte. No entanto, ainda se trata de uma manifestação artística pouco conhecida pelo público em geral.

Foi do desejo de promover o alcance e o acesso mais amplo a essa rica forma de expressão da arte – e de divulgar o grupo de estudos como local de possibilidade de trocas poéticas e de práticas artísticas – que nasceu a exposição C.ASAS.

Em um espaço cuidadosamente preparado para propiciar o diálogo entre artistas, obras e visitantes, foram expostos dezoito livros de artistas produzidos durante o ano de 2021, como resultado de reflexões em torno do tema “casa” realizadas nos encontros do Grupo de Estudos Livros de artista, livros-objetos: entre vestígios e apagamentos. Este grupo faz parte do programa de formação da Casa Contemporânea - um espaço cultural multidisciplinar localizado no bairro de Vila Mariana, na cidade de São Paulo.

06

A exposição propôs a imersão dos visitantes nos livros dispostos em módulos pelo espaço do hall da UNIBES Cultural. Os artistas ofereceram ao público repertório imagético e poético, incitando à reflexão e compreensão mais profundas em torno da arte contemporânea. As obras expostas reuniram elementos para a contribuição do entendimento do livro de artista como prática artística, visando, assim, a expandir a noção dos limites e finalidades de seu formato, sua história, sua plástica e sua linguagem.

Para os artistas da exposição, a casa, múltipla em suas possibilidades, é: morada, proteção, ninho, abrigo, letra, experiência, silêncio, família, raízes, memória(s), histórias, estórias, coletivo, corpo, T/ terra … e para você? O que significa casa? Como ela se configura? Como ela se desfigura? Como expressá-la em livro (de artista)?

Este catálogo reúne registros fotográficos da abertura da exposição, imagens e vídeos dos livros de artista expostos, e texto inédito da

07

artista Graziela – pensado especialmente para a ocasião. Autora do texto do folder, a viajadora e escrevinhadora nos presenteia com um belíssimo relato, no qual dialoga com cada um dos artistas e seus respectivos trabalhos, num verdadeiro e profundo exercício de ler o mundo e os mundos, e se deixar ser transformada por ele(s).

Este volume se configura como um receptáculo dos registros da experiência espaçotemporal entre corpo, livro e casa, e, ao mesmo tempo, como um livro-catálogo construído de forma coletiva para impulsionar – e contribuir com – a pesquisa e criação do livros de artista como linguagem artística na contemporaneidade.

Fabiola Notari

(Brasil, primavera de 2022)

08
10

Ana Cris Rosa

Sem título recortes de papel dobrados três volumes no formato sanfona 15 x 10,5 x 6 cm (caixa) 2021

11
12

Célia Alves casa?

livro sanfonado de madeira com monotipias sobre diversos papéis 21 x 29,5 cm (página) 2021

13
14

Celso Honório

Cur(a)tivos

papéis dobrados, cortados e colados em formato “janela”, escrita bordada, fotografia e montagem, fotocópia e stencil. 21 x 7,5 cm (fechado) 2021-2022

15
16

Clarice Vasconcellos

s/título in Casas colagem de fotos e escrita 20 x 10,5 x 0,5 (fechado) 2021

17
18

Clarissa Camargo

Histórias adormecidas fotografia digital e técnicas mistas 9 x 15 cm (página) 2021

19
20

Claudia Souza

Amores Entrelaçados livro sanfonado (circle accordion) com desenho, aquarela, recorte, perfuração, fotografia e escrita manuscrita a lápis (grafite) 22 x 22 cm (página) 2021

21
22

Cris Marcucci

CaJu

dois livros sanfonados de madeira com transferência fotográfica 6,5 x 6,5 x 0,7 cm (fechado) 10 x 10 x 0,9 cm (fechado) 2021

23
24

Cristina Bottallo

Casa, onde quero estar? livro formato french folder com desenho feito com aquarela, nanquim, guache e lápis de cor, cinco pedras pintadas 11 x 17 cm (fechado) 2021

25
26

Fabiola Notari

SEIS

livro com três dobras feito com estampas xilográficas 15 x 28,5 cm (dobra aberta) 2021

27
28

Irene Guerreiro

casas de vovó irene

livro de 16 páginas em EVA com colagem de cópias de desenho colorido 11 x 15 cm (página) 2021

29
30

Leda Lucas

em casa técnica mista, papel fotográfico, terra de formigueiro, água filtrada, cola branca, papel vegetal, guache, fio de algodão artesanal 38 x 25 cm (aberto) 2021

31
32

Lídice Salgot

A Casa

fotografias digitais impressas em papel vegetal e texto manuscrito em papel japonês 20 x 12,5 (fechado) 2021

33
34

Maíra Carvalho

Minha casa-corpo

papel kraft dobrado em formato accordion, escrito em caneta giz branca, com frascos de vidro contendo papel, flores secas, papel artesanal de fibra de bananeira, lascas de lápis e linhas, fechados com rolha e costurados no papel 21 x 7,5 x 2,5 cm (fascículo fechado) 2021

35
36

Paula Neves

casa suspensa

as casas que viv[i]o accordion fold com fotografia sobre acetato, transferência de imagem sobre papel, desenhos de mapas afetivos em papel vegetal, caixa/ envelope em papel cartão e tecido 15 x 18,5 cm (fechado) 2021

37
38

Pedro Kubitschek

Casa

aquarela sobre papel canson 23 x 11,5 x 0,5 cm (fechado) 2021

39
40

Renata Danicek

Abrigo

x

e colagem sobre papel

x 0,5 cm (fechado)

desenho
kraft 23
11,5
2021 41
42

Sandra Lopes

Ninhos / Rainha resíduos de oxidação, cera de abelha e fios dourados sobre lenço 29,5 x 36 cm (aberto) 2021

43
44

Sílvia Ferreira

TERRA! Planeta Água! [homenagem à música do Guilherme Arantes] gravura em relevo sobre papel hanehmühler, tinta acrílica e espelho 19 x 6 x 1 cm (fechado) 2021

45
46
47
48
49

Ilustres artistas,

Ao me deparar com o tema “CASAS”, imediatamente me veio à lembrança a epígrafe de O outro pé da Sereia, do escritor moçambicano Mia Couto, que li há mais de 10 anos:

Quem acha doce a terra natal ainda é um tenro principiante; aquele para quem toda terra é natal já é forte; mas é perfeito aquele para quem o mundo é um lugar estrangeiro. A alma tenra fixou seu amor num único ponto do mundo; a pessoa forte estendeu seu amor a todos os lugares; o homem perfeito extinguiu o seu.

Alguns muitos anos depois dessa leitura, visitei uma exposição no Museu de Artes Decorativas em Praga (cidade onde moro atualmente) sobre o trabalho do fotógrafo tcheco Josef Koudelka. Mais de uma vez voltei ao museu, tão fascinada eu estava, não somente pelas belíssimas fotos, como também pela trajetória desse artista, que não deixou nunca de girar pelo mundo. Numa

das voltas de suas viagens, ele flagrou com sua câmera um dos momentos mais tensos e tristes de sua terra natal (a qual já não habitava): a invasão – em agosto de 1968 – da então Tchecoslováquia pelas forças militares soviéticas, esmagando os sonhos da Primavera de Praga. Da última vez que visitei a exposição, passei um longo tempo lendo o material disponível com textos do (e sobre o) fotógrafo. Em um dos livros, chamado Exílios, me deparei com o seguinte depoimento de Koudelka:

Estar no exílio insiste em que você construa sua vida do início. Esta oportunidade te é dada. (...)

Sem liberdade para viajar eu não seria capaz de fazer muitas dessas fotos.

Depois que eu parti, eu tentei evitar possuir qualquer coisa. (...) Eu aprendi a dormir em qualquer lugar e sob quaisquer circunstâncias (...) (...)

