Harold robbins os libertinos

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HAROLD ROBBINS OS LIBERTINOS

Quem são os Libertinos? São aqueles amorais notórios, de poucos princípios e muito talento, a pequena minoria que parece estar sempre influenciando os nossos mais secretos pensamentos, nosso modo de vestir, nossa conduta sexual — gente que vive um tipo de vida que a maioria de nós gostaria de levar. Aqui eles são mostrados no deslumbrante mundo em que circulam, presença constante e obrigatória nos lugares mais badalados em sua busca incessante de amor, paixão e nova emoções.


Orelhas: OS LIBERTINOS — Harold Robbins Se é possível fazer tal julgamento em obra tão complexa, tão vasta e ainda em desenvolvimento e plenitude, aqui está a obraprima de Harold Robbins. As qualidades, as vivências, os interesses demonstrados com tanto vigor em Os Insaciáveis, Escândalo na Sociedade, Os Implacáveis, 79 Park Avenue e outros livros seus, se precisam, acentuam e requintam em Os Libertinos, numa intensidade que não é apenas de grau, mas também de natureza, como se o escritor houvesse adquirido uma visão mais aguda e clinica das coisas e das pessoas. Isso acontece a tal ponto que não hesitamos em afirmar que este livro, embora autenticamente de Robbins, é diferente de todos os outros que já publicou. Em primeiro lugar, pelo cenário no qual se desenrola a ação. Se, nos outros livros, Robbins escolheu um território determinado e mais ou menos restrito para servir de palco à ação dos seus livros, estendeu neste os olhos pelo mundo e fez tudo desenvolver-se simultaneamente numa república da América do Sul, nos Estados Unidos, na França, na Riviera, na Inglaterra, em Macau, numa pitoresca multiplicidade de ambientes, impregnados de veracidade, aumentando assim o interesse e o dinamismo da ação. Segundo, pela variedade quase infinita de tipos. Há naturalmente um personagem central, que é Dax, o impetuoso Dax, diante de quem os homens tremiam e as mulheres deliravam. Mas, em torno dele e era contato com ele, desfila uma variedade interminável de pessoas — homens e mulheres, principalmente mulheres — todas levadas, tangidas e batidas pelas forças mais vigorosas da existência humana — o amor e o interesse. Dissemos amor e seria melhor dizer desejo, porque é o desejo, a volúpia, a embriaguez fundamental da sensualidade que joga dezenas de mulheres nos braços de Dax e dos outros personagens masculinos num ulular constante de luxúria. E este livro é ainda diferente de todos os outros de Harold Robbins pela intensa movimentação da sua ação, que nos faz penetrar na intimidade de vários meios cheios de interesse e vibração — das selvas fervilhantes de bandoleros à Paris ocupada pelos nazistas, dos gabinetes dos banqueiros aos meandros das casas de prazer — em cenas inesquecíveis desde a inicial com o seu excesso transbordante de violência e crueldade até à sobriedade trágica daquele duelo final. Leiam, pois, neste livro, a história de Dax e do seu mundo. De um Dax ardoroso, valente, generoso, sentimental, contraditório, desiludido e cínico e de um mundo que não era melhor do que ele.



Titulo do original norte-americano: THE ADVENTURES

Copyright © 1966 by Harold Robbins

O contrato celebrado com o autor proíbe a exportação deste livro para Portugal e outros países de língua portuguesa

Direitos exclusivos desta tradução reservados para o Brasil pela: DISTRIBUIDORA RECORD DE S ERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Av. Erasmo Braga, 255 — 8° andar — Rio de Janeiro, RJ Impresso no Brasil


Do mesmo autor nesta Editora: Os Insaciáveis (2 volumes) Os Implacáveis (2 volumes) Escândalo na Sociedade 7º Park Avenue Stiletto O Indomável Ninguém é de Ninguém Uma Prece para Donny Fischer Os Herdeiros O Garanhão O Machão


A MINHA MULHER GRACE que tornou tantas coisas possíveis, das quais este livro é a menor.


A mãe se esquecerá dele; os vermes o comerão gostosamente; nunca mais haverá lembrança dele. JÔ – XXIV, 20


TÁBUA

Epilogo como prólogo Livro 1 VIOLÊNCIA E PODER Livro 2 PODER E DINHEIRO Livro 3 DINHEIRO E CASAMENTO Livro 4 C ASAMENTO E MODA Livro 5 MODA E POLITICA Livro 6 POLITICA E VIOLÊNCIA Pós-escrito


EPILOGO

COMO PRÓLOGO

Era dez anos depois da violência em que ele morreu. E o seu tempo na terra terminara. O contrato que ele tinha sobre este último cubículo de refúgio havia expirado. O processo ia ser completado, e ele voltaria às cinzas e ao pó da terra de que tinha vindo. O sol dos trópicos desfechava ondas de candente umidade sobre as cruzes pretas pintadas nas paredes caiadas do cemitério quando o jornalista americano saltou do táxi diante dos portões enferrujados. Ele deu ao chofer uma nota de cinco pesos e se afastou antes que o homem tivesse tempo de dizer gracias. As barraquinhas de flores já estavam movimentadas. Mulheres de preto compravam pequenos apanhados de flores, com os seus pesados véus negros, que pareciam protegê-las do calor, e ao mundo, da sua dor. Os mendigos também estavam presentes e as crianças, com os grandes olhos escuros sumidos no fundo das olheiras e as barrigas estofadas de fome. Estenderam à sua passagem as mãos sujas para pegar as moedas que ele negligentemente nelas deixou cair. Depois que transpôs o portão, houve silêncio. Era como se alguma chave geral houvesse desligado o mundo exterior. Um homem fardado estava sentado numa barraca aberta. Ele dirigiu-se para lá. — Xenos, por favor. — Calle 6, apartamiento veinte —disse o homem, em cujo rosto ele julgou ver uma leve expressão de surpresa. O jornalista americano prosseguiu com um sorriso. Até na morte apegavam-se à rotina da vida. As aléias do cemitério eram chamadas de ruas, e as construções dentro de cujas paredes os mortos descansavam tinham o nome de apartamentos. Mas ele não compreendia a surpresa no rosto do homem. Estava ele na portaria do hotel folheando os jornais locais, como sempre fazia quando chegava a uma cidade e encontrara por fim a noticia que procurava. Eram apenas quatro linhas sumidas nas últimas páginas, entre uma porção de noticias maiores. Seguiu por uma aléia de custosos mausoléus. Foi lendo displicentemente os nomes. Ramirez, Santos, Oberón, López. Apesar do calor do sol, caia dos mármores brancos uma perceptível frieza. Sentiu no colarinho a transpiração úmida e fresca.


