Harold robbins stiletto

Page 1

HAROLD ROBBINS STILETTO

Tradução: Nelson Rodrigues


1

Já passava das dez horas e havia apenas três homens no bar e outro numa mesa dos fundos quando a moça entrou. Uma rajada do vento frio da noite entrou com ela. Ela se sentou em um tamborete e deixou o casaco cair dos ombros. — Dê-me uma cerveja — disse. O garçom apanhou silenciosamente um copo de cerveja e colocou-o em frente a ela. Ela levantou o copo e tomou um gole. — Alguma coisa para hoje à noite? — perguntou, os olhos examinando o empregado do bar. O garçom sacudiu a cabeça. — Hoje não, Maria. É domingo e todos os turistas já estão dormindo. — Êle se afastou e começou a lavar copos debaixo do balcão. Olhou para ela. Maria. Êle chamava a todas elas de Maria. As pequenas pôrto-riquenhas, com olhos negros e brilhantes e pequenos seios e duras nádegas. Êle imaginou quando ela teria tomado a última injeção. A moça desistiu,do homem que estava sentado no bar. Voltou-se para olhar para o da mesa. Só podia ver-lhe as costas, mas pelo talho da roupa adivinhava que não era dali. Olhou interrogativamente para o garçom. Êle levantou os ombros e ela escorregou do tamborete e se aproximou da mesa. O homem estava olhando para o copo de uísque, quando ela parou a seu lado. — Sozinho, señor? — perguntou. No momento em que êle ergueu a cabeça para fitá-la, ela soube qual seria a resposta. Os olhos frios, de um azul profundo, o rosto bronzeado e a boca ávida. Homens como aquele nunca pagavam os seus prazeres. Tomavam-nos à força. — Não, obrigado — disse Cesare delicadamente. A jovem sorriu vagamente, acenou com a cabeça e voltou para seu lugar. Sentou-se num tamborete e tirou um cigarro. O homem do bar acendeu-o para ela. — Como eu disse, — explicou sorrindo — é noite de domingo. Ela aspirou o cigarro e expeliu lentamente a fumaça. — Sei — disse numa voz sem timbre, mostrando no rosto os primeiros sinais de inquietação. — Mas tenho de continuar a trabalhar. É um hábito dispendioso. O telefone — que se encontrava numa pequena cabina ao lado do bar — começou a tocar. O "barman" foi atender. Saiu da cabina e dirigiu-se à mesa de Cesare. — Para usted, señor. — Mil gracias — respondeu Cesare, dirigindo-se ao telefone. — Alô —- começou, fechando a porta da cabina. A voz da mulher era quase um murmúrio. Falava em italiano . — Terá que ser de manhã — disse ela — antes de êle aparecer no tribunal. Cesare respondeu na mesma língua. — Não há outro lugar? — Não — respondeu ela, com uma voz muito clara, apesar de falar tão baixo. — Não conseguimos saber de onde é que virá. Sabemos apenas que terá de aparecer no


tribunal às onze horas. — E os outros — perguntou Cesare — ainda estão no mesmo lugar? — Sim — respondeu ela — em Las Vegas e Miami. Seus planos estão feitos? — Tenho tudo preparado — respondeu Cesare. A voz da mulher tornou-se áspera. — O homem deve morrer antes de se sentar na cadeira das testemunhas. Os outros também. Cesare teve um riso breve. — Diga a Dom Emílio que não se preocupe. É como se já estivessem mortos. Desligou o telefone e saiu para a escuridão da noite do Harlem espanhol. Levantou a gola do sobretudo por causa do vento frio do inverno e começou a caminhar. Dois quarteirões adiante encontrou um táxi vazio. Chamou-o. — "El Morocco" — ordenou ao motorista. Recostou-se no banco e acendeu um cigarro, sentindo a excitação crescer dentro de si. Agora era real. Pela primeira vez desde a guerra era outra vez real. Lembrou-se de como tinha sido a primeira vez. A primeira mulher e a primeira morte. Estranho como pareciam vir as duas coisas sempre juntas. A realidade da vida nunca é tão grande como quando agarra firmemente a morte nas mãos.

Parecia ter sido há muito tempo. Completara quinze anos e decorria o ano de 1935. Tinha havido nesse dia uma parada na pequena aldeia siciliana do sopé da montanha. Os fascistas estavam constantemente a fazer paradas. Havia bandeiras e fotografias do Duce por toda a parte. Com a cara carrancuda, o punho estendido e os olhos salientes como os dos porcos. Viver perigosamente. Ser italiano. Itália significa força. Anoiteceu quando Cesare chegou ao sopé da montanha, a caminho de casa. Olhou para cima. O castelo ficava na extremidade de um promontório perto do cume da montanha. Cheio de enfeites, mas feio. Como sempre tinha sido há perto de seiscentos anos. Desde o tempo de um longínquo ascendente, o primeiro Conde Cardinalli desposava sempre uma filha dos Bórgias. Começara a subir a montanha e passava pela vinha de Gandolfo, quando o cheiro forte das uvas chegara até êle. Podia ainda lembrar-se dos tambores a tocar e da excitação que sentira dentro de si nessa noite. Tinha a cabeça cheia das histórias do velho sargento narrando as orgias do palácio do Duce. — Macho! — dissera o velho soldado, a rir. — Nunca houve homem igual em toda a história da Itália! Cinco pequenas diferentes numa só noite. Eu sei, porque era eu quem as levava para êle, uma de cada vez. E todas saíam de lá de pernas bambas como se tivessem sido montadas por um touro, enquanto êle, às seis da manhã, estava de pé, forte e disposto, a dirigir-nos nos exercícios. — A saliva corria-lhe pelo queixo. — Digo-lhes, jovens amigos, se desejam mulheres, o uniforme do Exército italiano as arranjará para vocês. Êle faz com que cada mulher julgue possuir um pedaço do Duce! Fora então que Cesare vira a pequena. Ela saíra de detrás da casa do pai. Já a vira antes, mas nunca seus sentidos tinham estado tão aguçados.


Era uma jovem alta, forte, de busto opulento. Era filha do vinhateiro Gandolfo. Carregava um jarro cheio de vinho. Parou, ao vê-lo. Êle também parou e olhou para ela. O calor ainda era forte e êle enxugou com as costas da mão as gotas de suor que porejavam sua testa. A voz dela era suave e respeitosa. — Talvez o signor aceitasse um pouco de vinho fresco... Êle acenou afirmativamente, sem responder, e dirigiu-se para ela. Tomou o vinho e sentiu-se aquecido e reconfortado. Devolveu-lhe o jarro e ficaram a olhar um para o outro. Aos poucos, uma vermelhidão começou a invadir o pescoço e o rosto da jovem. Êle reparou nos bicos de seus seios fazendo pressão sob a blusa de camponesa. Afastou-se dela e começou a caminhar na direção do bosque. Apesar de sua pouca experiência, teve a certeza de que não encontraria dificuldade em possuí-la. — Venha! Obediente, quase como um autômato, a jovem acompanhou-o. Na profundidade do bosque, no lugar em que as árvores formavam uma abóbada tão espessa que mal se podia ver o céu, ela se deixou cair ao chão, sem dizer uma só palavra, enquanto as mãos dele lhe arrancavam febrilmente as roupas. Ficou ajoelhado junto dela, estudando as linhas esguias daquele corpo, os seios cheios e fortes arfando e as coxas robustas. Sentiu uma torrente crescer dentro de si e dominou-a com os braços, com o corpo. Era a primeira vez para êle, mas não para ela. Gritou por duas vezes ao senti-la apertá-lo contra si mesma com força; depois, rolou, ficando deitado ao lado dela sobre a relva úmida, esgotado e respirando ruidosamente. Ela se voltou silenciosamente para êle, explorando, esquadrinhando, com os dedos e com a boca. Primeiro a repeliu, depois suas mãos tocaram-lhe nos seios e ali permaneceram. Apertou-os involuntariamente e ela gritou de dor. Olhou-a no rosto, pela primeira vez. Os olhos eram grandes e úmidos. Apertoulhe outra vez os seios. E novamente ela gritou. Tinha os olhos fechados, mas as lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Respirava penosamente, como se lhe faltasse o ar. Um sentimento de posse, como nunca tivera, apoderou-se dele. Cruelmente, agora, voltou a apertar-lhe os seios. Desta vez, o grito de dor que ela soltou afastou os pássaros que se encontravam nos galhos. Seus olhos se abriram e ela fitou-o. Então, quase com adoração, dobrou a cabeça sobre o corpo dele, novamente desperto. Estava escuro quando êle se afastou. Sentia-se forte e completo. A relva era como um tapete macio debaixo de seus pés. Estava quase no fim da pequena clareira, quando a voz dela o fêz parar. — Signor! Voltou-se. Ela estava de pé e seu corpo nu brilhava na escuridão, como se tivesse emergido da terra. Tinha um leve sorriso de orgulho e satisfação. Como as outras ficariam invejosas quando ela lhes contasse aquilo! Não era nenhum trabalhador do campo, nenhum operário vadio que por ali tivesse passado. Era sangue, sangue nobre, o futuro Conde Cardinalli! — Grazia! — disse com ingenuidade. Êle fêz um leve aceno e desapareceu entre o arvoredo, antes que ela pudesse in-


clinar-se para reunir suas roupas. Seis semanas depois, achava-se na escola de esgrima, na aldeia, quando voltou a ouvir falar dela. O mestre já desistira, há muito, de ensinar a Cesare, já muito superior em perícia ao idoso professor. Continuava na escola apenas para praticar. Uma porta se abriu e um jovem soldado entrou na sala. Olhou em volta. Seu uniforme moderno, de soldado do Duce, parecia estranhamente deslocado naquele ambiente antigo de espadachins. A voz do soldado denotava uma tensão enorme. — Qual de vocês é conhecido por Cesare Cardinalli? Houve um silêncio repentino. Os dois jovens que se defrontavam interromperam o exercício e pararam, encarando o recém-chegado. Cesare aproximou-se lentamente, vindo do lugar onde estivera praticando com os pesos. Parando diante do soldado, disse: — Sou eu. O soldado olhou-o com insolência. — Sou o noivo de Rosa, minha prima — falou com firmeza. Cesare demonstrou espanto. Não conhecia ninguém com aquele nome. — Quem é Rosa? — perguntou. — Rosa Gandolfo! — disse o soldado raivosamente. — Acabam de me chamar de Roma, obrigando-me a abandonar meu posto, porque você lhe arranjou um filho! Cesare ficou indeciso, por um momento, como se não compreendesse. Depois sorriu. — Oh! É isso? — perguntou com um estranho sentimento de orgulho. — Falarei ao conde, meu pai, e êle lhes mandará algum dinheiro. Ia afastar-se mas o soldado barrou-lhe a passagem. — Dinheiro? — exclamou. — É isso que pensa que eu quero? -— Dinheiro? Cesare parou. — Como queira. Nesse caso, não falarei a meu pai. A mão do soldado estalou no rosto de Cesare. — Exijo uma satisfação! A mão ficou marcada na face, subitamente pálida, de Cesare. Olhando para o soldado, sem a menor expressão de temor, disse: — Os Cardinalli acham uma desonra bater-se com plebeus. O soldado soltou as palavras venenosamente. — Os Cardinalli são covardes, fanfarrões e defloradores de mulheres. E tu, filho bastardo, és mais parecido com eles do que eles próprios! O Duce tinha razão em dizer que os aristocratas da Itália estão doentes e decadentes, e que têm de ceder ante a força dos plebeus! — Dêem-lhe uma espada — ordenou Cesare. — Lutarei! — Não, signor Cesare, não! — O mestre estava assustado. — O conde, seu pai, não... Cesare interrompeu-o. Sua voz era calma, mas indubitavelmente autoritária. — Meu pai não gostará que esta ofensa ao nosso nome fique sem resposta! O soldado sorriu e olhou para Cesare. — No exército italiano somos treinados


segundo a tradição. Espada na mão direita e um stiletto na esquerda. Cesare fêz um gesto de assentimento. — Assim será. O soldado começou a despir o dólmã e seus braços e ombros musculosos apareceram. Olhou para Cesare, cheio de confiança, e disse: — Mande buscar um padre, ó jovem abusado. Pode considerar-se um homem morto. Cesare não respondeu, mas em seus olhos bailou uma chama perversa. — Está preparado ? — perguntou. O soldado acenou afirmativamente. O mestre mandou que tomassem posição. O corpo alvo de Cesare parecia franzino em comparação com o do soldado, forte, moreno. — En garde! As espadas cruzadas brilharam sobre suas cabeças. O mestre afastou-se. O soldado vibrou uma estocada violenta, dando início ao combate. Cesare aparou a estocada, que resvalou para o lado, e riu em voz alta. O soldado praguejou e bateu de novo, pesadamente. Com ligeireza, Cesare afastou novamente a espada e lançou-se ao ataque. Rapidamente, girou a arma e fêz com que a espada do soldado lhe caísse da mão e batesse no chão, com um tom tilintante. Cesare encostou a ponta da espada ao peito do soldado. — À sua honra, senhor? O soldado praguejou e afastou a espada com o stiletto. Deu um salto para o lado, tentando apanhar a espada, mas Cesare estava diante dele. O soldado olhou-o e praguejou novamente. Cesare riu outra vez. Havia nele uma alegria que ninguém tinha visto antes. Atirou sua espada para junto da outra. Antes que o som da queda da espada tivesse deixado de se ouvir, o soldado atirara-se para a frente empunhando o stiletto. Cesare moveu-se agilmente e a arma do outro cortou o ar. Cesare empunhava também agora o outro stiletto, que brilhava em sua mão. O soldado também. As armas cruzaram-se. Cesare afastou a do soldado. Depois atirou-se para a frente: o soldado deu então um passo atrás e atacou de novo. Os dois corpos pareciam envolvidos num estranho e grotesco abraço. Cesare parecia perdido entre os braços e o corpo musculoso do adversário. Permaneceram assim um momento, para trás e para a frente, apertando-se no mesmo abraço obsceno, quando subitamente o braço do soldado começou a descer. O stiletto caiu-lhe dos dedos inertes e seus joelhos dobraram-se, enquanto as mãos se agarravam aos quadris de Cesare. Este deu um passo para trás. Foi então que viram o stiletto na mão de Cesare. O soldado caiu com o rosto no chão e o mestre precipitou-se: — Chamem um médico, depressa. Cesare, que apanhava a camisa, voltou-se. — Não se incomode — disse calmamente, dirigindo-se para a porta. — Êle já morreu. Sem pensar, meteu o stiletto no bolso e saiu para a noite. A jovem esperava-o no monte, no lugar em que a estrada fazia a última curva


para o castelo. Parou quando a viu. Olharam um para o outro silenciosamente. Depois, Cesare voltou-se e começou a caminhar em direção aos bosques. A moça o seguiu obediente. Quando já não podia avistar a estrada, Cesare voltou-se para ela. Os olhos dela estavam largos e luminosos ao aproximar-se dele. Cesare arrancou-lhe a blusa e apertou cruelmente os seios nus, em suas mãos. — Ai! — gritou ela, meio desmaiada. Depois, êle sentiu o desejo invadi-lo e começou a despir-se freneticamente. A brilhante lua siciliana já ia alta sobre suas cabeças quando êle se sentou e começou a procurar a roupa. — Signor! — sussurrou ela. Êle não respondeu. Encontrou as calças e começou a vesti-las. — Signor, vim avisá-lo. Meu primo... — Eu sei — interrompeu êle, olhando-a. A voz dela estava assustada. — Mas êle disse que ia matá-lo! Êle riu quase sem ruído. — Estou aqui. — Mas, signor, êle pode encontrá-lo a qualquer momento. Mesmo aqui. Êle é muito ciumento e muito orgulhoso. — Já não é — disse Cesare. — Está morto. — Morto? — perguntou com voz trêmula. — O senhor o matou? — tornou a perguntar, baixando os olhos. Cesare abotoava a camisa. — Sim — disse simplesmente. Então, ela avançou para êle como uma leoa, tentando arranhar-lhe o rosto. — Você é mais selvagem do que qualquer animal. Quem se casará comigo agora ? E o que fazer do filho que você deixou dentro de mim? Uma idéia surgiu na mente de Cesare enquanto êle lutava por afastar-lhe as mãos. — Você não o quer mais? — Não, não quero! — soluçou ela. — Êle seria um monstro como o pai! Cesare dobrou o joelho e levantando a perna desferiu-lhe um tremendo golpe no ventre. Ela caiu sem um grito, contorcendo-se e vomitando. Êle baixou os olhos. Suas mãos dirigiam-se quase involuntariamente para o bolso, sentindo o stiletto. Retirou-o. A camponesa ergueu os olhos cheia de terror. Os lábios de Cesare tinham um sorriso estranho. — Pois então, arranque-o de você... com isto — disse, atirando o stiletto para junto dela. — Isso talvez a purifique. Ainda tem na lâmina o sangue de seu noivo. Voltou-se e afastou-se. Na manhã seguinte a moça foi encontrada morta. Tinha o stiletto agarrado nas duas mãos. Suas coxas estavam manchadas de sangue coagulado, o mesmo sangue que formava uma poça debaixo dela. Dois dias mais tarde, Cesare partiu para a escola, na Inglaterra. Não retornaria à


Itália senão depois do começo da guerra, quase cinco anos mais tarde. Nesse intervalo, os Gandolfos tinham plantado uma nova vinha com as dez mil liras que o Conde Cardinalli lhes dera.

O táxi parou diante de "El Morocco", e o gigantesco porteiro abriu-lhe a porta. Avistou Cesare e sorriu. — Ah, Conde Cardinalli — disse afetuosamente. — Boa noite. Estava começando a pensar que não viria esta noite. Cesare pagou ao motorista e saiu do táxi, olhando para o relógio. Eram onze e meia. Sorriu. Pensou na mulher que o esperava dentro do restaurante e isso também o excitou. O corpo dela, macio e encantador, também possuía a realidade de viver.

2

O agente especial George Baker começou a apagar as luzes de seu escritório. Quando chegou à porta, hesitou por um momento, depois voltou para junto de sua mesa e pegou no telefone. Era uma linha direta para o Capitão Sprang, na Chefatura de Polícia. — Como vão as coisas? — perguntou. A voz forte de Sprang trovejou através do fio telefônico. — Ainda não foi para casa? Já passa de onze horas. — Eu sei —- replicou Baker. — Tive o que fazer aqui, e achei melhor ligar para você antes de ir embora. — Não há motivo para preocupações — disse confidencialmente o capitão. — Temos todo o local sob controle. A área está limpa, e eu coloquei homens em todos os cantos e em todos os edifícios à volta do tribunal. Acredite-me, ninguém conseguirá aproximar-se dele até entrar no prédio. — Bom — disse Baker — irei diretamente ao aeroporto, logo de manhã. Encontrar-nos-emos às onze horas, no tribunal. — OK... Deixe de se preocupar e vá dormir um pouco. Aqui está tudo em segurança. Mas quando Baker se encontrou no quarto do hotel, não conseguiu dormir. Sentou-se na cama e pensou em telefonar à mulher, depois afastou esse pensamento. Ela ficaria perturbada por aquela chamada no meio da noite. Levantou-se da cama e sentou-se numa cadeira. Lentamente, tirou a pistola do coldre e verificou se estava carregada. "Estou cansado", pensou. "Estou metido nisto há tempo demais." Durante os últimos seis anos não tinha feito outra coisa. Apenas aquele caso. "Quebre a espinha dorsal da Máfia, a Sociedade Maldita, o Sindicato, ou o que outro nome tenha a organização que domina o mundo do crime na América" — dissera-lhe o chefe.


Era nessa altura um homem novo, pelo menos assim parecia, por se sentir agora velho. Quando começara aquele caso, o filho era aluno do ginásio; agora estava quase a formar-se na Universidade. O tempo tinha passado. Os anos decorriam, sentindo cada vez maior frustração. Não havia maneira de alcançar os grandes, os chefões. Claro que o peixe miúdo caía nas suas redes, com regularidade; mas os grandes conservavam-se sempre de fora. Então aparecera aquela oportunidade. Um homem falara sobre a morte de dois agentes federais metidos na luta contra os narcóticos, a bordo de um pequeno barco que ia a caminho de Nova York. A pista tinha sido seguida com custo e agora, pela primeira vez na história do crime organizado, quatro dos principais chefes da Máfia iam ser julgados. Por assassínio premeditado. Podia ver, de memória, a ficha de cada um dos criminosos : George, o "Big Dutch" Wehrman, 57 anos, 21 prisões, nenhuma condenação; presente ocupação: funcionário de sindicato. Allie "The Fixer" Fargo, 56 anos, 1 prisão, 1 condenação, 1 sentença suspensa; presente ocupação: empreiteiro. Nicholas "Dandy Nick" Pappas, 54 anos de idade, 32 prisões, 9 por assassinato, 2 condenações, 20 dias na prisão; ocupação presente: nenhuma, conhecido jogador; Emilio "O Juiz" Matteo, 61 anos de idade, 11 prisões, 1 condenação, 5 anos de prisão, deportado; presente ocupação: aposentado. A lembrança do último homem levou um sorriso amargo aos seus lábios. "Aposentado", dizia o relatório. Aposentado de quê? Do crime, dos narcóticos, da participação em quase todas as atividades ilegais concebidas pelo cérebro humano? Não com certeza o "O Juiz", não Dom Emílio, — como alguns de seus associados muitas vezes o chamavam. Sua deportação para a Itália, depois da guerra, juntamente com Luciano e Adonis, resultara apenas em impunidade para roubar. Fosse qual fosse a ajuda que Matteo tivesse dado ao Governo americano no plano de ocupação da Itália, nunca deviam ter concordado em tirá-lo da cadeia. Desde que tinham conseguido prender um homem daqueles, a única coisa sensata teria sido jogar fora a chave da cadeia. Baker lembrava as inúmeras vezes em que voara pelo país por ter recebido informação de que Matteo regressara. Mas nunca o encontrara. No entanto, havia todos os sinais de lá ter estado. Os narcóticos e a morte. Provas mudas. Mas daquela vez era diferente. Desta vez tinham testemunhas que falariam, pelo menos para salvar as próprias vidas. E, por causa dessas provas, Matteo fora trazido da Itália. Tinham levado muito tempo para encontrá-las, mas agora as tinham. Três testemunhas, e cada uma confirmava o testemunho das outras. O testemunho que significava morte para os acusados. Havia apenas um problema. Era levar cada um dos homens para o tribunal e fazê-lo sentar na cadeira das testemunhas — vivo. Sem conseguir descansar, Baker levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a janela, onde ficou a olhar a cidade às escuras. Conhecendo Matteo como conhecia, tinha a certeza de que em algum lugar, ali na cidade, um assassino, ou assassinos esperavam o nascer do dia. As grandes perguntas eram: como, quando, onde e quem?


O maître d'hôtel inclinou-se servilmente diante dela. — Miss Lang — murmurou —, o Conde Cardinalli já chegou. Se quiser fazer o favor de seguir-me... Êle voltou-se e ela o seguiu, com seu lento e gracioso andar de modelo, com as longas tranças vermelhas batendo-lhes nos ombros. Caminhava vagarosamente, saboreando os olhares apreciadores que a seguiam, as cabeças que se voltavam. Ouviu alguém murmurar : — É Bárbara Lang, a pequena do "Fumo e Chama", do anúncio dos cosméticos. O homem levou-a até junto da mesa onde Cesare se encontrava sentado. Este levantou-se quando a viu. Sorriu e beijou-lhe a mão, enquanto o maître puxava a cadeira. Ela sentou-se e deixou o casaco deslizar-lhe pelos ombros. — Champagne ? — perguntou Cesare. Ela acenou afirmativamente e olhou em volta. As luzes suaves, as mulheres cobertas de jóias e os homens bem vestidos, bem alimentados e de olhares ávidos. Era o máximo. Era o "El Morocco". E ela ali estava com um conde verdadeiro. Não com um pateta qualquer, provinciano e desajeitado, que se sentaria agarrando-lhe uma mão por cima da mesa, enquanto tentava meter-lhe a outra por baixo do vestido. Voltou-se para olhá-lo, enquanto levava a taça aos lábios. Cesare. Conde Cardinalli, cuja família ascendia ao tempo dos Bórgias, seiscentos anos atrás. Cesare Cardinalli, que conduzia carros de corrida por todo o mundo e cujo nome era citado todos os dias pelos colunistas. — Estará pronta de manhã? Ela retribuiu-lhe o sorriso. — Sou muito eficiente; minhas malas já estão feitas. — Bem — disse êle, erguendo a taça. — A você! Ela sorriu. — Às nossas férias. Bebeu vagarosamente o champanha. Não tinha sido sempre assim. Até há muito pouco tempo, a única bebida espumante que bebera fora cerveja. Parecia-lhe ter sido apenas na véspera que a tinham chamado da escola de modelos que freqüentava, ao mesmo tempo que trabalhava numa loja como vendedora. Era uma oportunidade de conseguir trabalho e experiência fazendo publicidade de um filme que ia ser estreado brevemente.

Pedira que lhe dispensassem a tarde, e fora ao hotel por causa da entrevista. Nervosamente, esperara no corredor, enquanto ouvia risos na suíte do hotel. Sofregamente tocara a campainha. A porta abrira-se e aparecera um rapaz alto. Ela respirava fundo, as palavras saíram-lhe tumultuosamente . — Sou Bárbara Lang, da agência. Disseram-me que queriam uma moça para trabalho de publicidade. O rapaz ficara ali a olhá-la durante um momento. Sorrira. Era um sorriso simpático, que dava ao seu rosto, um pouco pálido, um ar agradável. Recuara um passo e abrira completamente a porta.


— Sou Jed Goliath. O chefe da publicidade. Entre. Vou apresentá-la. Ela havia entrado na sala, esperando que não percebessem seu nervosismo. Sentira o lábio superior úmido e amaldiçoara a si própria por isso. Havia três outros homens na sala. Estavam sentados junto de uma mesinha, sobre a qual se encontrava uma coqueteleira. Goliath conduzira-a para junto do homem que estava sentado perto da janela. Apesar do sorriso, seu rosto tinha um ar preocupado. Era Mendel Bayliss, argumentista e produtor do filme. O ar preocupado vinha de ter o seu dinheiro empatado no filme. — Alô! — dissera. — Está calor. Toma um drinque. O segundo homem, reconhecera-o imediatamente. Aparecia num programa cômico da televisão. Tinha ido ali visitar o produtor, com quem trabalhara uns anos atrás, num espetáculo sem sucesso. O terceiro homem era Johnny Gleason. Era o gerente local da companhia cinematográfica. Alto, cara vermelha, estava bastante embriagado. Pusera-se de pé, balançando, e quase caíra sobre a mesinha que estava à sua frente. Jed sorrira encorajadoramente para Bárbara, enquanto fazia com que o outro se sentasse. — Estamos bebendo desde as oito horas da manhã — explicara. — A agência disse que era para fazer publicidade de um filme — dissera ela, com um sorriso, tentando levar a conversa novamente para o campo dos negócios. — É isso mesmo — dissera Jed. — Precisamos de uma garota "nunca-nunca". — Uma quê? — perguntara Bárbara. — Uma garota "nunca-nunca" — explicara Jed. — É esse o nome do nosso filme! "Nunca-Nunca". — Você é alta — reparara Bayliss. — Um metro e setenta — informara ela. — Tire os sapatos — exclamara êle, levantando-se. Ela tirara os sapatos e ficara com eles na mão, enquanto o homem se dirigia para ela. — Eu, um metro e oitenta — dissera êle orgulhosamente. — Não podemos arranjar uma moça mais alta do que eu para aparecer em todos os jornais. Terá que usar saltos baixos. — Sim, senhor. Êle voltara para a cadeira e sentara-se, olhando-a com aprovação. — Trouxe um maiô ? Ela acenara afirmativamente. Era um equipamento absolutamente necessário naquele tipo de trabalho, e ela o levava na maleta que a acompanhava por toda a parte. — Vista-o e deixe-nos ver o que vale. O cômico aproveitara imediatamente a oportunidade. Dirigira-se para ela, dizendo em voz alta: — Também não nos importamos de vê-la sem o maio. Sentira-se corar e olhara desesperadamente para Jed. Êle sorria tranquilizadoramente apontando-lhe uma porta.


— Pode vestir-se ali. Ela despira-se e enfiara rapidamente o maiô, fazendo apenas uma pausa para se mirar no espelho do banheiro. Tirara um lenço da bolsa e enxugara o lábio superior, que continuava úmido. Depois, voltara à sala. Todos os olhares se voltaram para ela, quando abrira a porta. — Tem uma boa estampa — observara o produtor. — Não tem tetas suficientes para mim — brincara o cômico de televisão. — Prefiro as de seios grandes. O produtor continuara a olhar para ela. — As modelos de alta costura são assim. Ficam melhores sem elas do que com elas. Até que ela é mais bem servida do que a maioria. — Olhara para ela. — Oitenta? Ela acenara que sim. — Tenho os melhores olhos de Hollywood — dissera, levantandose. — Nunca me enganei durante vinte anos. Voltou-se para Jed: — Ela serve. O cômico aproximara-se, encostando a cabeça em seu peito. — Che gélida maminha — cantara com voz de bêbedo. Bayliss rira. — Deixe de palhaçadas. É hora de irmos comer qualquer coisa. — Dirigira-se para a porta. O cômico e o produtor o haviam seguido. À porta, Bayliss parara a falara para Jed: — Diga o que ela precisa fazer e peça-lhe que não falte à entrevista coletiva, às cinco horas. A porta fechara-se sobre eles, e ela e Jed tinham olhado um para o outro. Êle sorrira: — Talvez queira sentar-se um pouco, e tomar fôlego. — Ela retribuíra o sorriso e sentara-se na cadeira deixada pelo produtor. Ainda estava quente do corpo dele. Jed enchera um copo com cubos de gelo e Coca-Cola. Depois, entregara-o a ela. — Obrigada — dissera ela, começando a beber. — São doidos! — exclamara êle, olhando para seu maiô e para as pernas longas e bronzeadas. — Eles são sempre assim? Jed continuara a sorrir, mas parecera-lhe sentir uma leve nota de amargura na voz dela. — Sempre. São homens importantes. Têm que estar sempre a provar que o são.

Na semana seguinte ela se tornara a garota mais conhecida da cidade de Buffalo. Não se passava um dia sem o seu retrato nas páginas dos jornais locais. Por duas vezes aparecera também nos jornais de Niagara Falis. Aparecera em todos os programas de rádio e televisão e ficara conhecendo pessoalmente todos os jornalistas importantes da região. Jed estava sempre a seu lado, tirando fotografias dela e do produtor, juntos ou


separados. Havia sempre qualquer menção ao filme. Na primeira noite fora para casa às três horas da manhã e na segunda noite nem sequer fora para casa. Passara a noite no apartamento de Jed. Fora uma semana agitada e sobrecarregada; e quando acabara, parecera-lhe tudo sem sentido. De toda aquela gente que conhecera naquela semana, ninguém parecia reconhecê-la, nem mesmo as matronas que tinham assistido ao desfile de modelos na loja em que ela trabalhava. Lembrava-se do que Jed lhe dissera na última noite. — Deixe esta cidade, Bárbara. Nova York é o lugar certo para uma pequena como você. Entregara-lhe o seu cartão e o de um fotógrafo seu amigo. Seis meses depois ela fora para Nova York. Jed não se encontrava ali. Disseram-lhe que tinha ido para a Califórnia. O amigo fotógrafo, porém, estava. O engraçado é que Jed tivera razão ao dizer que Nova York era o lugar certo para uma pequena igual a ela. Era, de fato. Dentro de seis semanas assinava um contrato com o "Vogue". Um ano depois, era um dos modelos mais requestados de Nova York. Ganhava sessenta dólares por hora e fazia quase vinte mil por ano. Trabalhava muito e saía pouco. A câmara revelava logo quando ela não descansava o suficiente. Nos fins-de-semana ia para Buffalo, sua cidade natal, para a nova casa que mandara construir para a mãe. Tempos depois, numa tarde em que estivera apresentando modelos novos em frente ao Plaza Hotel, ao abrir a porta de um Alfa-Romeo esporte, vermelho, que fazia parte da encenação para a fotografia, o diretor da agência aproximara-se dela. Com êle vinha um homem alto, magro, de aspecto estrangeirado. O homem tinha um olhar simpático um pouco selvagem. Quando sorria, mostrava dentes fortes e muito alvos. — Bárbara — dissera o diretor da agência —, gostaria de lhe apresentar o Conde Cardinalli. Foi muito amável e emprestou-nos o seu carro para as fotografias. Bárbara o fitara. Era um desses nomes que apareciam constantemente nos jornais. Quase uma lenda. Como Portago e Pignatari, pessoas das quais nunca se espera que sejam reais. Cesare pegara-lhe a mão e beijara-a. — Tenho muito prazer em conhecê-la — dissera, sorrindo. Ela sorrira também. Êle se fora e ela continuara a trabalhar. Nessa noite, estava repousando, de "slacks", vendo televisão, quando o telefone tocara. — Alô! — Bárbara? — a pronúncia estrangeira parecia mais forte através do telefone. — Aqui fala Cesare Cardinalli. Quer vir cear comigo hoje? — Eu... não sei — respondera hesitante, corando. — Estava descansando. — Está bem. Não irei buscá-la antes das onze horas. Iremos ao "El Morocco". A voz dele era muito segura. Desligara o telefone antes que ela pudesse responder. Bárbara dirigira-se ao quarto de banho e começara a encher a banheira. Só depois de mergulhar no banho é que compreendera que ia encontrar-se com êle nessa noite. Mais tarde, quando se achavam sentados no restaurante, diante um do outro, êle


erguera para ela sua taça de champanha . — Bárbara — dissera com voz séria —, fala-se muito na cidade que você pretende tornar-se uma mulher promíscua. Gosto disso. E gostaria ainda mais se me permitisse ajudá-la nesse projeto. — O quê? — exclamara ela, espantada. Mas êle sorria, e ela compreendera que troçava dela. Começara a sorrir também e apanhou sua taça. Êle tinha muito que aprender sobre as garotas americanas.

A voz de Cesare fê-la acordar do devaneio. — Irei buscá-la às nove e meia — dizia êle. Isso me dará tempo de apanhar meus papéis antes de irmos para o aeroporto. — Ótimo — respondeu ela. — Estarei pronta.

3

Cesare parou o carro numa vaga reservada apenas para os carros oficiais. Sorriu para Bárbara. — Não se importa de esperar uns minutos, enquanto vou lá dentro buscar meus papéis? Ela abanou a cabeça. Mas, com o receio típico da classe média, de avisos e ordens oficiais, disse: — Volte depressa. Não quero que me mandem sair daqui. — Não o farão — disse Cesare atrevidamente, saltando do carro. Ela ficou a olhá-lo, vendo-o entrar no edifício por uma porta onde se lia: "Departamento de Imigração e Naturalização". De certa maneira, parecia um garotão. Fora assim que lhe parecera quando telefonara na semana anterior. Tinha acabado de voltar da Europa, onde visitara sua cidade natal. Resolvera-se, por fim. Ia tornar-se cidadão americano. E para celebrar esse acontecimento, quando tivesse seus documentos, queria que ela o acompanhasse numa semana de férias a qualquer lugar onde houvesse sol. Ela concordara em ir com êle, sem sequer refletir, mas, depois de desligar o telefone, sorrira para si mesma. Era possível que desta vez êle estivesse levando a sério uma amizade. É claro que ela sabia das outras, mas muita coisa podia acontecer numa semana inteira. Ouviu barulho à esquina da rua e olhou para lá. Parecia estar-se reunindo ali uma grande multidão. Um policial aproximou-se. Parou junto do carro e dirigiu-se para ela. — Vai ficar muito tempo aqui, senhorita? — Não, não muito tempo — respondeu ela rapidamente. — Meu amigo entrou ali para apanhar os documentos de naturalização. O policial fêz um gesto de entendimento e começou a afastar-se. Ela o chamou.


— Que é aquilo lá na esquina? — Aquilo é Foley Square, senhorita. Estão iniciando o julgamento dos gangsters. Parece que toda a Nova York quer assistir ao espetáculo. Cesare entrou na sala de recepção. O funcionário que se encontrava no balcão levantou o olhar. — Sou Cesare Cardinalli, e venho buscar meus documentos. — Os primeiros? — perguntou o funcionário. — Sim. O homem consultou um arquivo que se encontrava sobre o balcão. Tirou de lá um pequeno cartão e examinou-o. — Se quiser sentar-se um pouco, Senhor Cardinalli, estarão prontos daqui a dez minutos. Cesare sorriu. Ótimo. Hesitou um momento e depois perguntou : — Há por aqui algum lavatório? O homem sorriu e indicou uma porta. — Ao fundo do corredor, à esquerda. — Obrigado — respondeu Cesare, a caminho da porta. — Volto já. Saiu para o corredor e olhou em volta. Não havia ninguém ali. Dirigiu-se, então, apressadamente, para outra porta, em cima da qual estava escrito "Escadas" e abriu-a. A porta fechou-se e êle começou a subir os degraus de dois em dois.