Aquilo de que eu mais precisava era viajar, assim eu poderia fotografar. Para além disso, eu não queria ter o que as pessoas chamam de ‘lar’. Eu não queria ter o desejo de voltar a algum lugar. Eu precisava saber que nada estava me esperando em lugar nenhum, que o lugar

em que eu deveria estar era onde eu estava no momento. Uma vez, eu conheci um cara super legal, um iugoslavo de origem romani, e nos tornamos amigos. Um dia ele me disse: ‘Josef, você viaja há tantos anos, nunca parou. Você viu muitas pessoas e países, todos os tipos de lugares. Me diga qual é o melhor lugar. Onde você gostaria de ficar?’. Eu não falei nada. Quando eu estava de partida, ele perguntou de novo. Eu não queria responder, mas ele insistiu. Finalmente, ele falou: ‘Sabe, eu descobri! Você não quer responder porque você ainda não encontrou o melhor lugar; você viaja porque ainda está tentando encontrá-lo.’ ‘Meu amigo – eu respondi –, você entendeu tudo errado. Eu estou desesperadamente tentando não encontrar esse lugar’.

Sou uma pessoa que deixou sua terra natal, mesmo achando-a doce, para realizar o sonho de ganhar o mundo e de nele me perder; de desesperadamente nunca encontrar meu lugar. Grande (des)ilusão a minha. Porque eu me perdi no – e pelo – mundo e descobri que viver no exílio é abrir mão de se ter uma casa. O que, se por um lado não deixa de ter vantagens, por outro custa o preço de uma saudade que se mostra às vezes bastante sabotadora desse plano de me querer

54

“perfeita”.

Habitada por essas citações, passei então a buscar nos dicionários sinônimos para a palavra “casa”. Uma palavra me levava a outra e a outra e a outra. Comecei a me distanciar dos ditos sinônimos. Me perdi por entre associações. Dos substantivos escorreguei para os verbos, saltando por entre adjetivos e tocando locuções e expressões idiomáticas. Perambulei sem rumo e sem parada –e sem resistência – pela incapacidade de fixar casa em qualquer definição.

Em busca de um norte (ou talvez um sul), encontrei o verbete “viajar”, que logo me levou ao “errar” e à sua ambiguidade tão deliciosa e conveniente. Voltei para a “casa” e encontrei, via verbo “habitar”, fascinação por “abita”, uma palavra que eu desconhecia e que, à primeira vista, parecia não ter nenhuma relação com “casa”.

“Abita” é uma peça de madeira ou de metal que serve para prender no cais de um porto a amarra da âncora de uma embarcação. Para nomear esse

55

ato de amarração existe o verbo “abitar”, que é pronunciado tal qual o verbo “habitar” – sendo que os seus contrários não apenas se pronunciam como se escrevem da mesma forma: “desabitar”.

E assim, apaixonada pela “abita” (ou, mais precisamente, pela sua capacidade de desabitar), eu não conseguia mais imaginar a minha casa como outra coisa que as viagens. Aquelas que fiz. Aquelas que farei. E também as que nunca se realizarão.

Afinal, o que é “viajar” senão desabitar-se (nos dois sentidos) para habitar(-se) e criar abitas tão provisórias no espaço fixo quanto permanentes na memória?

Me lembrei então de uma outra exposição que visitei em 2011 sobre o trabalho de artistas da exUnião Soviética – dessa vez no espaço cultural Doc Seine em Paris, onde eu vivia na ocasião. Me chamou a atenção o trabalho de um artista azerbaijano chamado Tarlan Gorchu. O trabalho por ele exposto consistia em um tapete, ao lado do

56

qual havia um bilhete de viagem aérea e um texto:

A partir das lendas e das estórias infantis tradicionais, as crianças aprendem a sonhar que elas possuem diferentes objetos mágicos. Para mim, na minha infância, eu costumava, sobretudo, sonhar com tapetes voadores. Meu ambiente oriental era naturalmente rico em tapetes autênticos, e eu gostava de examinar seus incríveis padrões ornamentais, procurando códigos, dicas ocultas, e nomes de cidades e de países misteriosos, mas... Eu não notei quando eu parei minha pesquisa sobre tapetes voadores, e recentemente compreendi, no fundo do meu coração, que eu não havia jamais parado totalmente. Eu compreendi tudo isso no aeroporto de Frankfurt, quando eu esperava no saguão de embarque com uma passagem para Los Angeles nas mãos. Vejam só: um código de barra impresso no meu bilhete de repente me pareceu tão caloroso e familiar, reproduzindo nossos ornamentos tradicionais dos tapetes. Meu sonho se tornara realidade: lá estava o meu tapete voador; eu havia finalmente o encontrado!

Tanto a obra como o texto ficaram por um tempo esquecidos, e voltaram à mente quando eu preparava uma apresentação para o Grupo

57

de Estudos de Livros de Artistas, no ano passado. Eu me senti triste por não ter desejado um tapete mágico voador quando era criança.

Saudosa das viagens interrompidas por diversos acasos, embarquei no universo da Arte e visitei as casas em formas de livros cujas portas e páginas vocês gentilmente abriram a quem quisesse habitá-las e por elas viajar. Meu diário de bordo relata o que encontrei.

Eu nunca tive uma casa de vó, Irene. A Branca, única vó que eu conheci, se viu sozinha muito jovem e foi acolhida em várias casas de familiares e amigos, mas, ao contrário de você, ela nunca se sentiu na casa dela. Nem mesmo quando se casou, porque foi morar com a grande família italiana do Toi, meu avô e seu marido, que eu não conheci. Foi ela quem me disse isso pouco antes de morrer – quando também me contou que o primeiro e único lugar que ela sentia como sua casa era a dos meus pais, onde ela viveu os últimos 10 anos de sua vida. E deve ter sido. A última frase que ela disse antes do último suspiro na cama do hospital foi para a minha mãe: “Eu sou muito feliz!”. Se para ela esse vazio

58

foi preenchido na casa da filha mais nova, para mim ele continua latente. Mas um dia, eu pude preenchê-lo, mesmo que por poucas horas. Em 2017, eu viajei pela primeira vez para a região da Itália de onde a família paterna da minha mãe partiu para fazer a nossa história no Brasil. Fazia 10 anos que eu tinha obtido a cidadania italiana, ocasião em que prometi ao meu avô que iria visitar a cidade natal de seu pai, na região do Vêneto. Depois de passar dois dias pelo vilarejo de Onè di Fonte em busca, sem muito sucesso, de traços do meu bisavô, tive a ideia de visitar Fagarè della Bataglia, a cidade natal da minha bisavó, de quem eu também herdei a ancestralidade. Na prefeitura me sugeriram que eu procurasse informações mais antigas na igreja do vilarejo, que era onde se faziam os registros e as burocracias em tempos mais remotos. Ao chegar na igreja, deparei com as portas fechadas e um aviso “Volto logo”, junto do número do telefone do padre. Telefonei e ele me disse que deveria estar de volta em uma hora. O que parecia uma eternidade para um lugar de pouco mais de 1500 habitantes, um cemitério, duas escolas. Nenhum restaurante ou supermercado. E moradores curiosos. Felizmente. Porque um deles, cuja casa ficava em frente à igreja, me chamou

59

para simpaticamente me especular. E a ele se juntou outro vizinho curioso, que, ao ler os documentos que eu já tinha, viu o sobrenome da bisavó e me mostrou uma casa que, segundo ele, era daquela família, mas estava desocupada. Não tive dúvidas. Era lá que eu iria esperar até o horário combinado com o padre. Havia uma cerca em volta da casa. E uma placa proibindo a entrada de pessoas estranhas. O que não era meu caso. Era a casa da minha bisavó. Passei por um buraco da cerca. Muito excitada e, ao mesmo tempo à vontade, passeei pelo jardim – onde fiz meu banheiro –, olhei pelas janelas, observei as plantas crescendo dentro daquela casa que parecia ter apenas uma fachada. Me sentei numa cadeira de alvenaria em volta de uma mesa no jardim de gramas altas e escrevi uma emocionante carta para a minha mãe. Só fui embora quando o sino tocou as badaladas das 13 horas, indicando que o padre já deveria estar de volta. As tuas casas, Irene, me lembraram que eu não tive casa de vó. Mas elas também me levaram de novo para a casa da minha bisavó, que por algumas horas eu habitei, preenchendo um vazio que às vezes ainda é dolorido.