O caminho se alargou. À esquerda, havia terrenos abertos, nos quais se viam covas pequenas, abandonadas, esquecidas. Eram as sepulturas dos pobres, jogadas na terra em frágeis caixões de madeira para que se desintegrassem à lei da natureza, sem cuidados nem saudades. À direita, estavam os apartados, as casas de cômodos dos mortos. Eram grandes construções, com telhados espanhóis vermelhos e cinzentos, de seis metros de altura e uns doze de largura por vinte e cinco de comprimento, feitas de blocos de cimento branco de um metro de altura e que tinham um pouco menos do que isso de cada lado para que mais ocupantes pudessem encher-lhes as paredes. Cada quadrado trazia o nome do ocupante, com uma cruzinha gravada no cimento acima do nome e a data da morte embaixo. Na primeira construção havia uma placa de metal que dizia:Calle 3, apartamiento 1. Tinha ainda muito que andar. Sentia terrivelmente o calor. Afrouxou o colarinho e apressou o passo.Estava quase na hora, e ele não queria chegar tarde. Julgou a principio que se houvesse enganado com o local.Não havia pessoa alguma ali. Verificou a chapa de metal do edifício e a hora do seu relógio. Estavam ambas corretas. Abriu o jornal para ver se havia feito confusão com a data, mas viu que ela também conferia. Deu então um suspiro e acendeu um cigarro.Estava na América Latina. Não havia tanta pontualidade ali quanto em sua terra. Começou a caminhar lentamente em volta da construção, lendo os nomes nos quadrados. Encontrou afinal o que procurava, num canto cheio de sombra. Instintivamente, jogou fora o cigarro e tirou o chapéu. Lá estava a inscrição: † DAX 10 mayo 1955 Ouviu o barulhorangedor de um carro nas pedras da calçada às suas costas. Era um carro aberto, puxado por um burro cansado, que estava de orelhas murchas, talvez em sinal de protesto contra o fato de se ver forçado a trabalhar com aquele calor. O carro era guiado por um homem com roupas cáqui desbotadas. Ao lado dele, no banco, vinha um homem de roupa preta e chapéu preto, com o colarinho engomado já amarelado pelo suor e pela poeira. Ao lado do carro, caminhava outro homem, com uma picareta ao ombro. O carro parou, e o homem de preto desceu. Tirou uma folha de papel do bolso do paletó, olhou-a e começou a procurar pelas


paredes, olhando os nomes nos carneiros. Foi só quando eles pararam que o jornalista compreendeu que ali estavam para proceder à exumação.• O homem fez um gesto, e o coveiro com a picareta se aproximou. Olhou para cima e disse alguma coisa em espanhol. O outro coveiro tirou do carro uma pequena escada, e o primeiro encostou-a à parede e subiu. — Dax —disse ele, e sua voz ressoou no cemitério em silêncio. — Dax —repetiu o homem de preto. O coveiro na escada estendeu a mão. — El pico. O outro entregou-lhe a picareta. Com um golpe experimentado, o homem bateu com a picareta no centro do bloco de cimento.O cimento se fendeu em linhas irregulares, que se irradiaram do centro no momento em que o sol, passando sobre a aba do telhado, iluminou aquele canto. O coveiro resmungou e puxou o chapéu por sobre os olhos para proteger-se da luz. Vibrou outra pancada no cimento. Quebrou-o dessa vez, e os pedaços rolaram nas pedras do chão. O jornalista olhou para o homem de preto. Ele observava oscoveiros, mas era evidente que não tinha muito interesse pelo que faziam. Tudo aquilo parecia aborrecê-lo, e afinal não passava de um serviço como outro qualquer. — Donde están los otros? —perguntou o jornalista no seu espanhol hesitante. — No están los otros —disse o homem, encolhendo os ombros. — Pero la prensa... murmurou o jornalista e parou, chegando aos limites do seu espanhol. — Habla inglés? — Si. Yes,— disse o homem com um sorriso de orgulho. — As suas ordens. — Li a noticia no jornal e pensei que viessem outras pessoas — disse o jornalista. — Não há outras pessoas disse o homem. — Quem publicou então a noticia? Deve ter sido alguém. Ele era um homem famoso, muy famoso. — Foi a administração do cemitério que publicou a noticia.É da lei. Precisamos desse espaço para outros. A cidade está crescendo, e nós estamos superlotados, como vê... — Compreendo. Mas não havia ninguém? Parentes? Amigos?Ele tinha muitos amigos.


— Os mortos são sozinhos — disse o homem, com uma sombra no olhar. O coveiro que estava na escada soltou uma exclamação. Olharam-no. Ele já havia removido todo o cimento da tampa, e avistava-selá dentro a ponta do caixão descorada e meio destruída pelos cupins. Usando a ponta da picareta como uma alavanca, o coveiro tirou os pedaços de cimento que restavam e começou a puxar o caixão para fora. O jornalista voltou-se para o homem da administração do cemitério. — Que é que vão fazer agora com ele? — Será incinerado. É coisa rápida. Agora, só restam os ossos. — E depois? — Desde que não apareceu ninguém para reclamá-las, as cinzasserão jogadas nas terras pantanosas aqui ao lado. São terras que estamos procurando recuperar. O caixão estava sobre o estreito passeio em torno do edifício.O homem se aproximou, limpou com a mão uma pequena placa de metal Na tampa, conferiu-a com o papel que tinha na mão e disse: — Verificado. Voltou-se para o jornalista e perguntou: — Quer olhar o caixão? — Não — disse o outro, sacudindo a cabeça. — Não se importa então? Quando não há família para pagar, os homens têm permissão de... — Compreendo,— disse o jornalista, afastando-se enquantoos coveiros abriam o caixão. Acendeu um cigarro. Ouviu as vozes dos homens, que discutiam sobre o que haviam encontrado. Depois, ouviu pregarem de novo a tampa do caixão. — Os homens ficaram decepcionados disse o homem da administração, indo para onde ele estava. — Só encontraram algumas obturações de ouro nos dentes e este anel. O jornalista olhou para o anel sujo que estava na mão do homem. — Fiquei com o anel e deixei que ficassem com as obturações. O anel tem algum valor, não tem? Tirou um lenço do bolso, limpou-o e mostrou-o ao jornalista, que o apanhou. Era um anel de formatura da Universidade de Harvard, da turma de 1939, de ouro, com uma pedra vermelha. — Tem valor, sim.


— Dez dólares? perguntou o homem. O jornalista levou algum tempo para compreender que ohomem lhe estava oferecendo o anel. — Dez dólares,— disse afinal, tirando o dinheiro do bolso. — Gracias. O jornalista guardou o anel no bolso. Os coveiros já haviam colocado o caixão no carro. O homem de preto olhou-o e disse: — Vámonos? Vai ser incinerado agora. Subiu ao carro e indicou ao jornalista um lugar no banco ao seu lado. O sol estava bem mais quente, e o jornalista tinha a camisa empapada de suor. Seguiram em silêncio pelo cemitério, e vinte minutos depois chegaram ao crematório. Havia no ar um leve cheiro de fumaça quando o jornalista desceu do carro e seguiu o homem de preto e os dois coveiros, que levavam o caixão pela porta do crematório. Lá dentro, teve a surpresade ver que não havia teto; no alto, só o céu e o sol ardente. Nas paredes havia seis fornalhas de pedra abertas no alto e colocadas em circulo. Sobre cada uma delas o ar tremia com o calor que vinha de dentro. Um homem com um avental coberto de cinzas se aproximou. — Verificado?— perguntou ele. — Verificado — disse o homem de preto, entregando-lhe o papel. — A la uno,— disse o homem de avental aos coveiros. Estes empurraram o caixão para dentro da fornalha mais próxima. Em seguida, saíram. O homem de preto pegou o jornalista pelo braço e levou-o até perto da fornalha. O caixão descansava sobre barras de aço enegrecidas pela fuligem. Embaixo, havia uma rede metálica de malhas finas e o homem explicou: — Para as cinzas. O homem de avental os olhava. O outro puxou a manga do paletó do jornalista e disse: — Ele espera dez pesos pelo seu trabalho. É de praxe. O jornalista meteu a mão no bolso e tirou uma nota. — Gracias,— disse o homem, com um sorriso no rosto moreno. Fez então um gesto para que os outros se afastassem e começou a acionar um fole.