O carro preto parou diante do edifício do tribunal, e foi rodeado pela multidão,. Baker olhou pela janelinha do seu lugar ao lado da testemunha. Depois voltou-se para o homem. — Você é uma pessoa importante. Dinky Adams, a testemunha, um homem com uma comprida cara de cavalo, recostou-se no assento e respondeu de mau humor. — Minha vida não valerá dois centavos, assim que eles descobrirem quem eu sou. — Ninguém vai incomodá-lo — disse Baker, com segurança. — Garantimos que protegeríamos você e é o que temos feito até agora. Um esquadrão da Polícia limpou a área em volta do carro. O Capitão Sprang meteu a cabeça pela janelinha. — OK. Vamos. Baker saiu primeiro, seguido de três agentes. Ficaram parados um momento, olhando em volta, e então Baker fêz um sinal e a testemunha saltou. A multidão agitou-se. Tinham reconhecido o homem. Os guardas e os agentes rodearam-no ao dirigir-se para o tribuna] através da multidão. Fotógrafos e repórteres gritavam perguntas, mas eles continuavam a andar, subiram as escadas do edifício, entraram e dirigiram-se para o corredor. — Por aqui — pediu Sprang. — Temos um elevador à espera. Seguiram o capitão da polícia até um elevador vazio. As portas fecharam-se imediatamente e o elevador pôs-se em movimento. Imperceptivelmente a tensão pareceu desaparecer.


— Bem, conseguimos — disse Baker, sorrindo. O capitão sorriu também. — O pior já passou. Agora só falta atravessarmos a barreira de repórteres, lá em cima. Dinky olhou-os. Estava ainda pálido e com ar assustado. — Tenho de lhes agradecer o resto da vida pelo que fizeram, se viver o suficiente. O sorriso desapareceu do rosto de Baker. Os detetives olharam gravemente um para o outro e voltaram-se para a porta, quando esta começou a abrir-se.

Cesare saiu das escadas no terceiro andar, deu a volta e dirigiu-se rapidamente para os elevadores. Olhou para a multidão que se apinhava na sala do tribunal. Meteu a mão direita na manga do paletó de linho branco e sentiu o frio do metal do stiletto em seus dedos. Um estranho sorriso aflorou-lhe aos lábios. Sentia o coração começar a bater apressadamente dentro do peito. Era assim que se sentia, quando metia o carro numa curva apertada e não sabia se conseguiria completá-la. Respirou fundo e o sorriso tornou-se fixo. A porta do elevador abriu-se e a multidão precipitou-se para ela. Cesare não se moveu. Sabia que eles não viriam naquele elevador. Estava bem informado. Só fora pena não ter tido mais tempo para se preparar. Encostou-se à parede entre o segundo e o terceiro elevadores. A porta abriu-se e os detetives saíram rodeando a testemunha. Cesare seguiu-os imediatamente, deixando-se empurrar pela multidão. Não podia fazer nada. Havia um detetive entre êle e o homem. Os repórteres gritavam perguntas, às quais ninguém respondia. Os fotógrafos disparavam continuamente suas máquinas, saltando de um lado para o outro. Cesare esperava uma oportunidade. Uma vez que o homem entrasse na sala do tribunal, seria demasiado tarde. Estavam agora junto da porta, e o stiletto estava frio na mão de Cesare. Há muito que parara de respirar. Seus pulmões estavam cheios de ar. Havia uma enorme pressão em seus ouvidos e parecia-lhe que toda a gente se movia em derredor. O grupo parou um momento diante da porta fechada. O detetive que se encontrava atrás da testemunha afastou-se ligeiramente. O ar saiu dos pulmões de Cesare de um jato. A multidão empurrava-o para a frente. Agora! Cesare nem sequer sentiu a mão mover-se. Era como se ela não fizesse parte de seu corpo. O stiletto mergulhou no coração da testemunha, tão facilmente como uma faca quente em manteiga. Cesare abriu a mão e sentiu a faca voltar a entrar-lhe na manga, acionada pelo fio enrolado que tinha preso ao cabo. A testemunha vacilou ligeiramente ao abrirem-se as portas do tribunal. Cesare começou a dirigir-se para as escadas. O flash de uma máquina cegou-o momentaneamente, mas logo a seguir sua visão aclarou-se e êle prosseguiu seu caminho. Houve grande burburinho no tribunal. Do corredor podia-se ouvir o barulho crescente. As vozes eram cada vez mais altas. Matteo olhou para os outros acusados. Big Dutch brincava nervosamente com a gravata, Allie Fargo tamborilava com os dedos, e Dandy Nick mexia na pasta amarela que se encontrava à sua frente. O barulho crescia.


Big Dutch inclinou-se para êle. — Quem será que nos trarão agora? — Em breve saberá — respondeu Nick com um sorriso amarelo. Matteo fê-los calar com um gesto imperioso, enquanto observava a porta da sala. Os outros olharam também para lá. Primeiro apareceram dois detetives, e logo a seguir a testemunha. Vacilou e um policial a amparou. Big Dutch levantou-se com um rugido de raiva. — É Dinky Adams, aquele filho de uma cadela! O martelo do juiz bateu na mesa. A testemunha deu mais alguns passos dentro da sala do tribunal. Seu rosto parecia estar gelado de pavor. Vacilou outra vez. Olhou para os acusados. Abriu a boca para falar, mas não saiu nenhum som. Apenas apareceu um leve fio de sangue no canto de seus lábios. Surgiu no seu rosto uma expressão torturada. Vacilou outra vez e começou a cair. Suas mãos tentaram agarrar o paletó de Baker, mas não o conseguiu e desabou pesadamente no chão. Um pandemônio, que o martelo do juiz não conseguiu controlar, irrompeu na sala do tribunal. — Fechem as portas! — gritou Sprang. Big Dutch inclinou-se para dizer qualquer coisa a Matteo. — Cala-te! — resmungou Matteo, com os olhos negros brilhando na face impassível.

O funcionário sorriu a Cesare ao vê-lo aparecer à porta. — Tenho os documentos prontos, senhor Cardinalli, se quiser assinar aqui. Cesare tirou a caneta da mão do funcionário, rabiscou seu nome nos papéis e voltou a entregá-la. — Obrigado — disse, pegando os documentos e afastando-se . Ainda sentia um aperto no peito quando saiu para a luz brilhante do dia, que o fêz piscar. Bárbara acenou-lhe do carro. Êle sorriu e acenou também, com os papéis na mão. Bárbara sorriu-lhe maliciosamente quando êle se aproximou do carro. — Parabéns, Conde Cardinalli. Êle riu, deu a volta ao carro e entrou nele. — Ainda não leu os papéis, minha querida; agora, sou apenas o Senhor Cardinalli. Ela riu alto, enquanto êle dava partida ao motor. — Apenas Cesare. Gosto disso, tem mais intimidade. Cesare olhou-a, enquanto dirigia o carro para o tráfego intenso. — Creio que não está caçoando de mim. — Não, não estou. Sinto-me realmente muito orgulhosa de você. A tensão tinha desaparecido do estômago dele, à medida que se afastavam do tribunal. — Acenda-me um cigarro, sim, querida? — pediu. Sentia uma dor crescente na virilha, sentia as pulsações apressadas.


Ela colocou-lhe o cigarro entre os lábios. – Imagino o que a minha mãe pensaria — disse com ar despreocupado — se soubesse que eu ia para fora durante uma semana com um homem, sem ser casada com êle, ou sequer noiva. Êle viu o sorriso dela pelo canto dos olhos. — O que sua mãe não sabe não a pode magoar. Bárbara ainda sorria. – É claro que ela compreenderia se eu partisse com um conde. Os europeus são diferentes nesse aspecto. Mas com um senhor... Cesare interrompeu-a. — Sabe o que eu penso? Ela o fitou com os olhos muitos abertos. — Não. O quê? A dor na virilha tornava-se insuportável. Êle procurou a mão de Bárbara e guiou-a para si. O sorriso desapareceu do rosto dela ao ver a excitação em que êle se encontrava. Voltou-se para ela e Bárbara viu centenas de anos nos olhos dele. Depois um véu caiu-lhe sobre o olhar. — Penso que sua mãe é uma snob — disse êle. Ela riu, e êle fêz virar o carro para Midtown Tunnel, em direção ao aeroporto. Dirigia automaticamente, por reflexo, enquanto seu cérebro ia até à Sicília, à sua casa. Tinha lá estado há poucas semanas. Mas já lhe parecia que se haviam passado anos, desde então. De que é que Dom Emílio tinha chamado seu tio uma vez? Um agiota. Riu consigo mesmo. Imaginava o que Dom Emílio pensaria agora dele. O homem que matara representava apenas o principal pagamento da sua dívida. Os dois seguintes seriam o juro acumulado de doze anos. Três vidas por uma. Isso representaria um verdadeiro pagamento nas contas de qualquer homem. Recordava-se agora da noite em que Dom Emílio apresentara sua conta.

4

O pátio do castelo Cardinalli estava vazio, quando Cesare parou o carro em frente da casa. Desligou o motor, e um velho apareceu na porta. Ao ver Cesare, seu rosto iluminou-se num sorriso feliz. Desceu apressadamente os degraus. — Dom Cesare! Dom Cesare! — gritou numa voz cansada. Cesare saudou-o com um sorriso. — Gio! — exclamou. O velho inclinava-se diante dele. — Por que não nos avisou que vinha, Dom Cesare? Teríamos preparado a casa para recebê-lo. Cesare sorriu. — É uma visita inesperada, Gio. Só posso ficar uma noite. Amanhã terei de es-


tar de regresso a casa. — A casa? — disse Gio. — Mas sua casa é aqui! Cesare começou a subir os degraus em direção à mansão. — Sim, estou sempre esquecendo — disse gentilmente. — Mas agora vivo na América. Gio tirou a mala do porta-bagagem e correu atrás de Cesare. — Que aconteceu na corrida, Dom Cesare? Ganhou? Cesare abanou a cabeça. — Não, Gio; o meu gerador queimou-se. Tive de parar. Foi por isso que tive tempo de vir até aqui. Atravessou o grande hall gelado e parou sob o retrato do pai. Durante um momento olhou as feições patrícias que o fitavam do retrato. A guerra quebrara-o. Espiritual e fisicamente. Tinha lutado contra os alemães e o Duce confiscara-lhe as terras. O velho morrera pouco depois. – Tenho muita pena do que aconteceu ao seu carro — disse a voz de Gio por detrás dele. Cesare não estava pensando no carro, nem sequer no pai. Via apenas como tudo estava mudado. Voltara ali depois da guerra e tudo se fôra. O tio era então o dono de tudo. De tudo, exceto do castelo e do título. Havia ficado com o banco, com as terras, e nunca perdoara o irmão ter legitimado Cesare, e ter êle, por isso, perdido o direito ao título. Nunca se dissera uma palavra sobre isso, mas todo mundo sabia o que o tio do banco sentia. Cesare lembrava amargamente o dia em que fôra visitá-lo. — Signor Raimondi — dissera arrogantemente. — Informaram-me que meu pai tinha algum dinheiro depositado aqui. Raimondi olhara-o do outro lado da mesa preta e suja. — Pois ouviu muito mal, meu sobrinho — dissera na sua vozinha fraca. — O contrário é que é a verdade. O falecido conde, meu bom irmão, morreu devendo-me, infelizmente, grandes somas. Tenho aqui, em minha secretária, hipotecas do castelo e das terras. Era verdade. Estava tudo limpo e em ordem. Raimondi Cardinalli tratara disso. Durante três anos, depois da guerra, Cesare vivera na dependência do velho tio. Dependendo dele até para a própria subsistência, chegou a odiá-lo. Tinha até que lhe pedir dinheiro para as suas tão queridas sessões de esgrima. Foi numa dessas tardes que, pela primeira vez, encontrara Emílio Matteo. Achava-se no escritório do tio, no banco, quando ouviu grande agitação lá fora. Voltou-se e olhou pela porta envidraçada. Um homem de cabelos grisalhos, muito bem vestido, dirigia-se para a porta. Todos se inclinavam e o cumprimentavam, à medida que êle avançava. — Quem é? — perguntou Cesare. — Emílio Matteo — respondeu o tio, levantando-se para o cumprimentar. — Matteo? — Cesare erguera as sobrancelhas num ar de interrogação. Nunca ouvira falar no homem. — Matteo — explicou o tio impacientemente — um dos dons da Sociedade. Acaba de chegar da América. Cesare sorriu. A Sociedade era como a chamavam. A Máfia. Homens crescidos


brincando como meninos, juntando o sangue e chamando uns aos outros de tio, sobrinho e primo. — Não ria — resmungou o tio. — Na América, a Sociedade é muito importante. Matteo é o homem mais rico da Sicília. A porta abriu-se e Matteo entrou: — Buon giorno, signor Cardinalli — disse com forte pronúncia americana. — Sinto-me muito honrado com a sua visita, senhor Matteo — dissera o tio, curvando-se. — Em que posso servi-lo hoje? Matteo olhou interrogativamente para Cesare. Raimondi apressou-se a apresentá-lo. — Permita-me que lhe apresente meu sobrinho, o Conde Cardinalli. — Voltouse para Cesare: — o signor Matteo, da América. Matteo fitou-o com um olhar especulador. — Major Cardinalli? Cesare fêz um gesto afirmativo. — Isso foi durante a guerra. — Ouvi falar do senhor — disse Matteo. Foi a vez de Cesare o encarar. Muito poucas pessoas tinham ouvido falar dele durante a guerra. Apenas as pessoas que estavam muito bem informadas. Pensava no que o homem saberia. — Sinto-me muito honrado, senhor — respondera. Raimondi queria falar de negócios. Despediu peremptoriamente Cesare. — Volte amanhã — disse com ar importante — e veremos se posso arranjar o dinheiro para essa tal de esgrima. Os lábios de Cesare apertaram-se e os seus olhos azuis tornaram-se mais escuros e frios. Durante momentos sentiu o corpo tenso. Algum dia o velho iria longe demais. Já tomava muitas liberdades. Sentia os olhos de Matteo pousados nele, enquanto se encaminhava para a porta. Ouvira a voz de Raimondi ao fechar a porta: — Um bom rapaz, mas uma despesa... É uma relíquia do passado, sem préstimo para nada. Não sabe trabalhar... — A porta fechou-se sobre sua voz paternal.

Gio acendera a lareira na biblioteca e Cesare estava diante do fogo com um copo de conhaque na mão. — O jantar estará pronto daqui a meia hora — informou o velhote. Cesare fêz um gesto de concordância. Atravessou a sala, chegou junto da secretária e ergueu uma fotografia da mãe, que ainda ali se encontrava. Seus olhos eram azuis como os dele, mas suaves, meigos e amáveis. Lembrava-se do dia em que ela fora ter com êle no jardim. Tinha então apenas oito anos. Estivera absorvido examinando a grande mosca verde que prendera com um alfinete a um pedaço de madeira e que lutava para se soltar. — Cesare, que faz você? Êle se voltara e vira a mãe. Sorrira satisfeito e apontara para a mosca. Os olhos dela haviam seguido a direção do dedo de Cesare.


Empalidecera, e seu rosto tomara uma expressão zangada. — Cesare, pare imediatamente com isso! É uma crueldade! Cesare tirara o alfinete, mas a mosca não se mexera. Êle olhara com curiosidade para a mãe e depois para a mosca. Rapidamente puxara-lhe as asas e atirara a mosca ao chão, pisando-a. A mãe estava zangada. — Cesare, por que fêz isso? Seu rosto tornara-se sério durante um instante, depois iluminara-se com um sorriso: — Gosto de matar — retorquira. A mãe ficara a olhá-lo por um momento, depois voltara-se e entrara novamente em casa. Um ano depois, morrera de febres, e o conde levara-o para o palácio. Tivera então uma sucessão de professores, mas nenhum se atrevera nunca a chamar-lhe a atenção. Voltou a colocar a fotografia em cima da secretária. Começava a sentir-se inquieto. Havia ali muitas recordações. O castelo mergulhava no passado. O que devia fazer era vendê-lo e tornar-se cidadão, americano. Era a única maneira de proceder para com o passado. Romper completamente com este para que nenhum traço restasse dentro de si mesmo. Pensou na mensagem que o trouxera ali, que o fizera deixar a corrida e faltar ao encontro com Ileana, na Riviera. Riu-se ao pensar em Ileana. Havia qualquer coisa naquela mulher romena, principalmente a sua mania dos títulos. Mas, naturalmente, a essa altura, ela já deverá estar a caminho da Califórnia, acompanhada de um rico texano. Gio abriu a porta da biblioteca. — O jantar está pronto, excelência.

5

A toalha era branca e macia; os candelabros, dourados e brilhantes; as pratas, polidas. Gio excedera-se a si próprio. Havia enguias frias, partidas em fatias, salpicadas com gelo e scampi fumegantes, em cima de um fogareiro. Gio vestira o uniforme púrpura e verde, de mordomo, e estava orgulhosamente de pé junto da cadeira em que êle se sentaria à cabeceira da mesa. Cesare sentou-se e pegou no guardanapo. — Você é um gênio, Gio. Os meus cumprimentos. Gio curvou-se orgulhosamente. — Faço o que posso, excelência. — Começou a abrir uma garrafa de Orvieto branco. — Não é como nos tempos antigos em que o aparador estava cheio de travessas todas as noites, para o jantar. Passou-se já muito tempo. Cesare provou o vinho e fêz um gesto de assentimento. Tinha-se passado muito tempo desde então. O mundo continuara o seu movimento. O tempo não parava, nem


mesmo para Gio. Olhou para a mesa. Não tinha sido assim depois de guerra. Nessa altura já se sentiam com sorte quando havia comida na mesa. Havia menos roupa. Lembrava-se da noite em que Matteo o fora visitar. Fora no mesmo dia em que o encontrara no escritório do tio. Estava êle sentado àquela mesma mesa, comendo pão com queijo e maçãs. Ouvira, nessa altura, o ruído de um carro parando lá fora e Gio fora abrir a porta. Um momento depois estava de volta. — O signor Matteo deseja ver vossa excelência — dissera. Cesare respondera-lhe que o mandasse entrar. Matteo entrara na sala, observando tudo com os seus olhos apreciadores. O aparador vazio, a comida pobre, os talheres de aço. Mas seu rosto não denotava nada. Cesare fêz-lhe sinal para se sentar e convidou-o a partilhar da refeição. Matteo abanou a cabeça. Já tinha jantado. Cesare não se importava com isso. Era daqueles para quem a pobreza nada significa. Era uma coisa aborrecida, mas não embaraçosa. Sentia-se seguro de sua posição. Trocados os cumprimentos, Gio tirou a mesa e Cesare recostou-se na cadeira, mordendo uma maçã com seus dentes muito alvos. Matteo olhou-o. Viu o rosto magro, libertino, os olhos escuros, frios, de um azul quase negro, e o queixo voluntarioso do homem que estava sentado à sua frente. Viu também a força selvagem nos pulsos e nas mãos que seguravam a maçã. — Fala inglês, Major? — perguntou nessa língua. Cesare fêz um sinal afirmativo. — Fui educado na Inglaterra, antes da guerra — respondeu no mesmo idioma. — Bom — disse Matteo. — Se não se importa, falaremos nessa língua. O meu italiano... bem... saí daqui quando tinha apenas três anos. — Não me importo — replicou Cesare. — Deve estar admirado de me ver aqui — comentou Matteo. Cesare tinha concordado silenciosamente. Matteo fêz um gesto com a mão, indicando o castelo. — Meu pai costumava falar-me das maravilhas do castelo Cardinalli. De como costumavam olhar lá de baixo, da aldeia, e vê-lo alegre e cintilante de luzes. Cesare pôs o resto da maçã em cima da mesa e encolheu os ombros. — Azares da guerra. Matteo respondeu rapidamente: — Ou a boa fortuna do seu tio. — Esse agiota... — respondera Cesare com desprezo. — Agora tudo é dele. Matteo olhou diretamente para Cesare. — Enquanto viver — disse. — Aquela espécie é muito mesquinha para morrer. Matteo sorriu. — Na América, damos um nome a essa espécie de homens. Chamamo-los de Shylock, lembrando o usurário da peça. Cesare sorriu também. — A América tem uma maneira muito expressiva de nomear as coisas. Shylock. É realmente bom.


Matteo continuou como se não tivesse havido a mínima interrupção. — Seu tio está só, não tem família, mais nenhum parente a não ser o senhor. E tem um banco com dois milhões de liras. Cesare olhou-o. Reconhecia-se naquele homem. — Já pensei nisso muitas vezes. Aquele porco não merece viver. Mas, se eu o matasse, isso também não me faria bem nenhum. Matteo abanou a cabeça, gravemente. — Sim, mas se êle morresse enquanto você estivesse na sessão de esgrima, a um quilômetro daqui, você seria de novo um homem rico. Cesare olhou-o durante um momento e depois levantou-se. — Gio! — gritou. — Traga aquela garrafa de conhaque Napoleão. Vamos para a biblioteca. Depois de Gio ter fechado a porta atrás de si e de se encontrarem sentados diante do fogo chamejante, Cesare perguntou diretamente: — Por que veio aqui? — Já tinha ouvido falar muito do senhor, major. — Ouvido o quê? — É claro que se recorda daquele período da guerra antes de os aliados invadirem a Itália, não? — Não esperou que Cesare respondesse. — Um associado meu, que vive presentemente em Nápoles, e eu demos ao governo americano uma lista de pessoas para serem contratadas a fim de se preparar a invasão. Essas pessoas eram membros duma sociedade secreta que existia antes da guerra, mesmo antes da Primeira Guerra. A Máfia. Cesare não disse nada. — Soube, então, que o senhor era um dos oficiais italianos nomeados para cooperarem com a O. S. S. por parte do Alto Comando Italiano. O senhor devia contratar nove homens e assegurar a sua cooperação. Matou cinco. — Eles não queriam cooperar. Isso foi explicado no meu relatório. Matteo sorriu. — A explicação oficial não interessa. Tenho preparado muitas dessas "explicações" para não acreditar em sua veracidade. Sabe, os oficiais nunca viram os corpos dos homens que o senhor matou. Os meus amigos viram. Matteo pousou o copo de conhaque e olhou para Cesare. — É por isso que não compreendo o caso do seu tio. Quando você sente tanta alegria e facilidade em matar, como é que o deixa viver? Cesare olhou-o, por sua vez. — Nesse tempo era diferente. Estávamos em guerra. Matteo sorriu. — A guerra era apenas uma desculpa para o senhor. Houve outros. O soldado que matou quando era ainda bem moço. O rapaz inglês que perseguiu na estrada, com o seu carro, quando ainda era estudante. A amante alemã do seu comandante, quando ela ameaçou denunciá-lo a êle. — Olhou para o rosto de Cesare. — Como vê, estou muito mais informado do que as autoridades. Cesare deixou-se cair na cadeira. — Sim, tem muitas informações... Mas para que lhe servem?


Matteo encolheu os ombros. — Não tenciono servir-me delas para nada. Disse-lhe isto apenas para lhe mostrar que me interesso pelo senhor. Poderíamos ajudar-nos mutuamente. — Como? Matteo explicou: — As circunstâncias forçaram-me a voltar à terra em que nasci, mas, pelo coração, sou americano e não italiano. Além disso, sou também pelo interesse dos meus negócios. Infelizmente não posso voltar à América durante algum tempo. Isto é, legalmente. Claro que posso permanecer lá durante curtos períodos, mas é muito perigoso e não posso ficar por muito tempo. Prevejo, por isso, a necessidade de ter lá um aliado como você, alguém que ninguém pudesse relacionar comigo, e que me poderia ajudar, caso fosse necessário. Cesare olhou para êle. — E os seus amigos na sociedade? Certamente deve ter lá muitos aliados. Matteo acenou afirmativamente. – Sim, mas são todos conhecidos. Conhecidos uns dos outros e da polícia. Mais cedo ou mais tarde, não haverá segredos entre eles. Matteo levantara-se e caminhara até junto da lareira. Voltou as costas ao fogo e encarou Cesare. — Deve estar aborrecido com a pobreza da sua atual existência. É triste e monótona e não está nada de acordo com a sua maneira de ser. Que faria se se visse livre de tudo isso? — Não sei — respondeu Cesare. — Viajaria, talvez. Compraria alguns carros de corrida e correria com eles. Le Mans, Torino, Sebring. Há muita emoção nisso tudo. Matteo riu-se. — Eu me refiro a uma maneira de ganhar dinheiro. Êle não dura para sempre, sabe? — Oh, nunca pensei nisso. Sempre detestei os negócios. Matteo pegou num charuto e acendeu-o. — Os jovens não pensam no futuro. — A voz dele era agradavelmente tolerante. — Tenho interesses numa companhia automobilística americana, recentemente adquirida por um associado. Um negócio legal. Dentro de alguns anos, se você tiver conseguido reputação como corredor de automóveis, pode perfeitamente ser diretor dessa companhia. Gostaria de alguma coisa nesse gênero? — Por que não gostaria? — respondeu Cesare. — Mas que devo fazer em troca? Matteo sorriu. — Um favor de quando em quando. — Que espécie de favor? Não quero tomar parte no seu estúpido negócio de tóxicos e contrabando. Matteo interrompeu-o. — Mesmo que isso lhe pudesse trazer uma riqueza nunca sonhada? Cesare agarrou novamente o copo. — Ainda não me disse qual é o favor que deseja de mim. Os olhos de Matteo fixaram-no gravemente. — Apenas que retribua o favor que eu lhe fizer quando amanhã à noite o seu tio


morrer, estando você a muitos metros de distância dele. Passou-se um longo momento, depois Cesare sorriu. — OK. Está combinado. Matteo estava sério. — Fará o juramento? — Jurarei. — Tem uma faca? — perguntou Matteo. Um stiletto apareceu subitamente nas mãos de Cesare. Matteo olhou-o. Cesare sorriu e entregou-lhe o objeto, pegando-o pela lâmina. — Este é meu irmão — disse. Andamos sempre juntos. Matteo pegou o stiletto. — Dê-me sua mão — ordenou. Cesare estendeu-lhe a mão. Matteo colocou a mão esquerda sobre a palma da mão de Cesare. Depois, com um movimento rápido, fêz um pequeno golpe em cada um dos dedos indicadores. O sangue dos dedos dos dois homens juntou-se entre as palmas das duas mãos. Matteo disse: — Os nossos sangues misturaram-se, e agora pertencemos à mesma família. Cesare fêz um gesto de concordância. — Morrerei por ti — disse Matteo. — Morrerei por ti — repetiu Cesare. Matteo soltou a mão e voltou a entregar o stiletto. Olhou para o rosto de Cesare. Meteu o dedo na boca e chupou o sangue que ainda corria do pequeno golpe. — Daqui em diante, meu "sobrinho", não voltaremos a encontrar-nos, a não ser a meu pedido. Cesare fêz um gesto afirmativo. — Sim, meu "tio". — Se achar necessário algum contato comigo, envie uma nota para a postarestante da aldeia e eu me comunicarei com você. — Compreendo, meu "tio".

Tinham-se passado quase doze anos. Como Matteo dissera, Raimondi morrera na noite seguinte à daquela conversa, enquanto Cesare se encontrava na sessão de esgrima. Os cinco anos que se seguiram passaram rapidamente. As corridas e os carros de corrida. Bailes de gala e romances. Assim, em 1953, como Emílio dissera, fôra-lhe feito um oferecimento para dirigir a companhia automobilística americana. Falaram muito desse seu novo cargo, na imprensa. O seu viver selvagem e a sua maneira de guiar extremamente perigosa tinham feito dele uma figura internacional. Por duas vezes tinha entrado em duelos por causa de mulheres. Para a América, êle era um homem do outro mundo. Apenas uma vez, durante esses doze anos, vira Matteo. No ano anterior tinha ido, segundo as indicações dadas por um telefonema, a uma pensão que ficava por cima de um bar, no Harlem espanhol. Aí encontrara Matteo, que exprimira sua satisfação pelo sucesso de Cesare. Tinham-se demorado pouco, pois Matteo devia partir


logo a seguir para Cuba, onde tomaria o avião para a Sicília. Eles se separaram, e só quando lhe enfiaram na mão um papel dizendo-lhe que fosse imediatamente ao castelo, pouco antes da partida de uma corrida, Cesare voltaria a ouvir falar de Matteo.

O frango à caçadora estava delicioso e a lagosta, picante e saborosa. Cesare acabava de pôr o guardanapo sobre a mesa, quando ouviu um carro no pátio. Não pôde deixar de ir espreitar Gio à porta. Daí a um momento, este estava de volta. Trazia um envelope na mão. — Era o carteiro da aldeia. Disse que tinha uma carta especial para lhe entregar. Cesare pegou na carta e abriu-a. Eram duas páginas cheias de instruções batidas a máquina. Leu-as rapidamente e depois mais devagar. Lentamente, pôs a carta sobre a mesa e acendeu um cigarro. Tinham-se passado doze anos. E Dom Emílio tinha apresentado a conta. Com juros.

6

Las Vegas é uma cidade noturna. Fora dos hotéis estão as piscinas, transparentes, límpidas e puras, mas ninguém as freqüenta a não ser os turistas e as moças que trabalham nos hotéis e mantêm o bronzeado do corpo como uma espécie de marca registrada do seu comércio. Dentro dos cassinos é sempre noite. Alguém disse certa vez que os jogadores nunca deviam ver a luz do dia. A luz crua do dia tem alguma coisa que interfere com o senso de realidade dos jogadores. A realidade da roleta girando, do ruído surdo da queda de dados nas mesas cobertas de feltro, a realidade da febre de ganhar, a realidade das areias do deserto no qual a cidade foi construída. Ali está o prêmio, a grande aventura, a promessa de todas as manhãs. Dinheiro fácil. E tudo o mais que se lhe segue. Sexo, negócios, riso. Dinheiro fácil. Puxar a alavanca das máquinas de jogo. Talvez seja a sua vez de ganhar. Saíram da boate, ainda rindo com as graças de um dos maiores cômicos do mundo. Pararam e olharam para a entrada da sala de jogo. Eram dez horas da noite e todas as mesas do Marajah estavam ocupadas pelas pessoas que tinham vindo do show. — Você ouviu a minha pergunta? — disse Bárbara. Cesare voltou-se e olhou para ela. Seus olhos brilhavam com uma animação estranha. — Não, minha querida. O que foi? Bárbara olhou para êle. Outro homem qualquer pediria desculpas ou fingiria ter ouvido. Êle simplesmente confessara não ter prestado atenção. — Dados ou roleta, foi o que perguntei. Êle riu-se, subitamente.


— Roleta. Já dei bastante a esses loucos cubozinhos de marfim. Acho que jamais os entenderei. Começaram a andar em direção às mesas de roleta.

Em Nova York, o telefone sobre a mesa de Baker começou a tocar. Êle largou a cafeteira e atendeu. — Jordan falando de Las Vegas — avisou a telefonista. — Ligue para cá — respondeu Baker. Ted Jordan falou: — Alô, Baker. Como está? — Nada bem — respondeu Baker. — Ainda não conseguimos descobrir como Adams foi morto. Como vai o seu rapaz ? Jordan riu. — Ótimo. Está na roleta, apostando, como se o mundo fosse acabar hoje. — Está coberto? — perguntou Baker, ansiosamente. — Sim, um homem de cada lado e outro atrás. Ninguém conseguirá aproximarse sem ser notado. — Ainda estou nervoso. Julgamos proteger Adams e no entanto, que aconteceu? — Se está tão preocupado, Baker, por que não o "trancamos"? Assim nada lhe poderá acontecer. — Sabe como é — explicou Baker. — Se o fizermos, a defesa saberá antes do julgamento qual é a testemunha. E se eles souberem, a testemunha não falará e lá se vai o nosso caso. — Matteo deve estar rindo a esta hora — disse Jordan. — Mas não rirá da próxima vez que o levarmos ao tribunal — prometeu Baker. — O meu "protegido" aposta vinte contra um em como não conseguirão levá-lo de novo ao tribunal — disse Jordan. Baker parecia incrédulo. — Quer dizer que acha que o matarão? E ainda vai jogar nos cassinos? — Sim — respondeu lacônicamente Jordan. — Êle pensa que ninguém pode impedir o que lhe vai acontecer e quer viver como gosta, enquanto pode. Baker largou o telefone e pegou novamente na cafeteira. Havia uma coisa que êle nunca conseguiria compreender. Os tipos eram covardes, patifes e assassinos, mas havia qualquer coisa neles que lhes dava um sentimento fatalista da vida. Ou seria da morte? Não sabia.

O jogador estava sentado à mesa da roleta e seu olhar concentrava-se na roda. A roleta parou no vermelho 20. O jogador escreveu qualquer coisa num livrinho que tinha ao lado. Rapidamente fêz uma conta. Estava certo. Nessa noite ia ganhar no preto. Pegou num pequeno monte de ficha e colocou-as no preto. Ouviu Jordan aproximar-se, por detrás. Não se voltou. O guarda-costas que o protegia falou ao recém-chegado. — Pode substituir-me durante uns minutos, Ted? Preciso ir ao toillette.


Não ouvi a resposta de Jordan. Tinha saído outra vez o vermelho. Colocou novo monte de ficha no preto.

Cesare voltou-se e olhou para o jogador, enquanto Bárbara se concentrava na roleta. A nota de Matteo fora muito específica. Há três dias que Cesare vigiava o jogador. Os guarda-costas lá estavam. Estavam sempre ali. Um de cada lado e outro de pé, atrás, de olhar constantemente alerta. Agora um saíra, mas fora substituído por outro. Cesare voltou-se quando o homem o olhou. Tinha visto o suficiente. Com um pouco de sorte... Sorriu para si próprio ao lembrar-se da frase. Uma frase que toda a gente empregava naquele meio. Com um pouco de sorte, acabaria o seu serviço ali, naquela noite. Bateu no ombro de Bárbara. — Vou buscar um drinque para você. Ela sorriu, fazendo um gesto de entendimento e voltou a observar o jogo. Cesare começou a caminhar para o bar. Passou por detrás da mesa do jogador e olhou. Em frente do homem estava uma loura de seios opulentos, mal cobertos pelas duas estreitas tiras que eram a parte dianteira do vestido. Subitamente, riu. Sabia o que tinha a fazer. Era uma brincadeira. Uma anedota que todos contariam em Las Vegas. Jordan olhou em volta. Quem lhe dera ter aquele trabalho terminado. Quando entrara para o F.B.I., depois de acabado o curso, sentira-se excitadíssimo com a perspectiva de passar a vida a perseguir espiões e criminosos. Nunca pensara que iria passar três meses a servir de ama-sêca a um patife vulgar. Olhou para a mesa oposta à deles. O par lá estava outra vez. Um casal com bom aspecto. Lembrava-se de os ter visto na primeira noite. E nessa altura julgara já os ter visto antes. Com a sua habitual preocupação, verificara quem eram. Ela era um dos modelos mais conhecidos da América. Bárbara Lang, a garota do "Fogo e Chama", cujo rosto aparecia em milhares de anúncios sobre artigos de beleza. O homem era Cesare Cardinalli. O Conde Cardinalli, corredor de automóveis e homem de sociedade. Viu Cesare dizer qualquer coisa à jovem e afastar-se. Cesare esperou que a loura se sentasse no banco. Ela voltou-se petulantemente para o homenzinho gordo e baixo que a acompanhava. Êle deu-lhe algumas notas, de um grande maço, e ela debruçou-se novamente sobre a mesa. Cesare dirigiu-se outra vez para a sala de jogo, atravessando o bar. Levava um copo na mão esquerda. Deu a volta por detrás da loura e hesitou um momento. O croupier fazia girar a roleta. A mão de Cesare moveu-se rapidamente por detrás das costas da mulher. Começou a dar a volta para sua própria mesa. Sentia na testa as pulsações apressadas e aquela dor. A dor começava ali. Era sempre assim. Passo a passo até lhe atingir o corpo todo. Era a dor da excitação, do perigo, a dor de olhar para o abismo do tempo, o inferno do esquecimento. Estava por detrás do jogador que tinha os cotovelos apoiados à mesa e encostava o queixo nas mãos. O guarda-costas começava a virar-se para êle quando se ouviu o grito. O guarda-costas voltou-se, levando a mão à pistola. Cesare moveu-se


rapidamente. Do outro lado da mesa, a loura lutava por conservar o vestido sobre os seios. Era uma batalha perdida. Era loura demais para tão pouco vestido. Cesare sentiu o stiletto voltar a entrar-lhe na manga. O jogador continuava na mesma posição, sem se mexer. O guarda-costas voltou-se. Cesare viu-o sorrir, enquanto Bárbara tomava a bebida que êle trouxera. A loura passava agora pela mesa deles, acompanhada pelo homenzinho gordo. Falava em voz alta e aguda. — Não arrebentaram sozinhas, tenho certeza, foi alguém que as cortou! Alguém! — Psiu!... Por favor, querida. Toda a gente está olhando! — pedia o homenzinho gordo. — Não me importo! — retorquiu ela, dirigindo-se para a porta de saída. Cesare e Bárbara riram-se, e ela apostou novamente. Jordan olhou o jogador. Continuava sentado, sem se mexer, fitando o monte de fichas que tinha à sua frente. A roleta parou novamente no preto. O croupier empurrou uma pilha de fichas, que se juntaram às que já se encontravam diante do jogador. Este não se mexeu. A roleta começou a girar de novo. Jordan olhou o outro guarda-costas. O homem encolheu os ombros. — Retirem o vosso dinheiro, senhoras e senhores — dizia o croupier, em voz monótona. A roleta girava. O monte diante do jogador aumentava. Êle continuava sem se mexer.