E se por um lado eu nunca tive casa de vó, Lídice, por outro eu tive casa de vô. Paterno. Duas. As últimas onde

60

ele morou depois de ter habitado tantas outras. E as tuas casas me trouxeram lembranças dessas casas tão especiais e importantes para minha infância e adolescência. Essas casas que, como ele, me fizeram falta quando comecei a me entender adulta. Assim como as tuas, essas casas ficam em Piracicaba, onde meus pais nasceram, cresceram e viveram até se mudarem para Jaboticabal, a cidade onde nasci e onde eles vivem até hoje. O meu vô Kronka ficou viúvo poucos meses antes de eu nascer, e viveu sozinho por muitos anos, até se casar novamente. Na verdade, ele próprio era uma casa. Cheia de amor e de humor. E de muitos sabores. Ele era muito amoroso, com os filhos, as noras, os netos, os familiares, os amigos, as pessoas que lhe prestavam serviços. Das suas casas, as memórias se confundem. Me lembro do sofá vermelho de tecido macio. Do tapete confortável que imitava pelo de ovelha. Do quintal com uma réplica brega do Manequin Pis que eu achava linda e chique (e cujo original eu vi muitos anos depois em Bruxelas, quando ele já não estava mais aqui). Da coleção de revistas Manchete que um dia eu herdei. Do chá mate gelado, do doce de moranga, dos sanduíches de bisnaguinha com salame e queijo, das conservas de cebola e de batatinha – que ele mesmo fazia

61

e com os quais gostava de nos presentear. Do cheiro de café torrado que ele moía numa área do quintal. Lembro-me das noites do Natal, para as quais ele preparava uma árvore decorada com bombons. Lembro-me da malhação do Judas na praça em frente à casa. O vô Kronka foi a primeira pessoa que eu perdi. Naquele dia eu senti pela primeira vez a dor incurável da morte. E, como você Lídice, eu me perguntei: “onde será o novo endereço do amor”? Hoje o meu avô, que foi professor e diretor de ensino, dá nome a uma escola municipal de ensino fundamental de Piracicaba. Ele que gostava tanto de presentear não podia ter nos deixado herança mais valiosa: ser eternizado na identificação máxima de uma escola, a segunda casa das crianças. Sempre que vou a Piracicaba, passo em frente as casas dele. Olhando a tua casa eu fiquei imaginando se algumas das tuas fotos não retratam cenas que também povoam as minhas lembranças. E me pergunto: “quantas vezes nós duas não partilhamos a beleza do mesmo pôr do sol?”

Paula, uma vez ouvi você dizer que “mudar de país dava a sensação de casa suspensa”. Você disse: “as paredes só nos comportam”. Naquela ocasião, eu disse que eu não buscava uma casa e você comentou que era triste ouvir isso

62

de mim. A tua casa tem como alicerce as férias na casa da avó. Como já disse para a Irene, eu nunca tive casa de vó. Me assustei quando ela falou que teve 15 casas. E, como muitas pessoas, reagi contando em quantas casas eu vivi e fiquei muito surpresa quando calculei o mesmo número de casas que ela. Em algumas morei por muitos anos. Em outras por menos de um mês ou até mesmo por apenas alguns dias. A tua casa me fez pensar nessas minhas 15 casas. E as lembranças mais fortes foram daquelas onde eu nunca me senti em meu lar. As duas casas ficam em Paris – onde morei pela segunda vez nos anos de 2011 e 2012 (e onde eu já tinha habitado 5 outras casas). Na cidade de que tanto gostava e para a qual por muito tempo sonhei voltar eu não conseguia me sentir em casa nas casas que suspostamente eram minhas. Uma ficava em Montreuil, bairro em crescimento, que começava a ser descoberto e desejado por artistas e por jovens descolados. A outra ficava em Montmartre, quase do lado da Sacré Coeur, numa rua milagrosamente tranquila e silenciosa em um dos bairros mais visitados da cidade. Nos meus arquivos, a pasta de fotos da primeira eu nomeei “A minha casa que não é minha”; e o da segunda “A casa que não é minha”. Foi um período triste

63

da minha vida. De descobertas difíceis e inevitáveis. Eu superava a tristeza passeando pela cidade, sempre adiando ao máximo a volta para as não-casas. As paredes daquelas casas não me comportaram. Ao contrário da Irene, eu não soube me relacionar com a provisoriedade, pois esta me jogava na cara o que eu traduzia – talvez equivocadamente – como um estado de precariedade amedrontadora. Aquelas paredes frias me faziam sentir desabrigada. Olhando para a tua casa, e vendo a tua criança ali tão onipresente, eu me pergunto se não foi isso que faltou trazer comigo nas minhas duas casas negadas. Olhando para a tua casa e para todas as outras em que já vivi[o], eu já não tenho mais certeza de que não quero uma casa. Obrigada por me ajudar a derrubar as rígidas paredes de falsas certezas que não me comportam mais.

Um grande biombo que escancara um porto seguro e revela lugares de conflitos pode ser considerado uma casa, Célia? Penso que sim. Porque uma casa, como você disse ao parafrasear Gilberto Gil, pode conter tudo. Se eu não consegui habitar minhas duas casas em Paris, lá na mesma cidade eu mergulhei em outra casa que, a princípio, parecia conter o proibido. Era a casa de uma grande amiga, para

64

onde a tua casa me levou. Avril é uma inglesa que muito jovem se mudou para a Espanha, onde viveu antes de se instalar na capital francesa, de onde não sairia mais. Eu a conheci em 2006, quando morava em Praga. Àquela altura ela tinha sido diagnosticada com uma doença neurodegenerativa, a qual comprometia lentamente a sua memória recente. Mas a sua grande preocupação era manter a privacidade do lar. Foi somente em 2012 que entrei lá pela primeira vez. Fui uma das poucas pessoas que entrou em sua casa enquanto ela ainda tinha a consciência de quem éramos. O apartamento precisava de uma reforma e ela deveria se mudar temporariamente para outro apartamento que ela tinha há algumas quadras daquela. Não era o melhor que podia acontecer para uma pessoa cuja única segurança era o seu lar e tudo o que ele continha – em especial, as memórias; as boas e as ruins. Minha missão era ajudá-la com a mudança, ou seja: jogar fora o que já não servia mais, empacotar o que ficaria guardado, e transportar para o outro apartamento aquilo de que ela precisaria. Parecia que eu tinha sido abduzida para um gabinete de curiosidades muito bagunçado onde moravam as lembranças de uma pessoa que já pouco retinha no cérebro os acontecimentos mais

65

próximos do presente. Apesar dos sintomas já existentes, os danos ainda não estavam avançados. Para não se esquecer dos compromissos, ela os anotava em papéis aproveitados de embalagens (as preferidas eram as de chocolate), que ela prendia com prendedores de roupa em lugares visíveis.

E ela nunca faltava a esses compromissos. Ela checava com frequência onde estava o envelope que guardava os documentos mais importantes. As roupas preferidas ficavam espalhadas pela casa em cabides que ela pendurava onde fosse possível, de modo que o lindo e grande guardaroupa de madeira maciça quase não tinha serventia. Os seus companheiros – seis gatos – ajudavam na bagunça, espalhando pelos, ração e cocô por todos os cantos. Por uns dias, esse foi o meu castelo. Foi lá que ela me mostrou provas de narrativas que pareciam fantasiosas, e que, com vergonha por ter desconfiado dela e de seus delírios, descobri serem tão verdadeiras quanto inverossímeis. Ali, com ajuda dos objetos, ela me narrou sua trajetória. Lá encontrei de tudo um pouco: evidências e resquícios de glamour, boa música (jazz, especialmente), dores e sabores de amores, traições recíprocas, fotos, a cópia datilografada do livro que ela nunca publicou, bibelôs, joias, cartas, a coleção de chapéus.