Houve a principio um rumor dentro da fornalha, que de repente se transformou num barulho como de trovoada. Mas não havia chamas visiveis. O caixão parecia apenas tremer sob as ondas de ar quente. Mas o homem puxou de repente uma alavanca, e num momento pareceu que todas as fogueiras do inferno estavam acesas. O jornalista sentiu o intenso calor, mas logo as chamas baixaram e o caixão pareceu desintegrar-se num pó cinzento dentro da fornalha. O homem de preto disse-lhe então: — Vamos fumar um cigarro lá fora. Daqui a pouco, ele levará as cinzas. O sol parecia fresco em comparação com o calor que haviam sentido lá dentro. O jornalista ofereceu um cigarro ao homem de preto, que o aceitou com as maneiras delicadas que alguns latinoamericanos tême acendeu o cigarro do jornalista e, depois, o seu. Fumaram em silêncio. Antes de acabarem o cigarro, o homem saiu com uma pequena urna de cerâmica cinzenta. Olhou para o homem de preto, que disse, como se pedisse desculpas: — A uma custa cinco pesos. O jornalista achou uma moeda de cinco pesos no bolso e aurna foi entregue ao homem de preto. Este levou o jornalista para os fundos do crematório, onde havia uma carroça, à qual estava atrelado um burro que pareciadormir. A carroça estava cheia de lixo, sobre o qual as moscas enxameavam. — É aqui que despejamos as cinzas que depois são levadaspara o pântano. — Não há outro lugar? perguntou o jornalista, sentindouma ponta de revolta. — Bem, há uma fazenda do outro lado da estrada. Por cincopesos, o dono nos deixará jogar as cinzas lá. — Vamos até lá, então. Chegaram do outro lado da estrada a um campo de batatas e o fazendeiro pareceu surgir do chão, mas desapareceu prontamentelogo que recebeu a moeda de cinco pesos. — Señor,— disse o homem de preto, estendendo-lhe a urna. O jornalista sacudiu a cabeça. — Conheceu-o, señor? — perguntou o homem. — Sim, conheci-o.


O homem destampou a urna e com um gesto experimentado, jogou as cinzas ao vento. Ficaram olhando enquanto as mesmas iam pousando no solo. — Não está certo! — exclamou de repente o jornalista. — Não está certo! — Por qué, señor? — Ele era um homem forte, sabe? A terra tremia à sua passagem, os homens amavam-no e temiam-no, as mulheres tremiam ante o poder dos seus abraços e todos solicitavam-lhe os favores.E agora não há quem se lembre dele. Tem razão, os mortos são sozinhos. O jornalista estava triste e cansado. Queria quanto antes voltar ao bar do hotel e beber alguma coisa bem gelada. Seria melhor que não houvesse lido a noticia no jornal, que não tivesse ido àquele lugar horrível, sob o tremendo sol, para encontrar um mundo desmemoriado. — Não, señor,— disse o homem de preto. — Eu estava errado. Esse morto não estava sozinho. O senhor estava aqui.


Livro 1

VIOLÊNCIA e PODER

1 Eu estava brincando sob o sol quente no terreno em frente à casa quando ouvi o primeiro grito fino na estrada que levava à vila.Meu cachorro ouviu também, porque parou de repente de pular em volta de mim e da casinha que eu estava tentando construir com a terra endurecida. Olhou para mim com olhos amedrontados e encolhendo o rabo amarelo protetoramente por baixo dos testículos.Ficou parado e começou a tremer. — Quien es? perguntei, estendendo a mão para fazer-lheuma festa e acalmá-lo. Via que ele estava com medo, mas não sabia por quê. O grito fora estranho e curiosamente alarmante, mas eu não estava com medo. Medo é coisa que tem de ser aprendida, e eu era muito menino ainda. Tinha seis anos de idade. Houve ao longe um barulho de tiros. Cessou pouco depois, e então ouviu-se outro grito, dessa vez mais alto e mais aterradordo que o primeiro. O cachorro pendeu a cabeça e saiu correndo para o canavial, com as orelhas murchas. Fui atrás dele, gritando: — Perro! Perro!Venga aqui! Quando cheguei ao canavial, não o vi mais. Fiquei ali parado, procurando ver se o descobria pelo barulho entre as touceiras. — Perro!— gritei. Ele não voltou. O canavial sussurrava levemente ao ventoquente. Desprendia-se dele um pungente cheiro adocicado. Chovera na noite anterior e o açúcar estava umedecido nos caules.Percebi de repente que estava sozinho. Os trabalhadores, que estavam ali havia ainda cinco minutos, tinham desaparecido também. Meu pai iria ficar muito zangado com eles. Pagava-lhes dez centavos por hora e decerto esperava que dessem em troca todo o trabalho que pudessem.


— Dax! O grito vinha da casa. Virei-me. Minha irmã mais velha e uma das empregadas da cozinha estavam na varanda da frente da casa. — Dax! Dax! gritou minha irmã, agitando os braços. — O cachorro fugiu pelo canavial,— gritei eu para ela. Um momento depois, ouvi-lhe os passos atrás de mim. Tomoume nos braços e me levou carregado para casa, correndo. Murmurava roucamente: — Dios! Dios! Minha mãe apareceu à porta antes de chegarmos à varanda. — Depressa! A la bodega!— disse ela. — Para a adega! Entramos na casa. La Perla, a gorda cozinheira índia, estavaatrás de minha mãe. Tomou-me dos braços de minha irmã e começou a correr para a despensa, atrás da cozinha. Ouvi o barulho datranca da porta da frente que se fechava. — Que é que há, La Perla? — perguntei. — Donde está Papá? Ela me apertou com mais força de encontro ao seio farto. — Psiu, niño. A porta da despensa estava aberta, e descemos os degrausda adega. As outras empregadas já estavam ali, com os rostosescurecidos é apavorados, sumidos nas sombras lançadas pela pequena vela que ardia em cima de um barril de vinho. La Perla me deixou num banquinho. — Fique sentadinho ai e não se mexa. Achava aquilo tudo muito engraçado, mais engraçado do quebrincar lá fora. Era uma nova espécie de brinquedo. La Perla subiu de novo as escadas, e eu ouvi sua voz rouca láem cima. Um instante depois, minha irmã desceu com o rostobanhado em lágrimas. Correu para onde eu estava e me abraçoucom força. Afastei-me, zangado. O seio dela me machucava porque eramuito ossudo, muito diferente do seio confortável, quente e maciode La Perla. — Largue-me — disse eu. Minha mãe desceu as escadas, com o rosto abatido e triste.Ouvi a pesada porta da adega ser batida e trancada, e, pouco depois,La Perla descia também, com o rosto vermelho do esforço. Tinhana mão um facão de cozinha, com o qual costumava cortar a cabeçadas galinhas. Mamãe me olhou e perguntou: — Você está bem?


— Si, mamá. Mas Perro fugiu. Correu para o canavial e não o vi mais. Mas ela não me ouvia. Estava procurando escutar algum somdo lado de fora. Era tempo perdido. Nenhum som podia chegar ali,tão debaixo da terra. Uma das empregadas prorrompeu num choro nervoso. — Cale essa boca! — exclamou La Perla, com um gesto ameaçador. — Quer que nos ouçam e nos matem a todos? A empregada se calou. Gostei de La Perla fazer issoporque minha irmã deixou de chorar também. Eu não gostava delaquando chorava. O rosto ficava muito feio e vermelho. Prendi a respiração e tentei escutar. Não ouvia nada. — Mamá... — Silêncio, Dax! — disse ela, severamente. Mas eu tinha uma pergunta a fazer. — Onde está Papá? Ao ouvir isso, minha irmã recomeçou a chorar. — Fique calada! — disse minha mãe. — Papá chegará daquia pouco, Dax. Mas temos de ficar muito quietos até ele chegar,compreende? Bati com a cabeça. Voltei-me paraminha irmã.Soluçava, mas contendo a respiração para não fazerbarulho. Estava amedrontada, mas eu não via motivo para isso.Cheguei perto dela e disse-lhe ao ouvido: — No tengas miedo. Eu estou aqui. Um sorriso emurmurou:

apareceu

por

entre

as

lágrimas.