A dor atravessava o peito de Cesare, tornando-lhe difícil a respiração. Olhou para Bárbara. — Isto não é modo de passar a nossa última noite em Las Vegas, num lugar cheio de toda esta estúpida gente. Ela o fitou com um leve sorriso no canto dos lábios. — O que pensa fazer? Cesare forçou um sorriso. — Apenas nós dois. Sozinhos. Os olhos dela começaram a encher-se de excitação. Ela sentia a corrente de energia dentro dele, mas não resistiu a um gracejo. — Foi a loura que fêz isso. Aquilo era demais para qualquer homem. — Não é verdade — respondeu êle rapidamente, agarrando-lhe a mão. As palmas das mãos dele estavam quentes e úmidas, como se êle tivesse febre. Ela o fitou atentamente. — Está-se sentindo mal? — Estou ótimo. Apenas aborrecido de estar aqui no meio desta gente que só pensa em dinheiro. Quero estar com você. Quero sentir a vida dentro de você. Os lábios dela ficaram subitamente secos. No seu cérebro perpassava a imagem de seu corpo musculoso. Apertou-lhe a mão com força e fitou-o. Havia nos olhos dele uma intensidade que não existia um momento antes.


— Teremos champanha gelado, antes, e conhaque morno, depois. Ela levantou-se do assento como em êxtase. Sentia as pernas estranhamente fracas. Tentou sorrir-lhe. — E depois champanha gelado outra vez? — murmurou.

Jordan olhou para o jogador. Era a quarta vez que dava o preto. As fichas diante do jogador elevavam-se a nove mil dólares. — Não abuse da sorte, Jake. É melhor apanhar já algum desse dinheiro. — Sorridente, bateu no ombro da testemunha. Grotescamente, a testemunha escorregou para a frente, com a cara em cima da mesa, espalhando as fichas com os braços e ficando com a cabeça em cima de um monte delas. Uma mulher gritou. Jordan levantou a cabeça do jogador. Tinha os olhos abertos, sem expressão. Jordan deixou cair a mão. — Ajudem-me a levá-lo daqui! — ordenou. Os guarda-costas moveram-se rapidamente. Ergueram com facilidade o jogador e dirigiram-se para o escritório do gerente. Houve um breve momento de histeria. Apenas um momento. As vozes calmas e monótonas dos homens da casa tranqüilizaram os clientes. — Está tudo bem, amigos; o homem apenas desmaiou. Está tudo bem. Tudo o que Las Vegas prometia — dinheiro fácil, o eterno sonho do amanhã — voltou ao cérebro dos clientes logo a seguir, logo que a roda recomeçou a girar. O homem foi esquecido pelos que se encontravam há pouco sentados à mesma mesa que êle. Apenas foi despedido um croupier, por ter roubado cinco mil dólares da pilha de fichas que se amontoava em frente do jogador. Cesare e Bárbara voltaram-se para ver os homens que levavam apressadamente o corpo do jogador. Bárbara olhou para Cesare. Os olhos dele estavam frios e brilhantes, a boca ligeiramente aberta e torcida num sorriso. Voltou-se para observar os homens que se afastavam, e depois olhou novamente para êle. Um arrepio a percorreu. — Por que é que você está assim? As feições suavizaram-se subitamente. Conseguiu sorrir. — Estava pensando que eles aqui têm tudo previsto. Aconteça o que acontecer, nunca se pode ganhar. Respirou fundo. A dor estava agora no fundo do seu ser. Quase o obrigava a gritar. — Vamos, não temos mais nada a fazer aqui.

O telefone da secretária de Baker tocou outra vez quando êle se preparava para sair. Era Jordan. A voz dele estava cheia de emoção.


— Mataram o jogador! Lentamente, Baker sentou-se. — Mataram? Como? — Stiletto! Do mesmo modo que Adams. — A voz de Jordan estava excitadíssima. — Lamento muito, George. Não o largamos um minuto. Não sei como isso aconteceu. Havia mais de mil pessoas esta noite no cassino. O cérebro de Baker iluminou-se subitamente. — Telefone daqui a uma hora. Quero ligar para Miami, e ter certeza de que Vanicola está bem. Desligou e voltou a chamar. Ouviu a voz da telefonista. — Ligue-me com o agente especial Stanley, em Miami Beach. Eles conhecem as testemunhas, pensou consigo mesmo enquanto esperava a ligação. Eles as conhecem. Todo o segredo. Todos os preparativos não serviriam para nada. Eles sabem.

7

O quarto estava silencioso, excetuando o murmúrio suave que ela fazia ao dormir. Êle ficou a olhar o teto, de olhos muito abertos. Fora há tantos anos, que quase esquecera. A guerra. Nunca mais tinha acontecido algo semelhante. Tudo o mais não passava de substitutos. Substitutos para a morte. O grande perigo, a grande emoção, a sensação de poder que lhe atravessa o corpo quando você sabe que a força da morte dentro de você está abrindo caminho, está levando você para mais perto do seu destino. Êle sorriu na escuridão, com uma sensação de bem-estar apossando-se do seu corpo. Esticou a mão para apanhar um cigarro na mesinha de cabeceira. O maço estava vazio. Êle se levantou silenciosamente da cama e foi até a cômoda, achou um maço cheio e apanhou um cigarro. Acendeu-o. Através da porta do terraço, podia ver as primeiras luzes da aurora. — Cesare... — A voz dela era um sussurro vindo da cama. Voltou-se para ela. Não a podia ver no escuro. — Sim? — Abra a segunda garrafa de champanha. — A voz dela estava pesada de sono. — Já o fizemos. — Mas ainda tenho sede — pediu ela em voz baixa. Cesare riu quase inaudivelmente. — Você é uma mulher insaciável. Êle ouviu o roçar dos lençóis, quando ela se sentou na cama. — Não tenho culpa de ainda ter sede...


Êle riu outra vez. — Acho que não — e dirigiu-se para o terraço. A noite estava calma, e a distância ouvia-se o som murmurante do vento do deserto. O azul-escuro do céu noturno se iluminava com a aproximação da manhã. Inclinou-se no parapeito, olhando o deserto. Ela veio para o terraço, atrás dele. Êle não se voltou. Chegou-se a êle e rodeoulhe o peito nu com os braços. — Em breve será dia — disse ela. — Eu sei — respondeu êle. Bárbara apertou os lábios contra o ombro dele. — Você tem a pele macia e limpa. Às vezes indago de onde virá essa força. Não sabia que um homem podia ser como você. — Deve ter sido das vinhas. Bebi muito quando era rapaz. Dizem que as vinhas da Sicília fazem bem ao sangue e à pele. Ela olhou para êle. Havia qualquer coisa que nunca compreenderia. — Por que é que quando você me ama diz que está morrendo? —perguntou. — É uma coisa muito estranha para ser dita nesses momentos. Êle sorriu. — É o que nós, os italianos, sempre dizemos. A pequena morte. — Por quê? Quando tudo dentro de você se abre e nasce... O sorriso desapareceu dos lábios dele. — Cada nascimento não é o princípio de uma morte? Você não sente a dor? Ela abanou a cabeça. — Não. Apenas a alegria crescente. — Olhou-o nos olhos. — Será por isso que, mesmo quando estamos mais juntos um do outro, eu sinto que uma parte de você me escapa? — Quanta tolice! — Não, não é — respondeu ela rapidamente. — Como o modo com que olhou o homem que transportavam ontem. Um momentos antes era como se eu o sentisse dentro de mim mesma, com toda a gente ali naquela sala. E logo a seguir, eles passaram, e percebi que você tinha fugido de mim. Êle estava morto, não estava? Êle olhou para ela. — Por que pergunta isso? — Êle estava morto — sussurrou ela. — Soube pela expressão que vi em seu rosto. Você sabia. Mais ninguém sabia... mas você sabia. — Isso é uma coisa idiota para se dizer — comentou êle com ar despreocupado. — Como poderia eu saber? Ela abanou a cabeça. — Não sei. Mas era a mesma expressão que tinha naquele dia em que iniciamos a nossa viagem. Quando você saiu do edifício do tribunal. Depois, lemos no jornal que tinha sido morto um homem ali, dentro daquele mesmo edifício. Ela encostou a cabeça ao peito dele e não viu que expressão tinha seu rosto. — Não preciso ler os jornais de amanhã para saber que aquele homem morreu. Sinto isso. Penso no que será em Miami. Êle imaginava se ela ouviria o coração bater-lhe descompassado no peito nu.


Forçou-se a falar com voz descuidada. — Será como sempre. Haverá sol e calor. Ela o fitou nos olhos. — Não é isso que eu quero dizer. Quero dizer se lá também morrerá alguém. O véu desaparecera dos olhos dele. Olhou-a profundamente. — Todos os dias morrem pessoas, em toda a parte — respondeu. Ela se sentiu quase hipnotizada. — Você não é o Anjo da Morte, não, meu querido? Êle riu e o véu apareceu de novo. — Mas que disparate é esse? — Não é disparate — disse ela lentamente. — Li, uma vez, a história de uma garota que se apaixonou pelo Anjo da Morte. As mãos dele puxaram mais a cabeça de Bárbara contra seu peito. — O que aconteceu a ela? — Morreu. Quando soube que ela sabia quem êle era, teve de levá-la consigo. De súbito, olhou para êle. — Você me levará, Cesare? A mão dele apertou os longos cabelos que caíam pelos ombros de Bárbara, puxando-lhe a cabeça para trás. — Sim, levarei você comigo — disse, beijando-a brutalmente . Ouviu o gemido de dor que ela soltou, quando lhe agarrou o seio com a mão livre. Ela conseguiu soltar-se e gritou! — Você está me machucando! Êle enterrou a cabeça dela no seu peito, enquanto continuava a apertar-lhe o seio e começava a sentir uma torrente crescer dentro de si. O círculo tornou-se mais apertado e ela gemia baixinho, enquanto os joelhos se dobravam lentamente. Gritou ainda mais, enquanto êle a apertava sem piedade. — Chega, Cesare! Não suporto mais essa dor! Êle agora estava sorrindo. Havia poder dentro dele. E vida. E morte. A voz parecia vir de algum lugar distante, fora dele. — Já é tempo de aprender, minha querida, quão estranho pode ser o prazer da dor. — Não, Cesare, não! — O corpo dela começou a tremer em convulsões selvagens. — Não posso mais! Sinto que estou morrendo! Êle olhou-a e, subitamente, libertou-a. Ela quase caiu; depois, suas mãos agarraram-se à cintura de Cesare e ela começou a soluçar. — Eu te amo, Cesare! Eu te amo!

8

Miami Beach é uma cidade de sol, construída numa faixa de areia estéril, ao longo da costa da Flórida. Todos os anos, por uma inseminação artificial de capital,


dão vida a um novo hotel. O Saint Tropez é o novo hotel deste ano. Perto do Fontainebleau e do Eden Roc, o Saint Tropez ergue seus onze andares num arranha-céu cujo estilo arquitetônico lembra vagamente uma versão de Picasso do Cassino de Monte Carlo. Os habitantes da Flórida, que apreciam a beleza pela quantidade de dinheiro que as coisas rendem, chamam-no "o mais belo hotel do mundo". A diária de um apartamento é de oitenta dólares. Tem uma praia particular para onde não vai ninguém a não ser os turistas na baixa estação. Tem também uma enorme piscina que dizem ser a maior jamais construída. É completamente rodeada de cabanas dispostas de maneira a não ocultarem o sol. Cada cabana é equipada com mesa de jogo, telefone, chuveiro e uma pequena geladeira. Por volta das três horas da tarde, todos os dias, todas as tabernas estão chedas. Os jogadores sentam-se às pequenas mesa, geralmente em traje de banho ou shorts. À volta da piscina, nas grandes cadeiras de madeira, estão os adoradores ido sol, todos besuntados de loções e óleos. Sam Vanicola encontrava-se à janela de um dos apartamento do Saint Tropez, olhando para a piscina. Era um homem corpulento. Já em garoto, quando corria pelas ruas de Brooklyn, levando recados para Lepke, êle era grande. Pesava agora mais de cem quilos com seu metro e setenta e oito. Com um resmungar de aborrecimento voltou-se para a sala onde três homens jogavam cartas. Olhou para eles. — Isso é uma chatice — comentou. O agente especial Stanley voltou-se. — Temos ordens — disse. — Ordens! Maçadas! — berrou Vanicola. — Vocês bem sabem que não adiantou terem fechado Abe Reles a chave em seu quarto, no Hotel Half Moon, em Brooklin. Foi apanhado da mesma maneira. Stanley sorriu de novo. — Como sabe disso, Sam? Êle pulou da janela e dizem que foi suicídio. — Muito engraçado! — replicou Vanicola. — Eu o conhecia bem. Foi empurrado, isso sim! Êle jamais saltaria. — Além disso — continuou Stanley — foi há vinte anos. As coisas agora são diferentes. Stanley ficou silencioso. Trocou um olhar com os outros agentes. Eles nada disseram. Vanicola tirou um charuto do bolso e foi sentar-se no sofá. Mordeu a ponta do charuto e cuspiu-a para o chão. Depois acendeu-o e recostou-se, fumando. Sua voz era menos áspera quando falou: — Ouçam, rapazes. Eu também pago impostos. O Governo está gastando um dinheirão para me manter aqui. Para que estão gastando tanto sem beneficiar a ninguém? Stanley levantou-se da cadeira. — Talvez prefira ir para a cadeia? — perguntou. Vanicola olhou para êle. — Não me faça rir, Stanley. Se eu fôr preso, não falarei mais. E sem o meu


testemunho vocês não conseguirão nada. — O que está acontecendo, Sam? — gritou Stanley, do fundo da sua frustração. — O que é que tem contra a vida? Vanicola olhou-o com seriedade. — O que tenho é a maneira como me sinto desde o dia em que me apanharam. Considero-me morto. Se não falasse, vocês me condenavam à morte. Se falasse, como fiz, seria apenas uma questão de tempo antes de eles me apanharem. Agora tudo se precipita. Afinal, por que não pedem ao seu chefe que os autorize a deixaremme passar duas horas por dia na piscina? Se fizerem isso, concordarei com o resto. Stanley foi até à janela e depois olhou para baixo, para a piscina. Estava ali o número habitual de pessoas. A voz de Vanicola fêz-se ouvir de novo: — Ali, ninguém me poderá atingir. É fácil vigiar todas as entradas. Há apenas duas. Stanley dirigiu-se para a sala ao lado e fechou a porta atrás de si. Vanicola olhou para os dois agentes sentados, que continuavam jogando. Continuou silencioso, fumando o charuto. Alguns minutos depois, Stanley voltou. — Bem, já tem o que quer. Pode apanhar sol. Mas lembre-se de nos dizer imediatamente o que vir de anormal ou se reconhecer alguém. Não queremos que lhe aconteça nenhum mal. Vanicola levantou-se da cadeira e dirigiu-se novamente para a janela. — Claro — murmurou. — Podem crer que não tenho pressa. Stanley sentou-se novamente à mesa de jogo. Vanicola sorriu para êle, mas não havia humor nos seus olhos. — Pelo menos, uma coisa ganharei — disse. — O que é, Sam ? — Vou arranjar um belo bronzeado — respondeu. — Assim, quem fôr me ver depois de eles me liquidarem, saberá onde passei o inverno.

Bárbara estava à janela olhando para o mar, quando ouviu o telefone tocar no quarto. Foi para dentro e atendeu. — Uma chamada de Nova York para o Conde Cardinalli — disse a telefonista. Ela tapou o fone com a mão. — Cesare, telefone para você. Êle saiu do quarto, de calções de banho brancos, fazendo contraste com o bronzeado que adquirira nos últimos dias. Pegou o fone. — Fala Cardinalli — disse. A voz da telefonista fêz-se ouvir. — Está bem, pode ligar — disse êle. — É minha secretária — disse para Bárbara — a senhorita Martin. Bárbara saiu novamente para o terraço. Ouvia alguns pedaços de conversa. Dizia respeito a um carro que se encontrava em Palm Beach. Pouco depois êle desligou. Não apareceu no terraço. Quando ela se voltou, viu que êle estava sentado à secre-


tária, escrevendo qualquer coisa. Entrou na sala. Êle sorriu para ela. — Desculpe-me — disse. — Negócios. Ela abanou lentamente a cabeça. Aquele era o último dia da semana que tinham planejado passar juntos. — Quem me dera que a semana estivesse começando — disse Bárbara. — Eu também gostaria — respondeu êle. — Detesto pensar que amanhã estaremos de novo em Nova York e que lá não estará quente e agradável. Gostaria de ficar aqui para sempre. Êle sorriu. — O aborrecimento é sempre esse. As férias têm que terminar. — As nossas têm? — perguntou ela, não se referindo às férias. Êle compreendeu o que ela queria dizer. — Têm — disse calmamente. — Tenho que voltar aos meus negócios e você ao seu trabalho. Ela sentia uma certa tristeza. Sabia que fora tola ao enganar-se, ao pensar que teria podido ser de maneira diferente. O que se passara entre os dois não representava mais do que umas férias para êle. — Haverá alguém que o conheça realmente, Cesare? A expressão dele denotou surpresa. — Que pergunta engraçada! — disse. Subitamente, ela sentiu vontade de tocá-lo, de ter certeza de que êle era real. Afastou-se, para não o fazer. — Não, não é! Muita gente acha que você não passa de um playboy. Mas eu sei que não. Cesare dirigiu-se para ela. — Tenho tido muita sorte. É bom para os meus negócios fazer o que gosto de fazer. Ela o encarou: — É essa a razão para arranjar moças como eu? Para firmar sua reputação, como acontece com os carros de corrida? Êle pegou a mão dela. — Não há ninguém como você — disse. — Não? — disse ela, furiosa consigo mesma por não ser capaz de se calar. — E a baronesa? Lembro-me de que os jornais não falavam noutra coisa, dizendo que você a perseguia por toda a Europa. — Ileana? — perguntou êle, rindo. — Conheço-a desde criança. Nossas famílias eram amigas. Além disso, não me interessa mais. Ela deve estar na Califórnia com um rico texano. Tem uma preferência especial por texanos ricos! Bárbara baixou os olhos. — Desculpe-me — disse. Êle pôs-lhe a mão debaixo do queixo e fê-la encará-lo. — Tenho uma idéia — disse. — Há um carro em Palm Beach, que me disseram para ver. Em vez de voltarmos para Nova York de avião, iremos de carro. Estou farto de aviões e eles encurtam nossas férias.


Ela sorriu. Talvez se tivesse enganado a respeito dele. Talvez não fossem apenas umas férias. — Será maravilhoso! — exclamou. Cesare olhou para o relógio de pulso. — São quase três horas. Temos tempo para nadar mais um pouco. Podemos jantar em Palm Beach e estaremos em Jacksonville antes do amanhecer.

Vanicola saiu do banheiro da cabana. Vestia um calção de banho de estampado havaiano, em tom brilhante. Permaneceu à sombra da cabana e olhou para os homens do F. B. I. — Posso tomar agora a minha ração de sol? Os agentes trocaram olhares, e Stanley voltou-se para os homens colocados nas entradas. Eles perceberam o olhar e acenaram afirmativamente. Os outros dois agentes levantaram-se. Vanicola dirigiu-se para a piscina, escolhendo o caminho cuidadosamente entre as pessoas que estavam deitadas ao sol. Depois pegou um colchão de plástico, desceu os degraus da piscina e entrou pesadamente na água. Stanley estudava as pessoas que o rodeavam. — Vê alguma coisa, chefe? — perguntou o agente mais novo. — As pessoas que aqui se encontram não têm roupa suficiente para esconderem qualquer arma. O rapaz sorriu, olhando para as garotas que ali estavam deitadas. — Algumas destas pequenas não usam, sequer, roupa suficiente para esconderem as próprias "armas". Stanley nem sorriu. Naquela altura não achava graça em coisa alguma. Vanicola falou, do colchão onde se encontrava deitado. — Já lhes disse que não há motivo para preocupações. Chamem-me daqui a dez minutos, para eu me virar, pois não quero ficar torrado. — OK. —- respondeu Stanley. Deixou-se ficar sentado numa cadeira perto da piscina. Ficaria satisfeito, quando terminasse aquele trabalho. Vanicola afastou-se boiando. Enquanto os agentes vigiavam preguiçosamente os nadadores, a tensão que sentiam começou gradualmente a diminuir. Cesare viu-os do outro lado da piscina. Olhou para Bárbara. Ela estava deitada de bruços, com as costas ao sol, os olhos fechados. Sentiu o coração começar a bater desordenadamente. Olhou mais uma vez para o outro lado da piscina. Vanicola estava agora mais ou menos no meio da piscina, junto a um grupo de jovens que brincavam alegremente. Suas vozes chegaram até Cesare. Inconscientemente, levou a mão à cintura. Sentia o stiletto na bainha escondida sob o calção de banho. Depois afastou rapidamente a mão. Um dos guarda-costas acabava de se levantar. Disse qualquer coisa a Vanicola. Este sentou-se desajeitadamente e quase caiu dentro da água. Em seguida, voltou-se e deitou-se de barriga para baixo. O guarda-costas sentou-se de novo. Cesare olhou para Bárbara, que continuava deitada calmamamente. Êle ergueuse, e atirou-se à água. Mergulhou profundamente, conservando os olhos abertos e dirigindo-se para o fundo da piscina.


Bárbara sentou-se, ao ouvir o ruído do mergulho. — Cesare! — chamou. Mas êle já tinha mergulhado, fazendo aparecer bolhas de ar na superfície. Ela pestanejou e sorriu. Em muitos aspectos êle era ainda um menino. Há três dias que praticava natação debaixo da água, querendo atravessar a piscina num determinado tempo. Bárbara olhou para o relógio na parede da cabana. Faltavam vinte minutos para as quatro. Começou a reunir suas coisas. Era tarde; em breve partiriam. Acabava de retocar os lábios, quando a cabeça de Cesare apareceu à beira da piscina, bem perto dela. Sua boca estava aberta numa estranha careta, enquanto respirava. Olhou-a, como se viesse de muito longe. — Conseguiu desta vez? — perguntou ela, sorrindo. — Consegui — disse êle, saindo da piscina. A voz dela parecia chocada. — Cesare! Um relâmpago de medo apareceu nos olhos dele. Levou a mão ao stiletto. Lá estava, na bainha. Olhou para ela, depois para baixo, para si próprio. Apanhou o roupão que ela lhe entregou e embrulhou-se nele. Ela ria, agora. — Parece um menino. Quando se excita, vê-se logo — disse, para provocá-lo. Êle sorriu, sem embaraço. Pegou-lhe na mão e fê-la levantar-se. — Não lhe disse que nós, sicilianos, somos uma gente muito primitiva? — comentou rindo. Ela pegou a bolsa de praia e, rindo também, seguiu-o em direção ao hotel.

O telefone, na cabana, começou a tocar. Stanley levantou-se. — Vigiem-no bem, enquanto vou atender ao telefone — recomendou aos outros agentes. Eles acenaram afirmativamente e êle entrou na cabana. O jovem agente olhou em volta, e disse para o outro: — Quem me dera vir aqui sem estar de serviço. O outro sorriu. — Não poderia pagar. É tudo muito caro! Stanley voltou. Pela primeira vez em muitos dias, sorria. — Vamos — disse para os outros. — Levemo-lo daqui. Vamos para Nova York esta noite. Os homens levantaram-se e dirigiram-se para a piscina. A voz de Stanley fêz-se ouvir. — Vamos, Sam, seus dez minutos já passaram. Mas para Sam tinham-se passado mais de dez minutos. Sam Vanicola estava morto, deitado no colchão de plástico que afundava lentamente. Tinha o rosto encostado ao plástico e olhava para a água. E até a última visão desaparecera de seu cérebro. A visão do rosto sorridente de Cesare, surgindo do fundo da piscina, momentos antes do seu coração explodir numa dor que nunca julgara poder experimentar.

9


O Sunshine State Parkway vai de Miami a Port Piece, passando pelos pântanos, lodaçais e pequenos bosques de limoeiros que existem na costa atlântica da Flórida. Muitas vezes, durante a noite, no princípio do inverno, o nevoeiro sobe subitamente e envolve a estrada numa camada de neblina. O poderoso Ghia conversível estremeceu, quando Bárbara se inclinou sobre o volante e ligou o rádio. A potente luz dos faróis varria o nevoeiro. — A neblina está aparecendo. Cesare acenou afirmativamente. — Quer que levante a capota? — Deixe ficar assim. Sinto-me bem. Rodaram em silêncio durante uns minutos, até que a voz do locutor anunciou: — Noticiário de Miami, onze horas. Cesare voltou-se para ela. Bárbara guiava concentrando-se exclusivamente na estrada. — Com a morte de Sam Vanicola na piscina do Hotel Saint Tropez, aqui em Miami, esta tarde, o governo acaba de anunciar em Nova York o completo desaparecimento de provas contra os incriminados chefes do Sindicato do Crime. Foi dito, também, que a arma do crime usada em todos os casos foi um stiletto. O stiletto é uma arma de vingança originária da Itália, do tempo dos Bórgias. Foi a arma favorita dos assassinos dessa época, pelo fato de, pelo seu feitio peculiar, causar hemorragia interna, enquanto que a superfície da ferida fecha-se assim que a arma é retirada. A polícia e o F.B.I. dão grande importância ao fato, e estão fazendo tudo para descobrir pistas que conduzam à identificação do assassino ou assassinos. Entretanto, em Washington... Cesare desligou o rádio. — Que noticias tão aborrecidas — disse com uma pequena risada. — Assassinos e crimes constantemente. Não encontram mais nada de que falar? Bárbara não respondeu. Seus olhos pareciam grudados à estrada. — Acorde, bela adormecida. Você está guiando. — Estou acordada. — É bom saber disso. Sinto-me melhor. A voz dela era inexpressiva. — Estava pensando. — Em quê? — No homem que morreu na piscina. Qual seria? Eu o teria visto ou êle teria reparado em mim? — Que pensamento estranho. Por quê? Os olhos dela continuavam a dar atenção apenas à estrada. — Talvez porque, se eu tivesse falado com êle, pudesse avisá-lo, não sei. Êle deu outra risada curta. — De que iria avisá-lo? Como podia saber o que ia acontecer? — Podia ter-lhe falado do Anjo da Morte. E de como êle nos seguiu de Nova


York para Las Vegas e depois para Miami. — Estremeceu levemente. — Pensar que ainda nos persegue, Cesare! — Deixe de tolices. Venha para cá e deixe-me guiar. Esses disparates podem perturbá-la. Sem nada dizer, ela diminuiu gradativamente a velocidade do carro. Parou, pouco depois. — Assim é melhor — disse êle. — Eu conheço bem a estrada. Há uma ponte estreita e o nevoeiro está muito forte. — Sim, mas seja cuidadoso. — Vou tomar cuidado — e, atraindo-a para si, beijou-a na boca. Os lábios dela estavam frios ao unirem-se aos dele. — Não me importo que você seja o Anjo da Morte. Estar com você estes dias tornou-me mais feliz do que jamais fui em toda a minha vida. Êle não pôde evitar a pergunta que lhe veio aos lábios. — Que faria você se fosse eu? Ela olhou para êle, indecisa. — Agora você é que está dizendo tolices. Alguma coisa o empurrava interiormente. Talvez que, se ela soubesse, se compreendesse, não fosse tudo tão vazio. Por que havia de ser só êle a sentir aquilo? — Podia ter sido eu o assassino. Afinal de contas, estivemos em todos os locais em que os crimes ocorreram. Ela o olhou e depois sorriu. — Penso, às vezes, que você é tão doido quanto eu. Êle riu e deu a volta ao carro para junto dela. Ela pegara no batom e começara a usá-lo. — Seja bonzinho, sim, e me dê um pouquinho de luz. Receio estragar a pintura. Êle acendeu o isqueiro e olhou para ela. Sentia os lábios esticados sobre os dentes. — Por que me olha assim? — perguntou Bárbara. — Você — respondeu êle, tenso — é bonita demais. — Isso merece outro beijo antes de pôr o batom. Êle debruçou-se para dentro do carro e beijou-a. Os lábios dela eram agora mais quentes e apertaram-se contra os dele. — Cesare... Receio que esteja começando a amá-lo tanto, que não me interessa se foi você ou não quem matou aqueles homens. Êle endireitou-se e ela começou novamente a pôr o batom. Êle olhou para baixo. Viu a carne branca debaixo dos cachos que orlavam seu pescoço. Levantou a mão com a palma estendida. Não podia fazer outra coisa. Ela já reunira muitos fatos. A morte conduzia à morte, e o crime assemelhava-se às ondas concêntricas numa piscina, que se afastavam e depois iam parar sempre no mesmo lugar. Deixou cair o punho numa terrível pancada de judô. O batom saltou da mão da jovem, como uma bala, foi bater no pára-lama e depois caiu no chão. Êle ficou a olhar para ela, sentindo o coração bater violentamente. Ela ficou deitada sobre o volante, com uma das mãos ainda fechada sobre êle, a cabeça numa posição esquisita. Sentiu-se satisfeito por não lhe ver os olhos. Olhou


em torno, rapidamente. Não se via carro algum. Ligou a ignição e o veículo pegou com um rugido. Olhou de novo em derredor. A estrada continuava livre. Tirou o stiletto da manga e o gancho ao qual estava preso e atirou-o, com um movimento ágil, no pântano. Ouviu, quando caiu, com um baque, na água turva. Meteu-se no carro e arrancou. Colocou o pé no acelerador. A ponte devia estar a menos de um quilômetro. Daí a momentos o carro seguia a oitenta. Corria através do nevoeiro. Bárbara escorregou para cima dele. Lá estava a ponte. Com uma praga, empurrou Bárbara para baixo. Tirou o pé do acelerador e levantou ambos os pés. Agarrando firmemente o volante, conduziu o carro em direção ao parapeito da ponte. Deu um salto para fora quase no momento do choque. A velocidade do automóvel impulsionou-o, e êle sentiu-se atirado ao ar e mergulhou na água. O som da pancada chegou-lhe aos ouvidos no momento em que caía. A água era escura e fria e êle sentia-se ir para baixo, para baixo, sem poder respirar. Os pulmões queriam rebentar. Os juncos puxavam-no para baixo. Parecia-lhe que nunca mais conseguiria chegar à superfície. Fêz um esforço desesperado e daí a pouco via o céu por cima da cabeça. Com dificuldade, chegou à margem. Sentia uma dor que o invadia. Lentamente, conseguiu chegar a terra. Arrastando-se, de joelhos, acabou por se estender no chão. Tremia convulsivamente. Tinha a boca cheia de lodo e de água suja. Depois, fechou os olhos e a noite caiu sobre êle. Baker recostou-se na cadeira e olhou para a janela. O pálido sol de inverno formava estranhos desenhos nos edifícios. Havia três dias que Vanicola morrera, e não tinham conseguido saber de mais nada. Olhou para os homens que se encontravam sentados do outro lado da mesa. Estavam ali o capitão Sprang, da Polícia de Nova York, Jordan, de Las Vegas, e Stanley, de Miami. Pós as mãos em cima da mesa num gesto de derrota. — A história é esta. Não estou censurando nenhum de vocês. A responsabilidade é minha e eu a aceito. Amanhã de manhã devo estar em Washington para me encontrar com o chefe. O Senador Bratton quer um relatório pessoal. — O que é que vai dizer a êle, Baker? — perguntou Stanley. — Que posso dizer? Não sei mais do que êle. Pegou num envelope que se encontrava sobre a mesa. — Aqui está a minha demissão. Vou entregá-la amanhã. — Espere um pouco, Baker — disse Jordan. — Êle não pediu a sua cabeça. Baker teve um sorriso cansado. — Vamos, Ted, não seja ingênuo. Você bem sabe que o chefe não gosta de fracassos. Ficaram silenciosos, e Baker carregou no botão do projetor, que se encontrava a seu lado. Surgiu na parede uma fotografia. Era uma fotografia da multidão que enchia os corredores do Tribunal. — Que é isso ? — perguntou Jordan. Baker apertou lentamente o botão. — Fotografias do corredor do Tribunal, tiradas pelos fotógrafos dos jornais, no


momento em que Dinky Adams chegava ao julgamento. Carregou novamente no botão e a cena mudou. — Já olhei para elas milhares de vezes. Seria lógico que víssemos qualquer coisa nessas fotografias, mas nenhum deles tirou uma chapa no momento preciso. A cena mudou novamente. — Quase me esquecia de que vocês ainda não as tinham visto. Ficou olhando durante um momento e depois premiu novamente o botão. — Espere um minuto — disse Stanley com excitação. — Coloque novamente a fotografia anterior. Baker apertou o botão. Stanley levantou-se e foi para junto da parede, apontando para um homem. — Existe aí um ampliador para se ver em tamanho natural o rosto deste homem? Este, de chapéu verde? — Não é verde. Isso é a côr da parede. O capitão Sprang interrompeu-o. — Não! O chapéu era verde. Eu reparei nele, entre a multidão. Baker colocou rapidamente as lentes do ampliador. Agora só se via o rosto do homem na tela. Via-se de lado, mas não podia haver engano quanto ao chapéu. — Já vi antes esse chapéu — disse Stanley. — Há milhares de chapéus como esse — replicou Baker. — Mas não uma cara como aquela, e eu a conheço. Todos se voltaram para êle. — É o Conde Cardinalli. O corredor de automóveis. Estava numa mesa em frente à nossa, em Las Vegas. Encontrava-se lá com um modelo que posou para o anúncio de cosméticos "Fogo e Chama". Bárbara Lang. Stanley pôs-se de pé num salto. — E também estavam no Saint Tropez. Foi lá que eu vi esse chapéu. Estavam no hall quando cheguei, e êle o levava na cabeça. Baker fitou-os. – Nesse caso, talvez ainda não esteja tudo acabado. Pegou no telefone e falou: – Quero uma ficha completa sobre o Conde Cardinalli. Tudo quanto êle fêz desde o dia em que nasceu! Desligou, sem olhar para eles. — Têm alguma idéia sobre o lugar em que êle se encontra neste momento? – Eu tenho — respondeu o Capitão Sprang. Tirou um jornal do bolso e desdobrou-o. Apontou para um canto da primeira página. O título dizia: FAMOSO DESPORTISTA SAI AMANHA DO HOSPITAL. Havia uma pequena historia sob a fotografia, a respeito do acidente de automóvel ocorrido na Sunshine State Parkway, em que perdera a vida Bárbara Lang. Baker levantou os olhos do jornal e assobiou. – Se este tipo é o do stiletto, não vai ser fácil apanhá-lo. Êle não deixa testemunhas. Nem as suas, nem as dos outros!


10

Baker estava em frente à agência de automóveis, em Park Avenue. Através dos vidros da vitrina, observava os carros estrangeiros, brilhantes e esguios. Escrito em pequenas letras prateadas, nos próprios vidros da porta de entrada, lia-se: "Cesare Cardinalli — Automóveis importados". Baker empurrou a porta da agência e entrou. Lá se encontravam vários clientes a olhar os carros, e êle deixou-se ficar por ali durante alguns minutos. Um dos clientes saiu, e o empregado aproximou-se dele. — Em que lhe posso ser útil? — A voz era delicadamente interrogativa, se bem que um pouco distante. Baker sorriu consigo mesmo, pensando na diferença existente entre aquela loja e a do sorridente irlandês onde êle tinha comprado o seu carro. Abanou lentamente a cabeça. — Gostaria de ver mister Cardinalli. Êle está? Um olhar desaprovador apareceu no rosto do vendedor. — Mister Cardinalli nunca vem à agência. — Não? Então onde posso encontrá-lo? — Não sei, mas pode ligar para o seu escritório. — Onde fica ? — Há muito que aprendera a não se aborrecer com os snobs.Sabia que a maior parte deles eram caixas vazias, e a sua prosápia desaparecia rapidamente. — No décimo quinto andar. Pode subir pelo elevador que fica no hall. — O vendedor apontou para uma porta do outro lado. — Muito obrigado. — Por nada — respondeu o vendedor, afastando-se para atender a outro cliente em perspectiva que acabara de entrar. Baker dirigiu-se para o hall e esperou por um elevador. Aquele era um dos novos edifícios de Park Avenue. Tudo era automático, até o elevador, onde se ouvia música suave. Cardinalli fazia as coisas faustosamente, pensou. Tinha conseguido tudo na vida. Como é que poderia estar ligado ao Sindicato do Crime? Lembrou-se da expressão incrédula do rosto de Sprang ao ler o relatório sobre êle. — Não compreendo — disse o capitão. — Este homem tem tudo. Título. Dinheiro. Fama. Não compreendo como possa ser o nosso homem. Era isso que os preocupava a todos. No entanto, havia alguns pontos fracos que não podiam ser explicados convenientemente. Por exemplo, durante a guerra, Cardinalli cooperara com os aliados nos preparativos da invasão e recebera uma medalha por causa disso. Nesse período travara contato com vários homens do mundo do crime e, só êle, matara cinco por não quererem cooperar, enquanto os outros vinte oficiais, também encarregados do assunto, se tinham visto obrigados a matar apenas quatro entre todos. Depois, havia o caso do tio que fora assassinado. Sabia-se que Cardinalli se encontrava, nessa altura, muito longe dele. Logo depois


disso é que começara a viver luxuosamente. Antes da morte do tio, estava arruinado. Vieram depois as corridas com os carros velozes, e Cardinalli tornou-se uma personalidade internacional. Claro que houvera outros como êle: Portago, que fora morto numa dessas corridas. Cardinalli fora desclassificado, nessa mesma corrida, por direção desnecessariamente perigosa. Houvera outras corridas em que êle fora também desclassificado. Por duas vezes se falara de que êle poderia ter sido responsável pela morte de outros concorrentes. Mas nada disso dizia respeito a estar ligado ao mundo do crime. As portas do elevador abriram-se e Baker saiu para uma sala de recepção, cujas paredes estavam decoradas com litografias de famosos carros de corrida. A recepcionista estava sentada a uma secretária num canto afastado. — Em que lhe posso ser útil, senhor? — Poderei ver o Conde Cardinalli? — Tem entrevista marcada? Baker abanou a cabeça. — Posso saber de que assunto vem tratar? — É um assunto pessoal. Com ar desaprovador, a pequena pegou no telefone. — Vou ver se o Conde Cardinalli está. Seu nome, por favor ? — George Baker. Ficou de pé, à espera, enquanto a moça sussurrava ao telefone. Passado um momento, voltou-se para êle. — Se quiser fazer o favor de se sentar, mister Baker, a secretária do Conde Cardinalli, miss Martin, virá falar-lhe dentro de poucos minutos. Dirigiu-se para uma cadeira confortável e sentou-se. A mesa diante dele estava coberta de revistas de automobilismo, de todos os países, e escritas em todas as línguas. Preguiçosamente, pegou numa e começou a folheá-la. Olhou para o lado ao ver uma jovem sair de uma porta e dirigir-se para êle. — Sou miss Martin — disse ela, sorrindo delicadamente. — A secretária do Conde Cardinalli. Em que lhe posso ser útil? Baker levantou-se lentamente, consciente do olhar curioso da recepcionista. Silenciosamente, tirou do bolso o seu cartão de identificação e apresentou-o à pequena. Ela o examinou atentamente, com uma expressão de espanto. — Lamento incomodar o conde — disse com ar tranqüilizador — mas há uns assuntos que gostaria de tratar com êle. Miss Martin devolveu-lhe o pequeno cartão de identidade e êle tornou a colocálo no bolso. — Se quiser fazer o favor de esperar mais um pouco, verei se o conde pode recebê-lo. Desapareceu pela mesma porta de onde saira e reapareceu pouco depois. — Faça o favor de me acompanhar. Êle a seguiu e entraram numa vasta sala onde se encontravam vários homens e mulheres trabalhando. Depois passaram por um pequeno escritório onde havia apenas uma secretária. Em seguida, entraram no escritório do Conde Cardinalli.