66

O grande espelho na parede, onde ela se certificava de que não parecíamos ter a idade que tínhamos: éramos tão mais jovens! Quando os sacos de lixo acabavam, ela corria no mercadinho ao lado. Quase sempre se esquecia dos sacos, mas voltava com cerveja e petiscos, e engatávamos longas conversas. Os tabus, os encontros furtivos dos anúncios de jornal, o romance com o menino mais jovem, a mãede quem ela tinha tanta saudade. Nossas confidências se misturavam. Ríamos muito. Às vezes chorávamos. Um dia, quando estávamos transportando algumas coisas para o outro apartamento, vimos na rua uma moça com um realejo. Ao invés de mensagem, o pássaro escolhia músicas. Deixamos as sacolas no chão e dançamos por horas. E até hoje não sei ao certo se isso aconteceu de verdade. Com o passar do tempo, ela foi se esquecendo quem eram as pessoas, inclusive eu, mas ainda me recebia com carinho na sua casa; ela sabia e me mostrava que eu era alguém especial dentre tantos outros que passaram a frequentar o seu lar. Falava coisas desconexas e eu me aproveitava da sua loucura para liberar a minha. Por longo tempo dialogávamos sem coerência nem coesão por meio de frases inconclusas. Um dia, cheguei à sua casa e o grande espelho estava coberto

67

com um pano. Ela havia se assustado com a pessoa estranha que começou a aparecer na frente dela todos os dias, mesmo quando estava sozinha. Até que sua condição ficou delicada e não era mais seguro que ela ficasse sozinha. Uns meses depois que foi morar em um asilo, fui visitá-la. Ela não sabia meu nome e nem quem eu era, e no início me mandou embora, para depois me pegar pelas mãos. Avril tinha um namorado e parecia alegre. Também parecia confusa. Como se não conseguisse mais se habitar. Para mim, aquele lugar roubava a sua vida muito mais rapidamente do que a doença. Voltei ao asilo uns meses depois. Ela estava sentada imóvel, com o olhar perdido ao longe. Já quase não falava, e andava com pouca velocidade e muita dor. Caminhamos devagar até seu quarto. Entramos e nos deitamos juntas na cama. Adormecemos de mãos dadas. Ela ainda dormia quando fui embora. Essa foi a nossa despedida. Ela partiu uns dias depois, quando eu já não estava mais em Paris. No ano seguinte, no dia em que ela completou 80 anos, a Catedral de Notre Dame de Paris foi consumida por um incêndio. Fiquei mais de um ano sem voltar para lá. Ainda me confundo nos tempos verbais e às vezes é impossível usar os pretéritos, porque não quero apagar sua existência.

68

Da Avril eu herdei ricas estórias, alguns objetos, o prazer em elogiar as pessoas (mesmo aquelas que não conheço), e o vestido amarelo que a mãe dela usou em um dos três casamentos da filha. Pouco tempo atrás eu me dei conta de que o vestido se encontra pendurado na porta do meu quarto com um cabide, assim como ela fazia com suas roupas. E dela também herdei a certeza de que a loucura nada mais é do que a explosão da mais genuína lucidez, que, de tão intensa, não cabe dentro dos parâmetros sociais e parece nonsense às pessoas que não mergulham dentro de si. Muito obrigada Célia, porque você me proporcionou mais um mergulho, e a tua casa materializa no meu coração memórias de uma das mulheres mais incríveis e importantes que conheci, e em quem todos os sentimentos cabiam.

Já a tua casa dourada, Celso, me leva para outra casa também muito especial que visitei com meu amigo Fábio (um dos melhores parceiros de viagem) em dezembro de 2012, quando estive no Tocantins e, pela segunda vez, adentrei um pedaço do sertão brasileiro. A casa da Dona Romana, uma mulher cheia de alma, como a Avril. O que faz desse lugar uma atração turística, para além da figura tão emblemática da sua moradora é o fato de se propor como abrigo “para

69

quem está de andada”. Não por acaso, acredito, essa casa se localiza em uma cidade que se chama Natividade, a mais antiga do mais jovem estado brasileiro. No amplo jardim da casa, há muitas e diversas esculturas feitas essencialmente de pedras, representando desde pessoas até anjos, santos e crucifixos. Todas foram idealizadas por ela, “atendendo a instruções dos espíritos”. Assim como as pinturas e desenhos de motivos religiosos e místicos nas paredes interiores. Nessa casa, às sextas-feiras se reza o terço sertanejo dos escravos – como foi o pai da Dona Romana, antes de herdar aquela casa do antigo proprietário. Naquele dia, vestida de branco e muito serena, ela parou debaixo de uma imensa árvore de onde extraiu um pedaço de resina perfumada com o qual me presenteou. E em seguida nos conduziu a um enorme galpão onde estoca o que chama de “provisão”: água, sementes, remédios, ervas, roupas, sapatos, brinquedos, instrumentos musicais, livros, cadernos, canetas, e muito mais. Dona Romana contou que recebeu uma mensagem segundo a qual o mundo vai sofrer muito e o Brasil é um dos únicos lugares que vai se salvar. Muitas pessoas, segundo ela, vão chegar ao sítio, nuas e descalças, sedentas e famintas por água, alimentos, conhecimento e cultura. Ela e sua casa acurada

70

estão prontas para receber essa multidão que vai lá chegar depois de longa e cansativa andada. A tua casa, Celso, com as marcas dos passos sofridos, me levou à casa da Dona Romana, que, no estado mais pobre do Brasil, está pronta para servir de abrigo.

Casa de cura e acolhimento também é a tua, Maíra. Essa casa-corpo é maior do que o mundo, porque através das tuas janelas vi não somente a tua alma como a minha própria. Diante dela, de sua fragilidade forte, eu vi a minha primeira e única viagem para a China, em julho de 2014 – um turning point na minha vida. Eu, que gosto de viajar sozinha, me juntei a um grupo organizado pela família chinesa proprietária da escola de artes marciais que frequento em Praga. Dentre tantas coisas que lá aconteceram, dois episódios me reaparecem pelas janelas da memória. O objetivo principal da viagem era treinarmos na escola de gongfu frequentada por Qin Fei, filho do Mestre Qin Ming Tang, em Denfeng, cidade onde se encontra o Templo Shaolin, no qual nasceu o Zen Budismo na China. No terceiro dia, depois de uma passagem rápida por Pequim, seguimos para a tão esperada visita à Grande Muralha da China. Ao contrário do que eu imaginava, não chegamos

71

até lá junto da multidão que visita o monumento todos os dias. Depois de algumas horas de viagem, entramos em uma área onde avistei a placa: “Você saiu do parque ecológico. Essa área da Grande Muralha não é aberta ao público”. O que eu estava fazendo nesse território proibido? Já era fim de tarde quando estacionamos em frente a uma pequena pousada onde tomamos banho, jantamos, e recebemos uma lanterna cada um de uma simpática senhora. Chegou um senhor que seria nosso guia e já estava escuro quando começamos a longa caminhada até o topo da montanha. Minha casa-corpo estava dolorida, porque naquela manhã, ainda em Pequim, eu fui atropelada por um triciclo enquanto fotografava um homem que cozinhava na calçada. Mas a minha casa-alma estava forte e confiante. Eram mais de dez da noite quando atingimos nosso destino: uma torre inteira exclusiva para o nosso grupo, devidamente preparada para acamparmos na Grande Muralha. Que estava vazia. Ninguém além de nós. Ela era nossa por aquela noite toda e pela madrugada adentro. E por toda a manhã, como verificamos no dia seguinte. Quase ninguém dormiu dentro da torre. No meu saco de dormir e sob a claridade do luar, eu admirava as luzes de Pequim ao longe. Foi assim que a

72

China se materializou para mim: em forma de energia. Que eu cultivo desde 2002, quando comecei os estudos e práticas de artes marciais no Instituto Brendan Lai de Campinas (São Paulo), sob orientação do professor e amigo Samuel. Acordei cedinho, antes de o sol nascer, para fazer qi gong com o grupo, e no meio a manhã tomei o caminho da descida com a certeza de que algo estava se transformando em mim. Alguns dias mais tarde, já na escola e distantes da Grande Muralha, fomos convidados pelo mestre do Qin Fei para uma meditação em seu templo. Ele nos recebeu, nos deu as boas-vindas, falou do Shaolin e disse que aquele era um dia muito importante, pois era a data em que se comemorava a ocasião em que Guan Yin se tornou a deusa da misericórdia e da compaixão. Zhao Li Ping, mãe de Qin Fei, me acolheu ao seu lado, mostrando que eu era especial naquela família. Dirigimo-nos ao local da meditação, nos sentamos nas almofadas e ouvimos o Mestre explicar que a meditação é o momento em que céu e terra se encontram. Pela primeira vez na vida, por alguns segundos, eu meditei. Minha mente ficou vazia de pensamentos, mas eu estava acordada e lúcida, e enxerguei um escuro com luzes amarelas e azuis. E pelas tuas janelas, Maíra, eu vivi novamente essas experiências;

73

por elas vi passar a minha alma.