Abraçou-me

— Meu heroizinho! Meu protetor! Ouviu-se lá em cima um tropel de botas pesadas, que de repente pareceu encher toda a casa. — Los bandoleros!— gritou uma das empregadas. — Vãomatar todo mundo! — Cale-se! Dessa vez, La Perla não se limitou a falar. Levantou a mão, ea empregada rolou no chão, gemendo. O tropel de passos pareciaestar na cozinha. — A vela! — sussurrou nervosamente minha mãe. luzinhaapagou-se abruptamente, e ficamos ali na escuridão. — Não estou vendo nada, Mamá— disse eu.

A


Ela me tapou a boca com a mão. Procurei ver alguma coisa naescuridão, mas só ouvia as respirações agitadas. Os passos ressoavamacima de nós. Deviam estar na cozinha. Ouvi o barulho de uma mesa sendo virada, e as vozes e asrisadasdos homens. Uma porta rangeu e eles chegaram à despensa.A porta da adega estremeceu. Ouvia-se com mais clareza a vozdeles. — As galinhas devem estar escondidas ai embaixo,— disse umdeles por entre gargalhadas. — Cocoricô! — gritou outro. — O galo está aqui. Deram um pontapé na porta. — Abre la puerta! Eu podia sentir as mulheres se encolhendo pelas paredes. Minha irmã a meu lado tremia desesperadamente. — Estão apenas querendo as galinhas,— disse eu. — Digamque estão no galinheiro, lá nos fundos. Ninguém disse nada. Parecia que não se importavam mais de que eu falasse ou não. La Perla passou por mim na escuridão e ficou à espera no pé da escada. Uma pancada forte na porta ressooupor toda a adega. Uma das empregadas caiu de joelhos e começou a rezar nervosamente. Deram outra pancada na porta. A porta por fim cedeu eficou escancarada, ao mesmo tempo que a luz entrava por elae mostrava La Perla resolutamente de pé, com a faca de cozinharefletindo a luz como um espelho de prata. Três homens desceram logo a vinhamatráseu só podia ver as pernas.

escada.

Dos

outros

que

O primeiro parou quando viu La Perla. — Uma galinha gorda e velha. Não vale a pena. Mas há outrasaqui, bem novinhas. A galinha velha está guardando o galinheiro. — Bastardos!— gritou La Perla por entre os dentes. O homem se virou quase com displicência, e a espingarda decano curto que tinha na mão explodiu com um clarão ofuscante. Senti o cheiro acre da pólvora, e, quando pude olhar, vi LaPerla cambalear, encostada à parede perto da escada. Pareceu ficarali imóvel um instante, e, depois, seu corpo começou a escorregarpela parede. Parecia haver perdido metade do rosto e do pescoço.São se via ali senão uma massa ensanguentada de carne. — La Perla!


Minha mãe gritou e correu para ela. Quase sem esforço, ohomem virou a espingarda e deu uma coronhada na cabeça de minhamãe quando ela passou por ele. Ela caiu, e o homem lhe empurrouo corpo para o lado com o pé. Os outros desceram a escada logodepois. Eram onze. O primeiro viu a vela em cima do barril e disse: — La candela! Um dos homens riscou um fósforo, e a luz amarela brilhouna adega. — Ah! — disse o chefe, olhando para nós. — Quatro franguinhas e um franguinho! Ouvi então a voz de minha irmã. Parecia muito mais firme eequilibrada do que até então a ouvira. — Que é que querem aqui? Peguem o que quiserem e vãoseembora! O homem olhou-a brilhandocomo brasas.

por

um

momento,

com

os

olhos

— Esta é minha, disse ele. — Podem tomar conta das outras. Uma das moças tentou correr pela escada, mas um deles aagarrou pelos compridos cabelos soltos. Puxou-a, e ela caiu no chãode joelhos. — O homem se virou para ela, puxando-lhe a cabeça para trás até que o rosto ficou inteiramente voltado para ele, com a bocaaberta, no desesperado esforço de respirar. Com a outra mão, ohomem tentou rasgar-lhe o vestido, mas a fazenda de algodão grossoera forte e resistiu. Com um palavrão, ele a deixou cair no chão e tirou a faca dacinta. Passou a lâmina rapidamente pela frente do vestido. A roupagrossa se desprendeu do corpo dela como a casca de uma espiga demilho. Um traço fino que parecia de lápis começava no pescoço,descendo entre os seios e pela barriga morena de india, começando logo a avermelhar-se de sangue. Ela gritou e tentou fugir denovo, mas ele riu e tornou a pegá-la pelos cabelos. Ela ainda se debatia, e ele, raivosamente, forçou-lhe pernascom o cabo da faca. Dessa vez, a moça gritou de dor.

as

Caiu no chão aos pés dele, contorcendo-se. A lâmina da facarefletia a luz da vela. O homem plantou a bota na barriga da moçapara fazê-la ficar quieta e começou a tirar a corda que lhe prendiaos pantalones. Os outros estavam ocupados com as outras empregadas. Niella,que era a criada de quarto de minha mãe, já fora despida e


estavaestendida sobre um barril de vinho, segura por dois bandoleros,enquanto um terceiro começava a subir em cima dela. Sara, a moçaindia que La Perla trouxera das montanhas para ajudá-la na cozinha,estava estendida no chão, atrás de uns caixões. — Faça o garoto sumir-se — disse o chefe à minha irmã, — senão vou matá-lo. Minha irmã começou a empurrar-me para o canto. Virei-me para olhar-lhe o rosto. Estava apático e parado. Osolhos pareciam haver perdido toda a vida. — Não! Não! — gritei. — Vá para trás daquelas caixas ali no canto e não olhe,— disse ela. Mas aquela voz não era a dela. Era a voz fria e distantede uma estranha, uma voz que eu nunca tinha ouvido. — Não! Senti no rosto a dor aguda de uma bofetada. — Vaya! Faça o que estou mandando! Não era só a dor. Era a nota de autoridade em sua voz. Comecei a chorar. — Vá! Esfregando os olhos, virei-me e fui estender-me, todo encolhido, atrás das caixas. Ainda estava chorando. De repente, comecei amolhar as calças. Como se aprende depressa o que quer dizer medo!

2

Foi o grito penetrante de minha irmã que me estancou aslágrimas. Pareceram secar-se dentro de mim ao mesmo tempo queuma onda de ódio intenso e cego correu-me pelo corpo. Prendi arespiração e levantei a cabeça para olhar por cima das caixas. Minha irmã estava de costas para mim, e suas nádegas nuas setorciam violentamente enquanto o bandolero a forçava a cair decostas sobre uma caixa. As unhas dela se cravaram no rosto dohomem, deixando-o sulcado de arranhões vermelhos, mas ele começou a dar-lhe terríveis bofetadas e ela caiu em cima da caixa. A boca estava aberta, e ela gritava, mas não se ouvia somalgum. Os olhos desvairados encaravam-me sem nada ver. As suaspequenas tetas estavam caídas sobre o peito ossudo e a barrigaera quase uma cova funda.