Os olhos de Baker arregalaram-se ao ver o mobiliário. As antiguidades eram autênticas, os candeeiros de estatuária genuína. Até a lareira artificial era de mármore de Carrara. A única concessão ao funcional eram as taças e medalhas de ouro sobre a pedra da lareira. Não havia nenhuma secretária na sala. Cardinalli ergueu-se de uma confortável poltrona que se encontrava a um canto. Perto dela havia uma mesinha baixa, sobre a qual se encontravam o telefone e uma pequena agenda. O Conde estendeu a mão a Baker. Seu aperto de mão era firme. Em seguida indicou-lhe uma poltrona em frente à sua. Baker aguardou que a secretária saísse do escritório, e depois sentou-se. Observou durante uns momentos o homem que tinha à sua frente. — Em que lhe posso ser útil, mister Baker? — perguntou, suportando bem a observação a que estava sujeito. Parecia ter apenas uma curiosidade delicada em saber a razão da visita de Baker, pensava este. Qualquer homem que tivesse feito o que o Stiletto fizera, precisaria de nervos de aço. Sorria vagamente. — Sorri? — perguntou Cesare. Baker acenou afirmativamente. O pensamento acabara de lhe ocorrer. Todas as pessoas ali lhe tinham perguntado em que lhe podiam ser úteis. Até Cardinalli. E êle sabia, por experiência própria, que as pessoas que falavam assim eram as que mais dificilmente se tornavam úteis. — Estava pensando, senhor Cardinalli, que o seu escritório é mais confortável do que muitos outros em que tenho entrado. Parece até demasiado confortável para ajudar a trabalhar nele. — Oh, isso é verdade — admitiu Cesare, também sorrindo. — Mas, no meu gênero de trabalho, não acho necessário aborrecer-me com a mecânica dos negócios. Portanto, pretendo que o meu escritório pareça o menos possível que o é. Principalmente porque sou uma criatura muito egoísta e que gosta muito do conforto. Baker fêz um gesto de concordância. Tudo quanto aquele homem dizia e fazia era exatamente verdadeiro. Não havia necessidade de tentar conhecê-lo. Cardinalli devia ser sempre assim. Inclinou-se um pouco para a frente. — Já se sente completamente refeito do acidente que sofreu? — Já estou bem, obrigado. — Deve ter sido uma experiência terrível. — Foi mais do que isso — afirmou Cesare, com uma curiosa hesitação, como se estivesse a procurar as palavras inglesas para descrever o que sentia. — Foi trágico. Nunca deixei de me censurar pelo que aconteceu. — E poderia tê-lo evitado? Julgou ver um rápido brilho de troça nos olhos de Cesare. — Acho que sim — respondeu este. — Nunca devia tê-la deixado guiar o carro. Era veloz demais para ela. Foi nessa altura que Baker soube ter conseguido a resposta para muitas das perguntas que o torturavam. Quisera que Cesare fizesse uma afirmação concreta, e tinha-o conseguido sem mostrar nenhuma das suas suspeitas. — Ainda bem que saiu ileso. E agora vamos ao assunto que me trouxe aqui. — Como queira. — Como resultado do acidente, chamou-nos a atenção o fato de, na semana


passada, o senhor ter estado algum tempo, no Marajah, em Las Vegas, e no Saint Tropez, em Miami Beach. — É verdade. — E que também, na semana passada, segunda-feira, esteve no Tribunal Federal, em Foley Square, Nova York. — Seus homens são muito diligentes. Isso também é verdade. — Não faz idéia do motivo pelo qual estou citando tais fatos ? — Seria idiota se pretendesse ignorá-lo, não acha? Também leio jornais. — Sabe, então, dos assassínios das testemunhas do julgamento do Sindicato do Crime? — Sim, mas não vejo que ligação possa ter com eles. — O que foi fazer no Tribunal naquele dia? — Não sabe? Fui buscar meus primeiros documentos de naturalização. — A Imigração fica no andar térreo. O que foi fazer no terceiro andar? Foi visto no corredor, junto da porta da sala de audiência. — Isso é muito simples. Fui ao toilette, mas como o do térreo estava ocupado, dirigi-me ao do terceiro. Quando vi toda aquela multidão no corredor, fui novamente para baixo. — Não reparou em nada de anormal quando se encontrava no terceiro andar? — Bem, tudo aquilo era anormal para mim — respondeu Cesare. — Mas, se se refere a qualquer incidente especial, digo-lhe que não. Apenas aquela gente toda e as pessoas que saíam do elevador, enquanto eu tentava dirigir-me novamente para as escadas. — Que razões teve para escolher, especialmente, aqueles hotéis? Por que não foi para outro qualquer em Las Vegas e em Miami? — Hotéis, senhor Baker, são uma questão de moda. Nos meus negócios, eu tenho que dar importância a isso. — Tirou um cigarro de uma caixa que estava sobre a mesa, a seu lado. — Parece-me mais próprio essa pergunta às pessoas responsáveis por se encontrarem as testemunhas naqueles hotéis. — Nunca viu nenhuma delas? Cesare abanou a cabeça. — Não, não que eu saiba. Além disso, se as visse, não as reconheceria. Nem sequer sabia como eram. — Hesitou um momento. — Talvez em Las Vegas tenha visto uma delas. Não sei. Quando eu e miss Lang saímos do cassino, levavam um homem para fora. — Era uma das testemunhas. — Era? É pena. Se tivesse sabido, teria olhado melhor. — Não há nada, de que se recorde, que nos possa ser útil? Outras pessoas em que tenha reparado? Cesare abanou a cabeça. — Sinto muito, senhor Baker, mas não me recordo de nada. Sabe, estava gozando férias com uma mulher bonita e não estava muito interessado em mais nada. Baker percebeu que já não tinha mais nada a fazer ali. A entrevista estava acabada e êle ficara na mesma. Não serviria de nada tentar fazer com que aquele homem falasse. Não era desse tipo. Baker levantou-se. Quando o fêz, reparou num par de pu-


nhais cruzado na parede por cima da lareira. — O que é isto? Cesare não se voltou. — São stilettos. Baker aproximou-se da parede e examinou-os. Estavam escuros pela ação do tempo. — Stilettos! Foi com esta arma que mataram as testemunhas. — Sim. Também li isso — respondeu Cesare, imperturbavelmente. — Possui estes há muito tempo? — São recordações de família. Tenho uma grande coleção deles aqui em Nova York e na minha casa na Itália. O stiletto era uma arma favorita dos Bórgias, que se encontram entre os meus antepassados. — Compreendo. Suponho que seja perito em seu uso. Cesare levantou-se, sorrindo. — Sim, suponho que seja — respondeu — mas não temos muito tempo na nossa sociedade para nos tornarmos verdadeiramente eficientes nesses assuntos. As armas, como as outras coisas, também estão sujeitas à moda. — Retirou um dos stilettos da parede, olhou-o e estendeu-o a Baker. — Esses brinquedos que vendemos lá embaixo matam mais gente num mês do que os stilettos, desde que foram inventados pelos florentinos. Baker olhou para a delicada lâmina do stiletto que tinha na mão. Lembrou-se de uma coisa. — É o mesmo Cardinalli que foi uma vez campeão de esgrima da Itália? Cesare acenou afirmativamente. — Esse é outro dos desportos antigos de que gosto. Também praticou esgrima alguma vez? — Sim, fiz parte da equipe de esgrima da Universidade. Colocou o stiletto sobre a mesinha do telefone. — Tenho de ir agora. Agradecido pela sua cooperação, Conde Cardinalli. — Lamento não lhe ter podido ser mais útil — respondeu delicadamente Cesare. O stiletto estava ainda sobre a mesinha do telefone quando Miss Martin entrou no escritório, depois de Baker ter saído. Ela olhou para o stiletto e depois para Cesare. — O que é que êle queria? — perguntou com familiaridade. Cesare pegou o stiletto e tornou a colocá-lo na parede. Voltou-se para ela, sorrindo. — Parece que não foi nada sensato ao escolher o itinerário das minhas férias.

Baker recostou-se na cadeira. — Não descobri nada. Sprang sorriu. — Pensou que ficaria sabendo de tudo? — Calculava que não. A única coisa que consegui foi convencer-me a mim próprio. Aquele tipo é o Stiletto, tenho certeza.


— Saber e provar são duas coisas muito diferentes. Baker debruçou-se sobre a secretária e pegou nas várias fotografias de um automóvel espatifado. Colocou-as à frente de Sprang. — Chegaram da Flórida. Sprang examinou-as. — Então? — Veja como a pequena está caída debaixo do volante! Veja como o motor foi empurrado quase para cima do banco da frente! Bem, se Cardinalli estivesse dormindo, como ele disse que estava, com certeza teria ficado esmagado. Onde estavam os pés dele nessa altura? Não no chão, com certeza, pois, nesse caso, teriam ficado presos na hora da batida. — Tenho visto suficientes acidentes de automóvel para saber que tudo é possível. — Sim, mas quase apostaria que Cardinalli tinha os pés em cima do banco, e que saltou quando se deu o choque. — E a moça? Ela estava dirigindo. — A única coisa de que temos certeza, é que ela estava atrás do volante. — Mas como provar? — Ainda não posso. Mas tenho algumas idéias. — Pretende segui-lo? Baker abanou a cabeça. — Não vale a pena. Nos círculos em que êle se move, não saberíamos de nada. Além disso, você bem sabe como o chefe é cuidadoso com pessoas importantes. — Que vai fazer, afinal? Baker sorriu. — A primeira coisa é publicar nos jornais que êle foi interrogado. A seguir, arranjar uma pessoa muito íntima dele e que nos possa informar, realmente, qualquer coisa. — Quem poderia ser? — Uma mulher. Êle é homem de mulheres. Sei de uma que servirá perfeitamente. Boa sociedade... Carros de corrida... Todo o necessário. — Se êle fôr, de fato, o Stiletto, pode ser perigoso para ela. — Ela diz que poderá dar jeito nele — replicou Baker. — Estive examinando o relatório dela e garanto que, se ela não o conseguir, ninguém mais o conseguirá.

11

A festa estava no apogeu quando Cesare entrou na cabina. Ficou à porta, procurando a dona da casa com o olhar. Ela o viu quase ao mesmo tempo em que êle a avistou. Dirigiu-se para êle de mão estendida. — Cesare, meu querido — disse, enquanto êle lhe beijava a mão. — Estou mui-


to satisfeita por ter podido vir. — Mais depressa morreria do que faltaria à sua despedida — disse êle, sorrindo. Ela sorriu também e seus olhos escuros brilharam sob os bastos cabelos grisalhos. O tom da voz dela baixou e tornou-se semelhante à voz que êle ouvira ao telefone há poucas semanas. — Esta cabina fica junto da dele — murmurou. — Há uma porta de ligação entre os dois banheiros. Êle estará a bordo dentro de dez minutos. Cesare não respondeu e ela ergueu a voz ao aproximar-se outro convidado. — E muito obrigada pelas flores. — Foi um prazer, madame — respondeu êle. Ficou a vê-la dirigir-se para os outros convidados. Fora, em tempos passados, uma mulher muito bela, uma das mais famosas na sociedade internacional. O nome dela ainda trazia recordações de festas principescas. Mas agora pertencia a Dom Emilio. Dirigiu-se lentamente para o banheiro. Ouviu-a rir enquanto abria a porta. Quantas iguais a ela estariam ali? Quantas estariam na fronteira entre dois mundos, como êle? Emilio Matteo vestiu o sobretudo por causa do vento gelado que soprava sobre o Hudson, quando saiu do táxi em frente ao cais. Olhou demoradamente para o navio, enquanto os dois detetives saiam e se punham a seu lado. Deu a um deles uma nota para entregar ao motorista. — Por aqui — disse um dos detetives, dirigindo-se para o cais. — Eu conheço o caminho — respondeu Emilio com ar sombrio. Dirigiram-se para o cais e depois para a escada de embarque. O pequeno criado de bordo conduziu-os para o deck da primeira classe. Sons alegres vinham de detrás das portas fechadas, onde se realizavam as festas de despedida de alguns passageiros, o "Itália" devia partir daí a uma hora. O criado abriu uma porta. — Por aqui, signore — disse, fazendo uma reverência. Emilio entrou na suite e os detetives seguiram-no. Havia um pequeno bar a um canto do quarto. O criado perguntou: — Está tudo a gosto do signore? Emilio deu-lhe uma gorjeta. — Ótimo — disse. Matteo sorriu para os detetives. — Só o melhor. Não pensava que eu fosse metido numa dessas horríveis cabinas pagas pelo governo, não é verdade? O detetive também sorriu. — Acho que não. Emilio abriu uma garrafa e serviu-se de bebida. Bebeu-a de um trago. — Ah! — disse êle. — Bom uísque, este. Aquece-nos um pouco depois do vento frio das docas. — Voltou-se para os detetives. — Querem um trago? Os detetives se entreolharam e sorriram. — Se não se importa — disse o mais velho, dirigindo-se para o bar. — Sirvam-se — disse Emilio, empurrando a garrafa para eles. Tirou o sobretudo e colocou-o sobre uma cadeira.


— Acho que estou ficando velho — declarou. — Meus rins já não são o que eram. Vou ao banheiro. Abriu a porta do banheiro. O detetive mais jovem pôs-se a seu lado. Emilio deu um passo atrás. — A idade antes da beleza — disse sarcàsticamente. — Se quer olhar primeiro... O detetive olhou para dentro do banheiro. Depois, recuou com uma expressão tímida. — OK — disse. — Muito obrigado — agradeceu Emilio. Entrou no banheiro e começou a fechar a porta. — Para certas coisas, precisamos de alguma intimidade. A porta fechou-se sobre êle e chegou aos ouvidos dos dois detetives o ruído vindo da festa na sala ao lado. – Parece uma grande festa — disse o mais jovem dos detetives, servindo-se de uma bebida. — Nada como ter dinheiro — replicou o mais velho. — Bom uísque, este — disse o outro, erguendo o copo. — Como diz Matteo, só o melhor — acrescentou com voz amarga. O mais jovem olhou para êle. — Sim — replicou sarcàsticamente. — O crime não compensa.

Emilio dirigiu-se para o lavatório e abriu a torneira. Ficou um momento à escuta. Ouvia as vozes fracas dos detetives. Havia uma porta de ligação com o quarto do lado. Tentou abri-la. Estava fechada. Passou as unhas pela porta, arranhando-a. — Cesare! —- murmurou. Ouviu também um som de unhas a roçarem a porta. Voltou-se rapidamente e abriu o armário dos remédios. Na prateleira de cima estava a chave. Meteu-a na fechadura e abriu a porta do seu lado. Um momento depois, a porta do outro lado se abria também. A porta entreabriu-se e Cesare entrou rapidamente no banheiro, fechando a porta atrás de si. Emilio sorriu. — Dom Cesare! Meu sobrinho! Cesare sorria também. — Dom Emilio! Meu tio! Os dois homens abraçaram-se. — Há quanto tempo! — disse Emilio. — Realmente, há muito tempo — repetiu Cesare. — Você trabalhou bem, meu sobrinho — murmurou Emilio. — Sinto-me orgulhoso. — Mantive o juramento — respondeu Cesare. — Assim foi, e a família vai ficar satisfeita quando souber o que se passou. É tempo de ter um lugar em nosso Conselho, Cesare. Cesare abanou a cabeça. — Fico contente em manter o meu compromisso. Dom Emilio. Não quero nada


da Irmandade. Uma expressão de surpresa apareceu no rosto de Emilio. — Você teria riquezas que nem julga possíveis. — Não preciso dessas riquezas, tenho mais do que o necessário para as minhas necessidades. Emilio abanou a cabeça. — Os Dons tomarão isso como afronta. — Não será assim — afirmou Cesare. — O senhor explicará. Pagarei minha dívida quando fôr chamado a isso, mais nada. — Os outros três homens que se encontravam comigo no Tribunal já pediram sua morte ao Conselho! — disse Emilio. — Sentem que você representa um perigo para eles. E leram no jornal que o interrogaram. — A polícia não sabe de nada — respondeu Cesare. — Mas eles continuam preocupados. — Explique ao Conselho que não há nada a recear. Não quero nada de nenhum deles. Emilio abanou a cabeça. — Seja como quiser, meu sobrinho. Mas até que receba notícias minhas, tome cuidado. Eles são homens perigosos. — Serei cuidadoso, Dom Emilio — disse Cesare, sorrindo. — E, para seu próprio bem, espero que eles sejam cuidadosos também — acrescentou Cesare, continuando a sorrir. — Avisarei a eles — afirmou Emilio. Cesare fêz um gesto de entendimento. — E quando voltarei a receber notícias suas? — perguntou. — No mês que vem — respondeu Emilio. — Avisarei você da decisão do Conselho durante a corrida dos carros-esporte no México. Você disputará com a sua Ferrari. Seu mecânico ficará detido na Itália. Na véspera da corrida quando você chegar à Cidade do México, receberá um telegrama dizendo que êle está doente. Contrate então um que mandarei. Haverá novas instruções. Cesare fêz um novo gesto de assentimento. — Se houver mudanças em meus planos, deixarei recado no restaurante do Quarter Moon, em Harlem, como já temos feito. Emilio sorriu. — Entendido. — Abraçou novamente Cesare. — Morrerei por você — disse. Cesare olhou para êle durante um instante, depois repetiu. — Morrerei por você. — Voltou-se rapidamente e saiu. Emilio ouviu-o dar a volta à chave. Fechou a porta do seu lado e voltou a pôr a chave no armário dos remédios. Depois fechou a torneira e dirigiu-se para o quarto, abanando a cabeça. Cesare assinara a sua sentença de morte, ao recusar-se a futuras alianças com a Irmandade. Agora até êle próprio teria de pedir a morte de Cesare. Era pena que não tivesse tempo para avisar os outros da sua mudança de opinião.

Há um restaurante em Manhattan, na Lexington Avenue, onde os bifes têm a re-


putação de serem os melhores do mundo e o espaguete ainda é melhor do que na Itália. Mas, claro, é natural que os preços sejam tão caros e qualquer pessoa não possa, sequer, comer pão com manteiga nesse restaurante. Já se vê que os únicos clientes capazes de freqüentar esse restaurante são pessoas de largos rendimentos ou ordenados excepcionais. Big Dutch meteu na boca um grande bocado do precioso bife e pôs-se a mastigálo. Um fio de molho começou a escorrer-lhe pelos cantos da boca e êle o limpou com o pão, metendo-o logo a seguir também na boca ao mesmo tempo que a carne. Mastigou durante um certo tempo e depois disse para os dois companheiros: — Não me interessa o que vocês pensam — resmungou. — O que penso é que devemos dar cabo dele. Allie Fargo olhou para êle. — Nem sequer sabemos se é êle. Emilio nunca nos disse. Big Dutch engoliu o que tinha na boca. — Que diferença faz? — perguntou. — Não temos tempo para tratar disso agora. Os jornais dizem que o F.B.I. já o interrogou. O que nos acontecerá se êle "cantar" ? Dandy Nick olhou com fastio para o prato. Aquele excesso de comida era mal gasto com êle: não comia muito. — Não gosto disso — disse êle. — Emilio disse que ficássemos quietos e esperássemos ordens da Itália. Êle resolverá com Luke e Joe. — Emilio disse, Emilio disse... — Big Dutch observou acremente, com a boca cheia de comida. Engoliu rapidamente e continuou: — Estou farto do que Emilio diz. Ficam por lá flanando enquanto nós, aqui, arriscamos o pescoço! Pensam que são os donos só porque começaram o negócio! Quase inconscientemente, Dandy Nick olhou à sua volta para ver se tinham sido ouvidos. — Calma! — pediu num murmúrio. — Essa espécie de conversa só pode chamar a atenção sobre nós. Big Dutch olhou para êle, desconfiado. — Como sabe que eles não estão tramando nada contra nós ? Sabe como são unidos! Dandy Nick estava silencioso. Olhou para Allie. Este comia com apetite, olhando para o prato. Passado um momento, Allie olhou para eles, pousando cuidadosamente o garfo e a faca sobre o prato. — Este é um caso que exige reflexão — disse. — Não se trata de nenhum dos cães de fila dos seus falsos sindicatos, Big Dutch. Este é um tipo importante. — Sim — acrescentou Dandy Nick. — E se êle não fôr o Stiletto, continuaremos em maus lençóis. De qualquer modo teremos que explicar a Emilio. Big Dutch continuou a comer. No entanto, era tempo de se mexerem. Os italianos dominavam há muito tempo. — Era hora de se desligarem da Máfia. A organização estava ali. Encontravam-se ali o dinheiro, o trabalho. O que podiam eles fazer a três mil milhas de distância, se ninguém quisesse trabalhar com eles? — Repito que não devemos esperar. Damos cabo dele. — Não olhou para os outros. Comia sempre. De certo modo, foi mau que êle estivesse preso quando


soltaram Roger Touny. Big Dutch já tinha marcado uma reunião. Os rapazes teriam acompanhado Roger contra a Máfia. O apetite de Dandy Nick tinha desaparecido completamente. Empurrou o prato. Sabia o que Big Dutch estava pensando. Olhou para Allie. Pela maneira como Allie comia, calculava que êle também sabia. Aquilo era mais do que abater apenas um tipo. Seria o princípio de uma revolução. E sentia-se velho demais para começar outra guerra. — O que diríamos a Emilio? — perguntou, tentando deter a decisão. Os olhos de Big Dutch faiscaram por um momento, depois voltaram-se novamente para a comida. — Pensaremos em alguma coisa — disse. Allie falou, afinal: — Não sei: seja o que fizeram ao Touny. Esperaram por êle durante vinte e cinco anos. A voz de Big Dutch estava cheia de ressentimento. — Touny esperou muito. Devia ter agido imediatamente. As coisas teriam sido diferentes. Eles tinham medo dele. Lembra-se do que êle fêz ao Capone? — Sim, mas apanharam-no, não apanharam? — Mas veja como – retorquiu Big Dutch. — Como uns amadores. Os garotos estavam tão excitados que até deixaram vivo o policial. É como esse Stiletto. Não é um dos nossos. Temos de proteger os nossos negócios. Não há um só homem importante no país que não esteja do nosso lado. Pousou o garfo e a faca e pegou com a mão no osso de costeleta. — É hora de sairmos disto. Devemos atacar, digo eu. Allie olhou para Dandy Nick e depois para Big Dutch. — Não temos tempo a perder. Pois bem... despachemo-lo! — disse. Voltaram-se para Dandy Nick. Êle também já tinha assentado as idéias. A percentagem maior era a favor de atacarem. — Pois bem, ataquemos — concordou. Big Dutch sorriu. Era apenas o primeiro passo, mas tinha-o dado e os outros o tinham seguido. Stiletto era apenas um símbolo. A Máfia é que era importante. Era hora de o negócio ficar para os americanos, pois era a eles que pertencia. Já estavam fazendo as contas. As somas faziam-nos perder a cabeça. — Não sei o que vocês vão fazer, rapazes, mas é a primeira noite que a velhota me deixa sair de casa desde que saí da cadeia, e vou já para a Jenny. Os outros não responderam e êle voltou-se e saiu do restaurante. Depois que se afastou, os outros dois se entreolharam. — Café — disse Dandy Nick ao garçom. Voltando-se novamente para Allie, quando o criado saiu, pensou que era tempo de fazerem uma apólice de seguro. Tinham que mandar um recado a Emilio.

12


A sessão semanal do Clube de Esgrima estava no auge do movimento no terceiro andar do New York Athletic Club, no Central Park. No pequeno ginásio ecoava o barulho das espadas cruzadas, enquanto os homens, de camisa branca, dançavam para trás e para diante, com as suas grotescas máscaras negras escondendo-lhes o rosto. O florete de Cesare faiscou à luz branca da sala e tocou no pequeno coração vermelho pregado na camisa branca de seu oponente. — Touché — exclamou aquele, dando um passo para trás e erguendo a espada. Cesare tirou a máscara. Sorriu. — Muito bem, Hank. Mas deve ter cuidado com o pulso. Está muito preso. O adversário ergueu a máscara. Respirava ofegantemente. Sorriu para Cesare. — Vai entrar no torneio, no mês que vem, Cesare? Cesare abanou a cabeça. — Acho que não. Devo participar das corridas do México e não voltarei a tempo. Afinal de contas, aquilo é o meu negócio, não é verdade? — É pena — disse o outro, com pesar. — Sem você, nossa equipe não terá a menor chance. De qualquer modo, obrigado pela lição. Cesare sorriu. — Tive muito prazer. — Olhou para o pequeno grupo de espectadores. — Quem vem agora? — perguntou. — Temos de esperar que o Fortini chegue. Nós não somos para a sua classe. — Está bem — disse Cesare, começando a tirar a máscara. Ouviu-se uma voz vinda da porta de entrada. — Quer dar-me uma oportunidade? Cesare voltou-se, Baker estava à porta, de uniforme, sorrindo. — Ah, senhor Baker — disse Cesare, sem demonstrar surpresa. — Claro que sim. Baker dirigiu-se para êle, tirando um florete da prateleira. Fê-lo cortar o ar, exercitando o pulso. Depois mudou o florete para a mão esquerda e estendeu-lhe a mão direita. O seu aperto de mão era firme. — Conde Cardinalli — disse —, quando soube que era sócio deste clube, não consegui resistir à tentação de cruzar espada com um dos maiores esgrimistas do nosso tempo. Cesare sorriu lentamente. — Sinto-me muito honrado. É muito amável. Quererá uns minutos para aquecer? Baker abanou negativamente a cabeça. — Não, obrigado. Espero apenas passar uns instantes interessantes. - Tenho a certeza de que os teremos — e Cesare sorriu novamente. Dirigiram-se para o espaço aberto e tomaram posição. — Não sabia que era sócio deste clube — disse. Baker retribuiu o sorriso. — Na verdade, não tenho muito tempo. Meu trabalho mantém-me muito ocupado. — Puxou a máscara para baixo. — Pronto ? Cesare acenou afirmativamente. Abotoou a máscara. Os floretes cruzaram-se no


ar. — En garde! — Disse Baker. Baker lançou-se para a frente e Cesare aparou o golpe e deu um passo atrás. Viu logo que Baker não era um vulgar amador. Sorriu sob a máscara. Esperava que Baker atacasse outra vez. Aquele encontro podia, afinal, vir a ser divertido. As pessoas começaram a aproximar-se de todos os cantos do ginásio. Havia uma curiosa tensão na sala. Baker continuava a atirar-se para a frente com uma furiosa concentração. O florete de Cesare faiscava, enquanto êle aparava ataque sobre ataque. Lentamente, passo a passo, começou a recuar. Os espectadores começaram a ficar perturbados. Um murmúrio percorria a sala. Baker continuava a carregar para a frente. Começava a sentir-se confiante. Cardinalli não parecia tão bom como tinha reputação de ser. Baker lançou-se com toda a força contra o homem que se encontrava à sua frente. Cesare não se moveu. Parecia a Baker que estava fazendo pressão sobre uma mola de aço. De repente, compreendeu que Cardinalli estivera, apenas, brincando com êle. Nesse momento, Cesare lançou-se ao ataque. Baker deu uns passos para trás e refez-se a tempo de aparar uma estocada simples. Atirou-se para a frente, numa finta, e depois virou rapidamente o florete. Cesare já previra isso. Cesare ria. — Muito bem. — A voz dele era condescendente por detrás da máscara. — Mestre Antonelli? — Sim — respondeu Baker, observando cuidadosamente Cardinalli. — Roma, 1951. — Meus cumprimentos — disse Cesare, começando a atacar. — Signor Antonelli é muito cuidadoso com seus alunos. Só aceita os melhores. Baker defendia-se a custo. Não tinha, sequer, oportunidade de tentar o ataque. — Parece que não estive tempo suficiente com êle — conseguiu dizer apressadamente. Cesare riu novamente. — A espada precisa de muito treino. E nos nossos tempos, como já disse uma vez, há outras armas muito mais em moda. O florete de Cesare parecia subitamente ter vida própria. Baker estava sem fôlego. Seu florete parecia pesar uma tonelada. Cesare sentiu o cansaço dele e diminuiu o ataque. Baker sentia a transpiração correr-lhe pelo rosto, sob a máscara. Cada movimento era um esforço. Cesare movia-se com agilidade e respirava facilmente. Uma dúzia de vezes teve oportunidade de tocá-lo, sem contudo o fazer. Se continuasse durante muito tempo. Baker acabaria por ficar estendido no chão, exausto. A ira crescente que sentia deu-lhe novas forças. Reuniu-as todas em um último ataque. Aparou a estocada de Cesare e lançou-se para a frente. — Touché — a palavra partira dos espectadores. Baker parou. O florete de Cesare ficara preso no seu coração. Tinha sido tão rápido que êle nem vira. Baixou a arma e desapertou a máscara.


— O senhor é bom demais para mim, Conde Cardinalli — Disse, respirando com dificuldade. Cesare cumprimentou-o com o florete. — Minha sorte é que o senhor não pratique mais — retorquiu, amável. — Está sendo amável — disse Baker, forçando um sorriso. — Talvez me queira acompanhar, senhor Baker. Vamos tomar alguma coisa? — convidou Cesare. — Obrigado — respondeu Baker, depressa. — Realmente, preciso beber alguma coisa.

Estavam sentados na sala, diante da lareira. As longas pernas de Cesare estendiam-se à sua frente! Olhou para Baker e ergueu o copo, dizendo: — Não veio apenas para esgrimir, Sr. Baker! Baker fitou-o. Em certas coisas, Cardinalli não era muito europeu. Ia sempre direto ao que queria dizer. — É verdade, Conde Cardinalli; vim também para avisá-lo e oferecer-lhe auxílio. Cesare ergueu uma sobrancelha. — É muito amável da sua parte, mas de que preciso ser avisado? — Soube que sua vida está ameaçada — disse Baker. Cesare começou a rir — Que melodramático! — Não é engraçado — disse Baker. — Certos homens querem matá-lo. — Quem são? Baker olhou para êle: — Big Dutch, Allie Fargo e Dandy Nick. O rosto de Cesare continuou impassível. — Quem são? — perguntou. — Os réus daquele julgamento em que as testemunhas foram assassinadas. Eles pensam que o senhor seja o Stiletto. O riso de Cesare foi claro e autêntico. — Nesse caso, por que iriam querer matar-me? Se fui eu que salvei suas miseráveis vidas? Baker inclinou-se para a frente. — Por isso mesmo. Eles têm medo do senhor. Pensam que pode voltar-se contra eles. — São estúpidos — disse Cesare, pegando novamente no copo. — Mas são perigosos — disse Baker sinceramente. — E não há proteção contra uma bala nas costas. Cesare pôs-se de pé. — Sei tomar conta de mim — disse. — Sobrevivi a piores perigos durante a guerra. Deve saber muito bem disso. Segundo me dizem, o seu Departamento é muito eficiente. Baker fêz um gesto de concordância.


— Sim, mas, em todo caso, gostaríamos de ajudá-lo. A voz de Cesare tornou-se fria. — Já me ajudaram no que podiam. Talvez, se não gostassem tanto de publicidade nos jornais, esses homens nem sequer saberiam da minha existência. — Lamentamos isso, Conde Cardinalli. Não sei como é que os jornais tiveram conhecimento da nossa conversa, mas, se tiver algum aborrecimento, não hesite em telefonar-nos. — Estendeu-lhe a mão. Cesare apertou-a. — Obrigado, Sr. Baker. Mas não creio que seja necessário.

Cesare abriu a porta e entrou no pequeno vestíbulo do seu apartamento. Começou a tirar o sobretudo. — Tonio! — chamou. Deixou-se ficar ali um momento. Colocou o sobretudo em cima de uma cadeira. Atravessou o vestíbulo e abriu a porta da cozinha. — Tonio! — chamou outra vez. Não obteve resposta. Sacudindo a cabeça, dirigiu-se para a sala e depois para o quarto. Precisava fazer qualquer coisa com aquele rapaz, apesar de sobrinho de Gio. Um criado não devia ser assim. Muitas vezes, Tonio não estava em casa quando êle chegava. A América o estragara. Abriu a porta e entrou no quarto. Acendeu a luz e começou a encaminhar-se para o banheiro. De repente, parou. Lembrou-se do aviso de Baker. Mexeu a mão e o stiletto apareceu nela. Silenciosamente, deu um passo para a porta e abriu-a. Uma moça acabava de sair do chuveiro com uma toalha na mão. Ficou a olhar para êle com uma expressão espantada. — Cesare! — Ileana! — a voz dele mostrava tanta surpresa quanto a dela. — Que está fazendo aqui ? Julgava-a na Califórnia! Ileana levou a toalha ao peito. — Tomava uma ducha — disse. Seus olhos dirigiram-se para o stiletto que êle tinha na mão. — O que está fazendo com essa faca? Quem poderia estar no banheiro da sua casa? Cesare soltou o stiletto e êle desapareceu na sua manga. Ileana correu para êle, rodeou-lhe o pescoço com os braços úmidos, beijou-o, agarrando a toalha com a outra mão. — Oh! Cesare! Preciso de sua ajuda! Cesare olhou-a cèticamente. Ileana não costumava precisar de auxílio. — Que foi que aconteceu ao rico texano ? -— perguntou êle. Ileana fitou-o. — Está zangado comigo? — perguntou. — Já sei. Foi porque não esperei por você em Monte Carlo! Cesare começou a sorrir. — Você não respondeu à minha pergunta — disse com suavidade. Ela voltou-se e sentou-se no banco da penteadeira. Olhou-o através do espelho. — Seja amável, Cesare, e enxugue-me as costas. Passei por uma terrível experi-


ência. Êle pegou na toalha. — Mas você não me contou nada sobre o texano! Ela abriu muito os olhos. — Não quero nem ouvir falar nele. Foi demasiado terrível. Não me acha mais magra, Cesare? Êle sorria. Começou a dar-lhe pancadinhas nas costas com a toalha. — Você está bem. Que aconteceu ? Ileana fechou os olhos durante um momento. — Sinto-me aliviada — disse. — Tinha certeza de que estava mais magra. — Abriu ainda mais os olhos e voltou-se para Cesare. — O texano era casado. — Você sabia disso! — disse êle, sorrindo. — Claro, não sou nenhuma criança. Mas a mulher dele é terrível. Nada compreensiva. Realmente, muito provinciana. Foi queixar-se de mim ao Departamento de Imigração. Como você sabe, esses homens são muito estúpidos. Cesare abanou lentamente a cabeça, sempre sorrindo. — Eles não compreenderam — continuou ela — como é que eu tinha podido viver oito anos neste país, sem dinheiro e sem trabalho. Disseram que, se eu não tivesse um emprego ou qualquer fonte de renda, me deportariam, acusando-me de torpeza moral. Cesare largou a toalha. — Qual foi a sua explicação? — O que havia de dizer? Disse que trabalhava para você. Eles não acreditaram quando eu lhes disse que precisava de um emprego para viver. Quer dar-me um emprego, Cesare? Cesare olhou para ela. — Não sei — disse sorrindo. — Que sabe fazer? Não sabe estenografia, não sabe escrever a máquina. De que me servirá? Ela levantou-se da cadeira e virou-se para êle. Continuava a segurar precariamente a toalha. — Não está na indústria automobilística? Cesare acenou afirmativamente. Ela se aproximou mais. — Então, deve haver qualquer coisa que eu possa fazer. Já tive um Rolls Royce. Êle começou a rir. Estendeu-lhe os braços e ela meteu-se dentro deles. Êle a beijou. — Está bem, veremos o que podemos fazer. — Fará isso, Cesare? — A voz dela estava excitada. — Você é maravilhoso. — Levantou as mãos para lhe afagar o rosto. — Não o aborrecerei em nada, Cesare, prometo. Só preciso de trabalhar durante um certo tempo, para ter uma carteira profissional, creio que é assim que eles dizem. É isso que é preciso para eles se convencerem de que sou legítima. Os braços dele apertaram-se à volta do corpo dela. — Você é legítima, está bem — disse rindo. — Pode dizer-lhes que conheci seus pais.