Alma que habitei também através da tua casa, querida Leda. Você, que me trouxe a essa casa contemporânea onde se faz Arte, hoje me abre a tua casa pintada de guache e de terra de formigueiro. Essas cores vivas me transportaram imediatamente a um lugar que foi minha casa por algumas horas. Foi por acaso, numa road trip pelos Estados Unidos em 2018, quando eu e meu companheiro Lukas atravessamos 7000 km de carro, de Nova Iorque até Los Angeles, desviando por atalhos no caminho. Tínhamos alguns planos (mais ele do que eu) e algumas paradas previstas. Mas, na maior parte do tempo, transitamos sem obrigação por uma imensidão de cenários diversos. Um dia, quando eu estava na direção, Lukas se preparava para cochilar e me disse para ficar atenta à indicação do Vale dos Monumentos. Seria uma passagem rápida, porque já estava no caminho, por um dos mais visitados pontos turísticos da região, e que fica dentro da reserva dos Navajos, na fronteira dos estados de Utah e Arizona. A certa altura, avistei ao longe uma placa onde consegui ler a palavra “Vale”, e acordei o Lukas. Quando chegamos mais perto, pudemos ler em silêncio “Vale dos Deuses”. Numa cumplicidade sincrônica, dissemos em

74

voz alta: “Vamos!”. Eu sentia que navegávamos por um lugar que era ao mesmo tempo sagrado e profano. E nós, que não somos religiosos, sentimos a experiência espiritual. Não havia ninguém naquele vale cênico de formações rochosas marrom-avermelhadas que pareciam ter sido esculpidas pelos deuses. Ou pelas tuas formigas gigantes, Leda. Só depois de muito tempo, cruzamos com o carro de um casal. E mais ninguém. Paramos por um tempo para apreciar a paisagem e a energia do local. Senti uma paz que sinto em raros momentos e lugares. Conversei com os deuses enquanto o sol se punha, alaranjando ainda mais o céu. Fechei os olhos e passei um tempo deixando que a brisa acariciasse meu rosto. Lukas me abraçou e juntos choramos com alívio nossas dores em comum. Não hesitamos em montar nosso acampamento para passar a noite lá. Fizemos uma pequena fogueira (e somente depois soubemos que não poderíamos ter feito), improvisamos o jantar, tomamos chá preparado com as ervas que colhemos no parque visitado durante a manhã. Adormecemos sob o céu estrelado e a proteção ancestral, e por algumas horas nos esquecemos de que estávamos no país mais terrivelmente capitalista do mundo. Nos meus sonhos, me confundia com o Monte Olimpo, a outra casa

75

dos deuses que visitei no dia dos meus 40 anos na Grécia, mas que é tema para outro relato (que você já conhece e com o qual se emocionou). Essas moradas dos deuses estão entre as experiências mais ricas de toda minha vida, e quando preciso de paz acesso esse canto da memória onde se guardam as lembranças desse vale quase escondido. As paredes de terra do teu livro-casa, Leda, que parecem o Vale dos Deuses visto do céu, me levam a esse lugar de aconchego e proteção, que, por um breve instante, foi a minha casa e onde nada de ruim podia me acontecer. (a tempo: deixamos de lado a visita ao Vale dos Monumentos. Não fazia mais o menor sentido diante daquilo que tínhamos vivido).

E desse templo no meio do deserto eu me desloco para a tua casa, Sílvia, o templo da nossa vida. Eu não entendo nada sobre astrologia. Dizem que meu elemento é o ar. Mas, se houver um ascendente de elementos, certamente o meu é a água. Sou completamente louca pelo mar. Adoro cachoeiras. Gosto de me refrescar em lagos e rios. Não resisto a um bom banho de chuva. Me contento com uma piscina. E me satisfaço até com um chuveiro ou um esguicho. O teu Planeta Água, Sílvia, abriu a porta das memórias de um dos destinos mais fascinantes – e aquáticos – que já alcancei: a

76

Amazônia. Foi em setembro de 2015. Ainda dentro do avião, fiquei paralisada com a vista da infinita floresta serpenteada pelo rio também infinito. Águas jorraram copiosamente dos meus olhos. Mal saí do aeroporto climatizado e lá estava ela, a água, penetrando meus poros em forma de calor húmido (o que eu muito apreciei, porque me recuperou de uma rinite acentuada pela secura sudestina). Eu nunca imaginei que um dia iria navegar nos “caminhos da canoa” ou então observar de perto as “raízes com água”, que eu conhecia muito abstratamente dos livros de escola pelos respectivos e lindos nomes tupis “igarapé” e “igapó”. E o que fez a minha emoção explodir de vez foi poder habitar um dos mais bonitos cartões postais da Bacia Amazônica: o encontro das águas dos rios Negro e Solimões. De repente, eu estava ali em um barco, transitando por aquela imensidão de beleza que quase não cabia nos meus olhos. Benzi minha guia de Iansã nas águas que se encontravam, enquanto meu coração improvisava uma oração pagã. Eu sentia o sabor de um milagre da natureza misturado ao de um sonho sendo realizado. Era a mais pura vida pulsando. Os espelhos quebrados refletem o risco de desaparecimento dessa e de toda beleza vital, e, ao mesmo tempo, a tua casa acende o

77

desejo de sobre-viver.

Desejo de sobre-vivência no qual as árvores persistem sem resignação. Não somente as árvores amazônicas que ainda não foram cortadas. Todas elas. Eu não tenho ateliê, não tenho filhas e nem um marido que corta folhas de madeira. Mas me afeiçoei a uma árvore – dentre tantas outras – que é tão bonita quanto o teu cajueiro, Cris. Um enorme plátano de mais de centenas de anos que hoje é um dos meus cantos de acolhimento e aconchego em Praga. Ela fica num pequeno parque próximo a minha casa, ao qual por um tempo não dei muita atenção, mas que passei a habitar no início de 2020, já quase 3 anos depois de ter me mudado para o bairro. Quando olho para o cajueiro que dá sombra, adorno e nome ao teu ateliê, penso no meu velho e forte plátano. Para mim ele sempre foi bonito e imponente, mas só criei intimidade de verdade com ele no dia em que fui passear no parque com a Mila, minha amiga e vizinha de 87 anos, e ela me convidou para abraçarmos a árvore. Assim o fizemos e, de olhos fechados, nos recolhemos por um instante em nossos silêncios. Desde então, essa árvore é para mim como um templo e nela me refugio em diferentes situações. Eu busco seu abraço quando estou triste e lhe dou o meu toda

78

vez que passo por ela. Sob a sua sombra acendo velas e faço minhas preces desconexas. Em seu tronco procuro desenhos que se fazem sozinhos e os transporto para o papel – meus preferidos são os corações. Às vezes me sento no banco ao lado para ver as formas que seus galhos rabiscam no céu. Acompanho a mudança das cores das folhas provocada pela passagem das estações. Ali penso poesias e me acredito artista. Assim como você no teu ninho CaJu.