Compreendi de repente o que era que o homem ia fazer. Eujá tinha visto muitos touros quando as vacas eram levadas para eles.Olhei para o bandolero quando os pantalones lhe caíram pelaspernas. Ela tentou levantar-se e fugir, mas ele fincou um cotovelo cabeludo bem na boca do estômago dela e com a mão aberta emtorno do pescoço de minha irmã, prendeu-a de encontro à caixa, quase sufocando-a. Ela tornou a gritar e empinou o corpo, tentando desvencilhar-se, mas ele proferiu uma praga e aumentou a pressão contrao seu pescoço. Ela continuou a contorcer-se e ele deu-lhe umsoco no rosto com toda a força,fazendo a cabeça dela bater violentamente na caixa. Por uma fração de segundo ele ficou parado, meio suspenso noar acima dela, parecendo equilibrar-se em si mesmo. Então ela tornoua gritar e estremeceu. Pouco a pouco, ele foi desaparecendo nelaenquanto seus gritos de minha irmã se dissolviam num longo gemido agoniado. Ele tornou a mover-se nela. Duas vezes mais pareceu rasgá-la e então uma agonia particular como que o dominou, e elesoltou um curioso rugido que parecia de animal. Nesse exato momento, levantou os olhos, e eu lhe vi o rosto.Os olhos estavam vidrados e torturados, e a boca se mostrava ansiosamente aberta como se lhe faltasse o ar. Então, minha irmã gritoude novo, e eu vi o sangue que corria dela. Senti o ódio crescerdentro de mim. Comecei a tremer e tive vontade de matá-lo. Ouvi o tilintar de alguma coisa no chão de madeira e olhei. Afaca havia caído do cinto do homem. Sem refletir, pulei sobre ascaixas para pegá-la. Lentamente, como que com um grande esforço,ele se virou para mim. — Bastardo!— gritei, brandindo a faca com as duas mãosna direção do pescoço dele. Ele estendeu o braço, e a faca me voou das mãos, caindo entrenós. Atirei-me a ele, tentando atingi-lo com os punhos fechados eele quase displicentemente bateu em mim com a mão aberta. Rodei pelas paredes e fui cair violentamente no meio das caixas.Não sentia dor alguma. Havia somente ódio e uma vontade de matarque eu nunca até então conhecera. Não sei se compreendi o quepoderia acontecer. Sabia apenas que nada mais importava. Eu tinhade destruir aquele homem. Minha irmã havia virado a cabeça e me olhava. De repente,seus olhos se desanuviaram.


— Dax! — gritou entãoarmada com a faca.

ela,

agarrando

a

mão

do

homem,

Ele tentou raivosamente soltar o braço, quase empurrandoapara o lado. — Fuja! Dax! Corra! Por Dios!— gritou ela. — Fuja! Fiquei ali, imóvel. Ele fez menção de levantar-se para me pegar. — Corra, Dax! O homem ia se levantando, mas de repente ela pareceu cruzaras pernas, juntando os joelhos. O homem deu um grito de dor. — Corra, Dax! Vá para onde está Papá! Isso eu compreendi. Isso mechegou ao sentido. Rodei o corpo e subi na carreira a escada da adega. Ouvi outro grito atrás de mim. Parei quase no meio e ouvi o homem gritar roucamente: — El niño! Sai pela escada e atravessei a casa. Quando cheguei lá fora,senti-me por um instante ofuscado pela claridade do sol. Depois,comecei a correr para os canaviais por onde Perro tinha ido. — Papá! Papá! Alguns homens vinham chegando pela estrada. Não sabia quemeram, mas corri para eles. Já estava além da cerca quando o primeirobandolero saiu de dentro da casa. Corri pela estrada, gritando comoum louco, e ouvi então a voz de meu pai. — Dax! Dax! Gracias a Dios! — Papá!— exclamei, e joguei-me nos braços dele, chorando. — Papá! Papá! Tengo miedo! Não deixe me pegarem! O rosto moreno de meu pai brilhava ao calor. Abraçou-me comforça e murmurou: — Não tenha medo! Ninguém lhe fará nada! — Maltrataram Mamá e minha irmã,— gritei nervosamente. — La Perla está morta, e minha irmã está ensanguentada. Vi meu pai empalidecer e dizer em voz rudemente sarcástica: — É esse então o seu exército, General? Um exército que fazguerra às mulheres e crianças? O homem magro que estava ao lado de meu pai olhou paraele e depois virou para mim seus frios olhos cinzentos. Sua bocase apertou numa linha fina. — Se meus homens cometeram algum erro, morrerão por ele,señor.


Encaminhou-se para a casa, e os bandoleros que tinham corridoatrás de mim pararam ao vê-lo. — El jefe! Encolheram-se junto às paredes quando generalparou à porta e, voltando-se, perguntou:

passamos.

O

— Onde é que estão? — En la bodega, — disse eu. De repente, meu pai saiu na carreira. Levando-me ainda nosbraços, entrou à frente do general, atravessou a cozinha e desceu aescada da adega. Ficou ali um momento, olhando a confusão. Depositou-me então lentamente no chão. — Dios mio!— murmurou baixinho, caindo de joelhos elevantando para o seu colo a cabeça de minha mãe. — Dios mio! O rosto de minha mãe estava branco e muito parado. A cabeça estava inclinada num ângulo esquisito. Olhei minha irmã dooutro lado da adega. Ainda estava estendida em cima da caixa, coma cabeça virada para trás. Corri para ela, gritando: — Tudo está bem agora! Papá está aqui! Mas ela não me ouvia. Nunca mais me ouviria. Ainda tinha nopescoço a faca ali cravada pelo bandolero. Olhei-a sem poder acreditar, e então dei um grito. Compreendia afinal o que havia acontecido. Estavam mortas.Todas estavam mortas. Mamá, minha irmã, La Perla. Mortas. Gritei,gritei, gritei. Mais tarde, depois que meu pai me pegou e me levou daquelelugar de sangue para a luz do sol, estávamos no pátio. Era no fim datarde, e havia mais homens ali do que dantes. Devia haver maisde cem. Estavam todos ali, de pé, olhando em silêncio. Onze estavam separados dos outros, amarrados juntos, cadaqual preso por cordas aos dois homens que o ladeavam. Estavamencostados ao muro em silêncio, olhando para os seus companheiros. O general estava sentado numa cadeira ao lado da mesa nagaleria. Olhou para os onze homens e para os outros bandoleros.Falou calmamente, como se essa voz fria pudesse ir mais longee ser mais bem compreendida. — Olhem bem e procurem guardar tudo na cabeça. O castigoque eles vão sofrer, vocês poderão sofrer também se se esqueceremde que são libertadores e não bandoleros. Estamos lutando pelaliberdade e pelos nossos patrícios, e não pelo nosso interesse e


pelonosso prazer. Somos soldados a serviço da pátria, e não saqueadorese estupradores de mulheres! Levantou-se e virou-se para um ajudante, quelhe entregou umametralhadora portátil. Virou-se para meu pai, estendendo-lhe a arma. — Señor? Meu pai respirou profundamente e correu os olhos peloshomens alinhados de encontro ao muro. — Não, General — disse ele mansamente. — Sou um homemda lei e não da guerra. A mim me cabe a dor, mas não a vingança. O general acenou gravemente com a cabeça e desceu os degrausda galeria para a terra dura e cozida pelo sol do pátio. Levando a metralhadora na mão, dirigiu-se para onde estavam os onze homens. Paroudiante do primeiro da fila, o homem que havia violentado e assassinado minha irmã. — Você, Garcia — disse ele calmamente. — Fiz de você sargento. Devia saber como comportar-se. O homem nada disse. Encarou o general com olhos em quenão havia medo. Sabia que não haveria piedade e não a esperava. Uma faca brilhou nas mãos do general enquanto ele passavadiante da fila. Quando chegou ao fim, vimos o que ele havia feito.Os cintos e as cordas que prendiam os pantalones dos homenstinham sido cortados, e as calças haviam caído, mostrando os corpose as pernas brancas. O general foi recuando lentamente até ficar adez passos de distância. Começou então a levantar a metralhadora. Eu estava olhando para Garcia. A lembrança dele por cima deminha irmã explodiu-me na cabeça. Dei um grito e sai correndo dagaleria. — Deixe-me matá-lo, general! Quero matá-lo! O general voltou-se, surpreso. — Dax! Volte para cá, Dax! — gritou meu pai. Mas eu não o ouvia. Voltei-me para o general. — Deixe. — Dax! — gritava meu pai. O general olhou para meu pai na galeria e disse: — É de justiça. — É uma criança — replicou meu pai. — Que pode ele saberde justiça?