Ela o olhou para ver se êle quereria dizer mais alguma coisa com aquilo, mas os olhos de Cesare riam também. Sentiu um aperto na garganta, e, pela primeira vez depois de muito tempo, mesmo enquanto êle a beijava, pensou nos pais. Lembrava-se da expressão do pai na noite em que abrira a porta do quarto dela e os vira todos na cama, juntos. A mãe, ela e o rico americano.

13

A mãe dela era inglesa e tinha apenas dezessete anos quando se casara com um jovem romeno, Barão de Bronczki. Os jornais da época tinham chamado o romance de conto de fadas, mas, menos de um ano depois e já com Ileana nascida, houvera uma revolução e o conto de fadas acabara. A vida trata muitas vezes assim o romance. Não tivera muitas oportunidades de conhecer os pais, enquanto criança. Tinha uma vaga idéia de que a mãe havia sido uma mulher muito bonita e o pai um homem encantador, mas passara a maior parte do tempo em colégios, longe deles. Primeiro, estivera numa escola na Inglaterra. Fora para lá com cinco anos apenas, no princípio da guerra. O pai fazia parte do exército britânico, e a mãe, metida no frenesi social do tempo da guerra, não tinha tempo para pensar nela. Depois de finda a guerra, mudaram-na para uma escola na Suíça. A desculpa era que o pai, quase inválido por causa dos seus inúmeros ferimentos, estaria demasiado ocupado na luta para reconquistar suas terras, para se poder fixar com a família num lugar permanente. Nunca lhe ocorreu perguntar à mãe o que pensava de tudo «aquilo. A mãe continuava sempre muito ocupada com os amigos e as atividades sociais. Além disso, havia qualquer coisa na mãe que fazia com que Ileana se sentisse muito desajeitada e deslocada para se atrever a falar-lhe. Ileana tinha quase quatorze anos, nessa época, e a escola da Suíça era muito diferente da Inglaterra. Na Inglaterra interessavam-se mais pelo estudo, na Suíça, pela educação social. A escola estava cheia de moças ricas, da América e da Inglaterra, para adquirirem esse polimento final que não se podia arranjar em mais nenhum outro lugar do mundo. Ileana aprendera a fazer esqui, a nadar e a cavalgar. Aprendera também a saber vestir-se, a dançar e a conversar. Quando completou dezesseis anos, começou a notar-se a promessa da sua beleza. A pele e os olhos eram de uma inglesa, mas a figura e a graça vinham-lhe do pai. Do outro lado do lago, onde ficava sua escola, havia outra escola semelhante, para rapazes. As duas escolas trabalhavam em conjunto, pois cada uma era o complemento do trabalho da outra. Houvera um passeio no verão em que ela completara os dezesseis anos. O par de Ileana era um rapaz alto e moreno, herdeiro de um trono do Médio Oriente. Tinha um nome comprido de que ninguém conseguira recordar-se e todos os chamavam de Ab, por abreviatura de Abdul. Tinha mais um ano do que ela. Era moreno, de feições aquilinas, de olhos azuis e simpático. A canoa em que iam conduzira-os para uma


pequena ilha onde se encontravam sozinhos. Estavam deitados ao sol, de roupa de banho sobre a areia macia. Êle chegou-se mais para junto dela e ficou a olhá-la fixamente. Ela olhou-o nos olhos e sorriu. O rosto dele estava sério, quando se inclinou sobre ela e a beijou. Ela fechou os olhos e rodeou-lhe o pescoço com um braço. Sentia-se bem. A areia, e o sol, e aquele calor na boca. Sentiu-o desapertar as alças do maiô e passarlhe a mão pelo seio nu. Sentia dentro de si um prazer de excitação. Teve um risco de felicidade. Êle levantou a cabeça e olhou-a, ainda sério. Ela tinha os seios duros e os bicos excitados. Acariciou-os lentamente com a ponta dos dedos e os beijou. Ela sorriu-lhe. — Gosto disso — disse. — Você ainda é virgem ? — perguntou êle. Ela fêz um gesto afirmativo, silenciosamente. — Por quê? — perguntou êle. — Por causa da sua religião? — Não — respondeu ela. — Não sei por quê. — Na minha escola eles dizem que você é a "Fria", — disse êle. — Nenhuma das de sua classe é virgem. — Isso é idiota — replicou ela, sentindo o coração começar a bater desordenadamente. Êle a fitou por um momento. — Penso que já é tempo, não acha? Ela fêz um gesto de concordância. Êle pôs-se de pé. — Já volto — disse, dirigindo-se para a canoa. Ela despiu o maiô e sentiu o calor do sol sobre o corpo nu. Depois voltou a cabeça e observou o que fazia o companheiro. Êle tirava algo do bolso das calças e dirigia-se para ela. Tinha qualquer coisa na mão. — O que é isso? Êle abriu a mão para que ela visse o que êle trazia. — É para você não ficar grávida — explicou. — Oh! — disse ela sem surpresa. Tudo lhe tinha sido cuidadosamente explicado na escola. Fazia parte da aprendizagem daqueles retoques finais na instrução de uma jovem de sociedade. Ela voltou o rosto, enquanto êle despia o calção. Êle ajoelhou-se na areia ao lado dela e ela voltou-se de novo para êle. Fitou-o intensamente. A voz dela demonstrava algum espanto. — Você é bonito. Bonito e forte. Não sabia que um homem podia ser assim tão bonito. — Os homens são naturalmente mais bonitos do que as mulheres — afirmou êle. Inclinou-se para a beijar. — Mas você também é muito bonita. Ela o atraiu para si, num súbito impulso de desejo. Inexplicavelmente começou a tremer. Êle ergueu a cabeça, pensando que ela pudesse estar assustada. — Tentarei não magoá-la — disse.


— Você não me magoará — exclamou, compreendendo sua capacidade de sentir o prazer. — Eu também sou forte! E era. Muito mais forte do que julgava. Foi preciso um médico em Lausanne para completar sua defloração, na mesa cirúrgica.

Tinha dezoito, anos quando apareceu à porta do apartamento dos Bronczki, em Paris. Sua educação estava tão completa como a de qualquer menina da escola e, de alguma maneira, ultrapassara as outras estudantes, porque era mais bonita e mais inteligente. Tocou a campainha e esperou. A mãe abriu a porta e olhou-a sem a reconhecer. — Que deseja? — perguntou no tom de voz que usava para criados e inferiores. Ileana teve um meio sorriso. Não esperava muito mais da mãe. — Olá, mãe! — disse em romeno. Uma expressão de surpresa apareceu no semblante da mãe. — Você! — disse numa voz chocada. — Sim, mamãe. Posso entrar? Corando, a mãe recuou. — Não a esperava senão na próxima semana. Ileana pegou a mala e entrou no apartamento. — Mandei um telegrama. Não o recebeu? A mãe fechou a porta. — Um telegrama ? oh, sim! — foi a vaga resposta. — Seu pai falou nisso antes de partir em viagem de negócios. Ileana teve uma sensação de desapontamento. — Papai não está? — Voltará dentro de poucos dias — disse rapidamente a mãe. — Foi tratar de qualquer coisa referente às propriedades. — Reparou finalmente em Ileana e disse: — Você está mais alta do que eu! — Já cresci o que tinha de crescer, mamãe! Não sou mais criança. A voz da mãe mostrava certa irritação. — Fale francês, pelo amor de Deus, Ileana! Nunca pude entender esse horrível idioma. — Está bem, mamãe -— respondeu Ileana, em francês. — Agora, sim — exclamou a mãe. — Deixe-me vê-la melhor. Ileana manteve-se muito quieta, enquanto a mãe andava à sua volta, atentamente. Tinha a sensação de ser um potro em leilão. — Você não estará vestida de maneira a parecer mais velha do que é, querida? — Tenho dezoito anos, mamãe! Que esperava que eu vestisse? Saia de pregas e blusa branca? — Não seja malcriada, Ileana. Estou tentando habituar-me à idéia de que tenho uma filha crescida. Não pareço muito mais velha do que você. Podemos passar por irmãs. Ileana olhou para a mãe. De certo modo, tinha razão. Ela conseguira manter uma aparência de juventude. Não parecia ter trinta e seis anos. — Sim, mamãe -— respondeu calmamente.


— Pare de me chamar de mamãe — resmungou esta. — Isso não se usa mais. Se precisa chamar-me de alguma coisa, chame-me pelo meu nome, ou melhor, chameme "Dearest", que é como seu pai me chama. Aliás, todos agora me chamam "Dearest". — Sim... "Dearest" — concordou Ileana. A mãe sorriu. — Bem, assim está melhor. Agora, vou mostrar o seu quarto. Ileana seguiu a mãe pelo comprido corredor até um pequeno aposento ao lado da cozinha. Ninguém precisava lhe dizer que era um quarto de criada. O mobiliário mostrava-o claramente. — Ficará muito agradável quando o arrumarmos — disse "Dearest", olhando para Ileana, que estava impassível. — O que é? — perguntou asperamente. — Não gosta do quarto? — É muito pequeno. — O seu guarda-vestidos, na escola, parecia-lhe maior do que o quarto inteiro. — Bem — resmungou a mãe. — Você tem de se contentar com este. Seu pai não é dos homens mais ricos do mundo e é difícil viver com o dinheiro que temos. Voltou-se para sair, e nesse momento a campainha da porta tocou. Parou e depois voltou-se para Ileana com uma expressão espantada. — Oh, quase me esquecia. Tenho um encontro para ir a um cocktail com um americano nosso amigo. Seja boazinha e vá abrir a porta. Diga que estarei pronta dentro de poucos minutos. E faça-me outro favor, querida. Não diga que é minha filha. Diga que é minha irmã e que veio me fazer uma visita. Não estou com vontade de dar muitas explicações, "Dearest" fechou rapidamente a porta, antes que Ileana pudesse responder. Não precisava que ninguém lhe explicasse nada. A escola da Suíça preparara-a bem.

Quando o pai chegou, na semana seguinte, Ileana ficou impressionada com o seu aspecto. A figura, antigamente alta e desempeñada, estava dobrada por causa das dores nas pernas quase imobilizadas. Movia-se lentamente, apoiado às bengalas, e deixou-se cair na cadeira de rodas, logo que entrou em casa. Olhou para a filha, sorrindo enquanto ela se ajoelhava a seus pés. Depois beijou-a e puxou-a para si. — Ileana — disse, — estou satisfeito por vê-la em casa, afinal. Apesar da enfermidade, o barão tinha de passar muito tempo fora de casa. Havia a questão das suas propriedades a resolver, negócios pendentes com o atual regime, que lhe daria uma espécie de indenização pelo que perdera. Regressar era impossível, pois o país fazia agora parte do bloco soviético. Durante as viagens do pai, Ileana estava quase sempre com amigos. Passava o maior tempo possível fora do apartamento e, muitas vezes, saía pela porta dos fundos quando ouvia vozes na sala. Um ano mais tarde, recebeu uma carta de uma amiga de escola, convidando-a a passar o verão em Monte Carlo. O barão estava fora. Ileana precipitou-se para o quarto da mãe, emocionada e feliz. Enquanto a mãe lia, foi dizendo:


— Será maravilhoso sair de Paris durante o calor. A praia, a água... Mal posso acreditar! "Dearest" dobrou a carta e colocou-a em cima da mesa. — Mas você não pode ir. Não temos dinheiro suficiente. — Mas não preciso de dinheiro. Serei hóspede. — Precisaria de vestidos. Claro que não irá como uma maltrapilha. — A roupa que eu trouxe da escola ainda está boa. — Não vê que a moda mudou? Já não se usa o que você trouxe. Quer que todos fiquem sabendo que não podemos dar-lhe um guarda-roupa melhor? Escreva para sua amiga explicando que tem outro compromisso. Use o meu papel de cartas, se quiser. — Não preciso de seu papel! — gritou Ileana, saindo do quarto, prestes a chorar. Ia pelo corredor quando ouviu a campainha da porta. A voz de "Dearest" veio até ela. — Abra a porta, sim? Diga que estarei pronta dentro de poucos minutos. Dominando-se, Ileana foi abrir a porta. Era um dos americanos, amigos de "Dearest". Vinha ligeiramente embriagado. Ileana apresentou-se como irmã de "Dearest". Êle entrou e sentou-se, olhando para ela. — A baronesa não me disse que possuía uma irmã tão bonita. Ileana achou graça naquela tentativa de galanteria tipicamente americana. — Minha irmã não me disse que tinha um amigo tão simpático. Êle riu, satisfeito consigo mesmo. — É pena ter de voltar para casa, esta noite. Poderíamos conhecer-nos melhor. A voz de "Dearest" fêz-se ouvir: — Vai voltar, John? Oh, que pena! Entrou na sala e John fêz força para se pôr de pé. — Fui chamado — disse. — Uma emergência na fábrica. — É pena, realmente! — disse "Dearest", estendendo-lhe a mão. — Também sinto — disse êle com sinceridade. — Jantei três vezes em sua companhia pensando sempre que seria para a próxima vez. Vejo agora que não haverá próxima vez. — Ainda voltará a Paris, não? — perguntou "Dearest". — Sim — respondeu êle — mas quando? — Tornou a sentar-se dizendo: — Tomei alguns uísques antes de subir. "Dearest" riu, aquele riso falso e tilintante que Ileana conhecia tão bem. — Mas para quê? — perguntou. — É que tenho uma coisa muito importante a pedir. "Dearest" voltou-se para Ileana. — Quer nos trazer gelo, querida ? John gosta de muito gelo no seu uísque. Ileana retirou-se da sala. Tirou os cubos de gelo do refrigerador, colocando-os no balde apropriado. Ao voltar à sala encontrou John e a mãe silenciosos. Ao colocar o balde sobre a mesinha, viu uma pilha de notas. Era dinheiro americano. Olhou rapidamente para John. Viu que ainda tinha na mão a carteira. Olhou para a mãe com ar interrogativo. John captou o olhar e explicou:


— Ofereço duzentos e cinqüenta dólares para que ela tome parte na festa. De repente, ela compreendeu o que êle queria dizer. Fugiu para o quarto, as faces afogueadas e fechou a porta atrás de si. Minutos após, "Dearest" entrava no quarto. Tinha uma expressão fria ao dizer: — Por que fugiu da sala? Foi uma atitude infantil. Ileana olhou para a mãe. — Mamãe, você percebeu o que êle estava pedindo? Era nojento. Queria que fôssemos para a cama com êle. — Não me precisa explicar isso — foi a resposta de "Dearest". — Você não vai deitar-se com êle, não é? — perguntou Ileana, incrédula. — Com aquele bêbedo? — Vou, disse calmamente "Dearest". — E você também vai. Ileana ergueu-se. — Não vou! Você não me pode obrigar a isso! — Sabe quanto representam duzentos e cinqüenta dólares? Um milhão e meio de francos no mercado negro. Como pensa que temos vivido até aqui? Da pensão de trinta e duas libras que seu pai recebe? Da renda das propriedades que nunca mais verá? Como pensa que compramos remédios para seu pai? Que vida acha que é a minha, passando os dias com um inválido que já não serve para mais nada como homem? — "Dearest" enfrentava Ileana, furiosa. — Com esse dinheiro, você pode ir ter com seus amigos em Nice, podemos viver durante seis meses, e seu pai pode fazer a operação que tantas vezes tem adiado. Ileana deixou-se cair numa cadeira. — Não farei nada disso! É superior às minhas forças! "Dearest" assumiu um ar de troça. — Que é isso? Não me faça rir. Você não é nenhuma virgem inocente. Sei muito bem o que se passava na sua preciosa escola. Você vai fazer o que digo ou sairei daqui imediatamente e você terá de explicar a seu pai que não vou mais viver com êle. Veremos se êle saberá apreciar sua boa ação, ou melhor, se acreditará em você! — Deu meia volta e deixou o aposento. Ileana ficou sentada por um momento, depois levantou-se, dirigindo-se ao corredor. Tropeçou numa mesa do hall escuro. — É você, Ileana? — perguntou a mãe. — Sim — respondeu. — Quer ir buscar mais gelo? — Sim, "Dearest". — O riso cristalino da mãe seguiu-a até a cozinha.

Um leve ruído fê-la sentar-se na cama. Olhou rapidamente para a mãe. "Dearest" dormia com um braço sobre os olhos para os proteger da luz. O americano estava junto dela, de barriga para baixo, respirando ruidosamente. Ouviu novamente o ruído, como que o rolar de uma cadeira de rodas. Sentiu um aperto no coração e tocou rapidamente na mãe. "Dearest" sentou-se, esfregando os olhos. — O que foi?


— Depressa, mamãe, fuja para o outro quarto! "Dearest" estava completamente desperta. Levantou-se de um salto, mas estacou subitamente. Era tarde demais. A porta do quarto estava sendo empurrada. O barão, sentado na cadeira de rodas, olhava para eles. Tinha o rosto pálido e impassível, mas seus olhos eram frios como o aço. O americano pulou da cama, procurando as calças com as mãos trêmulas. — Eu... eu... posso explicar — tartamudeou. Os lábios do barão mal se moveram. — Saia! O homem saiu do quarto, assustado. Um momento depois ouviram-no bater a porta da rua. O barão ali ficou, olhando para elas. "Dearest" ficara estática, embora trêmula. Ileana, dobrada para a frente, tentava cobrir-se com o lençol. O pai falou, afinal, olhando para a mulher. — Não era bastante que eu fingisse não saber quem você era? Fiz isso porque há tempos a amei e me sentia de certo modo responsável por você. Mas será o seu ódio tão intenso que queira fazer de sua própria filha uma prostituta? Ileana falou: — Papai, fui eu que... O pai olhou para ela. Tinha os olhos mais tristes que ela jamais vira. — Vista-se, Ileana — disse o pai com meiguice — vá para o seu quarto. Ela obedeceu em silêncio, vestindo o roupão e dirigindo-se para a porta. Ao passar pelo pai, êle rolou ligeiramente a cadeira para lhe dar passagem. O braço dela roçou-lhe a mão. Estava fria como o gelo. O barão fechou a porta do quarto. Ileana não atingira ainda o fim do corredor quando ouviu os tiros. Voltou, a correr, abriu a porta e soltou um grito. A mãe estava estendida em cima da cama e o pai estava caído na cadeira. Estavam mortos. A pistola, ainda fumegante, tombara-lhe da mão. O pai não deixou dinheiro, mas a mãe legou-lhe mais de sessenta mil dólares. Ileana pegou o dinheiro, foi para Monte Carlo e perdeu-o todo numa semana. Sentiuse melhor. Mais limpa. Depois, foi visitar a amiga de Nice. Lá encontrara Cesare pela primeira vez. Êle tinha tirado o segundo lugar na corrida anual. Foi também ali que descobrira uma nova maneira de viver. Como acontecia com a mãe, havia sempre um homem rico disposto a pagar os seus caprichos. E quando compreendeu que se tornara semelhante à mãe, o fato não a preocupou muito. A única coisa que importava era o dia em que vivia e o máximo que podia tirar dele.

14

Cesare voltou à sala de estar. — Tonio! — chamou.


Tonio apareceu no arco que separava a sala de jantar, com uma saca de compras na mão. — Excelência — exclamou —, veio muito cedo para casa! Baixou a voz até se tornar num murmúrio confidencial e disse: — A Baronesa Bronczki está a... — Já sei — interrompeu Cesare —, já a vi. Onde estava você? Ouviu-se a voz de Ileana, vinda do quarto: — Mandei buscar umas coisas para o jantar. Achei que seria agradável jantarmos em casa! Cesare virou-se para vê-la. Ileana usava umas calças de veludo preto, muito justas, e uma blusa de lamê dourado. Sapatos igualmente dourados. — Foi você, hein? Mas por que pensou que eu preferia jantar em casa? Como sabia que eu não tinha planos para jantar no "El Morocco"? Ela riu, abanando a cabeça. Seus longos cabelos negros brilharam à luz, quando entrou na sala. — Oh, não, Cesare. Não podemos. Esta noite, não. — Por quê? — Porque eu não posso ir ao "El Morocco" vestida assim. E só tenho esta roupa e um casaco de arminho. — E onde está o resto? Ela ergueu os braços, rodeou-lhe o pescoço e beijou-o no rosto. Depois, foi sentar-se no sofá. — Tonio — chamou Cesare. — Prepare um Martini. Tonio fêz uma reverência. — Pois não, excelência. — E dirigiu-se novamente para a cozinha. Cesare encarou-a. – O que aconteceu ao resto das suas roupas? — Estão na Califórnia — respondeu ela com simplicidade. — Só tenho isto. O gerente do hotel não foi muito compreensivo. Fechou o meu quarto, cortou-me o crédito, mas felizmente eu ainda tinha a passagem de volta, na carteira. Então, fui para o aeroporto e aqui estou. — Sorriu e perguntou: — Não tive sorte ? Antes que Cesare pudesse responder, Tonio apareceu com as bebidas. — O Martini, signore — anunciou. Tonio colocou a cafeteira de prata e as xícaras de porcelana sobre a mesinha em frente do sofá e, curvando-se, voltou para a sala de jantar. Cesare percebeu que retirava a mesa. Ileana inclinou-se para a frente e serviu o café. Êle a observava . De maneira inexplicável, sentia-se bem. Descontraído. Era uma coisa boa que Ileana tinha. Não se precisava fingir diante dela. Compreendiam-se um ao outro. Era a vantagem de serem europeus. Ela entregou-lhe a xícara. — Açúcar? Êle abanou a cabeça e pegou na xícara. Ela bebericou lentamente o café. Sabialhe bem. — Você está muito sossegado esta noite, mon cher — disse ela. — Estou cansado, tenho andado muito ocupado.


Ela aproximou-se e sentou-se junto dele. Acariciou-lhe meigamente a testa. — Está vendo... — disse devagar — foi bom eu ter resolvido jantarmos em casa... Êle fêz um gesto afirmativo, sentindo-se bem com as mãos dela na testa. — Deitemo-nos cedo — continuou ela. — Tratarei de não incomodá-lo. Ficarei bem encolhida na cama. Êle abriu os olhos e fitou-a. — Amanhã trataremos de arranjar um quarto no hotel. — Não será necessário — respondeu ela rapidamente, continuando a acariciarlhe a testa. — Este apartamento é muito confortável e há espaço suficiente para os dois. Êle sorriu. — Os americanos são diferentes, Ileana. É melhor arranjar o quarto para você. Ela beijou-o de leve. — Está bem. Como você quiser. Êle acabou de beber o café. Tonio voltou a entrar na sala. — Deseja mais alguma coisa, excelência? — perguntou. — Não, obrigado, Tonio; boa noite — respondeu Cesare. — Boa noite, excelência. — Voltou-se para Ileana. — Boa noite, baronesa. — Fêz uma reverência. — Boa noite, Tonio. — Ela sorriu ao ver o criado afastar-se. Voltou-se novamente para Cesare e tornou a encher-lhe a xícara de café. — Estou pensando. Não podemos comer em casa todas as noites. Um sorriso apareceu nos lábios dele. Sabia o que se ia passar. Levou a mão à carteira. — É claro. De quanto precisa? Ela ficou pensativa durante um momento. — Já que vou trabalhar para você, é justo que me dê um pequeno adiantamento sobre o meu ordenado, não? — Sim, é costume fazer-se isso. Ela sorriu. — Ótimo! Sinto-me aliviada. Então, dê-me mil; não... dois mil dólares. Depois você tira do meu ordenado. — Dois mil dólares? — êle parecia não acreditar. Ela confirmou, muito séria. — Tentarei fazer com que isso chegue para tudo. Serei econômica. — O que é que vai comprar? — explodiu êle. — A casa Dior? — Não brinque, Cesare. Certamente você não espera que eu saia assim. Êle riu. Era completamente ridículo. Ela não tinha noção nenhuma do valor do dinheiro. — Está bem. Vou fazer um cheque. Dirigiu-se para a pequena secretária e assinou um cheque. Depois entregou-o. — Isso deve chegar. Ela olhou para o cheque. Era de duzentos e cinqüenta dólares. Teve pena dele, de repente. Era um homem tão estranho e torturado. Estendeu a mão e puxou-o para


si. — Obrigada, Cesare — disse meigamente. Os olhos dele estavam sombrios. — Não agradeça — disse. — Afinal de contas, temos que estar juntos. Somos o remanescente de uma sociedade moribunda! — Não fale assim — disse ela. — Faz parecer tudo tão desesperado... E, nos olhos dele, Ileana só viu o vazio da futilidade. Sentia uma pena inexplicável. Beijou-o e deixou cair a mão sobre a perna de Cesare. Sentiu os músculos dele se retesarem. Apertou mais. — Vem — disse com uma espécie de sentimento maternal. Êle era tão torturado como o fora seu pai. — Vou ajudá-lo a descontrair-se. Disso tinha certeza. Ela sabia tudo o que podia fazer para que um homem esquecesse. E para que ela esquecesse também.

Big Dutch, sentado no canto junto à janela do grande carro negro, parado à esquina, viu-o sair do "El Morocco". — Ponha o motor em funcionamento. O porteiro alto fêz sinal a um táxi: Big Dutch viu Ileana dizer qualquer coisa a Cesare. Cesare sorriu e abanou a cabeça para o porteiro. Em seguida, começaram a caminhar lentamente. Praguejou, furioso. Há quatro noites que tentavam resolver o assunto, mas eles sempre se metiam num táxi. — Hoje vão a pé — disse. — Suba a Cinqüenta e Três. Tentaremos apanhá-los em Lexington Avenue. Quando voltaram para o norte, em Lexington Avenue, não os viram. Ileana e Cesare estavam do outro lado da rua e viravam nesse momento para a Rua Cinqüenta e Três, em direção a Park Avenue. Big Dutch viu-os de relance. — Maldição! Escaparam outra vez — praguejou. — Vamos para a Rua Cinqüenta e Cinco e descemos a Park Avenue. Pode ser que os apanhemos ali. O motorista voltou para êle uma cara pálida e ansiosa. — Não gosto disto, patrão — disse com nervosismo. — É melhor tentarmos outra noite. — Virou-se para a frente, a tempo de evitar que se chocassem com um caminhão. O carro entrou veloz na Rua Cinqüenta e Cinco. — Atenção — resmungou Big Dutch. — Já disse que será esta noite! Olhava impacientemente para a rua. Tinha que ser aquela noite. A mulher estava furiosa. Tinha saído todas as noites para resolver aquele assunto e não sabia se ela consentiria que o fizesse nas próximas noites. O sinal abriu e o carro pôs-se novamente em movimento. — Lá vão eles! Cesare e Ileana atravessavam nesse momento diante do pavilhão do Seagram Building. Pararam para apreciar as luzes sobre a fonte. — Vire para a Rua Cinqüenta e Dois — disse Big Dutch, pegando a metralhadora que tinha ao lado. — Vamos acertá-lo, quando descer os degraus!


O grande carro voltou e parou à esquina do lado leste. Big Dutch olhou em torno. A rua estava deserta. Olhou para a entrada do edifício. Cesare e Ileana passeavam agora junto da fonte. Pegou a metralhadora e apontou-a para eles. Seria fácil. Sorriu. Naqueles tempos, se queria um trabalhinho bem feito, tinha que o fazer êle mesmo. Não valia a pena confiar nos tipos mais novos. Não davam atenção suficiente aos negócios. Mais um momento e o par estaria justamente onde êle queria que estivesse. Cesare e Ileana chegaram ao alto dos degrau. Cesare estava na mira. – Agora! — gritou, puxando o gatinho. O motorista carregou ao acelerador e o motor trovejou, ao mesmo tempo que o tiro partia. A pistola-metralhadora disparou duas vezes e enguiçou. À luz do edifício, viu Cesare virar-se para vê-lo. O carro pôs-se lentamente em movimento enquanto êle tentava desesperadamente desenguiçar a metralhadora. Olhou de relance para o edifício e viu Cesare puxar a moça para dentro da fonte e mergulhar atrás dela. Já não estavam ao seu alcance. Furioso, atirou a arma no assento. O motorista voltou para a Terceira Avenida. — Para onde vamos, patrão? — perguntou, quase alegremente. — Para o escritório do Sindicato — disse Big Dutch. Enquanto falava, ouviu um estampido e levou a mão à pistola que tinha sob o casaco. Quase imediatamente o grande carro começou a tremer. — Pneu furado, patrão — anunciou o motorista. — Mais nada? — resmungou Big Dutch, saindo do carro e entrando num táxi que passava. Não valia mais a pena. Há noites em que nada corre bem, pensou.

15

— Está bem? — perguntou Cesare, retirando-a, pingando, de dentro da fonte. Os olhos dela estavam muito abertos e assustados. — Cesare, aqueles homens atiraram em você ? — perguntou. Êle olhou em torno. Havia pessoas saindo do edifício. — Não diga nada — disse êle rapidamente, correndo para a esquina e chamando um táxi. — Para o Towers — disse êle ao motorista. Depois, voltou-se para ela. — Está bem ? — perguntou novamente. Ela ainda estava espantada. — Estou bem — respondeu automaticamente. Olhou para si mesma. — O meu vestido novo — disse — ficou estragado! — Não se queixe — disse êle. Tivemos sorte. Ela o olhou com maior compreensão. — Queriam matá-lo? — exclamou. — Não sei — respondeu sarcàsticamente. — Não tive tempo para perguntar.


Ela começou a tremer. Êle tirou o casaco e pô-lo nos ombros dela. Os olhos do homem estavam frios e coléricos. — Não quero que ninguém saiba disso, compreende? Ninguém !... — Compreendo — respondeu ela, tentando evitar que os dentes batessem. A mão dela procurou a dele e disse: — Talvez esteja em pior situação do que eu, amigo... O táxi parou diante do hotel e eles saltaram. O porteiro olhou com curiosidade para Ileana, que entrava no hotel, enquanto Cesare pagava a corrida. Meteu uma nota de vinte dólares na mão do homem, de maneira que êle a visse bem e disse: — Você nunca nos trouxe aqui, ouviu? A nota desapareceu na mão do motorista. — Nem sequer entraram no meu carro — concordou este, pondo o carro em movimento. Cesare abriu a porta do quarto dela, depois recuou para deixá-la passar. — Vista uma roupa seca. Ela hesitou, à entrada. — Será melhor eu ir com você. Tenho medo de ficar sozinha, esta noite. — Não — disse êle, apressadamente. Depois olhou para ela. Podia ser uma boa idéia passarem a noite juntos. — Deixe-me mudar de roupa, também. Voltarei daqui a pouco.

Big Dutch estava em seu escritório vazio e olhava para a garrafa de uísque que tinha em cima da mesa. Pegou-a e encheu outro copo. Bebeu de um trago e sentiu o líquido correr-lhe pela garganta. Talvez os outros tivessem razão. Êle era um homem importante demais para aqueles trabalhos. Era melhor deixá-lo para outros que, apesar de não serem tão bons, tinham menos a perder. Com nostalgia, pensou em sua juventude. Bons tempos. Se alguém os atraiçoava, tratavam-lhe da saúde. Não tinham que esperar por autorização de Conselhos. Lembrava-se de uma vez em que o velho Lep os chamara, a êle e a Sam Vanicola, e lhes dissera: — Quero que vocês vão a Monticello e queimem Varsity Vic. Está ficando importante demais. — O.K., Lep — eles tinham respondido. Depois foram ao bar buscar seis garrafas de uísque, para lhes fazer companhia durante a viagem. Quando saíram, começaram a discutir por causa do carro em que iriam. Êle não gostava do "Chevy" de Sam e este, por seu lado, detestava o seu "Jeewett". Então, optaram por uma solução de conciliação e resolveram servir-se de um grande "Pierce", que se encontrava parado diante de uma das mansões de Brooklyn Heights. Nesse tempo, a viagem demorava quase cinco horas, e eram duas horas da manhã quando pararam diante da casa de Varsity Vic. Tinham ainda três garrafas de uísque no carro.


Haviam já saltado e inspiravam profundamente. — Este ar é muito diferente do da cidade. Mais fresco. É o lugar ideal para se viver. Lembrava-se, ainda, das folhas a estalarem debaixo dos seus pés quando se dirigiram para dentro. O bar continuava cheio e o número de variedades estava no auge. Viu as pequenas no palco bamboleando-se furiosamente com o Black Bottom. — Aquela, a terceira a contar do fim, estava mesmo a calhar — dissera. — Não temos tempo, hoje — replicara Sam. Estamos de serviço. Vamos tomar qualquer coisa. — Do especial — pedira Sam ao barman. O homem pusera a garrafa diante deles. — O que os traz da cidade a estas horas? — perguntara. — Viemos dar um passeio. Está muito calor. — Aqui também está — respondera o homem. — Muito movimento, hem? — É bom e mau — dissera o homem. — Vic está por aqui ? — perguntara Sam, como por acaso. — Ainda não o vi esta noite — replicara o barman, também com ar descuidado. O número tinha acabado e as moças passavam agora por perto, a caminho dos camarins. Êle se tinha inclinado e beliscado o peito de uma delas. — Atrevido — protestara ela, sorrindo. — Posso arranjar-lhe isso — dissera então o barman, olhando significativamente para êle. — Outro dia — respondera, acompanhando a pequena com o olhar. Voltara-se para Sam e dirigiram-se ambos para o escritório do gerente. O barman inclinara-se para apertar um botão, que servia de aviso lá para dentro. — Se eu fosse você, não tocaria esse botão. O homem endireitara-se e começara a polir o balcão. — Não tenho nada com isso. Sou apenas o homem que toma conta do bar. — É isso mesmo, e o melhor é deixar as coisas como estão. Juntara-se a Sam na porta do escritório. Entraram Varsity Vic estava sentado à mesa. Sorrira ao vê-los. — Entrem, amigos — dissera. Haviam fechado a porta atrás de si. — Temos um recado do patrão — disseram. — Êle quer uma reunião. — O.K. — dissera Varsity Vic, olhando para o seu guarda-costas, que se levantara imediatamente. — Digam-me quando. Irei quando êle quiser. — Agora não posso ir. Talvez amanhã. Eles se voltaram, como se fossem sair. O guarda-costas sorrira e abaixara a pistola. Sam deitara-o abaixo com um soco. Depois voltaram-se novamente para Varsity Vic... – Não sabe que o patrão não gosta de esperar? — haviam dito. Varsity Vic estava pálido ao sair com eles do escritório. O barman continuava a limpar o mesmo lugar do balcão. Êle se havia sentado atrás, com Varsity Vic, e Sam dirigiu o carro. Logo que se


afastaram da casa, pegara noutra garrafa de uísque e tirava a rolha com os dentes. Depois estendera a garrafa a Vic. — Beba isto; parece que está com frio. Vic abanara a cabeça. Quando finalmente falou, sua voz era fraca. Big Dutch tinha bebido outro gole e olhava-o silenciosamente sem responder. — Duas notas — dissera Vic rapidamente. — Quanto ganham vocês por isto? Cem, cento e cinqüenta? Duas notas de mil é muito dinheiro. — Está ouvindo isto, Sam? — Estou — fora a resposta. — Tem o dinheiro? — Aqui no bolso — respondera Vic, tirando a carteira. — O.K. — Estavam agora em pleno campo. Não havia casas por ali. — Salte para a estrada — dissera. O carro parou. — Dê-me o dinheiro. Varsity tirara o dinheiro da carteira com mãos trêmulas e contava-o apressadamente. — Dois mil. Vocês têm sorte. É o único dinheiro. .. que tenho comigo. — Mostrou-lhes a carteira vazia. Varsity Vic abrira a porta e saíra do carro. — Nunca me esquecerei disto — dissera. — Obrigado, amigos. — Aposto que não esquecerá — dissera Sam, rindo e apertando o gatilho da pistola automática. Vic cairá a cerca de cinco metros de distância, atingido pelas balas de calibre 45. Tinham saído do carro para se certificar. O corpo se contorcera numa agonia breve e depois se imobilizara : — Vamos derramar gasolina e queimá-lo — dissera Big Dutch. — Para quê? — perguntara Sam. — O patrão disse "queimem-no", e quando êle diz uma coisa, deve ser feita! Tinham-se sentado, então, no estribo do carro e bebido as outras três garrafas de uísque, enquanto observavam o fogo. Quando puseram o carro em movimento, descobriram que Vic tinha consumido toda a gasolina; tiveram, pois, de andar cinco quilômetros até poderem roubar outro carro e seguir para a cidade.

Big Dutch inclinou-se sobre a mesa e suspirou. Bebeu mais um copo. Os bons tempos já tinham terminado. Lep e Sam haviam morrido. Lep, na cadeira elétrica; e Sam, com o punhal, na piscina. Pegou no copo e fixou-o. Tudo parecia dourado através de um copo de uísque. A culpa fora dos outros. Nunca acreditara que Sam falasse. O velho Sam. Era amigo dele. Mas tinham-no assassinado. Eram como sanguessugas. Quando se agarravam a uma pessoa nunca mais a largavam. Mas daquela vez seria diferente. Mostraria a eles. Engoliu a bebida e pegou no telefone. Ia telefonar à mulher e dizer-lhe que ia para casa. Ela devia estar furiosa. Estava tão preocupado discando o número, que nem viu Cesare abrir a porta.