A Serra da Mantiqueira também é casa de tantas árvores no Brasil. É tua casa e refúgio, Cristina, a artista que pinta poesia em forma de flores, de pássaros e de casas. Poucas vezes visitei esse recanto brasileiro e, apesar das boas lembranças e de algumas fotos, tenho uma memória visual não muito nítida dos lugares por que passei. Mas quando vi as tuas casas me transportei para a casa onde mora a mãe do Lukas, e onde ele passava os fins de semanas e as férias escolares quando ainda era apenas a casa de fim de semana dos avós. Muito rapidamente criei afeto por essa casa e fiz dela um dos meus refúgios fora do Brasil. Não somente porque a paisagem é bonita, os pássaros cantam sem cessar embalando o silêncio, o ar fresco revigora a alma, e o luar é a única luz das madrugadas. É o meu refúgio porque

79

lá, fundida ao bosque, eu me reconheço natureza. Talvez porque no Brasil eu sempre tenha sido sempre uma caipira urbana, nessa casa tcheca eu realizo os sonhos até então imaginados e relatados apenas nos contos de fadas, nas histórias em quadrinho infantis e nos filmes estrangeiros. É lá que eu nado no lago; é lá que como fruta apanhada do pé; é lá que me vejo cara a cara com alces, veados, javalis e outros animais silvestres. É lá também que sinto a cinzenta saudade da cidade. Faz 8 anos que frequento esse lugar, onde experienciei inúmeros momentos agradáveis, e alguns outros nem tanto. Mas faz poucos meses que me dei conta, graças às tuas artes, Cris, que numa casa aparentemente desabitada à beira do lago há vida pulsando em forma de delicados adornos de flores pintadas na fachada descascada. Flores vivantes como as tuas. Desde então, aquela é para mim “a casa da Cris”, e sempre que passo na frente dela tenho vontade de bater na porta e te chamar, para juntas coletarmos pedrinhas no bosque, as quais pintaremos e depois soltaremos para viajarem pelo mundo.

E os teus casarões, Clarissa, me levaram a outra casa com aparência de abandonada que visitei em Liepaja, numa viagem que fiz a Letônia, em julho de 2007. Fazia

80

pouco tempo que eu morava na República Tcheca e estava muito interessada em visitar os países que tinham sido submetidos a ditaduras disfarçadas de comunistas. A ideia da União Soviética era algo muito vivo nas lembranças das aulas de História e de Geopolítica. E ao mesmo tempo distante. Passei um mês viajando pelos chamados países bálticos (Lituânia, Letônia e Estônia), e escolhi Liepaja – dentre tantas outras que visitei nessa viagem – porque lá estava Karostas, uma antiga prisão que se transformou em museu, e onde se podia pernoitar nas celas que já foram habitadas por presos políticos de diferentes épocas e regimes. E foi exatamente o que eu escolhi: me hospedar por uma noite naquele prédio, projetado originalmente para ser um hospital, mas que nunca serviu a essa função. Essa ideia estranhamente me excitava, e foi o ponto que mais esperei de todo o programa que tracei para aquele mês. Eu havia lido que o bairro onde se encontra Karostas era um local em revitalização, pleno de artistas e de pessoas descoladas. Por esse motivo, decidi chegar bem cedo. Mal desci do ônibus e já senti que meu livro estava equivocado. Passei pela prisão e fui informada de que deveria chegar por volta das 21h. Ainda não eram nem dez da manhã. Aquelas

81

redondezas me assustaram a tal ponto que o meu desejo de alívio era que o tempo passasse rápido para eu poder votar logo para o cárcere. Mas naquele dia os ponteiros do relógio não estavam entrosados comigo. Eu sabia que se voltasse para o centro para passar o dia por lá não retornaria mais. Comecei a andar. O único artista que encontrei foi um senhor que, muito compenetrado, desenhava e pintava numa tela a enorme igreja ortodoxa de cúpulas douradas. Andei em círculos. Totalmente sem rumo. Até que comecei a sentir fome. Nenhum restaurante, nenhuma lanchonete, nenhum café, nenhum mercadinho, nenhum sinal de comida. Muitas voltas depois, comecei e me comunicar com o senhor. Juntouse a nós uma amiga dele e eles me levaram a uma escola de windsurf para tentar descobrir onde poderia comer. “No centro da cidade”, me disseram depois de eu, educadamente, recusar uma das suculentas linguiças que eles estavam assando, esperando pela segunda oferta, que eu aceitaria. Mas que não veio. Segui na minha andança e, algum tempo depois, me vi em frente a um quiosque, ao lado de um casarão que parecia desabitado. Depois da refeição, que foi um dos melhores banquetes do mundo, me disseram que eu podia usar o banheiro do casarão. Foi com grande

82

curiosidade que lá adentrei. A impressão que eu tinha era de que uma chave enferrujada como a tua tinha me aberto uma porta para histórias soviéticas ainda mal adormecidas. Os móveis antigos; os tapetes surrados; a poeira não-visível mas presente; os mapas amarelados e desatualizados nas paredes descascadas. E, de repente, da porta entreaberta de uma sala eu escutei um som. Alguém me convidou para entrar. Não hesitei. Era um sábado à tarde de um dia de verão, e de onde tudo parecia morto surgiu a vida. Estava acontecendo um sarau. Os artistas e a plateia vestiam roupas de festa que, para meus parâmetros, pareciam totalmente fora da moda. O piano embalava músicas e poesias na língua do eterno inimigo. Como se a liberdade fosse festejada, mas ainda não totalmente assimilada. Eu me sentia parada num tempo que nem era meu. Não fossem pelas fotos e vídeos que fiz, ainda teria dúvidas de que aquilo aconteceu de fato. Foi lá que me refugiei por algumas horas. O sarau terminou, a plateia foi embora, e, para adiar o meu calvário, ajudei a desmontar e guardar o cenário, e só fui embora quando fecharam as portas do casarão. Eram seis horas da tarde. Eu ainda tinha 3 horas de espera para cumprir a minha sentença. Quando finalmente cheguei à prisão, encontrei evidências

83

que gritavam desesperadamente episódios muitos tristes da História: os desabafos e protestos rabiscados nas paredes; as latrinas sujas e fétidas; o cheiro de álcool exalado pelo jovem menino que cuidava do local; os pesadelos que tive naquela noite mal adormecida. Um buraco que ainda sangra a humanidade, e não se cicatriza. E para o qual não há chave que tranque. Uma casa de presenças ausentes, tão distante da poesia fotográfica do teu casarão de afetos, Clarissa.

Afetos que reencontrei em uma das viagens mais importantes que fiz, em 2016, quando visitei São Tomé e Príncipe, um pequeno país insular, localizado no Golfo de Guiné, na costa Oeste da África Central. Um país pouco conhecido, que fica literalmente no centro do mundo, onde um pequeno ilhéu invadido e controlado por um resort português guarda o marco de encontro entre Equador e Greenwich. Esses afetos reencontrei também em tua casa, Cláudia, que evoca cheiros e sabores de amores entrelaçados e me levou de volta ao pequeno grande paraíso multissensorial africano. Para esse lugar eu viajei com um pequeno grupo do qual eu era a única brasileira. Quando lá cheguei, era o dia de Iemanjá e fui oferecer a ela uma oferenda na praia em frente ao hotel. O país é majoritariamente cristão e não há religiões

84

próximas às nossas crenças afro-brasileiras, mas estando perto da Nigéria, país de origem dessa orixá, me senti ainda mais conectada com ela. A língua em comum me deixou, até mais do que em Portugal, perfeitamente sintonizada com a população local, porque, como eu, eles têm a experiência do idioma em estado permanente de rebeldia. O que quer e o que pode essa língua? Ela foi a ponte dos afetos ali vivenciados. Eu pronunciava uma palavra e me denunciava de imediato. À minha volta se formava uma roda – quase sempre de crianças e adolescentes – que gritava em coro: “Brasil! Amo Brasil! Brasil é lindo! Viva as novelas!”. Se a língua foi a ponte, a comida foi a casa que habitei naquele lugar. O mamão, a goiaba, os gomos de jaca e a água de coco no café da manhã do hotel onde os funcionários me presenteavam com docinhos parecidos com a nossa cocada; as pratadas e mais pratadas de banana frita do pequeno restaurante improvisado na casa de uma família na modesta vila de pescadores onde visitei uma base de proteção das tartarugas marinhas; a fruta-pão, que desde a infância era palavra mágica que saiu da boca de uma professora de geografia e ali se materializava em iguaria assada; o mousse de maracujá do melhor restaurante de peixes da cidade; os