— No dia de hoje, ele soube de morte — disse o general. — Aprendeu a odiar, aprendeu a ter medo. É justo que agora aprendaa matar ou isso lhe roerá a alma para sempre como um câncer. Meu pai não tristemente:

insistiu mais. Voltou o rosto e

murmurou

— Está na massado sangue. A crueldade dos conquistadores. Eu sabia o que ele queria dizer. Já naquela época eu sabia.O sangue era de minha mãe, cuja família descendia comprovadamente dos espanhóis que haviam chegado com Cortés. O general ajoelhou-se. — Venha cá, menino. Aproximei-me dele. Ele pousou a arma no braço e guiou-me amão até o meu dedo ficar no gatilho. O cano do retrocessoficou seguro na curva do seu braço. — Agora — disse ele —, olhe para o alto do cano. Quandovir que está apontando para os cojones, puxe o gatilho. Deixe oresto comigo. Mirei com um olho apenas pelo cano de metal azul. Aponteia arma para Garcia. Vi-lhe as pernas brancas e a barriga peludapouco abaixo da ponta do cano de metal. Apertei o gatilho. O barulho me explodiu nos ouvidos e o corpo branco sedespedaçou numa porção de fragmentos ensanguentados. Senti o general ir empurrando o cano pela fila abaixo. E em todo lugarpara onde ele era apontado, a carne branca se dissolvia em carnedespedaçada e sangrenta. Sentia o gatilho esquentar debaixo do meu dedo,mas havia em mim tal exultação e tal febre, que eu não seria capazde largá-lo ainda que me queimasse os dedos. De súbito o pente de munições se esgotou e a arma parou.Olhei para o general, perplexo. — Já acabou, niño. Olhei então para os onze homens. Estavam estendidos no chão,com o rosto contorcido na última agonia, os olhos sem vida abertospara o sol. Comecei a tremer e perguntei: — Estão mortos? — Sim, estão mortos respondeu o general. Estremeci como se tudo houvesse ficado de repente gelado.Desatei então a chorar e fui correndo para onde estava meu pai. — Papá! Papá! Eles estão mortos! Mamá e a mana poderãoviver agora?


3

Diógenes Alejandro Xenos. Era um nome muito comprido paraum garotinho. A principio, minha mãe me chamava de Dio. Masmeu pai se zangou. Achava que era sacrilégio. Em dado momento,passou a ser Dax. Acho que foi La Perla quem primeiro me chamouassim. O som grego de Diógenes era difícil demais para a sua língua índia. Meu pai nascera na cidade litorânea de Caratu, filho de ummarinheiro grego e de uma negra que tinha um pequeno restauranteperto do cais, onde os marinheiros costumavam comer quando iama terra. Lembro-me de ter visto um daguerreótipo de meus avós,que meu pai me mostrou. . Mesmo sentada, minha avó era evidentemente mais alta doque meu avô, que estava de pé ao lado e um pouco atrás da cadeiradela. O rosto de minha avó parecia muito escuro, e ela olhava paraa objetiva com uma atitude que indicava grande energia interior edeliberação. Meu avô tinha olhos de sonhador e poeta, o que naverdade tinha sido antes de ir para o mar. Meu pai tinha a cor de minha avó e os olhos suaves de meuavô. Amara muito os pais. Disse-me cheio de orgulho que a mãedele era descendente de príncipes bantos que tinham sido levadospara lá como escravos. Jaime Xenos. Meu pai recebera o mesmo nome de seu avômaterno. Quando a gravidez de minha avó já estava tão adiantadaque ela não pôde tomar conta do pequeno restaurante, meu avôtomou-lhe o lugar. Mas não era homem para aquilo. Antes que meupai tivesse um mês de idade, o pequeno restaurante teve de servendido com tudo o que minha avó acumulara com o seu trabalho. Meu avô, que tinha uma bela caligrafia, passou a ser entãoescrevente do alcalde do distrito do cais e se mudou com a famíliapara uma casinha a cerca de dois quilômetros do porto, onde criavaalgumas galinhas e podia ver o Caribe azul e olhar os navios quechegavam e partiam. O dinheiro não era muito, mas meus avós viviam muito felizes.Meu pai era filho único, e ambos tinham grandes planos para ele.Meu avô ensinou-lhe a ler e a escrever desde os seis anos de idade,e, por intermédio do alcalde, conseguiu matriculá-lo no


colégio dosjesuítas, que era funcionários e dosaristocratas.

frequentado

pelos

filhos

dos

Em troca dessa honra, meu pai tinha de começar a trabalhardesde as quatro e meia da manhã. Tinha de fazer a limpeza de todasas salas antes que as aulas começassem. As suas tarefas se prolongavamdepois que as aulas terminavam, às seis da tarde e ainda abrangiamoutras que os professores ou o diretor desejassem. Quando completou dezesseis anos, meu pai havia aprendidotudo o que a escola tinha a ensinar. Herdara a estatura da famíliada mãe e o espirito cheio de curiosidade do pai. Era sem dúvidaalguma o melhor aluno da escola. Houve uma longa conferência entre os jesuítas que dirigiam ocolégio e meu avô, ao final da qual ficou decidido que meu paiseria mandado para a universidade a fim de estudar Direito. Comoos vencimentos de escrevente de meu avô eram minguados demaispara custear isso, ficou decidido também que eles seriam financiados pelos jesuítas com o limitado fundo de bolsas do colégio.Mas ainda assim não haveria o suficiente para os estudos de meupai se o alcalde, para quem meu pai trabalhava, não tivesse seprontificado a entrar com a diferença em troca do compromisso demeu pai de servi-lo durante cinco anos depois de formado. Foi assim que ele começou sua carreira sem ganhar nada, trabalhando no escritório do alcalde onde meu avô era escrevente, trabalhando na úmida e sombria sala externa, sentado num tamborete alto,a copiar com a sua bela letra as primeiras petições e minutas quemeu avô preparava para o seu patrão. Estava trabalhando ali, aosvinte e três anos de idade, no terceiro ano de seu compromisso,quando Curatu foi assolada pela peste. A epidemia chegou a bordo de um navio de velas brancas quevenceu galhardamente as ondas que encrespavam as águas azuis doporto. Estava escondida na escuridão dos porões do navio, e dai atrês dias quase toda a cidade de três mil almas estava morta oupara morrer. Naquela primeira manhã, quando o alcalde chegou, meu paiestava trabalhando na sua mesa do outro lado da sala. O alcaldeestava visivelmente agitado, mas meu pai não perguntou o que era.Não se podia proceder assim com Sua Excelência. Baixoua cabeça para os seus livros e fingiu que nada havia notado. O alcalde veio por trás dele. Olhou por cima do ombro demeu pai para ver o que ele estava fazendo. Ao fim de um instante,falou: — Jaime? Meu pai levantou a vista.