Era quase madrugada, quando ela ouviu a chave girar na fechadura. — É você, Cesare? — perguntou. A voz dele parecia tensa. — Sim! Depois, viu-o ao lado da cama, despindo-se apressada e violentamente. Meteuse na cama com o corpo a tremer. Agarrou-lhe o seio. Ela sentiu medo e dor ao mesmo tempo. — Não tenha tanta pressa, Cesare — conseguiu dizer, rindo. — Parece até americano!

16

Cesare levava o copo de suco de laranja aos lábios, quando Tonio anunciou: — O senhor Baker deseja vê-lo, excelência. — Mande entrar — disse Cesare. Tomou o suco de laranja e levantou-se ao ver Baker entrar na sala de jantar. — Senhor Baker — exclamou —, não esperava voltar a vê-lo tão cedo. Sente-se e tome um cafezinho. Baker sentou-se e observou Cesare, enquanto Tonio enchia uma xícara e a colocava à sua frente. Cesare encarou-o também. — Soube que teve um pequeno aborrecimento a noite passada — disse Baker. — Sim? — respondeu delicadamente Cesare. — Por que pensa assim? — Os jornais da manhã. — Ainda não os li. Baker olhou para o jornal dobrado que se encontrava junto à xícara de Cesare. — O que é isso? — perguntou. — O "Wall Street Journal". É o único que leio, por causa dos negócios. Baker sentiu-se corar. Procurou no bolso do seu sobretudo e tirou um número do "Daily News". Desdobrou-o silenciosamente em cima da mesa. Cesare olhou. O título, de meia página, parecia saltar. "STILETTO" ATACA OUTRA VEZ BIG DUTCH ASSASSINADO Cesare olhou para Baker. Encolheu os ombros. — Não vejo que relação possa ter comigo. Já disse que não conheço o homem. — Na página cinco há outra história — disse Baker. — "Pouco depois da meianoite, um homem e uma mulher foram atacados a tiros em Park Avenue, em frente ao Seagram Building. A mulher caiu na fonte. Fugiram sem serem identificados." Cesare pôs manteiga numa torrada. — E daí?


— A baronesa, com quem saiu a noite passada. O porteiro do hotel disse que o vestido dela estava encharcado. — Ninguém disparou contra mim — disse Cesare, pondo geléia na torrada que tinha na mão. —- Mas isso não explica por que a baronesa molhou o vestido — replicou Baker, tomando o café. — Por que não pergunta à própria? — disse Ileana, aparecendo à porta e entrando na sala. Os dois homens levantaram-se. Cesare apresentou-os. — O senhor Baker é do F.B.I. — acrescentou. Os olhos de Ileana abriram-se muito. — Oh! — exclamou, voltando-se para Cesare. — Você está metido em alguma enrascada? — perguntou com voz consternada. Cesare sorriu. — Não me parece. Mas o senhor Baker pensa que há pessoas que querem matarme. — Isso é horrível! — disse Ileana. Voltou-se para Baker: — Por isso é que quer saber a razão do meu vestido molhado? Baker acenou afirmativamente. — Bem, é realmente embaraçoso — explicou Ileana com uma certa dignidade. — Estivemos no "El Morocco" e receio ter bebido um pouco demais. Isso e os saltos altos. Escorreguei e caí numa poça. Pensei que ninguém me tivesse visto. — Tem certeza de que não caiu na fonte do Seagram Building? — perguntou Baker. Ileana encarou-o. Sua voz tornou-se altiva com a suposição de que êle pudesse duvidar do que ela dizia. — Oh, tenho certeza absoluta! — E o que fêz depois disso? — O Conde Cardinalli trouxe-me para o meu quarto neste hotel. — A que horas a deixou? Ela olhou para Cesare. Êle bateu-lhe na mão e disse: — Não precisa responder a isso, se não quiser. Ela voltou-se para Baker. — É muito importante? — É muito importante — disse Baker, gravemente. Ela respirou fundo. — Bem, êle deixou-me há cerca de uma hora, quando veio para cá, tomar o café, na sua suíte — explicou, olhando para os olhos de Baker. Cesare pôs-se de pé. Em voz baixa, mas fria, disse: — E agora, senhor Baker, não acha que já fêz perguntas demais para uma só manhã? Baker levantou-se. Olhou para Ileana. — Desculpe, baronesa, qualquer pergunta embaraçosa que lhe tenha feito. Mas, na minha profissão, tenho de fazer tais perguntas.


Ileana conservou os olhos pregados na toalha. Baker voltou-se para Cesare. — Se eu fosse o senhor, traria os olhos bem abertos. Os outros serão ainda mais perigosos daqui por diante. — Assim farei, senhor Baker — disse Cesare ainda de pé. Tonio entrou apressadamente. — Sua bagagem ficará pronta a tempo, excelência — disse a Cesare. Estarei com ela no aeroporto, às quatro horas. — Obrigado, Tonio — respondeu com voz aborrecida. Baker fitou-o atentamente. — Vai viajar? — Estarei na corrida do México — respondeu Cesare. — Começa depois de amanhã. A minha Ferrari já seguiu. — Eu também vou — disse Ileana, olhando para êle e sorrindo. — Vai ser sensacional! Baker olhou para um e para outro, e sorriu levemente. — Boa sorte — disse, dirigindo-se para a porta. — Guie com cuidado. Cesare esperou que a porta se fechasse sobre Baker. Depois voltou-se para ela, zangado: — Por que disse que ia comigo? Ela riu para êle. — Estava tentando ajudá-lo, Cesare. — Tonio aparecia novamente à porta. — Apenas meio copo de suco de uva — disse Ileana. Cesare esperou que o criado desaparecesse. — Se eu quisesse que você fosse comigo tê-la-ia convidado — resmungou. Era arregalou os olhos. — Oh, eu não tinha compreendido. Há outra mulher. Desculpe, Cesare. — Não é nada disso — retrucou, furioso. — Nesse caso, eu vou — disse Ileana, com desembaraço. — Além disso, não posso trabalhar para você. Falei com a sua secretária antes de subir; esta manhã. Ela disse que o meu salário era de cento e vinte e cinco dólares por semana. — O que esperava? — perguntou Cesare. — Não faço a mínima idéia. — Ela encolheu os ombros e olhou para o suco de fruta. — Mas preciso, pelo menos, dessa quantia todos os dias. — Colocou na boca uma colher com o suco de uva. — É delicioso. Êle a encarou e começou a sorrir contra a vontade. Era o que acontecia quando se compreendiam um ao outro. Ela não dissera uma palavra acerca de mentir a Baker, por causa dele. E nunca diria. Ela o olhou, sorridente, sabendo que tinha conseguido o que queria. — Além disso, — acrescentou — sei que haverá muitos ricos texanos no México, assistindo à corrida.

17


O encarregado da recepção do El Ciudad Hotel, na Cidade do México, permitiuse sorrir, ao dizer: — A baronesa tem uma suíte maravilhosa, bem ao lado da sua, Conde Cardinalli. Cesare acabava de preencher o registro. — Ótimo. Obrigado. — Recebemos esse telegrama para o senhor. — O encarregado pegou um envelope debaixo do balcão e entregou-o a Cesare. Mal o olhou. Já sabia do que se tratava. — Acabo de saber que o meu mecânico está doente — disse a Ileana. — Oh, que pena! É grave ? — Quer dizer que terei de procurar novo mecânico — respondeu êle. — É melhor ir à garagem ver o que consigo arranjar. — Está bem — disse Ileana. — Vai demorar? — Não sei. É melhor subir e descansar. Encontrar-nos-emos à hora do jantar. A garagem fervilhava de atividade, quando Cesare entrou. Havia homens por toda a parte, em preparativos de última hora. Dirigiu-se para o escritório dos fundos. O homenzinho levantou-se assim que o viu. — Conde Cardinalli — exclamou que prazer tornar a vê-lo! Cesare apertou-lhe a mão. — Tenho sempre muito prazer em vê-lo, senor Esteban. — Seu carro está na rampa baixa, box 12. Suponho que esteja ansioso para vêlo! — Estou, señor Esteban, mas tenho um grave problema a resolver. Meu mecânico adoeceu e preciso arranjar outro. Uma expressão preocupada substituiu o sorriso do homem. — Isso é grave, Conde Cardinalli. Todos os mecânicos das Ferrari estão comprometidos. — Bem sei — respondeu Cesare — mas preciso fazer qualquer coisa. — Caso contrário, não poderei participar da corrida. — Não podemos permitir que tal aconteça — replicou Esteban. —Vou ver se consigo arranjar-lhe um. Logo que tenha notícias, aviso o senhor. – Mil gracias — disse Cesare, sorrindo. — Vou ver o carro. Farei o possível para aprontá-lo. Estava trabalhando na Ferrari branca há cerca de uma hora, quando viu uma jovem que se aproximava. Dirigia-se diretamente para êle. Endireitou-se, admirando a figura delgada, vestida de branco. Parou diante do carro. — Conde Cardinalli? — A voz dela era baixa e agradável. Êle acenou afirmativamente, procurando um cigarro no casaco dobrado sobre a porta da Ferrari. — Sim. — O señor Esteban diz que o senhor precisa de um mecânico. — Os olhos dela eram azuis.


— Conhece algum? Onde poderei encontrá-lo? — perguntou ansiosamente. Já estava aborrecido com o trabalho. Era a parte da competição de que êle menos gostava. A pequena sorriu. — Sou eu. A surpresa transpareceu na voz dele. — Uma mulher? Esta prova não é própria para mulheres. São dois mil e duzentos quilômetros. O sorriso desapareceu dos olhos dela. Olhou-o firmemente. — Já tenho corrido muitas vezes essa distância — disse calmamente. — Mas desta vez não será necessário. Não irá tão longe! Cesare fitou-a. — Não? Ela abanou a cabeça, fazendo com que os cabelos lhe batessem nas faces bronzeadas. — Não será necessário. Dom Emilio tem outros planos — murmurou. Os olhos dele revelaram espanto. Não esperava aquela moça. Ela se endireitou, sorrindo outra vez. — Sou Luke Nichols — disse, dando-lhe um aperto de mão bastante masculino. Cesare observava-a. — Mas conhece, realmente, as Ferrari? O sorriso dela alargou-se. — Devo conhecer. Tenho ido com elas para todo o mundo. — Viu Esteban aproximar-se. — Pergunte-lhe! Cesare voltou-se. Esteban sorriu. — Vejo que já se conheceram. Isso é bom. — Mas... uma mulher na prova do México... já se viu isso? — Tem muita sorte, Conde Cardinalli — explicou Esteban. — A señorita Nichols teve muitas propostas, mas não aceitou nenhuma até saber o que lhe tinha acontecido. O ano passado conduziu a sua própria Ferrari. Cesare voltou-se para ela. — O seu carro? — perguntou. — Que lhe aconteceu? Ela encolheu os ombros. — Não ganhei. Ficou danificado. Esperava ter conseguido outro este ano, mas não tive sorte. — Está bem — disse Cesare. — Deve entender disto, para o meu amigo, señor Esteban, assim afirmar. Terá a participação habitual, se ganharmos; caso contrário, quinhentos dólares. — Combinado — disse ela, sorrindo. Êle pegou no casaco e vestiu-o. — Experimente o carro na estrada. Entregue-me um relatório completo às cinco horas. Estarei no bar do El Ciudad. — O.K. — respondeu ela, voltando-se para Esteban e falando num tom estritamente comercial. — Pode arranjar as coisas para que eu utilize a pista número dois? A que tem o cronômetro elétrico?


Esteban acenou afirmativamente e Cesare afastou-se. Quando chegou lá em cima, já ela colocara o carro na pista. As luzes do bar do El Ciudad eram tão fracas e estavam tão escondidas que a escuridão ficava quase completa. Cesare sentia-se feliz em conseguir ver a bebida que se encontrava diante de si. Não valia a pena olhar para o relógio, pois, com toda a certeza, não poderia ver o mostrador. A porta abriu-se e uma nesga de sol penetrou na sala. Cesare olhou e viu Luke entrar. A pequena parou, tentando habituar os olhos à escuridão. Cesare levantou-se e fêz-lhe um sinal. Sorrindo, ela sentou-se diante dele. — Deviam dar-nos lanternas de mineiros ao entrarmos aqui — disse ela, rindo. — Está escuro — admitiu êle. O garçom aproximou-se. — Pode arranjar-nos mais um pouco de luz antes que fiquemos — cegos? — perguntou Cesare. — Pois não, señor. — O garçom apertou um botão que havia na parede. Imediatamente uma luz suave invadiu a sala. — Assim é melhor — disse Cesare, sorrindo. — Que quer tomar ? — Um "daiquiri", por favor. O garçom afastou-se. — Que pensa do carro ? — perguntou Cesare. Algo semelhante a tristeza apareceu nos olhos dela. — Um carro maravilhoso. É pena. Em circunstâncias normais, com um carro destes, poderíamos ganhar a corrida. O garçom trouxe a bebida e afastou-se. Cesare ergueu o copo. — Salud! — Sorte! Beberam e pousaram os copos. — Haverá outras corridas — exclamou Cesare. A voz dela era inexpressiva. — Assim o espero. — Olhou em volta. Não havia ninguém perto deles. — Liguei um mecanismo ao marcador de quilometragem — disse ela em voz baixa. — Exatamente a duzentos quilômetros do ponto de partida, estourará, danificando o gerador. Estaremos, então, a trezentos quilômetros do ponto de verificação seguinte. Levarão, portanto, cerca de cinco horas para encontrar-nos. Há uma pequena casa deserta a cerca de um quilômetro da estrada. Lá iremos ter com Dom Emilio. — Pegou outra vez no copo. — É tudo? — perguntou Cesare. — Sim, é tudo — respondeu ela. Cesare observava-a. Usava um leve vestido de verão que não deixava dúvidas quanto à sua feminilidade. Fazia com que ela parecesse mais uma americana comum, do que uma mulher ligada às atividades da Máfia. Sorriu para si próprio. Dom Emilio era cheio de surpresas. Ela começou a sentir-se perturbada com o olhar de Cesare. Êle era diferente dos outros que conhecera. Geralmente, homens rudes e de modos brutais. Não havia


dúvida quanto ao meio a que pertenciam. Mas aquele não lhe parecia muito familiar a esse ambiente. — Que está olhando? — perguntou finalmente. — Nunca viu uma mulher? — Assim que acabou de pronunciar tais palavras, sentiu-se idiota. Êle sorriu. — Peço desculpas por observá-la assim — disse. — Sabe o que estava pensando ? — Pensava por que será que uma pequena como você... — O dinheiro é bom — afirmou ela com frieza. — Já lhe disse que quero uma Ferrari. Esta parece-me a maneira mais rápida de consegui-la. Tomou outro gole do cocktail. — E você? Não precisa de dinheiro... Êle riu-se, com despreocupação. — Não há suficientes corridas. E a vida, entre elas, torna-se, por vezes, muito monótona. É bom estar ocupado... Fêz sinal ao garçom e permaneceram em silêncio até que êle trouxesse novas bebidas. — É pena — disse, — gostaria de ganhar esta prova. Luke bebeu um gole do cocktail. — Sei o que sente — disse ela com uma expressão subitamente iluminada. — Não há nada igual! A velocidade, o perigo, a excitação. Sentimo-nos vivos, sentimos latejar tudo em nós, o mundo inteiro agita-se dentro de nós. — É isso! É isso mesmo! — disse animadamente Cesare. Havia um entusiasmo quase infantil em sua voz. — Não julguei que mais alguém pudesse sentir isto. É como se tivesse tudo no mundo. Todo o dinheiro, todo o poder, todas as mulheres! Luke olhou para o copo. Sentia-se quase envergonhada. — Não sabia que outra pessoa podia sentir-se assim. Êle estendeu a mão por cima da mesa e segurou a dela. Ela sentia o poder e a força que emanavam dele. Fitou-o. Os olhos de Cesare brilhavam intensamente, como os de um tigre, na noite. — É como se nunca tivesse estado junto de uma mulher — disse êle, num sussurro. Ela se assustou. Não por êle, mas por si própria. Tirou rapidamente a mão. — Continuemos a falar de negócios, sim? — disse, tão friamente quanto pôde. — Ambos sabemos que não podemos ganhar. A voz dele era meiga. — Por que, Luke? Por que é que temos de falar só de negócios ? Seus olhos eram profundos e magnéticos e ela se sentia afundar neles. A febre familiar começava a invadi-la, começava a sentir a fraqueza habitual. Por que teria de ser sempre assim? Justamente quando tinha tudo preparado. Sentiu o amargo ressentimento da sua própria voz. — Porque, com você, só posso perder. Já encontrei homens iguais. É sempre o mesmo. Julgam sempre poder alcançar as estrelas. Depois, caem... — fêz um gesto com os dedos. — Tem que ser sempre assim? Ela o encarou, firmemente. — Sempre!


— E está contente por passar a vida sem viver, com medo de perder? — perguntou êle, quase gentilmente. Ela se sentia furiosa porque Cesare tinha posto o dedo na ferida. — Afinal, que quer de mim? — perguntou Luke. — Você é daqueles homens que têm de tocar em tudo quanto vêem? Têm de possuir todas as mulheres? Está aqui com uma mulher que lhe pode dar mais sexo em dez minutos do que eu em dez dias! Lágrimas de raiva subiram-lhe aos olhos, e ela pôs-se de pé antes que êle as visse. — Portanto, falemos apenas de negócios! — disse, furiosa. — Encontrá-lo-ei amanhã, na linha de partida! Voltou-se para sair, quase esbarrando em Ileana, que para lá se dirigia. Ileana olhou-a e depois sentou-se na cadeira que ela deixara vazia. — Quem é? — perguntou com curiosidade. Cesare acompanhou Luke com o olhar. — O meu mecânico — respondeu. Ileana alçou as sobrancelhas. — Oh! — Voltou-se para o garçom que se aproximava. — Cinzano com gelo — disse. O empregado afastou-se. — O seu mecânico... — repetiu. Cesare fitou-a. — É verdade! — resmungou. Ileana sorriu. — Sabe que não pude deixar de ouvir as últimas palavras dela. Ela tem razão, sabe? Cesare não respondeu. O garçom colocou sobre a mesa a bebida que ela pedira, e afastou-se. Ela pegou no copo e ergueu-o numa espécie de brinde jocoso. — Em todo o caso, creio que não me vou encontrar com você em Cuernavaca, como tínhamos planejado. Esperarei aqui. — Tomou um gole da bebida fresca. — Não sendo americana e, portanto, sendo muito compreensiva a respeito dessas coisas, penso que lhes devo dar a oportunidade de descobrirem sozinhos e provarem um ao outro que têm razão.

18

O sol brilhante feriu-lhe os olhos, depois da escuridão do bar. Pôs os óculos escuros e começou a andar. Primeiro, rapidamente, furiosa consigo mesma. Depois, reparando que as pessoas a fitavam com estranheza, abrandou o passo. Afinal de contas, estava na Cidade do México e ninguém ali andava depressa. O que haveria nela para fazer com que lhe acontecessem coisas daquelas ? Mesmo em criança, era assim. As outras tinham amigos em casa para estudar e nada lhes sucedia. Ela fazia o mesmo, mas acontecia sempre qualquer coisa antes de a noite acabar. Depois que o rapaz ia embora, ela costumava sentar-se e ralhar consigo mesma.


Habitualmente, nunca mais via o rapaz mas, depois desses, havia sempre outro. E começava sempre da mesma maneira. Tomava as mais firmes resoluções. Pensar apenas nos livros de estudo. Nem sequer se aproximaria dele. Sentar-se-ia do outro lado da mesa e fariam, assim, as perguntas um ao outro. Pelo menos começava assim. Mas, passado pouco tempo, começava a sentir a febre dentro dela. As pernas ficavam fracas e a voz sem força. Tornava-se cada vez mais difícil concentrar-se nas lições. Lutava contra a febre que crescia dentro de si com tanta intensidade que o seu corpo se enchia de suores e o cheiro da transpiração se juntava ao perfume do seu corpo. E então acontecia. Os primeiros beijos exploradores. Seria uma prova feita a si mesma. Mais nada depois disso. Apenas uns beijos e mais nada. Então, subitamente, a febre crescia como um frenesi. Arrancava as roupas freneticamente, com o desejo de causar e de sentir dor. A adoração do macho arrogante e a necessidade de o submeter a ela, para poder ser a dona da sua força exploradora. Começou a sentir-se aturdida. Inconscientemente abanou a cabeça. Olhou para o sol. Estava quente. Muito quente. Era melhor ir para dentro de casa e sentar-se. Sentir-se-ia melhor à sombra. Olhou à sua volta. Estava quase junto à garagem. Iria lá ver novamente o carro. Havia qualquer coisa de masculino e frio numa corrida de automóveis, que fazia com que se sentisse melhor. A garagem pareceu-lhe fresca depois do calor lá de fora. A maior parte dos homens tinha ido embora. Era perto da hora do jantar. Desceu a rampa. Esteban saiu do pequeno escritório e chamou-a. — Olá, señorita Nichols! Ela voltou-se para êle, sorrindo. — Olá, señor Esteban! Êle se dirigiu apressadamente para ela. — Viu o conde? — perguntou. — Está satisfeito? Ela fêz um gesto afirmativo — Preciso agradecer-lhe, señor Esteban. — No hay de que — disse êle. — Estou satisfeito por ter sido útil a ambos. Um homem interessante, o conde, não acha? — Si — respondeu ela. — Muito interessante. Mas, diga-me : êle é bom? Êle encarou-a. — Podia ser melhor. Falta qualquer coisa. Começavam a descer a rampa. — Falta? — Medo — disse êle. — Um corredor é como um toureiro. Nenhum é bom antes de ter sentido medo. Uma vez que o tenham sentido, a sua habilidade aumenta. Não fazem loucuras desnecessárias. Correm apenas para ganhar. Pararam diante da comprida Ferrari branca. — Êle não se importa de não ganhar? — perguntou ela, pondo a mão sobre o carro. — Um lindo automóvel — disse êle. Inconscientemente, passou a mão pelo carro. — O melhor que está na garagem — murmurou. Sorriu. — Talvez, dessa vez, ga-


nhe os dez pesos que apostei no conde. — Começou a subir a rampa. — Boa sorte, señorita. Ela olhou até vê-lo desaparecer. Depois abriu a porta do carro e sentou-se. O cheiro da gasolina chegou até ela. Sentou-se ao volante e segurou-o. Aquilo era força. Pura força masculina. Lembrava-se de se sentar no colo do pai, enquanto êle dirigia o carro para a cidade, onde iam fazer compras. Como se sentia importante e como acenava para que toda a gente visse que ia no carro. Até mister Saunders, o gordo policial que dirigia o trânsito em Main Street, ia ver se ela tinha carteira. Tinha apenas seis anos. Aprendeu a dirigir antes dos dez anos. O pai deixava-a guiar no quintal, nos fundos da casa. A mãe abanava a cabeça. — Nem parece uma menina — dizia. — Passa o tempo todo metida na garagem a ouvir conversas impróprias, dos rapazes que andam por lá. — Oh... deixe — replicava o pai. — Tem tempo para crescer, aprender a coser e a cozinhar. Afinal, hoje em dia, essas coisas já não são necessárias. Quase toda a comida vem enlatada e os vestidos são comprados feitos. — Êle se sentia secretamente satisfeito. Sempre desejara um filho. Foi mulher aos dezesseis anos e tirou a carteira. Os rapazes ainda não a aborreciam muito. Ela não sentia necessidade de os atrair. Talvez porque ganhava deles em qualquer corrida que apostassem na estrada. Sabia o que eles tinham pensado da primeira vez que a viram com o carro. Johnny Jordan aproximara-se dela, com o cigarro na boca e dissera: — Onde foi que arranjou esse carro? — No Stan — respondeu ela, referindo-se à garagem que vendia carros usados. — Nunca o vi lá — respondeu êle. — Fiz-lhe uns arranjozinhos e modifiquei-o — mentira ela. Não tinha feito uns arranjozinhos. Desmanchara o carro e reconstruíra-o todo. Fora um Pontiac conversível que ficara completamente danificado num desastre. Tirara o motor e substituíra-o pelo de um Cadillac, pusera-lhe novo volante, alargara as lonas de freios, pusera mais peso nas portas e pintara-o, finalmente, com uma tinta brilhante, prateada e preta. Tinha levado seis meses. — Funciona bem? — perguntara Johnny. — Vamos apostar uma corrida? — perguntara ela. — Não corro com mulheres. — Tem medo? Êle corara. — Claro que não. Mas onde é que já se viu uma menina competindo com rapazes em corridas de automóveis? — Está bem — dissera ela. — Direi que você ficou com medo. Pusera o motor em funcionamento. — Espere, você não vai fazer isso. — Então, prove que não tem medo — insistira ela. — Então, prepare-se e não se queixe depois — dissera êle, com relutância. Emparelharam os carros. — Faremos um quilômetro na estrada e depois começaremos a corrida. Veremos


quem é que tem medo. Ela assentira e olhara para o rapaz encarregado de dar o sinal da partida. O carro partira velozmente. Olhara para Johnny. O carro dele estava um pouco afastado do dela. Pisara no acelerador e aproximara-se. Ouvira um ruído de metal contra metal e afastara-se para lhe dar passagem. Êle dirigia quase na beira da estrada. Calcara mais o acelerador e afastara-se. Quando voltaram para a meta de chegada, êle lhe passara à frente, acenando. Pisara fundo no acelerador e o carro lançara-se para a frente como uma bólide. Estavam ambos no meio da estrada. Ela sorria. Apertava firmemente o volante nas mãos. Quando olhou, viu que o carro dele estava quase em cima do dela. "Não viro o volante", pensou. Não virou. No último momento possível, olhou e viu que êle virava o dele. Viu, de relance, o rosto pálido do rapaz, que praguejava. Viu-o pelo espelho retrovisor e chegou à meta muito antes dele. Por fim conseguiu dominar o carro e parou. — Que doida! — exclamara êle, ao chegar junto dela. Ela sorria, saindo do carro. — Posso fazer cento e vinte com este carro. Quer dirigir? Êle deu a volta e sentou-se ao volante. Pôs o carro em movimento e, daí a pouco, iam a 90. Foi o primeiro namoro dela. Êle a tratava com respeito, de igual para igual. No entanto, isso não impediu que a pusesse grávida. Estavam no último ano do científico. Ela esperou uma semana e, depois, foi falar com êle. — Vamos ter que nos casar —- disse. — Por quê? — exclamou êle. — Por que há de ser, seu tolo? — resmungou ela. Êle praguejou. — Bolas! Como hei de saber se o filho é meu? Tenho ouvido muitas histórias a seu respeito. Ela fitou-o, e todos os sonhos que tinha construído para ambos desmoronaramse, de repente. Voltou-se e saiu. No sábado seguinte tirou cem dólares das suas economias e dirigiu-se para Center City. Sabia que havia lá um médico que tratara de outras moças. Esperou silenciosamente até que as outras doentes saíssem e entrou no consultório. O médico era um homenzinho baixo, gordo e careca. Parecia cansado. — Tire o vestido e aproxime-se — disse. Ela pendurou o vestido num dos cabides da parede e dirigiu-se para êle. Êle mandou-a deitar-se num divã, examinou-a e disse: — Deve ser uma gravidez de seis semanas. Ela confirmou. — É isso mesmo. — São cem dólares. Quando o faremos? — Agora mesmo! — Não pode ficar aqui. Veio alguém com você? — Tenho o meu carro lá fora — respondeu ela.


O médico olhou-a cèticamente. — Não se preocupe comigo — disse Luke. — Chegarei bem em casa. O médico pegou nos cem dólares e guardou-os. Depois, tomou uma agulha hipodérmica esterilizada e encheu uma seringa com o líquido que tirou de um frasco. — O que é isso? — perguntou Luke. — Penicilina. O médico era eficiente, rápido e competente. Daí a vinte minutos estava tudo terminado. Êle a ajudou a descer do divã. Depois, deu-lhe algumas pílulas metidas num envelope sem rótulo. — As maiores são de penicilina — explicou. — Tome uma de quatro em quatro horas durante dois dias. As menores são para tirar as dores. Tome uma de duas em duas horas, depois de chegar a casa. Meta-se na cama e deixe-se ficar pelo menos uns dois dias. Se sua mãe fizer perguntas, diga-lhe que se sente indisposta. Se sangrar um pouco, não se admire. É normal. Mas, se passado um dia, ainda continuar a perder muito sangue, não seja tola, chame o seu médico. Não se esquecerá? Ela disse que não se esqueceria. — Então está bem — disse êle gentilmente. — Pode ir embora. Vá direitinho para casa e, logo a seguir, para a cama. Daqui a uma hora, terá tais dores que desejará nunca ter nascido. O médico voltou a sentar-se à secretária e ela dirigiu-se para a porta. — Obrigada, doutor — disse. Êle fitou-a severamente. — Está bem, mas não quero tornar a vê-la aqui. Fêz os sessenta quilômetros de volta em menos de meia hora. Começava a sentir a cabeça pesada e um pouco de cansaço, quando parou diante de casa. Subiu as escadas, satisfeita por não encontrar ninguém. Engoliu, rapidamente, duas pílulas e meteu-se entre os lençóis, começando a sentir as dores. Cerca de uma semana depois, estava tirando o carro do parque de estacionamento junto ao supermercado, quando Johnny se aproximou e pôs a mão na porta do carro. — Tenho pensado, Luke — disse com aquela irritante segurança masculina. — Acho que podemos casar-nos. — Suma-se daqui, seu covarde! — respondeu friamente, arrancando tão depressa que quase lhe levou o braço. Depois disso, foi o carro. Quando entrou para a Universidade, já tinha uma certa fama local. Entrava todas as semanas nas corridas de carro de Cow Pastures Track. Começou a ganhar com regularidade, o que fêz dela a favorita da gente da cidade. Começaram a falar com orgulho da garotinha que conseguia destronar até os corredores profissionais. Foi durante as férias de verão que se casou. É claro que êle era um corredor de automóveis. Era alto, de cabelos pretos e ondulados, olhos risonhos e o melhor corredor que já aparecera na cidade. Vinha do Texas e falava com a pronúncia de lá. — Acho que nós dois devíamos dar o nó. Seríamos os melhores na estrada. — Isso é uma proposta de casamento ? — perguntou, começando a sentir a febre.


— Acho que sim. É isso mesmo que eu pretendia dizer. Os pais eram contra o casamento. Queriam que ela acabasse o curso e fosse professora. Tinha muito tempo para se casar. Além disso, que espécie de vida seria a dela, sempre de um lado para o outro em corridas de automóveis? Foi esse o pior argumento de que eles se valeram, pois ela só se sentia viver verdadeiramente atrás de um volante. Era essa a espécie de vida que desejava. E o estranho é que eles se saíram muito bem. Um ano depois, ela tinha conseguido pôr no banco quinze mil dólares. Então, apareceu a polícia e prendeu o marido por bigamia. Parece que possuía outras três esposas de quem se esquecera de se divorciar. Duas semanas depois de êle ir para a cadeia, descobriu que estava grávida. Dessa vez teve o bebê. Era um menino. Levou-o para casa e deixou-o com os pais. Depois comprou uma passagem de avião para a Europa e comprou uma Ferrari. Na França, entrou numa corrida para mulheres e ganhou. O prêmio não era grande, mas tinha uma Ferrari e dois mil dólares no banco. Daí em diante, só iria entrar nas grandes competições. Foi em Mônaco que encontrou um irlandês. Guiava bem e ria muito. Tinha apenas um defeito: jogava. Mas a febre estava dentro dela sempre que olhava para êle. Dessa vez não se casou, apesar de poder fazê-lo. Iam para toda a parte juntos e dirigiam loucamente. Êle estava sempre falido. Fora no México, ali, na corrida do ano anterior, que acontecera. Ela vira o medo, pela primeira vez, nos olhos dele. — São os parceiros de jogo, querida; matam-me se não lhes pagar — confessara êle, começando a chorar. — De quanto é a dívida? — perguntou. Êle a fitou, com a esperança a crescer-lhe nos olhos. — Dez mil dólares — disse. — Tenho quatro mil no banco e posso arranjar seis com o carro. — Pagarei tudo a você — jurou —, até o último centavo. No dia seguinte, foi ao banco, com ela, levantar o dinheiro. Quando ela entregou os dez mil dólares, disse que a procuraria no hotel para jantar. Nunca mais aparecera. Às dez horas da noite, toda a gente na garagem conhecia a novidade. Êle fugira com a mulher de outro corredor. Perdeu a corrida e o banco ficou com o carro. Estava, mais tarde, sentada no seu quarto, no hotel, perguntando a si mesma onde iria arranjar dinheiro para pagar a conta, quando bateram à porta. Foi abrir. Viu um homem elegantemente vestido, com um aspecto que lhe era vagamente familiar. — Señorita Nichols? — perguntou. Fêz um gesto de assentimento. — Posso entrar? Ela deu um passo atrás. Êle entrou no quarto e fechou a porta. — Sou seu admirador há muito tempo — disse. — Tenho visto suas corridas. Na Itália, na França, em Mônaco. Sei que está com um pequeno problema. Gostaria de ajudá-la. Ela tornou a abrir a porta.


— Saia ! — disse. Êle estendeu-lhe a mão, sorrindo. — Não se trata disso. Você guia carros de corrida. Tenho um. Quero que o dirija para mim. Ela fechou a porta. — Onde está o carro? — Em Acapulco. A corrida é de Acapulco à Califórnia. Pagarei todas as suas contas e dar-lhe-ei mil dólares quando entregar o carro na garagem, no fim da corrida. Pode ficar com qualquer prêmio que receber. — De que é que se trata? — perguntou Luke. — O carro está carregado de entorpecentes ? Êle sorriu. — Tudo que tem a fazer é dirigir o carro. Para isso é que lhe pago. — Tirou do bolso um charuto italiano e acendeu-o. — Não precisa saber de mais nada. Ou aceitava a oferta ou teria que telegrafar aos pais, pedindo dinheiro. Não que eles recusassem, mas teria de voltar para casa e nunca mais teria oportunidade de correr. Ficaria lá, presa. — Está bem. Aceito. — Bem. — Êle sorria. — Haverá uma ordem de pagamento em seu nome, quando descer, amanhã de manhã. — Deu-lhe mais algumas instruções e saiu, antes que ela pudesse perguntar-lhe o nome. Só no dia seguinte, depois de se ter metido no avião, é que se lembrou. Vira-o uma vez, em Roma, num restaurante. Alguém o apontara. — Aquele é Emilio Matteo — tinham dito. — Um dos três homens mais importante da Máfia de hoje. Foi posto fora dos Estados Unidos, mas não adiantou nada. Continua indo lá, regularmente. No decorrer do ano, vira-o mais seis vezes. Em todas essas vezes, fizera sempre qualquer trabalho para êle. Seria idiota se não compreendesse que se tornara mensageira da Máfia. E ela não era idiota. De cada vez recebia mil dólares. Com mais cinco, poderia conseguir uma Ferrari. Nessa altura, ela e Matteo eram praticamente amigos. Lera já o suficiente nos jornais para saber que, dessa vez, conduzia um homem para a morte. Não que isso fizesse muita diferença. Tinha visto muitos homens morrerem nas corridas. Em desastres terríveis. Todos tinham que morrer um dia qualquer. Era essa a sorte que esperava os corredores de automóveis. Pelo menos, era assim que pensava antes de o encontrar. Antes de sentir a febre crescer dentro dela, a fraqueza nas pernas. Antes de se sentir queimada pelo simples contato das mãos dele.

19


Cesare acabava justamente de se vestir, quando ela entrou no quarto. Olhou-a surpreendido. — Ileana!... Que está fazendo de pé às seis horas da manhã ? Ela acabou de abotoar o roupão. — Não podia deixá-lo ir-se embora sem lhe desejar boa sorte nas corridas. Êle sorriu e abaixou-se para amarrar as botas. — É muito amável... Obrigado. Endireitou-se e beijou-a no rosto. Depois, dirigiu-se para a porta, dizendo: — Até logo à hora do jantar. — Até à hora do jantar? — perguntou ela, admirada. — Julguei que a corrida levasse dois ou três dias. — É verdade. Esqueci-me — emendou rapidamente, reparando no lapso cometido. Forçou um sorriso. — Está-se tornando um hábito vê-la todas as noites. Uma vaga sensação de perigo retiniu no cérebro de Ileana. Cesare não era homem que cometesse erros assim. — Bom ou mau hábito? — perguntou. Êle sorriu. — Diga-me quando eu voltar. Ela ficou ali um momento, depois voltou para o quarto. A mala estava em cima da cama, aberta. Lentamente, ela inclinou-se e começou a fechá-la. Antes, porém, quis arrumar as coisas que estavam dentro. Foi então que viu um pedacinho de pano, de forma triangular. A bainha de um punhal. Lembrou-se do stiletto que Cesare tinha na mão quando a encontrara no banheiro de sua casa. Sim, aquilo era a bainha do stiletto. Mas para que precisaria êle de uma arma daquelas numa corrida de automóveis? Sentiu repentinamente a mesma sensação de perigo que sentira quando Cesare dissera que voltaria na hora do jantar. Subitamente compreendeu por que é que êle levava a arma. Voltaria nessa noite para matá-la.