85

biscoitos quentinhos do caótico e colorido mercado central, onde comprei metros de tecidos africanos e decidi começar a costurar. Tudo aquilo, que para os outros do grupo era comida exótica a ser fotografada e exibida em suas redes socais, para mim era memória gustativa que me alimentava de ancestralidade. E de afeto. Como me enchi de orgulho quando o guia falou que o cacau – uma das principais fontes da economia local – lá chegou do Brasil, assim como eu. Ganhei tantos presentes – de cacau a conchas do mar –que, olhando para eles na mesa do hotel no último dia, foi difícil decidir o que não iria embora comigo na mala. Foi durante esses dias que eu me reconciliei com o Brasil – que àquela altura me deixava um pouco aborrecida. Foi lá que me dei conta da grandeza do meu país. Mais do que isso. Foi nessa viagem que eu entendi que tenho direito a essa grandeza pois ela faz parte de mim. Foi ali que decidi que não abriria mais mão de desfrutar desse direito. Por isso – e por toda a comilança, e todos os abraços e todas as declarações de amor – que essa viagem foi tão importante. Eu te agradeço, Cláudia, por me abrir a tua casa afetuosa e, assim, me trazer de volta uma experiência multissensorial única e essencial.

86

E o afeto também chegou em forma de convite para visitar a tua casa, Pedro, que me levou a uma das casas onde mais me sinto feliz e onde mora o meu amigo Vital. Essa casa é destino certo sempre que vou ao Brasil. Fica em Leme, no interior de São Paulo, não muito longe da minha cidade natal. Às vezes eu passo por lá antes mesmo de chegar a minha própria casa. É a única casa no Brasil da qual eu tenho as chaves. Mais de uma vez lá me instalei mesmo na ausência dos moradores. Como a tua casa, Pedro, aquela é acolhedora e a mesa está sempre posta – e farta –, com tudo o que gosto de comer. É nessa casa que saboreio bacalhau com batatas e minhas pizzas favoritas, sempre regadas a vinho e muita risada. E outras tantas gargalhadas. Se tenho a sorte de estar lá no mesmo dia em que a Célia, ganho o direito de escolher o cardápio, que ela prepara com todo carinho. Nunca parto sem um pacote de guloseimas para meus pais, da padaria onde sou cliente frequente. Essa casa é decorada com muito bom gosto – como os teus traços leves e elegantes – e é plena de bom humor – como as tuas cores diversas e alegres. Não tem um quintal com jabuticabeira, mas tem um lindo jardim que o Vital chama de Toscana, com flores muito bem cuidadas, que eu avisto e aprecio da

87

janela do ‘meu’ quarto, onde a cama está sempre pronta e cheia de presentes. Nessa casa recebo massagem e sessões de reike. Aparo os cabelos e atualizo meus penteados. Deixo os rastros de minhas alquimias aromaterapêuticas. Danço e canto como se não houvesse amanhã. Tomo banhos e banhos de chuva. E pulo sem roupa na piscina nas madrugadas quentes de sono inquieto. Numa das últimas vezes em que lá estive, na parede de lousa do quarto a letra bonita do Vital me dizia: “Em a poética do espaço, Gaston Bachelard fala que a casa é o nosso espaço no mundo; pois aqui também é o teu canto no mundo, e a poesia fica por conta da tua chegada!”. A tua casa-livro, Pedro, aberta para nos receber, também é um nosso cantinho no mundo.

Meu cantinho no mundo encontrei ainda, Ana Cris, nas casas de dois grandes amigos (grandes na estatura, no coração, no senso de humor e na hospitalidade): Cláudio e Valmor. Entre os anos de 2011 e 2012, eles moraram em Rotterdam, e eu, que desabitava minhas não-casas em Paris no mesmo período, tive a oportunidade de visitá-los algumas vezes. Naquela cidade eu passava por um conjunto de casas ao qual as tuas imediatamente me transportaram, na simetria e até nas cores: as Casas Cubo designadas

88

nos anos 1970 pelo arquiteto holandês Piet Blom. Elas me incomodavam. Não pareciam confortáveis a mim, que não aprecio a arquitetura funcional. Resisti; até que um dia decidi visitá-las. Ao adentrar, me senti sufocada e com vertigem. Mas admito que são fotogênicas e atraíam o meu olhar. As tuas casas me levaram para aquelas, que, dispostas assimetricamente, formam uma floresta abstrata que rabisca desenhos geométricos no céu, na cidade onde, pela primeira e única vez na vida, transitei sem planejar por uma rua chamada Chico Mendes. E onde, em momentos de fragilidade e desabrigo, habitei a casa e o abraço de dois grandes amigos.

Um outro amigo, que me causava medo e curiosidade – e de quem eu não queria um abraço –, era parte de um dos primeiros sonhos que povoou meu desejo até ser realizado: viajar para a Grécia. Isso aconteceu em 2004, quando me encantei com um povo hospitaleiro e um dos mares mais cheios de energias no qual me banhei. De sonho, a Grécia se tornou um dos meus destinos favoritos, e tive o privilégio de para lá voltar algumas vezes – e não raramente me pego sonhando em morar em alguma ilha pacata naquele país. As xilografias dos teus seis livros e as formas como eles

89

se dispõem, Fabiola, me transportam para aquele amigo – e para a gênese do meu sonho grego: o Minotauro e seu labirinto dos quais tomei conhecimento pela leitura dos livros do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato, os quais, por sua vez, me iniciaram na paixão pela leitura e na caça por mais e mais estórias. Quando visitei Creta com a minha família, em julho de 2013, quase morri de emoção, porque, dentre outras atrações, lá se encontra o Palácio de Knossos, o sítio arqueológico mais bem preservado da Grécia e que abriga nada menos do que o labirinto do Minotauro, o meu amigo secreto. Quando cheguei na bilheteria do local, comprei o mapa e pedi às atendentes: “vocês poderiam me mostrar onde fica EXATAMENTE o labirinto?”. Eu não queria perder tempo e nem correr o risco de não encontrá-lo. Elas me olharam com estranhamento, olharam-se entre si, e alguém me respondeu: “Então... o labirinto... é apenas mitologia... Há pinturas, esculturas, altos-relevos do Minotauro, mas o labirinto...,”. Eu concordei, para que não se sentissem constrangidas. Mas, debaixo daquele sol mediterrâneo escaldante, eu vi o Minotauro fugindo para seu labirinto com os bolinhos roubados da tia Anastácia. Os teus livros, Fabiola, me levaram de volta àquela viagem,

90

quando pude habitar concretamente uma das minhas mais tenras fantasias. E a tua Arte nos deu de presente um labirinto de livros, de casas, de viagens e de infinitas possibilidades.

Pela terra, pelo céu, pelo mar e pela imaginação, viajei pelas infinitas possibilidades do mundo, dos livros e das casas. Circulei em linha reta, em espiral, em zigue-zague. Não fixei o meu amor num único ponto. Nem o estendi a todos os lugares. Na busca de extingui-lo, eu – felizmente – me descobri uma mulher imperfeita. Eu, que tanto viajei para não ter uma casa, acabei fazendo morada em quase todos os lugares por que passei, para, finalmente, descobrir aquilo que eu sempre soube: o único porto em que me sinto perfeitamente imperfeita – e que nem sempre é seguro como eu desejava – é a casa aonde cheguei assim que nasci, e onde até hoje moram os meus pais. As tuas casas-colmeias, Renata e Sandra, me transportaram ao conforto desse lar, do qual, no momento, me encontro fisicamente distante. Essa casa, onde eu dizia 20 anos atrás que nunca voltaria a morar. Onde vivemos 5 pessoas em constante transitoriedade. Nem sempre conseguimos nos reunir todos. Quando acontece, as faíscas de conflitos se misturam e se confundem em afeto. É uma

91

casa sem hierarquias oficializadas e a ocasião estabelece quem é rainha, quem é zangão, quem é operária. E todos cuidamos uns dos outros. Somos abelhas muito diversas: nos gostos, nas opiniões políticas, na forma de enxergar o mundo e de se colocar nele. Para que nossas diferenças não se transformem em desigualdade e intolerância, estruturamos a bom funcionamento do ninho-colmeia com aquilo que temos em comum: o respeito, a cumplicidade, o amor. Muito obrigada por me acolherem nas casas de vocês. Além de bela poesia, elas me oferecem abrigo e acolhimento. E me ajudam a colocar por terra minhas estúpidas convicções.