— Si, Excelencia? — Já esteve em Bandaya? — No, Excelencia. — Há um caso ali, uma questão de terras. Meu amigo RafaelCampos está em litigio com as autoridades do lugar. Meu pai esperou pacientemente. — Eu gostaria de ir pessoalmente — disse o alcalde—, mashá assuntos urgentes aqui, e eu... Meu pai não respondeu. Estava a par de tudo o que aconteciano escritório e sabia que não havia assuntos urgentes. Mas Bandayaficava a seiscentos quilômetros de distância, no alto das montanhas,e a viagem até lá era dificil. Além disso, havia rumores de que umgrupo de bandoleros infestava a estrada, atacando viajantes. — O caso é muito importante,— continuou o alcalde,—, eCampos é um velho amigo meu. Quero que ele tenha toda a ajudapossivel. Acho que é melhor você partir ainda hoje. Providencieipara que lhe preparassem um dos meus cavalos. — Si, Excelencia,— disse meu pai, levantando-se. — Irei atéa casa para pegar umas coisas minhas e estarei pronto para partirdentro de uma hora. — Sabe de que é que se trata? — Seguramente, Excelencia. Escrevi a petição por ordem suahá dois meses. — É verdade — disse o alcalde com um suspiro. — Haviameesquecido. — Não tinha esquecido. Sabia perfeitamente que todosos papéis que tinham saído do seu escritório naqueles últimos anostinham sido escritos por meu pai. — Quer dizer a Campos que sintomuito não poder ir pessoalmente? — Seguramente, Excelencia— disse meu pai. Passou entãopara a outra sala, onde meu avô estava sentado no seu tamboretecopiando uma sentença. — Qué pasa?— perguntou o pai dele. — Voy a Bandaya, Papá. Meu avô sorriu. — Bueno. É uma grande oportunidade. Señor Campos éum homem muito importante. Fico muito orgulhoso com isso. — Gracias, Papá. Já vou. Adios. — Vaya seutrabalho.

con

Dios,

Jaime,—

disse

meu avô,

voltando

ao


Meu pai passou pela cocheira do alcalde e ali pegou o cavalopara passar por casa e apanhar a roupa. Não teria assim de caminharde volta os dois quilômetros até a cidade. A mãe dele estava no quintal, pendurando a roupa lavada, eviuo amarrar o cavalo na cerca. Ele explicou o que ia fazer, e ela,como o marido, ficou muito feliz e orgulhosa com aquela oportunidade. Ajudou-o pressurosamente a escolher as duas melhores camisas, que arrumou cuidadosamente com o melhor terno dele numavelha maleta de viagem. Voltaram ao quintal no momento em que um navio de velasbrancas passava pelo quebra-mar, entrando no porto. Ela o olhoupor um momento, encantada, e disse para o filho: — Mira! Jaime sorriu. A mãe lhe havia falado sobre os navios, dizendoque quando era menina o pai dela costumava levá-la para o morro,de onde ficavam olhando os navios que entravam no porto. E eledizia que algum dia um grande navio de velas brancas chegariapara levá-los de volta à sua terra, onde se vivia em liberdade eonde um homem não tinha de dobrar os joelhos para ganhar o pãode cada dia. O pai dela havia morrido há muito tempo, mas lhe deixara osonho. E o sonho se transferira agora para o filho. Era ele que oslevaria para a liberdade com a sua força e o seu conhecimento. — Você teria gostado daquele navio,— disse o filho. Ela sorriu enquanto se encaminhavam para o cavalo, quecomia o capim macio perto da cerca. — Você é o meu navio de velas brancas, Jaime. Meu pai beijou-a e montou, saindo para a estrada que passavapelos fundos da casa. Do alto da ladeira, voltou-se e olhou. A mãeainda estava no quintal, olhando-o. Ele deu adeus. Ela respondeu eele sentiu mais do que viu o sorriso, os cintilantes dentes alvos.Seguiu então o seu caminho. Enquanto isso, olhou o navio que se aproximava do cais, comos marinheiros correndo pelos mastros como formiguinhas. A velagrande foi a primeira a ser descida, e quando, ao fim de algumtempo, olhou o navio, todas as velas estavam arriadas e o barcose aproximava mostrando uma floresta de mastros altíssimos. Quando voltou a Curatu, dois meses depois, o navio aindaestava junto ao cais, mas aquela estrutura que outrora singrara vigorosamente os oceanos e que levara a peste para a cidade fora


reduzida a um montão de madeira queimada. Do pai e da mãe, não pôdeencontrar nem vestígios. Quando um empregado lhe foi dizer que um estranho vinhadescendo da montanha para a hacienda, Rafael Campos pegou obinóculo e saiu para a galeria. Viu um homem moreno, metido emroupas da cidade empoeiradas, montado num cavalo preto que descia cuidadosamente a ladeira. Teve um sorriso de satisfação. Osempregados estavam vigilantes. Todo o cuidado era pouco quando a qualquer momento os bandoleros poderiam descer impetuosamente das montanhas. Tornou a observar pelo binóculo, e viu que o desconhecidovinha devagar. Olhou para o relógio de ouro. Eram dez e meia damanhã. Naquele passo, o homem levaria hora e meia para chegar àhacienda. Seria então a hora do almoço. Bateu palmas. — Mande botar mais um prato na mesa,— disse ele ao empregado, e entrou para completar a sua toalete. Meu pai levou quase duas horas para chegar à hacienda. DomRafael estava sentado à sombra, na galeria. Estava vestido com oimaculado terno branco do aristócrata, e os folhos de sua camisa deseda branca e a gravata preta que ondulava ao vento só serviampara acentuar-lhe a delicada estrutura do rosto. O bigode era finoe bem aparado à última moda espanhola, e os cabelos e sobrancelhasmal se tingiam de cinza. Dom Rafael levantou-se logo que meu pai apeou. Notou comsatisfação que o terno de meu pai estava limpo e escovado, e quesuas botas estavam bem engraxadas. Meu pai, percebendo o seuolhar, deu-se por bem pago de ter demorado um pouco à beira deum rio antes de chegar, para fazer-se mais apresentável. Dom Rafael chegou ao alto da escada quando meu pai começoua subi-la. — Bienvenido, señor,— disse ele polidamente, de acordo como costume das montanhas. — Mil gracias,señor,— respondeu meu pai. — Tenho a honrade falar com Sua Excelência Dom Rafael Campos? O outro assentiu, e meu pai fez uma reverência. — Jaime Xenos, de la oficina del alcalde, a su servicio. — Entre,— disse Dom Rafael, estendendo-lhe a mão com umsorriso. — É um hóspede de honra em minha casa. — A honra é toda minha.


Dom Rafael chegoucorrendo:

bateu

palmas

e

disse

ao

empregado,

que

— Traga uma bebida fresca para o nosso hóspede. Cuide docavalo dele. Levou meu pai para a sombra da galeria e convidou-o a sentarse. Quando meu pai se sentou ao lado de uma mesinha, viu derelance a espingarda e as duas pistolas no chão ao lado do donoda casa. — Nas montanhas, todo o cuidado fazendeiro, percebendo-lhe o olhar.

é

pouco,—

disse

o

— Compreendo — disse meu pai. O empregado chegou com as bebidas, e os dois homens trocaram brindes, depois do que, meu pai apresentou desculpas em nomedo alcalde. Mas Rafael Campos não deu muita atenção a essas desculpas. Disse que estava mais do que satisfeito com meu pai e quetinha certeza de que o caso seria resolvido satisfatoriamente. Foramentão almoçar e, depois, Dom Rafael sugeriu que meu pai fosse para o seu quarto descansar, pois teriam tempo de sobra no dia seguintepara tratar de negócios. Naquele dia, o seu hóspededevia apenasdescansar e sentir-se em sua casa. E assim, foi só nahora do jantarque meu pai conheceu minha mãe. Mas, da janela acima da galeria, Maria ElisabethCampos virao cavaleiro chegar ao pórtico. O murmúrio da conversachegavalheclaramente no sossego do principio da tarde. — É um homem muito alto e bonito, não acha?— perguntou uma voz atrás dela. Maria Elisabeth voltou-se. Dona Margaretha, irmã de sua mãe, que tinha sido a dona da casa desde a morte da irmã,estava atrásdela. Maria Elisabeth ficou vermelha. — Mas é moreno demais. — Tiene sangre negra,— disse a tia. — Mas isso não temimportância. Dizem que são bons maridos e muito amorosos. — Olhou pela janela e acrescentou: — Mucho hombre. Ouviram a voz de dom Rafael quando hóspedefosse descansar até a hora do jantar.

sugeriu

que

o

— Você também deve ir para a cama e descansar toda a tarde — disse dona Margaretha à sobrinha. — Não adiantaria nadadeixar o hóspede vê-la toda vermelha e cansada do calor do dia.