Luke olhou para Cesare do outro lado do carro. Êle dirigia com facilidade. Os olhos protegidos pelos grandes óculos, um leve sorriso nos lábios. Ela se inclinou para a frente a fim de observar o pára-lama. Estava tudo em ordem. Podiam fazer um milhão de quilômetros naquele carro, se quisessem. Fizeram uma curva e viram mais dois concorrentes. — Podemo-nos divertir um pouco? — gritou, fazendo-se ouvir por sobre o ruído do motor. Estavam a menos de sessenta quilômetros do ponto de partida. Podiam. Cesare sorriu e pisou no acelerador. Meteu-se entre os dois carros que lhe bloqueavam a passagem. Ela o observou. Tinha os lábios repuxados numa careta de alegria selvagem. Debaixo dos óculos, os olhos brilhavam. Os carros que iam na frente começaram a fazer a curva. Cesare riu e aumentou a velocidade de sua máquina. Iam a cento e quarenta, e a agulha do velocímetro estava subindo. Sentiu o impulso do corpo quando a grande Ferrari entrou na curva. Olhou nervosamente para diante. Se os carros não se separassem, morreriam todos. Antes que tal pensamento desaparecesse de seu cérebro, já a


Ferrari ultrapassara os dois carros. Tinham-se separado, no instante exato. Deliberadamente, Cesare fazia com que a Ferrari andasse de um lado para o outro da estrada. Via os outros motoristas praguejarem e lutarem para se manter na pista. A Ferrari ia um pouco à frente deles. Cesare ria, aumentando ainda mais a velocidade. O velocímetro saltou para cento e cinqüenta, e a bólide deixou os outros dois carros para trás. Ela olhou para trás e sorriu. Agora percebia o que Esteban queria dizer. Ali estava uma corrida que Cesare sabia não poder ganhar e, no entanto, guiava como sempre. Era um bom volante. Esteban tinha razão. Se realmente quisesse podia ser o melhor de todos. A mão dela baixou inconscientemente e êle se voltou. Com a emoção, aproximara-se mais dele. Cesare tirou a mão dela de cima do assento e colocou-a sobre sua perna. Ela o fitou. Êle retribuiu o olhar, com um sorriso zombeteiro. Ela sentia o calor da perna do homem percorrer-lhe todo o corpo. Durante um momento, sentiu um desejo selvagem de saber o que êle poderia fazer sentir. Enterrou as unhas nos músculos das pernas dele, através da roupa, até a carne. Queria que ao sentir a dor êle lhe afastasse a mão. Mas foi ela que se afastou bruscamente. Fechou os olhos e sentiu um vazio repentino ao perder o contato com o corpo dele. Sacudiu a cabeça para afastar os pensamentos. Que se passava com ela? Seria sempre a mesma coisa?

Olhou para o indicador de quilometragem. Estavam a cento e cinqüenta quilômetros do ponto de partida. Tocou-lhe o ombro. — Comece a reduzir. É melhor deixar passar aqueles carros. Cesare concordou, com um gesto. A potente Ferrari começou a perder velocidade. Os dois carros passaram por eles a toda velocidade. Êle balançou a cabeça. — A festa acabou. — Nem chegou a começar — foi a resposta dela. Estavam precisamente a duzentos quilômetros do ponto de partida. Êle não parecia prestar atenção a esse detalhe. Oitenta quilômetros por hora, velocidade ainda muito grande para rebentar uma bomba, embora pequena, junto ao motor. Mas se êle pensava que ela ia ficar com medo, enganava-se. Duzentos quilômetros. Êle pisou no acelerador, sempre a sorrir. O carro deu um salto para a frente. No mesmo instante houve uma pequena explosão. O carro estremeceu e o motor parou. Começaram a girar loucamente no meio da estrada. Ela via os músculos dele se retesarem com o esforço para dominar o carro. Afinal, a velocidade foi diminuindo. Ela respirou profundamente. — Agora que já se divertiu, senhor Cardinalli, não acha que é uma boa idéia tirar o carro da estrada? — O.K. — foi a resposta de Cesare, virando o volante. — Olhe! — gritou ela. — Uma vala! Cesare virou rapidamente o volante, mas era tarde demais. As duas rodas do lado direito atingiram a vala. Lentamente, o pesado carro girou sobre si mesmo.


Cesare saiu debaixo do carro, pôs-se de pé e tirou o capacete. Leves rolos de fumaça começaram a sair do carro. — Luke ! Está bem ? A voz dela veio do outro lado do automóvel. — Sim. — Que está esperando? — gritou. — Lembre-se de que o carro está cheio de gasolina e pode explodir. Ela parou de se mexer e olhou-o irritado. — Que pensa que estou fazendo aqui? A dança das serpentes? — gritou, recomeçando a mexer-se. — Tenho a roupa presa em qualquer coisa. — Por que não disse logo? Descalce os sapatos e saia de dentro da roupa. Automaticamente, ela fêz o que êle dizia. Deslizou sorrindo para fora do macacão, que continuava preso ao carro. Um leve sorriso repuxava os cantos da boca de Cesare. O riso desapareceu dos lábios dela. Sentia-se repentinamente consciente da sua quase nudez. O pequeno soutien e as calcinhas não escondiam quase nada. — Vou buscar o meu macacão — disse, voltando-se. A mão dele pesou-lhe no ombro, pregando-a ao chão. Deixou-se ficar, sentindo o calor da mão dele. Sentiu a febre crescer dentro dela. "Mas desta vez não vou ser fácil!", pensou. Sentia as mãos fortes esmagarem-lhe o seio e a dor arrancou-a da letargia em que se encontrava. — Vou fazê-lo parar com isso — gritou, metendo as mãos por dentro da camisa aberta de Cesare. — Vou rasgar sua pele em tiras! Mas quando seus dedos sentiram a pele macia do corpo do homem, percebeu que as forças lhe faltavam. Abriu os olhos, vendo que êle a afastava. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Não podia mudar, havia de ser sempre assim. — Deixe-me tocá-lo, deixe-me adorá-lo! — pediu. E quando, daí a pouco, êle a possuía, soube que tivera razão desde que o vira pela primeira vez. Jamais conhecera antes um homem como aquele, que fosse capaz de preencher todos os recantos escondidos do seu corpo e do seu pensamento. Fechou os olhos e sentiu-se subir com êle ao alto de uma montanha. Sabia que o animal estava lá escondido em qualquer lugar. Escalava precipitadamente a montanha, ofegante, quase sem poder respirar. Depois, chegando ao cimo, viu o mundo todo girar à sua volta. Sentia que o animal podia chegar, que ela estava preparada para recebê-lo. Abraçados num abraço mortal, eles caíram juntos, rolando pela encosta da montanha. Ela murmurou suavemente: — Tigre... tigre... tigre... ! Cesare empurrou a porta da cabana. — Não há ninguém aqui — exclamou. Ela entrou, seguida por êle. — Que fazer agora? — perguntou Cesare. — Esperar! — foi a resposta dela. Havia uma mesa e algumas cadeiras. Êle empurrou uma das cadeiras para ela.


Ela se sentou. Depois, acendeu dois cigarros e entregou-lhe um. Ela tomou o cigarro sem nada dizer. — Você está muito calada — comentou Cesare. Luke expeliu a fumaça do cigarro. — Que posso dizer? Que você conseguiu o que desejava? — Nada mais? — perguntou êle. — Que importa ? Não acontecerá outra vez! — Tem sempre tanta certeza? Como sabe que não voltará a acontecer amanhã? — Amanhã terei dinheiro suficiente para comprar uma Ferrari — disse ela amargamente. — E nunca mais nos veremos. — É só o que lhe interessa? — Riu. Um automóvel? Um automóvel pode servir para muitas coisas, mas não lhe pode dar amor. — Amor? — perguntou ela com ironia. — Sei de tudo a seu respeito. A quantas mulheres falou de amor? Dez? Vinte? Cem? Ou mais? Os olhos dela estavam velados. — Um homem pode viver em muitos lugares e não chamar nenhum deles de lar. O ruído de um automóvel fêz-se ouvir lá fora. Luke levantou-se e dirigiu-se para a porta. Seu rosto estava tenso. — Acabou — disse ela. — Eu garanti que não perderia novamente. — Mas ali, debaixo do automóvel, você quase mudou de idéia — disse êle com suavidade. — Pagaram-me para fazer o que fiz. Disseram-me para mantê-lo aqui. Abriu a porta. Surgiram dois homens, empunhando pistolas apontadas para Cesare. Ela olhou para êle, com altivez. — Compreende o que eu queria dizer — perguntou, saindo da cabana. — Não viemos para louvar Cesare.

20

A porta fechou-se sobre eles, escondendo a luz do sol. Os homens olhavam para Cesare. — Onde está Matteo? — perguntou este. Allie sorriu. — Não pôde vir. Mandou-nos em seu lugar. Cesare sentia os músculos tensos. Os lábios estavam secos. Umedeceu-os com a língua. Aquilo não fazia sentido para êle. Nada daquilo. Que ganharia Matteo com a sua morte? Nenhum deles ganharia nada. — Deve ser engano — disse. Allie sacudiu a cabeça. – Não é engano — afirmou, dando um passo à frente, de pistola na mão. — Vire-se e caminhe até à parede com as mãos levantadas sobre a cabeça. Devagar.


Cesare fitou-o e, lentamente, obedeceu. Sentiu Allie apalpá-lo. — Não tenho pistola — explicou. — Não estou procurando nenhuma pistola — respondeu Allie rispidamente. Cesare sentia o frio do stiletto no braço que erguia acima da cabeça. — Também não encontrarão a minha arma — disse. — Não preciso dela para guiar um carro de corrida. Allie deu um passo para trás. — Bem... acho que não; de qualquer modo não tornará a precisar dela. O pistoleiro falou pela primeira vez: – Atiro agora, Allie ? — E começou a levantar o revólver. Allie deteve-o com um gesto. — Não... tenho meus planos. Este tipo merece um tratamento especial. Cesare olhou por cima do ombro. Allie estava tirando qualquer coisa do bolso. — Sabe o que é isto, rapaz? — perguntou, erguendo-o no ar. Cesare não respondeu. Sabia. — É um furador de gelo. Não tem um nome bonito como esse espeto que você usa, mas faz bem o serviço. Big Dutch podia tê-lo avisado. — Voltou rapidamente a pistola na mão e deu uma pancada forte na base do crânio de Cesare. Sentindo-se tonto, Cesare caiu de joelhos, tentando agarrar-se à parede. Ouviu a voz áspera de Allie. — Vire-se, patife, quero que veja o que vai acontecer! Virou-se penosamente, sacudindo a cabeça. Sua visão começava a aclarar-se. Olhou para Allie. Este sorria. Meteu a pistola no bolso e mudou o furador de gelo para a mão direita. — Você vai levar isto bem no meio do crânio — disse, cara a cara com Cesare. Cesare viu-o erguer o furador. Atirou-se desesperadamente para o lado no momento preciso em que o objeto descia sobre êle. O furador de gelo enterrou-se na madeira podre da parede. Cesare conseguiu desferir um golpe de judô no pescoço de Allie. Sem esperar pelo resultado da pancada, atirou-se ao pistoleiro. A arma saltou da mão do homem e ambos rolaram pelo chão. Pelo canto dos olhos, Cesare viu Allie pegar na pistola. Rolou sobre si mesmo, servindo-se do corpo do pistoleiro como de um escudo, quando Allie começou a atirar. O corpo do homem teve um movimento espasmódico ao impacto das balas. Tentou soltar-se do abraço de Cesare, depois tornou-se flácido e caiu. Cesare tentou atingir a porta da cabana. Allie deu uma risada: — Não o conseguirá, patife. — Puxou o gatilho, mas o tambor estava vazio. Praguejou e atirou a pistola ao chão. Voltou-se, então, rapidamente e agarrou o furador de gelo. Arrancou-o da parede a tempo de ver Cesare dirigir-se lentamente para êle, com o stiletto a brilhar-lhe na mão. Lembrou-se, entretanto, da pistola que metera no bolso. Começou a rir disfarçadamente, tentando colocar a mão no bolso. Só precisava de um instante.


Ela estava sentada no carro, completamente imóvel. Suas mãos apertavam o volante com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. Tinha os olhos fixos num ponto distante. Só quando sentiu a ponta do stiletto no pescoço, é que se voltou e o viu. Êle se inclinava para ela com os lábios arreganhados numa careta selvagem. Seus olhos azuis brilhavam com um lampejo amarelo à luz do sol. Os olhos dela se arregalaram de espanto e êle percebeu-lhe uma expressão estranha. Ela não pronunciou uma palavra. — Por que fêz isso? — perguntou, com o stiletto ainda na mão. Ela o fitou. A voz era tão vazia quanto o seu olhar. — Já lhe disse. Pagaram-me para isso. Não fiz perguntas a Matteo. Você fêz alguma? Aquela luz amarela continuava a brilhar nos olhos dele. — É diferente! Eu cumpria um juramento. — Eu também fiz um juramento — disse ela. — A única diferença foi a maneira como fomos pagos. — Devia matá-la! — gritou êle com voz rouca. Ela sentiu a ponta do stiletto fazendo pressão contra sua garganta. Fechou os olhos e encostou-se no banco. — Continue! Nada me importa. Matteo não tolerará meu fracasso, assim como não tolerou o seu sucesso. Êle não respondeu, o silêncio que se seguiu parecia interminável. Ela sentiu, subitamente, a febre crescer dentro de si, irradiando-se por todo o seu corpo como um choque elétrico. A imagem do tigre assaltou-lhe o cérebro. Daí a momento não seria capaz de controlar as convulsões que começava a sentir. — Vamos! Acabe com isso! — gritou selvagemente. A morte dar-lhe-ia sossego. Êle continuou em silêncio e ela abriu os olhos. O rosto dele estava banhado de suor e ela sentia seu corpo tremer contra o banco. — Oh, Deus! — exclamou dèbilmente. — Somos tão parecidos! Ouviu o stiletto cair ao chão e sentiu os lábios dele sugarem a pequena ferida provocada pela ponta da arma. O perigo e a excitação significavam o mesmo para êle e para ela. Só serviam para aumentar o apetite do tigre.

Parou o carro diante do hotel. — Vá buscar suas coisas e esteja no aeroporto às duas horas — disse êle. — Tome cuidado — aconselhou ela, fitando-o. Êle assentiu, confiante. — Estaremos a caminho de Nova York antes de descobrirem o que aconteceu. Tenho que entrar em contato com Emilio de qualquer maneira. Êle arranjará tudo. Ela apertou-lhe a mão e saiu do carro. Ficou a vê-lo afastar-se e, depois, dirigiuse para o hotel. Cesare entrou no vestíbulo do El Ciudad e parou junto à recepção.


— Minha chave, por favor — pediu ao empregado, que estava de costas para êle. O empregado voltou-se. — Conde Cardinalli! — exclamou surpreendido. Tirou a chave, que se encontrava pendurada junto às outras, e colocou-a sobre o balcão. — A corrida... Cesare interrompeu-o. — Meu gerador incendiou-se. — Lamento, señor — disse o empregado. Depois entregou-lhe um envelope fechado. — A baronesa deixou isto para o senhor. Cesare abriu a carta. Era de Ileana: "Desculpe, querido, mas não pude esperar pelo seu regresso. Parto para Nova York com um rico texano que insiste para que eu vá com êle fazer umas compras neste fim-de-semana. Beijos. Ileana". Cesare sorriu intimamente. Devia ter calculado que havia um motivo para que Ileana não quisesse ir encontrá-lo em Cuernavaca. Voltou-se para o empregado. — A que horas partiu a baronesa? — Cerca das onze horas da manhã — respondeu o homem. Cesare dirigiu-se para o elevador. Eram sete horas da noite. Provavelmente, Ileana já estaria em Nova York.

21

Baker olhou para Ileana, que se encontrava sentada em frente, do outro lado da mesa. — Por que voltou? Devia ficar com êle. — Já disse que estava assustada. — Ileana olhou-o nervosamente. — Tive a sensação de que êle ia matar-me. De que sabia... — Que foi que lhe deu tal sensação? — perguntou Baker. — Algo que êle fêz, ou disse? Alguma coisa que viu? Ileana sacudiu a cabeça. — Não foi nada disso. Apenas aquela bainha de punhal na mala. Quando a toquei, tive a impressão de que a morte se tinha apossado da alma dele. Foi por isso que voltei. — Mas não viu nenhum stiletto. Aquilo podia servir para guardar... uma escova de dentes, por exemplo. Nesse momento, bateram à porta. — Entre — disse Baker. Um agente entrou, com uma folha de teletipo na mão. Entregou-a a Baker. — Acabou de chegar da Cidade do México — disse. — Encontrados os corpos de Allie Fargo e de um outro homem numa cabana deserta, a cerca de um quilômetro


de distância do lugar em que o carro de Cardinalli abandonou a corrida. Ileana levantou-se, tensa. — Vê como eu tinha razão? Baker voltou-se para ela. — Talvez, se tivesse ficado lá, nós pudéssemos saber mais a esse respeito. — Talvez eu estivesse morta. Não estou gostando nada! Baker olhou para o agente. — Onde se encontra Cardinalli? — A caminho de Nova York. O avião em que êle viaja deve chegar a Kennedy amanhã de manhã. Traz uma jovem em sua companhia. — Uma mulher? — perguntou Baker, voltando-se para Ileana. — Foi por isso que veio embora — Não seja idiota! — resmungou Ileana. Baker sorriu. — Começo a compreender. Êle arranjou outra amiga e disse-lhe que desse o fora. Ileana levantou-se. — Não é verdade! Essa mulher é mecânico dele. — Mecânico! — perguntou Baker com ceticismo. — Sim — afirmou Ileana. — Chama-se Luke qualquer coisa. O mecânico de Cesare adoeceu e êle contratou a pequena. Baker voltou-se para o agente. — Telegrafe e peça informações completas sobre a moça. — Sim, senhor — disse o agente. Prenderemos Cardinalli quando o avião aterrissar? Baker abanou a cabeça. — Isso não adiantará. Não temos acusação alguma contra êle. Providencie um carro para mim. Quero saber para onde êle vai quando desembarcar. O agente saiu da sala e Baker dirigiu-se a Ileana. — Vá para o hotel e fique perto dele. — Isso é que não! — respondeu a mulher, assustada. — Êle não lhe fará mal nenhum enquanto não souber que trabalha para nós. — A voz dele tornou-se dura. — Ou prefere a deportação? — Antes ser deportada do que ser assassinada — foi a resposta de Ileana. — Torpeza moral é acusação grave — continuou êle. — Significa que jamais poderá voltar a este país. E não será bom para você ver tudo isso publicado nos jornais. Ela o encarou com ressentimento. — Na Europa são muito mais compreensivos. Sabem que algumas mulheres não foram feitas para trabalhar. — Pegou um cigarro e bateu nervosamente com êle na mesa. Baker acendeu o cigarro para ela e recostou-se na cadeira. Sabia que a tinha nas mãos. — Acho que nós, americanos, também sabemos — disse, sorrindo. — Somos apenas mais discretos.


Ela aspirou profundamente o cigarro. — Começo a ter a impressão de que o sexo é considerado antiamericano. Êle a observou por um momento e, quando falou, sua voz era quase amável. — Está com medo, não? Ela concordou, a contragosto. — A principio pensei tratar-se de uma brincadeira. Agora que compreendo tudo, começo a ficar muito assustada. Baker levantou-se e aconselhou : — Procure não ficar assustada, baronesa. Nós vigiaremos a senhora. Prometo que a afastarei ao menor sinal de perigo.

O jovem agente que se encontrava com Baker assobiou ao ver Luke entrar no táxi com Cesare, em frente ao aeroporto. — Aquele tipo tem uma sorte com as mulheres! Não acha, chefe? Baker acenou afirmativamente. Viu o táxi pôr-se em movimento. — É melhor irmos andando — disse. O agente pôs o carro no torvelinho do trânsito. Havia outro carro entre o deles e o táxi de Cesare. — Quer que o ultrapasse ? — perguntou o agente. — Não, continuemos assim — foi a resposta de Baker. Rodaram silenciosos por cerca de dez minutos até chegarem às proximidades de Jamaica Bay. Baker olhava atentamente para o carro da frente. Continuaram atrás do misterioso automóvel. De repente, este aumentou a velocidade e passou para a esquerda do carro de Cesare. Baker teve a impressão de que havia algo errado nessa manobra. Trabalhava há muito tempo naquele serviço, para fazer pouco caso de pressentimentos. Desabotoando o casaco, tirou a pistola do coldre. — Siga bem junto desse carro — disse ao motorista. — Não estou gostando nada disto. Obedientemente, o agente chegou-se para a esquerda. — Aquele carro está procedendo de maneira estranha — disse. Nesse mesmo instante, o som de uma explosão abafada chegou até êle. — Estão atirando! — gritou. — Mais depressa! — ordenou ao motorista, enquanto se inclinava para fora e disparava contra o carro da frente. O táxi em que Cesare viajava desviara-se para a beira da estrada, quando passaram por êle. Baker não tinha meios de saber se havia alguém ferido. Atirou outra vez. A bala abriu um buraco no vidro traseiro do carro que perseguiam. O motorista inclinou-se para a frente, e o carro deu uma volta, saindo da estrada e mergulhando nas águas da baía. Antes de atingir a água, uma porta se abriu e Baker viu um homem saltar. Agora êle corria pela relva. Baker saltou do carro e passou a persegui-lo. — Pare! — gritou Baker dando um tiro para o ar. O homem voltou-se e Baker viu qualquer coisa brilhar na mão dele. Logo a seguir sentiu a bala zunir e ouviu o estampido do tiro.


Baker atirou-se ao chão. O fugitivo corria outra vez. Baker apontou a arma para as pernas do homem e puxou o gatilho. Queria aquele vivo, para falar. Mas o primeiro tiro falhou. Atirou novamente. Dessa vez o homem caiu e não se mexeu mais. O jovem agente apareceu, a correr, de pistola na mão. — O senhor está bem? Baker levantou-se. — Sim. — O homem do carro está morto — informou o agente. Baker apontou o homem caído. — Vá ver como está aquele. Tentei atingi-lo apenas nas pernas. O agente correu para o lugar onde o homem ficara estendido. — Morto também! — gritou. Baker, aborrecido, meteu a pistola no coldre. Então, ouviu a voz de Cesare, às suas costas. — O senhor é um bom atirador! — Sorria. Baker olhou para êle, quase com tristeza. O homem devia ter nervos de aço. Tentavam matá-lo e a voz dele era tão calma como no dia em que o recebera no escritório. — Desta vez não pode dizer que não estavam disparando contra o senhor, Conde Cardinalli — disse, tentando manter a voz tão calma quanto a do outro. Cesare encolheu os ombros. — Não posso, senhor Baker. — Uma espécie de desafio jocoso brilhava nos olhos dele. — O que não compreendo é... por quê? Os olhos de Baker tornaram-se frios. — Também não sabe por que Allie Fargo foi morto numa cabana a cerca de um quilômetro do ponto em que o seu carro saiu da estrada, lá na corrida do México? Cesare sorriu. — Nem sequer sabia que êle tinha sido morto. Não leio jornais, como já lhe disse. — E como passou o seu tempo na estrada? — perguntou Baker. — Pergunte ao meu mecânico. Aliás, está no carro, retocando a maquilagem. — Você tem habilidade para arranjar mulheres que lhe sirvam de alibi — disse Baker sarcàsticamente. Cesare continuava a sorrir. — Tenho muita sorte — concordou. Baker viu aproximar-se um carro da polícia. — Vá, Cardinalli, divirta-se. Mas lembre-se de que nem sempre estaremos por perto para protegê-lo.

O táxi parou na esquina e Cesare saltou. — Espere — disse a Luke. — Vou ao escritório por um instante. A recepcionista surpreendeu-se ao vê-lo. Havia um grupo de funcionários em volta do bebedouro, que voltou correndo para as respectivas mesas assim que o avis-


taram. Êle cumprimentou-os e entrou no gabinete. — Venha! — disse, passando pelo pequeno escritório de miss Martin. Uma vez no gabinete, voltou-se para a secretária e perguntou : — Que foi que aconteceu? Por que não estão trabalhando? Miss Martin fitou-o com curiosidade. — O senhor está bem ? — perguntou. — Claro que estou bem — resmungou êle, aborrecido. — É que acabamos de saber que atiraram contra o senhor, no caminho para a cidade. — É essa a desculpa por estarem conversando na hora do serviço? Pago-lhes para trabalharem e não para conversarem. — Eles não têm nada que fazer — explicou miss Martin. — Por quê? — interrogou Cesare, furioso. Ela pegou num telegrama que se encontrava em cima da mesa e entregou-o ao patrão. — Este é o último — explicou ela. — Chegou há uma hora. Êle olhou para a mesa e pegou nos outros telegramas que lá se encontravam. Diziam praticamente o mesmo. As duas companhias italianas, as duas inglesas, a companhia francesa e a sueca. Olhou para a secretária. — Quando foi que isso começou? — perguntou. — Na manhã em que o senhor partiu para o México. Não compreendendo. É como se alguém tivesse dado um sinal. Êle olhou para os telegramas que ainda tinha na mão e atirou-os para cima da mesa, raivosamente. A Sociedade sentia-se muito segura de si mesma. Tão segura de que êle morreria, que não vira necessidade de continuar concedendo licenças de exportação à firma do conde. Tinha de falar a Matteo. Aquele assunto já estava indo longe demais. — Lamento, senhor Cardinalli — disse a secretária, com simpatia. — Tentei entrar em contato com o senhor, no México, mas, quando telefonei para o hotel, já tinha saído para a corrida. Penso que isto talvez aconteça por causa do que tem aparecido nos jornais a seu respeito. Êle não respondeu. Estava pensando. Alguém teria que levar uma mensagem ao correio de sua aldeia na Sicília. Tinha certeza de que Matteo estava na América, em qualquer lugar, mas podiam-se passar vinte anos sem que se encontrassem. A voz da secretária interrompeu-lhe os pensamentos. — Que pretende fazer? — perguntou. — Que posso fazer? Pague a todos os empregados, dê-lhes a indenização habitual e diga-lhes que, se as coisas se acomodarem, chama-los-emos de novo. — Acha que as coisas se arranjarão? — Não sei — disse êle, dirigindo-se para a saída. Parou e olhou-a. — E, francamente, não me interessa saber!

22


Cesare fêz girar a chave na fechadura. Abriu a porta. — Entre — disse a Luke. Ela entrou no apartamento e êle a seguiu, fechando a porta. A voz de Ileana fêzse ouvir, vinda do quarto. — Cesare, é você? Êle olhou para Luke por um momento. O rosto dela estava inexpressivo. Então, sorriu. — Sim, Ileana — respondeu. A voz dela continuava a vir do quarto. — Não sei o que está acontecendo neste mundo! Todos os ricos texanos que encontro ou são casados ou patetas! Este queria que eu o ajudasse a fazer compras para a mulher! Cesare não pôde deixar de sorrir mais largamente, vendo a expressão de Luke. — Isso é mau, Ileana — disse. — Não escutei — respondeu ela. — Mas não importa Mandei Tonio pôr uma garrafa de champanha na geladeira, para nós. Seja bonzinho e dê-me uma taça. Eu já vou! Êle dirigiu-se para o bar. O champanha lá estava, gelado, tendo junto duas taças. Solenemente tirou outra taça e colocou-a junto das outras. Então abriu a garrafa e começou a encher as taças. Ileana saiu do quarto abotoando o seu fino negligé. Sorria. — Não pude esperar por você... — O sorriso desapareceu quando viu Luke no meio da sala. Dirigiu a Cesare um olhar interrogativo. Êle olhou para uma e para outra, achando divertida a situação. — Acho que vocês só se conhecem de vista. — Sorriu. — Permitam-me apresentá-las. Fêz as apresentações e deu a cada uma delas uma taça de champanha. Ergueu a taça num brinde. — A uma feliz amizade! Sorriu e bebeu. Ileana olhou friamente para Luke e voltou-se depois para Cesare, sorrindo docemente. — Apesar de ela ser bastante magra, não acha que este apartamento é muito pequeno para um menage à trois? — perguntou em francês. Cesare respondeu no mesmo idioma. — Não pareça uma gata, Ileana. Ela tem talentos insuspeitados. — Não duvido — replicou secamente Ileana. — Mas se a direção do hotel faz objeções a uma só, o que pensará de duas? Ou você lhes explicou que agora se tornou muçulmano? Foi então que a idéia ocorreu a Cesare. Sabia agora como se comunicar com Matteo. Seu sorriso tornou-se mais amplo. — Eles não se importam — disse ainda em francês —, porque eu já lhes disse que você partiria hoje à noite para a Itália e que ela vai ocupar seu quarto até você re-


gressar! Ileana olhou para êle. — Isso é que não! — disse, furiosa. — Não vou ficar de lado enquanto você se regala com essa cadela! Ela atirou o copo em cima dele e voltou para o quarto, batendo a porta atrás de si. O copo se espatifou em mil pedaços ao bater na parede. Cesare olhou para os fragmentos e depois virou-se para Luke. — Ileana é muito temperamental — disse em inglês. — O importante é: ela irá? — perguntou Luke em perfeito francês. Êle a fitou por um momento, depois soltou uma risada. — Você entendeu tudo? Ela estava rindo. — Tudo, tudo — confirmou. — Mas isso não responde à minha pergunta. — O sorriso desapareceu de seus lábios. — Ela irá? — Naturalmente que irá — disse Cesare confiante, ainda sorrindo. — Eu e Ileana somos velhos amigos. Ela faria qualquer coisa por mim.

Tonio pousou o telefone e voltou à sala de jantar. Eles o fitaram. — Era a companhia de aviação, excelência — explicou o criado. — Confirmaram a reserva da baronesa para esta noite. — Obrigado, Tonio — disse Cesare. Ileana esperou a saída de Tonio e depois voltou-se para Cesare: — Não vou, Cesare! Não importa o que você diga, não vou! Cesare encarou-a sem expressão. Pelo canto dos olhos, percebeu que Luke o estava observando com ar divertido. Isso o irritou. — Você fará o que eu digo, Ileana! — Sua voz já estava mais áspera. — Ou prefere que as autoridades de imigração saibam que não trabalha realmente para mim? Ileana virou-se para Luke. Esta olhava para o fundo do prato. — Por que não manda Luke? — perguntou a Cesare. — Você sabe que não posso fazer isso. Ela não saberia como agir. Agora, acabe de comer e prepare suas coisas. O jato para Roma parte à meia-noite. Ileana largou com raiva a colher e levantou-se furiosa da mesa. Ouviram quando bateu novamente a porta do quarto. Luke levantou a cabeça. Havia um leve sorriso em seus lábios: — Ileana fará tudo por mim — repetiu, imitando Cesare. Este não gostou do seu ar de troça. — Cale-se! Ela vai, não vai? Ileana havia fechado a chave a porta do quarto. Atravessou-o rapidamente e pegou o telefone, dando um número à telefonista. Atenderam do outro lado. — Quero falar com o senhor Baker, por favor — disse em voz baixa. — Sim — disse a voz dele ao telefone. — Êle vai mandar-me para a Sicília. Para a aldeia dele. Tenho que ir ao correio da aldeia deixar um recado. A voz de Baker era interessada.


— Que recado? — perguntou. — É este — respondeu Ileana, repetindo-o: "Diga a meu tio que preciso me encontrar com êle". Depois terei de esperar no hotel que o correio me dê a resposta, para trazê-la até êle. — Bom — disse Baker. Já estamos chegando a algum lugar. Ileana sentia o medo crescer dentro dela. — É só isso que tem para dizer, senhor Baker ? Talvez não saiba, mas o tio de Cesare morreu há mais de doze anos! Não se leva um recado para um morto! — Não se preocupe — respondeu êle com voz tranquilizadora. — O "tio" que vai receber o recado está bem vivo. Na Sociedade, os padrinhos dos que entram são sempre chamados de "tios". A voz dela tornou-se de súbito muita baixa. — Se é para a Máfia que vou levar o recado, senhor Baker, então lhe digo que estou realmente assustada. Eles não hesitarão em matar-me! — Já lhe disse que não se preocupe. No avião irá um homem que a acompanhará para toda parte. Nunca estará sozinha. Disse que preferia os ricos texanos, não disse? Bem, repare num que embarcará no avião. Vagarosamente, ela desligou o telefone e acendeu um cigarro. Abriu as portas que davam para o terraço e saiu, apesar do frio. Olhou para as luzes cintilantes da cidade, na fria noite de inverno. O ruído de vozes chegou aos seus ouvidos. Curiosamente olhou para baixo. As vozes não vinham da rua, mas da varanda que ficava por baixo da dela. Viu um rapaz e uma moça abraçados. Viu o rosto da jovem erguer-se para beijar o rapaz. Pareciam esquecidos do frio. Ileana estremeceu e entrou no quarto, fechando cuidadosamente as portas. Há muito tempo sentira o mesmo que aquela menina que ali estava. Pensou vagamente se algum dia tornaria a sentir o mesmo. Subitamente, compreendeu que não. Isso tinha passado, tinha ficado para trás no quarto da mãe, quando contava apenas dezenove anos. Pela primeira vez, há muito tempo, pensou nos pais. Sentia-se perdida como eles. Sentiu as lágrimas caírem-lhe pela face. E chorou por eles.

23

Baker debruçou-se na mesa e olhou para o Capitão Sprang. — Dan, parece que estamos tendo a nossa primeira oportunidade. Cardinalli pediu um encontro com o "tio". Se esse encontro se realizar e se o "tio" fôr quem eu julgo, teremos o caso resolvido! O oficial de polícia sorriu. — Já não é sem tempo. Mas o que acontecerá se os gangsters apanharem Cardinalli antes disso? Baker abanou a cabeça:


— Não podemos permitir que isso aconteça. Os riscos são muito grandes. — Mas não podemos estar sempre perto todas as vezes que disparam contra êle — disse Sprang. — Eu sei, mas tenho um plano — tranqüilizou-o Baker. — Vamos ouvi-lo — disse Sprang. Baker fitou-o e baixou a voz para um tom confidencial. — Terá de ficar entre nós. O chefe não gosta disto. Não é do regulamento. Sprang sorriu. — Já estou simpatizando com esse plano — disse — e ainda nem sei qual é. — Vamos assustar o conde e fazer com que se esconda — disse Baker. — Começaremos uma campanha. Chamadas telefônicas de hora em hora. Poremos atrás dele os homens mais mal-encarados que tivermos e faremos com que êle os veja. Pensará que são da quadrilha. É preciso que êle prefira ficar escondido até o encontro ser acertado. Sprang olhou-o pensativamente. — Pode ser que dê resultado! — Tem que dar! — disse Baker. — Uma vez que o tenhamos escondido e saibamos onde está, poderemos controlar a situação. Sprang olhou-o. — Mas, se falharmos, perderemos os nossos empregos. — Eu sei — respondeu Baker. — Você detesta aquele tipo, não? — perguntou Sprang. — Sim — admitiu Baker. Sentia-se tão emocionado que se levantou e caminhou até à janela. Quando falou de novo, sua voz tremia: — Consigo entender a maioria desses tipos. Conheço os lugares de onde vieram, onde nasceram. Sei como começaram. Compreendo como erraram e por quê. Mas aquele, não consigo compreendê-lo. Tem tudo. E parece não querer nada. Talvez faça o que faz apenas para se divertir. Pelo prazer de matar. Não sei. Só sei que precisamos detê-lo, pois, se não o fizermos, muita gente morrerá. Não apenas gangsters, mas também gente inocente como aquela jovem que êle matou na Flórida. Ninguém sabe até onde chegará um louco desses! Sprang pegou no cachimbo apagado e despejou-o no cinzeiro. Depois colocou-o entre os lábios e voltou-se para Baker. O sorriso que lhe brilhava nos olhos desmentia a dureza de sua voz: — Há trinta anos que estou na polícia mas, na verdade, nunca apreciei empregos estáveis.

O telefone começou a tocar, Cesare atendeu. — Cardinalli — disse. Cesare jamais ouvira aquela voz rude e áspera. — Cardinalli? — dizia a voz ameaçadora — o stiletto já não serve para nada. Apanhar-te-emos mais cedo ou mais tarde. Por que não desistes logo? Mais nada. Impacientemente, Cesare sacudiu o telefone. — Quem fala? Quem fala? Não obteve resposta. Desligou e dirigiu-se para o sofá onde se encontrava Luke.


Ela o fitou com curiosidade. — Quem era? — perguntou. — Uma ameaça. Provavelmente de algum gangster barato. Luke abanou a cabeça. — É assim que eles começam. Já vi isso antes. Tentarão cansá-lo. Cesare estava furioso. — Se julgam que conseguem assustar-me com seus telefonemas, estão muito enganados. Hão de descobrir que sou muito diferente da canalha com quem costumam lidar. — Dirigiu-se para a porta. — Aonde vai ? — perguntou Luke. — Vou lá embaixo ver se Ileana está pronta para a viagem. Quer vir? Ela sacudiu a cabeça. — Não, obrigada — disse. — Tenho mais que fazer do que ir dizer adeus à sua amiga.