Começo a me dirigir ao fim dessa viagem. Sinto-me emocionada. E tua casa, Clarice, acolhe minha emoção. Ela me remete à trajetória desencontrada no tempo e espaço que narrei aqui (incluindo tudo aquilo que ficou de fora dos relatos). De repente, como você, me pego pensando no significado da palavra “terráqueo”. De repente, me vejo incansável formiga, traçando percursos imprevisíveis que deixam na terra rastros quase invisíveis do vai-e-vem dos meus passos confusos. Como as formigas, que carregam nas costas a provisão da sobrevivência, erro pela Terra, me suprindo de alimento para o corpo, a alma e o espírito.

92

Carrego lembranças das pessoas com quem deparei, dos amores vividos ou não, das águas doces e salgadas, das pedras e conchas roubadas, dos cristais ganhados, das frutas saboreadas, do fogo, do etéreo. E somente agora, na tua casa, me dou conta de que somos todos terráqueos, naquilo que temos de nobres e de pobres. Muito obrigada por abrir para mim a porta dessa casa. Ela me trouxe a vivência da imensidão do nosso Planeta. E da minha pequenez delicada e forte.

Com o fim da viagem, chego ao fim desta carta.

No último encontro do Grupo Estudos de que participei, falávamos sobre livros em geral e sobre livros de artista em particular. Contei aos colegas uma estória que me aconteceu na infância e que repito aqui. Eu devia ter uns 6 anos e, às vésperas do meu aniversário, fiquei de mal de uma das minhas melhores amigas, de modo que a desconvidei para a festa. Ela começou a me chantagear, dizendo que era uma pena ter sido desconvidada, pois a mãe dela tinha comprado de presente para mim uma miniatura de roda-gigante, cujos detalhes ela

93

descrevia ricamente. Fascinada, me rendi, fiquei de bem dela e a re-convidei para a festa. Até o dia da festa eu não conseguia pensar em outra coisa que não fosse o meu mais cobiçado e precioso presente. Foi quando ela chegou e estranhei ao ver em suas mãos um embrulho pequeno, que não condizia com o tamanho da roda-gigante por ela descrita e que eu tanto aguardei. “Minha mãe achou melhor te dar livro”, me disse, sem um pingo de escrúpulo. Eu, que amava ler antes mesmo de saber decifrar as letras, senti uma decepção que não conseguia disfarçar. Mais tarde, tomei amor por aquele livro dos contos de Andersen, que, depois de um tempo, já estava com a capa machucada e as páginas cheias de orelhas, de tanto que eu o carregava comigo.

Poucas vezes andei numa roda-gigante. Não tive tantas oportunidades. E sempre senti um pouco de medo de ficar presa parada lá em cima. No dia daquela festa, porém, comecei uma busca inconsciente incessante por aquela que me pertenceu na imaginação e no desejo. Até hoje,

94

toda vez que vejo uma roda-gigante de brinquedo em uma vitrine, eu paro e a fito por horas, nostálgica, fascinada e desejosa. As grandonas, dos parques, não me atraem tanto – mas me levam inevitavelmente àquele episódio.

E o que aconteceu nesse último dia no Grupo de Estudos foi que eu descobri que os livros são e sempre foram essa roda-gigante que eu busco incessantemente: uma imensidão de sentimentos e emoções que me levam ao céu, à terra e a outras galáxias. Descobri também que essa roda-gigante é o tapete mágico voador que eu desejei sem mesmo saber, e que me deixou inúmeras vezes em suspensão para me levar a todos os cantos do mundo sem sair do lugar.

Mais do que isso, descobri que os livros de artista são a roda-gigante e o tapete mágico voador sem abitas, que me ajudam a desesperadamente não encontrar o meu lugar, para que assim eu possa me sentir em casa nesse mundo que vai ser sempre um lugar estrangeiro e para que eu me sinta

95

encantada e surpreendida toda vez que voltar à casa que nunca vai deixar de ser minha. Sou muita grata a vocês por me permitirem essa longa viagem, por me acolherem nas suas casas-livros, e por me ajudarem em tantas re-descobertas.

Eu quero ainda contar mais uma estória.

Em 2008, eu visitei a Bósnia Herzegovina pela primeira vez. Em Sarajevo eu senti uma energia que nunca senti em outro lugar e que imagino ser parecida àquela que sentem as pessoas religiosas ao visitarem templos, santuários e outros lugares considerados sagrados. De imediato se tornou minha cidade favorita. Para lá voltei muitas vezes. E sempre vou embora chorando, como se estivessem me arrancando de casa. Na primeira vez que visitei a cidade, eu li que quando começou a guerra em 1992 um dos primeiros monumentos destruídos foi Vijenica, a Biblioteca Nacional. A casa dos livros daquela nação teve mais de 90% do acervo destruído. Os artistas não se deram por vencidos. Logo após o incêndio que praticamente

96

destruiu o prédio, o violoncelista Vedran Smajlović fez uma performance no meio dos escombros, mesmo com risco de ser atingido por bombas.

E repetiu a sua arte em funerais e em outros escombros. Em 1995, ainda em plena guerra, aconteceu o primeiro Festival de Cinema de Sarajevo, que em 2022 realizou a sua 28ª edição. E muitos outros eventos culturais continuaram a surgir e/ou a acontecer. Em todo o país, a Arte não deu trégua para a guerra.

Fazer Arte no Brasil há muito tempo é um ato de resistência. Fazer arte em um momento em que não temos nem um Ministério da Cultura é um ato de subversão – no melhor sentido que essa palavra pode suscitar.

Por isso, termino com um pedido a vocês, artistas:

Não permitamos que as nossas rodas-gigantes sejam bombardeadas pela estupidez!

Não aceitemos que nossos tapetes mágicos

97
voadores sejam incendiados pela maldade! Recusemos as abitas! Subvertamos sempre! Com admiração, carinho e agradecimento, Graziela (Praga, 15 de setembro de 2022) 98 Fotografia do acervo da autora, a segunda da esquerda para a direita.

Observações:

A referência do texto mencionado de Mia Couto é: COUTO, M. O outro pé da Sereia. Editorial Caminho: Lisboa, 2016. O texto foi escrito por Hugo de St. Victor, monge saxão do século XII e a referência foi extraída por Mia Couto de uma citação de Edward Said - crítico literário e ativista político, considerado um dos mais importantes intelectuais palestinos, que fez sua carreira acadêmica nos Estados Unidos, e cujo trabalho, infelizmente, ainda não conheço.

A referência do texto de Koudelka é: KOUDELKA, J. Exiles. Essay by Czeslaw Milosz. Aperture, October 31, 2014. Tradução livre feita por mim a partir do original em inglês.

Tradução livre do texto de Tarlan Gorchu feita por mim a partir do texto em francês exibido na exposição.

Os relatos aqui partilhados aqui com vocês fazem parte de um projeto em (eterna) (des)construção intitulado Diários ou memórias desinreinventadas.

99

PROJETO GRÁFICO

Fabiola Notari TEXTOS Fabiola Notari Graziela REVISÃO Leda Lucas

GRAVAÇÃO E EDIÇÃO DOS VÍDEOS David Vidad

ISBN 978-65-00-54067-3

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.