Êle sorria ao descer as escadas do aeroporto para se dirigir ao parque de estacionamento onde tinha deixado o carro. Ileana cumpriria bem a missão. Não se precisava preocupar com ela. A mensagem seria entregue. Havia uma coisa estranha nela. Quem, a não ser Ileana, se lembraria de aproveitar todas as oportunidades numa ocasião daquelas? Quase se permitiu rir ao pensar na maneira como Ileana tinha encontrado o rapaz de chapéu branco. É claro que tinha todo o aspecto de um rico texano. O rapaz estaria bastante mais pobre quando o avião chegasse ao destino. Entrou no parque de estacionamento e dirigiu-se para o carro. Era tarde e havia ali poucos veículos. Ouviam-se sons de passos que seguiam os seus. Parou um momento e olhou para trás. Não viu ninguém. Ouviu de novo os passos. Parou para acender um cigarro. Os passos cessaram. Uma vez aceso o cigarro, recomeçou a andar. Momentos depois, ouviu outra vez os passos. Eram firmes e não pretendiam ocultar-se. Desta vez tinha certeza de que o seguiam. Começou a andar mais devagar para ver se os passos mantinham o mesmo ritmo dos seus. Mantinham. Estava quase junto do seu carro. Deixou o stiletto deslizar-lhe para a mão. O frio do metal era tranqüilizador. Parou entre dois automóveis e voltou-se subitamente, com a faca na mão. — Quem está aí? A sua voz ecoava estranhamente no parque vazio. Não obteve resposta. Esperou um momento. Estava tudo silencioso. O que ouvira tinha sido apenas o eco dos seus próprios passos. Guardou o stiletto. Estava deixando que aqueles estúpidos telefonemas o perturbassem. Riu para si próprio, sentindo a tensão desaparecer ao entrar no carro. Pôs o Alfa-Romeo em movimento e saiu do parque de estacionamento. Conhecia o tipo de mulher a que Luke pertencia, mas sabia também que ela não era daquelas que iam com qualquer homem. Era uma mulher que procurava com quem se identificar. E quando encontrava, era como se achasse uma chave mágica para o seu próprio corpo e não podia então controlar seus desejos.


Depois, seguia-se uma luta para demonstrar sua superioridade. Primeiro, sexualmente, com pedidos que iam além do natural. Sorriu. Era nessa fase que ela se encontrava agora. Depois viriam as outras fases. A insistência para ser aceita como uma igual ao macho no trabalho, depois o propósito de demonstrar sua superioridade sobre o macho, pela feminilidade. Isso ela jamais conseguiria fazer. Nem com êle, nem com qualquer outro, pois nunca se sentiria atraída pelos fracos. Por esses, sentia apenas desprezo. Mais tarde, viria o desejo de repudiar o homem, o que a absolveria ante a própria consciência e lhe permitiria continuar a viver da mesma maneira. Portanto, não seria difícil para êle, quando aquilo acabasse, fazer o que tinha de fazer. Por um lado, até era bom para ela. Nessa altura seria também fácil para êle. Estaria já farto dela. Ileana teria, então, voltado. Pensou nela com um sorriso. Talvez se casassem. Era o momento de pensar em fazer com que o seu nome não desaparecesse. O sangue dele e o de Ileana eram bons e, além disso, Ileana era européia.

24

— Bem, passaram-se dois dias — disse Sprang. — Como acha que estão correndo as coisas? Baker encolheu os ombros. — Nunca se pode saber. Êle pega o telefone e desliga antes que os homens possam dizer qualquer coisa. — Tomou um cigarro e acendeu-o. — O que é que seus homens dizem? — O habitual. Dizem que êle olha por cima do ombro e que observa bem as portas antes de entrar e sair. Parece que começa a ficar assustado. — E a jovem? — perguntou Baker. — Que tal é ela? — Ela parece em melhor estado que êle — disse Sprang. — Anda sempre em sua companhia, mas não parece perceber o que está acontecendo. — Fiz uma completa investigação sobre ela — tornou Baker. —- Parece direita. Costuma dirigir carros de corrida. Muito boa nisso, aliás. Teve um pouco de azar e perdeu o seu próprio carro, no ano passado. Parece que andou economizando para comprar um novo. — Isso não ajuda muito — disse Sprang. — Não explica sua ansiedade para reforçar o alibi dele quanto ao que ocorreu no deserto do México. — Ela parece desejar muito um novo carro — explicou Baker —, e êle é o tipo do sujeito capaz de satisfazer esse desejo. — Agora parece que não. Acabamos de descobrir que todas as suas representações de automóveis foram canceladas. — Todas? — estranhou Baker. — Todas — confirmou Sprang. - Gostaria de saber se isso significa alguma coisa. — Deve significar — respondeu Baker. — Vou mandar investigar agora mes-


mo. O telefone tocou. Baker atendeu e estendeu o fone para o companheiro. Sprang ouviu por alguns momentos e depois desligou o aparelho. — Era um de meus homens — explicou. — Cardinalli e a moça acabam de entrar no Pavillon, na Rua 57, para almoçar. Baker sorriu e apanhou o telefone. — É hora de uma nova chamada — disse, sorrindo. E ao telefone: — Chame o senhor Cardinalli no restaurante Pavillon e coloque o disco para êle, de novo.

— Garanto que aquele homem nos estava seguindo — insistiu Cesare. — Eu o reconheci. Já o vi antes. Luke olhou para êle : — Tem certeza, Cesare? Não vi ninguém. — Êle estava antes na esquina de Park Avenue, tenho certeza. Cesare silenciou quando o garçom trouxe os drinques. Saborearam silenciosamente suas bebidas até o homem se afastar. Luke colocou sua mão sobre a do conde. — O que você precisa é de um pouco de repouso — disse, carinhosamente. — Não dormiu nem um pouco a noite passada. — Quem pode dormir com aquele maldito telefone tocando? — exclamou Cesare irritado. —- Houve quatro chamadas antes de tirarmos o fone do gancho. — Eu deixaria logo o telefone desligado — disse Luke. — E confessar a eles que me derrotaram? — perguntou Cesare. — É isso o que eles estão querendo. O garçom se aproximou da mesa com um telefone na mão. — Um chamado para o Conde Cardinalli — curvou-se. Cesare olhou para Luke. — Está bem, eu atendo — disse para o garçom. O homem fêz nova mesura e colocou o aparelho em uma mesinha ao lado, ligando o fio a uma tomada ali existente. Cesare apanhou o fone, dizendo: — Fala Cardinalli. Luke viu como sua face se retesava enquanto êle ouvia. Depois desligou o telefone sem dizer nada. Meneou a cabeça em resposta à pergunta que os olhos dela estavam formulando. — Novamente — disse, afinal, num sussurro, apanhando o seu copo. — Como vê, estavam-nos seguindo. Sabiam onde poderiam falar comigo. O telefone começou a tocar quando entravam no apartamento. Tonio apressouse a ir atender. — Residência do Conde Cardinalli. Um momento, vou ver se está. — Há uma chamada para sua excelência, mas não querem dizer o nome. Dizem apenas que têm um recado importante para o senhor. — Eu atendo — disse Cesare, dirigindo-se para o telefone. Ouviu no mutismo mais absoluto, enquanto Tonio saía silenciosamente do quarto. — Maldito instrumento de tortura! — gritou, arrancando o telefone da parede e atirando-o no chão. Tonio entrou apressadamente. — Limpe isso! — gritou Cesare.


— Sim, excelência. Imediatamente, excelência! Cesare inclinou-se para a frente e escondeu a cabeça entre as mãos. Luke colocou-se atrás dele e começou a massagear-lhe a nuca. — Calma — disse. — Isso não adianta nada. Vou preparar uma bebida. Dirigiu-se para o bar e tirou a garrafa de gim e a de vermute. Depois, procurou o bitter. Sabia que os europeus gostavam muito de bitter no vermute. Não o viu em nenhuma das prateleiras do bar. Reparou, então, que uma das prateleiras estava fechada. Abriu-a e viu uma pequena garrafa preta. Levou-a para Cesare. — Quer um pouco de bitter? Êle fitou-a. — Onde achou isso? — perguntou. Ela fêz um gesto com a mão. — Ali — disse. — Eu sei que você gosta... — Ponha imediatamente onde a encontrou! — gritou êle. — E não toque em coisas fechadas a chave. — Não precisa falar assim — replicou ela, indo guardar novamente a garrafa. — O bitter está na prateleira de baixo — disse Cesare já mais calmo. — Afinal, o que contém aquela garrafa ? — perguntou Luke. Êle olhou-a e bebeu um gole da bebida que tinha na mão. — É veneno. Um dos venenos que Lucrécia Bórgia empregou. Bastam algumas gotas e não há antídoto para êle. Ela olhou curiosamente para o armário. — Eu não me sentiria segura com isto aqui — disse. — Ninguém mexe aí, nem mesmo para fazer limpeza. — Acabou a bebida, fechou os olhos e exclamou: — Sinto-me tão cansado! — Eu sei, querido — disse ela gentilmente. — Se houvesse um lugar onde pudéssemos ficar até Ileana voltar! — É isso mesmo! — exclamou. — Por que não pensei nisso antes? Conheço um lugar ideal. Nunca se lembrarão de nos procurar ali! Ela sorriu para êle. Começou a sentir um calor por dentro. Chegaria o tempo em que êle sentiria quão necessária ela se tornara.

O sargento-detetive McGowan olhou para o relógio. Eram quase onze horas. Mais uma hora e seria substituído. Bateu com os pés gelados. Era a única coisa aborrecida da sua profissão. Já estava à espera na porta do hotel desde as quatro horas da tarde. No entanto, havia serviços piores. Pelo menos não precisava tentar manter-se invisível, como acontecia outras vezes. Nas histórias da televisão era tudo muito fácil. Bastava um homem para vigiar uma pessoa e nunca a deixava escapar. Na vida real, as coisas não-, se passavam assim. Eram seis homens em volta do hotel. Dois em cada entrada e dois dando a volta ao edifício, ininterruptamente, prontos a ajudar se fosse preciso. O carro tinha feito a volta em Lexington Avenue quando eles saíram do hotel.


A pequena transportava uma maleta e o homem olhava repetidamente para um lado e para o outro da rua. Chamaram um táxi e começaram a caminhar rapidamente para Lexington Avenue. McGowan começou a segui-los. Foi pouca sorte eles terem escolhido aquele momento para escapar. Não chegariam a casa senão lá para as seis da manhã. Viraram a esquina e dirigiram-se para a Rua 51. O homem olhou para trás. Não tentou esconder-se. Depois deram a volta na esquina da rua e desceram por uma das entradas do subway. Correndo, chegou ao alto da escada quando ouviu que um trem parava na estação. O capitão não gostaria que êle os perdesse de vista. Pelo canto dos olhos pareceu ver uma sombra a um canto, na curva da escada. Subitamente, sentiu uma violenta pancada no pescoço, e seus joelhos se dobraram. Não perdeu completamente os sentidos, mas viu luzes diante dos olhos e sentiu campainhas nos ouvidos. Era como na TV, pensou vagamente. Sua visão começou a aclarar. Sacudiu a cabeça. Agarrou-se à parede e ergueu-se. Ficou um momento aturdido, olhando para a plataforma. Viu-os entrar no trem. Correu, mas quando se aproximou já as portas se estavam fechando e o trem partia. Pôde ver a cara do homem através do vidro da janela. Sorria. Dirigiu-se para a cabina telefônica. O capitão não gostaria nada de saber que eles tinham escapado, mas devia tê-lo avisado de que o tipo poderia atacar. Começou a discar o número.

Sprang desligou. Olhou para Baker. — O plano deu resultado — disse com ar aborrecido. — Mas deu resultado demais. Êle atacou McGowan. Escaparam pelo subway. — A pequena também? — perguntou Baker. Sprang fêz um sinal afirmativo. Baker tirou um cigarro do maço. Os dedos tremiam-lhe. — Que Deus os ajude se a Máfia os apanhar antes de nós — murmurou. — Se assim fôr, é melhor prepararmos nossos pedidos de demissão — murmurou Sprang. — O meu já está pronto, na minha gaveta.

25

Há poucos lugares em Nova York que resistam tanto ao avanço dos modernos conjuntos residenciais como a parte alta de Park Avenue. Uma das razões é que essa área é a meca de compras do Harlem espanhol. Existe ali, debaixo dos trilhos da New York Central, um dos últimos mercados da cidade. As pessoas que fazem compras ali são, na maioria, pôrto-riquenhos e vivem a andar de um lado para o outro com suas roupas de cores vistosas, entre barracas e carroças, conversando, com ar alegre e feliz como se estivessem em casa, na sua ilha tropical. Há também hotéis naquele lado de Park Avenue. Não se parecem muito com


os hotéis situados mais abaixo, na mesma avenida, mas servem para o mesmo fim. São um local onde se pode comer, dormir e descansar de uma viagem. A principal diferença entre esses hotéis, além do mobiliário e da decoração é que aqueles não aceitam cheques. No Harlem espanhol, os hotéis só se interessam por dinheiro.

Cesare voltou as costas à janela, no Del Rio Hotel, e olhou para Luke, que estava sentada numa cadeira lendo os jornais da manhã. Acendeu um cigarro. — Não pode parar de ler esses malditos jornais ? Luke ergueu os olhos para êle. Durante toda a semana êle tinha estado assim. Nervoso e irritado. Fazia duas semanas que Ileana partira e eles tinham permanecido no quarto a maior parte do tempo. A princípio tinha sido engraçado. Riam muito das deficiências do hotel: a cama inconfortável, as cadeiras quebradas e a torneira pingando. Pouco a pouco, porém, o quarto foi ficando opressivo e certa manhã nada mais lhes parecia engraçado. Ela compreendia bem o que estava acontecendo, mas êle parecia não perceber nada. As mulheres são muito mais adaptáveis do que os homens. Sua paciência é sempre infinita. São mais bem equipadas para esperar, tanto mental como fisicamente. Ela se sentia apenas um pouco melancólica, e agora desconfiava que estava novamente para ser mãe. — Por que não descansa um pouco? — perguntou ela, pacientemente. Êle voltou-se impetuosamente para ela. — Descansar? E que estou fazendo neste hotel? Comendo péssima comida e dormindo nessa cama dura há tanto tempo? Estou farto! — É melhor do que ser assassinado — disse ela. — Às vezes tenho minhas dúvidas — começou êle, voltando a olhar pela janela. Luke recomeçara a ler os jornais mas, ao perceber que êle estava falando para ela, ergueu os olhos. — Costumava ver gente assim lá na minha aldeia da Itália. Era ainda um menino. Veja como eles vivem sorrindo, olhando para um lado e para o outro, catando o que comer. Ela levantou-se da cadeira e foi para o lado dele, à janela. — Parecem completamente felizes — disse, olhando para baixo. Cesare tinha um tom de admiração na voz. — É isso que nunca pude entender. Por que são felizes o tempo todo? Que têm eles que nós não temos? Saberão que o mundo foi feito para uma minoria que o desfruta? Deviam compreender isso, e, no entanto, continuam a sorrir, a gargalhar e a fazer filhos. Que têm eles que nós não conseguimos ter? Ela o fitou. Lembrava-se de quando era pequena. Do encantamento de ir à cidade nos dias de compras. Pobre Cesare, havia tantas coisas que êle nunca tivera! — Talvez eles tenham esperança — disse. Êle a fitou. — Esperança? Uma palavra inventada pelos sonhadores. Ela tentava fazê-lo compreender. — Talvez tenham fé. Êle riu outra vez.


— Uma palavra inventada pelos padres. Ela não conseguia tirar a mão do braço nu dele. Talvez que, pelo contato, ela o fizesse compreender a maneira como sentia. — Talvez tenham amor — disse suavemente. Êle se voltou e empurrou-lhe a mão. — Essa palavra é a mais falsa de todas. É uma palavra inventada pelas mulheres para mascarar as suas necessidades biológicas. Amor! Bah! Ela voltou a sentar-se na cadeira. Pegou nos jornais, mas sem os ler. Sentia dentro de si uma dor estranhamente familiar. — Talvez eu não saiba, então? — replicou. Êle saiu da janela e aproximou-se. Ficou a olhá-la. Não precisava olhar para êle para saber que seu sorriso era cruel. Tinha-o visto muitas vezes nos últimos dias. Todas as vezes que êle se afastava dela, que se esquivava da necessidade desesperada que ela sentia dele. — É isso mesmo — explicou êle. — Você não sabe. A verdade é que ninguém sabe. Mas eu sou o único a admiti-lo. Não há mais nada além do desejo de existir. A maior parte das pessoas não se importam com isso. Existem apenas. Vivem o dia-adia sem se importarem. Ela ia responder, quando bateram à porta. Quando ela ergueu o olhar, êle tinha o stiletto na mão. — Sim? — São os jornais da tarde, minha senhora. — Está bem. Deixe-os aí que depois eu apanho. — Sim, minha senhora — replicou a voz. Esperaram um momento e ela ouviu os passos do homem que se afastava. Levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a porta. Abriu-a rapidamente, pegou nos jornais e voltou a fechá-la. Em seguida, dirigiu-se outra vez para a cadeira. Desdobrou um dos jornais. Êle tirou-lhe o jornal da mão com um arranco. — Nunca mais acabará de ler esses malditos jornais? Pacientemente, ela apanhou o jornal e foi, então, que viu a fotografia. — Cesare! Cesare! — exclamou, mostrando o jornal. — Olhe! Ela voltou! Na página ilustrada do jornal vinha uma fotografia de Ileana, sorridente, acenando ao descer do avião. A legenda sob a fotografia era simples: "A Baronesa Bronczki Regressa de Suas Férias no Estrangeiro".

O grupo de homens que se encontrava no escritório de Baker inclinou-se ansiosamente para a frente, ao ouvir a voz de Ileana no alto-falante que se encontrava sobre a mesa. — Alô! — dizia ela. A voz de Cardinalli parecia nervosa e apressada. — Fala Cesare. Deu o recado. Tem a resposta? Um dos agentes pegou num telefone e disse qualquer coisa em voz baixa. — Onde está você, Cesare? Está bem? — Era a voz de Ileana, novamente.


— Ela está fazendo como nós dissemos — explicou Baker. — De onde vem a chamada? — Estamos tentando localizá-la o mais rápido possível — respondeu o agente. — Tenho — respondeu Ileana —, mas não compreendo. — Isso não interessa — resmungou êle. — Repita para mim! A voz dela era hesitante. —- Hoje é noite de lua cheia. Ouviram um estalido, quando Cesare desligou, e de novo a voz de Ileana. — Cesare! Cesare! Alô! Alô! Baker olhou para o agente. O agente sacudiu a cabeça. — Conseguiu? — Êle desligou depressa demais. Ouviu-se novamente a voz de Ileana. — Cesare! Baker pegou no outro telefone. — Êle já desligou, baronesa. A voz dela parecia assustada. — Fiz bem, senhor Baker? — perguntou. — Detive-o o mais que pude. — Fêz muito bem, baronesa — disse com uma confiança que não sentia. — Temos a situação sob controle. — Certamente poderemos fazer qualquer coisa se êle sair do esconderijo amanhã — disse um dos agentes mais novos. — O quê? — perguntou Baker. — Êle mandou a mulher para fora do pais a fim de lhe trazer um recado — disse o outro. — E então? Não há nenhuma lei que proíba isso. O agente abanou a cabeça e saiu do escritório. Baker voltou-se para o Capitão Sprang e sentou-se em frente a êle. Sprang fitouo. — Foi uma boa tentativa, Baker — disse calmamente. Baker sorriu com ar cansado. — É, mas não o suficiente. — Você fêz o que podia — disse Sprang. — Sejamos honestos. Está tudo acabado. — Dirigiu-se para a janela e olhou para baixo. — Se Cardinalli aparecer amanhã, quer dizer que o stiletto conseguiu resolver o assunto. Se não aparecer, bem... de qualquer maneira perdemos. Não estamos mais perto de Matteo do que estávamos antes. Voltou-se para o policial, com voz amarga. — Eles nos venceram, Dan. De qualquer modo, perdemos.

26


Saíram do hotel cerca das dez horas da noite. — Não é longe daqui — disse êle, quando começaram a andar. Viraram em Park Avenue, esquina da Rua 116, e dirigiram-se para Madison Avenue. Deram várias voltas e, a certa altura, Cesare tocou-lhe no braço. — É do outro lado da rua — disse. Ela olhou. Era um desses velhos edifícios de pedra escura em que havia um bar no rés-do-chão. Um pequeno letreiro de luz fluorescente dizia "The Quarter Moon Bar", em letras brancas e verdes. Ela deixou-o passar e subiu os degraus atrás dele. A porta estava aberta e entraram no bar. Uma lâmpada descoberta espalhava uma luz crua pela sala. Ela olhou para êle. — Quem é que vamos ver? — perguntou. — Matteo, claro — respondeu êle. — Pensei que êle não pudesse entrar neste país — disse ela, surpresa. — Muita gente pensa assim — respondeu, pegando-lhe no braço. — Venha! Subiram um lance de escadas e chegaram a uma porta. Cesare bateu. — Abra! A porta não está trancada — respondeu a voz de Matteo. Cesare abriu a porta e entrou, seguido de Luke, que ficou surpreendida ao ver com que conforto estava mobiliado o escritório. Nunca se imaginaria tanto luxo em tal edifício. Cesare fechou a porta atrás de si. Matteo estava sentado a uma escrivaninha. Cesare deixou-a de pé, à entrada, e dirigiu-se para Matteo. Ficou em frente a êle, parado, sem nada dizer — Desejava um encontro, meu "sobrinho"? — perguntou Matteo. Cesare acenou afirmativamente. — Preciso falar-lhe de um mal-entendido entre nós. — Sim? — Emilio inclinou a cabeça. — Da última vez que nos encontramos, o senhor afirmou que eu fizera um bom trabalho e que a Sociedade estava satisfeita. — Cesare falava em voz baixa. Emilio confirmou. — É verdade o que eu disse. — Então, por que decretaram a minha morte? — perguntou Cesare, com toda a calma. Emilio cruzou os braços sobre o estômago e recostou-se na poltrona, olhando para Cesare. — A Sociedade deve a sua existência a uma regra muito simples — disse Emilio com brandura. — Você é novo, meu "sobrinho" e ainda não compreende certas coisas. É uma regra simples mas que a ajudou a atravessar muitas guerras e a sobreviver através de muitas dificuldades, por longos anos. Essa regra é a nossa força. Não pode existir nenhum membro que ameace a segurança de outros componentes da Sociedade. — Eu não quebrei essa regra — exclamou Cesare, incontinenti. Exceto a pedido da Sociedade, para proteger alguns dos seus membros! A voz de Emilio continuava paciente como se se dirigisse a uma criança: — É lamentável, claro, mas esse segredo que você detém é agora um punhal a-


pontado para nossas gargantas. A polícia já suspeita de você e se esse segredo fosse conhecido por eles... — não acabou a frase. — De mim eles nada saberão! — interrompeu Cesare. — Acredito — concordou Emilio. — Mas seria um desastre se ambos nos enganássemos. Os outros não têm a mesma confiança que eu. — Por que não? — perguntou Cesare. — Eu mantive o meu juramento. E nada quero deles. — Aí é que está — disse Emilio rapidamente. — É isso que os preocupa. Um homem que não quer nada, não tem nada a proteger. Você não é como Big Dutch, ou Dandy Nick ou Allie, a quem já eliminou: eles tinham motivos para serem leais, eles tinham alguma coisa para proteger, tinham vários interesses. Enquanto você, meu "sobrinho", não nos dá nenhum proveito e não recebe nenhum benefício. Você não passa de um diletante, interessado apenas na emoção e no perigo. É como um menino endiabrado. — Então é por causa de Dandy Nick que eles pedem a minha morte? — perguntou Cesare. Emilio olhou para êle expressivamente, afastando as mãos num gesto de inutilidade. — Por essa razão você deve manter seu voto para com a Sociedade. Luke acabava de perceber um movimento atrás da cortina. Gritou: — Cuidado, Cesare! Cesare voltou-se tão rapidamente que ela nem chegou a ver o stiletto saltar-lhe da mão, indo espetar-se na cortina e no homem que lá se encontrava, oculto. As mãos do homem agarraram a fazenda e foram escorregando até que êle caiu estatelado no chão. A pistola soltou de sua mão e foi cair junto de Luke. Cesare ajoelhou-se curioso junto ao homem, afastando-lhe a cortina do rosto. Olhou para Emilio. — É Dandy Nick! Agora, de acordo com a lei, não há mais ninguém ameaçado por mim! — Ainda há um, meu "sobrinho" — disse brandamente Emilio. Cesare olhou-o interrogativamente. — Quem, meu "tio"? — Eu — respondeu calmamente Emilio, em cuja mão surgira uma pistola. Começou a apertar o gatilho. De certo modo era uma vergonha, pensava êle, quase com pena. Cesare podia ter-se tornado um dos grandes, um dos Dons, mas faltava-lhe qualquer coisa. Matteo estava tão perdido nos seus pensamentos, que nem percebeu Luke disparar a pistola que apanhara do chão. O impacto da bala no ombro fê-lo largar a arma e inclinar-se para a frente. No instante seguinte, já Cesare estava em cima dele, erguendo o stiletto por sobre sua cabeça. — Não! Não! — gritou Matteo. — Falarei ao Conselho. Eles hão de ouvir-me! Cesare ria selvagemente. — É tarde demais, meu "tio"! — gritou. — As suas próprias leis o condenaram! Com a sua morte, fico livre! Luke viu, gelada de terror, o punhal mergulhar repetidas vezes no corpo de


Emilio. — Pare, Cesare... — gritou. — Já chega! Cesare ergueu-se lentamente. Voltou-se para ela com um brilho de loucura nos olhos. Quando chegou junto dela, sorria. — Sabe, parece-me que êle estava começando a pensar que era realmente meu tio!

Cesare abriu a porta de seu apartamento e entraram. Caminhou para a secretária e sentou-se. Tirou um livro de cheques do bolso e começou a preencher um. Luke aproximou-se e começou a massagear-lhe carinhosamente o pescoço. — É bom estarmos em casa — disse com meiguice. Êle acabou de preencher o cheque e voltou-se, entregando-o a ela. — Aqui está — disse asperamente. Ela olhou-o, espantada. — Que é isso ? — perguntou. A voz dele era fria e os olhos eram os de um estranho. — Você disse que desejava uma Ferrari. Agora, pegue suas coisas e vá-se embora. Ela ficou a olhar para êle, não acreditando no que ouvia. Sentia uma sensação estranha no estômago, uma espécie de náusea que a invadia toda. Acontecera novamente. A mesma coisa de sempre! — Você pensa... — sua voz quebrou-se. Sentia um gosto amargo na boca. — Acha que... nós estivemos juntos... Êle ergueu-se da cadeira e passou por ela dirigindo-se ao bar. Serviu um drinque e bebeu-o de um trago. Depois voltou-se. — Não interessa o que penso. Nós terminamos aqui. Ela queria explicar. Talvez estivesse grávida e, se êle soubesse disso, talvez... Não era culpa dele. Ela era mais responsável. — E agora, Cesare, o que vou fazer? Eu estou... Eu não... Êle ergueu-se, abriu a porta secreta do bar e retirou o pequeno frasco preto, colocando-o numa prateleira junto com as garrafas de uísque. — Não me importo com o que você fizer... — interrompeu-a. — Mas você pode escolher. Sabe o que contém esta garrafa. Algumas gotas e em três minutos... esquecimento total! Não sentirá nenhuma dor. Passou por ela em direção à porta. Luke o seguiu. — Cesare! — gritou. — Aonde vai? Para ela? Êle sorriu e sua voz era cruelmente macia. — Sim. Estou cansado de você. Estou farto de mentiras, de suas maneiras plebéias de fazer amor! Você estava certa no que me disse, no primeiro dia em que nos encontramos. Ela pode me oferecer mais em dez minutos do que você em dez dias. E acabou provando isso! A mão dela aferrou-se em sua lapela. — Não me quer então, nunca mais? — perguntou friamente. Êle lhe empurrou a mão.


— Não é bem isso — disse. — Não preciso de você nunca mais. A porta fechou-se atrás dele e ela permaneceu imóvel por um momento. Depois, voltou-se e caminhou lentamente para o quarto. Tinha acontecido de novo. Pensou no veneno oculto dentro do bar. Êle tinha razão. Era a única saída para alguém igual a ela. Levantou-se decidida a apanhar o frasco quando sentiu a náusea outra vez. Correu para o banheiro. As lágrimas começaram a queimar seus olhos. Ajoelhou-se lentamente e encostou a cabeça à porcelana fria. As lágrimas continuavam a banhar suas faces. Agora já não tinha mais dúvida!

27

Deu volta à chave da porta do quarto de Ileana e entrou. As luzes estavam apagadas. Ouvia-se o ruído da água a correr no chuveiro. Sorriu e dirigiu-se para a porta do banheiro. Chamou : — Ileana! Ouviu a água parar de correr e ela responder: — Cesare! É você? — Sim — disse rindo. — Voltei. — Está bem? — interrogou ela. — Estou ótimo, ande logo — disse. — Tenho uma coisa importante para lhe dizer! Afastou-se da porta. Era chegada a hora para eles. Tinha-se acabado o tempo da aventura e começava o da vida familiar. Sabia o que o pai queria dizer quando aconselhara: "Não deixe o nome morrer, meu filho. Não desperdice toda sua semente". Ouvia-a pedir através da porta: — Seja bonzinho e dê-me o estojo de maquilagem! Não gosto que você me veja sem batom. Está em cima da mesinha de cabeceira. Êle riu, pensando em todas as vezes em que a vira sem batom. A maleta estava aberta e êle deixou alguns objetos caírem no chão. Ainda a sorrir, abaixou-se para apanhá-los. Viu algumas cartas espalhadas a seus pés. "Quanta porcaria as mulheres colecionam", pensou. Começou a apanhá-las cuidadosamente, quando a última lhe atraiu a atenção. Estava marcada: "Serviço Especial do Governo dos Estados Unidos". Era dirigida a Ileana e vinha do Departamento de Imigração. Automaticamente, começou a lê-la. "A pedido de Mr. George Baker, do Bureau Federal de Investigações, vimos avisá-la de que o seu pedido para um visto como residente permanente foi aprovado. É favor trazer esta carta e o seu passaporte ao escritório mais próximo, para que se possa tratar convenientemente do assunto." Cesare ergueu-se lentamente, com a carta ainda na mão e com a maleta dos arti-


gos de maquilagem esquecida no chão. Só depois de abrir a porta do banheiro é que compreendeu o significado da carta. Ela andava trabalhando para Baker. Não podia haver outra razão para este a ajudar. Ela estava de pé diante do espelho e amarrava o roupão. Viu-o através do espelho e virou-se rapidamente. — Cesare, que foi que aconteceu? — exclamou. Depois viu a carta na mão dele. Êle estava de pé, à porta, com os olhos frios e como que mortos. — Por que, Ileana? Por que fêz isso? Veio procurar-me como um amigo, pediume que a ajudasse e eu a ajudei. Por quê? Ela o fitou. — Tive de fazê-lo, Cesare. Eles não me deixaram escolha! — Não acredito, Ileana — disse, dirigindo-se para ela. — Poderia ter-me dito e lutaríamos juntos. Ela o viu levantar lentamente a mão. Por mais estranho que parecesse, agora que tinha chegado a hora, não tinha medo. Pensou se os outros sentiriam o mesmo. — Não faça isso, Cesare — disse calmamente. — Não adiantará nada. Descobririam que foi você. Êle a olhou hesitante. — Não, Cesare — repetiu rapidamente, tentando tirar vantagem da hesitação dele. — Você está doente. Deixe-me ajudá-lo! — Você já me ajudou bastante — replicou amargamente. — E eu que pensava em me casar com você! Ela tentou passar por êle para alcançar a porta e não percebeu sequer o esboço da pancada que a atirou ao chão. Êle ficou a mirá-la, respirando com dificuldade. Seu cérebro trabalhava vertiginosamente. Não se atrevia a servir-se do stiletto. Tinha que arranjar outra maneira que fizesse crer em acidente. Como tinha feito com Bárbara. Abriu a porta do banheiro e olhou para dentro do quarto. Notou as portas que davam para o terraço. A idéia cristalizou-se em seu cérebro. Um suicídio era ainda melhor. Segurou-a com facilidade e dirigiu-se para o terraço, colocando-a no parapeito. O rosto dela era pequeno, calmo e branco. Lembrou-se do seu riso cristalino. Teria sido uma noiva encantadora. Empurrou-a levemente e ela caiu. Não se deteve a olhar. Apressadamente, entrou no quarto e saiu para o corredor.

Entrou na sala e dirigiu-se para o sofá. Parou ao ver Luke sair do quarto. — Ainda está aqui? — resmungou. Ela não respondeu. Êle lhe voltou as costas e sentou-se. — O que está esperando? — gritou brutalmente. — Vá-se embora! Inclinou-se para a frente e apoiou o rosto nas mãos. Luke dirigiu-se ao bar e encheu um copo. Depois, aproximou-se e entregou-lhe o copo.


— Beba! — disse. Êle pegou no copo e engoliu o uísque de um trago. Pôs o copo em cima da mesinha, à sua frente, e depois olhou para ela. — Agora pegue suas coisas e vá-se embora de uma vez! — gritou êle duramente. Silenciosamente, ela se voltou e entrou no quarto. Êle encostou a cabeça no sofá. Sentia-se cansado. No dia seguinte iria para qualquer lugar e não faria mais nada a não ser ficar estendido ao sol. Há muito tempo que não se deitava ao sol. Começou a levantar-se. Era melhor ir para a cama. Sua cabeça começou a rodar. Sentia as pernas dormentes. Não conseguiu levantar-se de todo, pois também os braços não tinham mais forças. Luke saiu do quarto carregando sua maleta. Passou por êle sem dizer uma palavra. Um suor frio já começava a lhe molhar a testa. — Luke, ajude-me! — rouquejou. — Estou-me sentindo mal. Ela se voltou para Cesare. — Sinto muito, Cesare, mas não posso mais ajudá-lo — disse em voz baixa. Êle a fitou por um momento, olhou para o copo vazio de uísque, na mesinha, e subitamente compreendeu. — Ordinária! Você me envenenou! — murmurou. — Eu devia tê-la liquidado no deserto! — Talvez tivesse sido melhor — disse ela numa voz sem emoção. — Eu o avisei de que nunca mais perderia! Ela se dirigiu à porta e abriu-a. Baker encontrava-se ali com alguns homens. Eles a empurraram de volta ao aposento. Baker olhou para Cesare. — Que é que êle tem? — perguntou a Luke. Uma vaga lembrança cruzou a mente de Cesare. Ficou olhando para êle, o rosto mortalmente pálido. — Êle está morrendo — explicou Luke. — Lucrécia! — gritou Cesare subitamente. Baker não perdeu tempo. — Chamem um médico, depressa! — gritou para um de seus homens. — É tarde demais — disse Luke numa gargalhada. — A única coisa que pode ajudá-lo agora é um padre. — De qualquer maneira, tragam um médico — ordenou Baker. — E tirem-na daqui! Sprang ia entrando no momento em que Luke e o agente saíam. — A baronesa ficará boa — disse êle. — Passará alguns dias de cama mas não tem nenhuma fratura. Cesare tinha os olhos esbugalhados. —- Mas Ileana está morta! Baker sacudiu a cabeça. — O terraço dela era recuado. Havia outro em baixo. Foi onde ela caiu e a queda ainda foi amortecida por um toldo. Cesare começou a rir. Sprang olhou interrogativamente para Baker. — Que é que há com êle ? — perguntou.


— Êle está morrendo — explicou Baker. — Tomou veneno. Cesare olhou para êle. Aquela era a maior piada de todas. Os tolos deviam saber que os Bórgias nunca se envenenam a si próprios. Por um momento quase lhes contou o que realmente havia acontecido, mas guardou silêncio. Seria mais uma coisa que os estúpidos carabinieri nunca descobririam. Tornou a rir. Baker inclinou-se sobre êle. — Onde estão Matteo e Dandy Nick? — perguntou. Cesare sorriu, vitorioso. — Mortos. Estão todos mortos. — Por que fêz isso, Cardinalli? Por quê? — perguntou Baker ansiosamente. — Você não queria o que eles queriam. Tinha tudo fácil na vida... Cesare tentou fixar o olhar em Baker. Via-o oscilar à sua frente. — Meu pai também costumava dizer isto, mister Baker, mas a única razão pela qual me levou para casa foi para que seu nome não desaparecesse. Também não sei se será capaz de compreender isso. Há apenas duas coisas na vida que significam alguma coisa. O nascimento e a morte. Tudo que fica no meio — viver — não é nada. Um vazio! Fêz uma pausa para retomar o fôlego. — Só nesses momentos se vive realmente. É por isso também que se procura uma mulher. Para nascer de novo. É por isso que vocês estão aí me vendo morrer, gozando o prazer da minha morte. Vocês se sentem mais vivos neste momento do que jamais se sentiram! Cesare encostou de novo a cabeça no sofá, o suor escorrendo agora mais intensamente de sua face pálida. — O homem é louco! — exclamou Sprang em voz baixa, pálido de emoção. — Um louco assassino! Cesare levantou levemente a cabeça para olhar os policiais. Reuniu todas as suas forças para olhar através do véu que já encobria sua visão. A distância podia ouvir uma criança chorando. Talvez o homem tivesse razão. Talvez êle fosse louco. Que estava fazendo o recém-nascido, chorando num lugar como aquele? Subitamente, teve consciência. Era seu filho que estava chorando. Era isso que Luke tentara contarlhe. Ela carregava um filho dele em suas entranhas. Reuniu suas últimas energias para encontrar a voz. E mexeu levemente os lábios no estertor da agonia: — Não será... o mundo inteiro... meio louco? E o véu se fechou, tragando-os de sua frente. ***


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.