Maria Elisabeth protestou, mas obedeceu. Ficara tambémmuito impressionada com o estranho alto e moreno e queria aparecera ele da melhor maneira possível. As cortinas foram fechadas, e ela se deitou sozinha na frescapenumbra do quarto. Não dormiu. Ouvira-o dizer que era advogado.Isso queria dizer que tinha cultura e maneiras. Não era como osfilhos de fazendeiros que andavam em torno da hacienda. Eramtodos bem rudes e comuns, mais interessados em armas e em cavalosdo que em conversas refinadas de sociedade. Apesar disso, teria em breve de tomar uma decisão. Já fizeradezessete anos, e o pai vivia a fazer pressão sobre ela. Mais um anoe ela começaria a ser considerada solteirona, condenada a uma vidacomo a da tia Margaretha. E talvez nem isso pudesse ter, pois erafilha única e não tinha irmãs ou irmãos de cujos filhos pudessecuidar. Seria bom casar-se com um advogado, pensou vagamentequando já ia adormecendo, e viver numa cidade onde se conheciamtodas as espécies de pessoas interessantes e diferentes. Meu pai ficou muito impressionado com vivaque desceu para o jantar com um gracioso lheacentuava os grandes olhos negros e os Sentiumais do que viu o corpo ágil e os seios vestido.

a moça esbelta e vestido branco que lábios vermelhos. plenos debaixo do

Maria Elisabeth, por sua vez, quase não falou durante o jantar.Escutou meio distraidamente a voz do pai e se encantou com ossuaves subtons da voz do hóspede. A maneira de falar da costa eramuito mais distinta do que a das montanhas. Depois do jantar, os homens foram para a biblioteca fumar osseus charutos e tomar conhaque. Mais tarde, apareceram na sala demúsica, onde Maria Elisabeth tocou para eles algumas melodias simples no piano. Depois de cerca de meia hora, sentiu a inquietaçãodo hóspede e começou de repente a tocar Chopin. Meu pai ficou a escutar atentamente. A profunda paixão damúsica dominou-o e ele olhou, admirado para a mocinha que parecia tão pequena e frágil diante do grande piano. Quando ela acaboude tocar, ele bateu palmas. Dom Rafael bateu palmas também, mas por simples delicadeza,sem qualquer entusiasmo. Julgava Chopin muito arrojado, e talvezaté imoral. Preferia uma música mais cerimoniosa e pesada. Nãodava a menor atenção aos ritmos indisciplinados do povo. Maria Elisabeth levantou-se do piano, corada e linda.


— Está muito quente aqui dentro disse ela, abrindo o pequeno leque de rendas. — Acho que vou dar um passeio nojardim. Meu pai levantou-se no mesmo instante. Inclinou a cabeça paradom Rafael. — Con su permiso, Excelencia? Dom Rafael concordou cortesmente. Meu pai ofereceu o braço à moça. Ela o aceitou graciosamentee os dois saíram passeando pelo jardim. Dona Margaretha seguiuosdiscretamente a alguns passos de distância. — Toca muito bem — disse meu pai. — Nem tanto assim,— replicou ela, rindo. — Não tenhomuito tempo para estudar. E ninguém que me ensine. — Tenho a impressão de que não lhe falta muito paraaprender. — Em música, há sempre muito o que aprender. Ouvi dizerque em direito é a mesma coisa. Nunca se deixa de estudar e deaprender. — De fato,— murmurou meu pai. — O Direito é muito exigente. Está sempre em transformação. Novas interpretações, novasrevisões, e até novas leis quase todos os dias. Maria Elisabeth deu um suave suspiro de admiração. — Não sei como pode guardar tudo isso na cabeça. Olhou-a e viu a admiração nos olhos dela. exatomomento, embora não soubesse disso, ficou perdido.

Naquele

Só se casaram quase um ano depois, quando meu pai voltoude Curatu com a noticia da morte de seus pais. Foi meu avô, domRafael, quem lhe sugeriu a ideia de que ele ficasse em Bandaya,advogando ali. Havia já dois advogados, mas um deles era muitovelho e estava pensando em deixar de trabalhar. Foi um ano quase exato depois disso que minha irmã nasceu. Houve ainda duas crianças depois dela e antes de mim, masambas foram natimortas. Por essa época, meu pai estava muitointeressado no estudo do grego. O pai havia lhe deixado uma biblioteca regular, e ele levara tudo da casinha de Curatu para Bandaya. Foi a tia Margaretha quem me contou a história de meu nascimento e do meu batismo. Quando as parteiras e o médico descerame deram a meu pai a boa noticia, ele se ajoelhou e agradeceu a Deus.Primeiro, porque eu era um menino (antes só tinha havido meninas)e, depois, porque eu era forte, sadio e sobreviveria. As discussões em torno do meu nome começaram logo depois.Dom Rafael, meu avô, fazia questão de que eu tivesse o nome


dopai dele. Meu pai queria naturalmente dar-me o nome do pai.Nenhum deles cedia um centímetro. Foi minha mãe quem resolveu a questão ameaçadora. — Vamos dar-lhe um nome que se volte mais para o amanhãdo que para o passado — disse ela. — Vamos dar-lhe um nomeque encarne as nossas esperanças para o futuro e tenha um sentidopara todos os que o ouvirem. Isso agradou à erudição e ao romantismo de meu pai e aosimpulsos dinásticos de meu avô. Foi assim que meu pai escolheuesse nome: Diógenes Alejandro Xenos. Diógenes, em honra do lendário homem que buscava a verdade;Alejandro, em homenagem ao conquistador do mundo. A explicaçãoera simples, como proclamou meu pai ao levar-me à pia batismal. — Com a verdade, ele conquistará o mundo!

4

Acordei quando a primeira claridade do dia entrou no quarto.Fiquei ainda um instante na cama, depois rolei o corpo, levantei-mee fui até a janela. O sol estava na fimbria do horizonte, começando a aparecer portrás das montanhas. O vento soprava fracamente do lado do ocidente, e eu estremeci quando um resto de frialdade da noite me entroupela camisa de dormir. De repente, deu-me vontade de urinar. Voltei para junto da cama e peguei o pequeno urinol que estavaembaixo dela. Enquanto fazia a minha necessidade, pensei que oPapá bem me poderia dar um urinol maior, agora que éramos asúnicas pessoas que estavam na casa. Senti-me um pouco mais aquecido depoisque acabei, botei o urinol no lugar e voltei para a janela. Via do outro lado da estrada, em frente à casa, a fumaça daspequenas fogueiras em torno das quais, embrulhados nas suas mantas sujas, os bandolerosestavam dormindo. Não se ouvia entre eles nemmovimento, nem som. Tirei a camisa de dormir, vesti os pantalonese calcei os sapatos. Vesti a minha quente camisa de lã índia que LaPerla fizera para o meu aniversário e desci. Estava com fome, e erahora de comer.


Sara, que tinha sido ajudante de La Perla, estava acendendo o fogo na cozinha. Levantou a cabeça quando entrei, mas o seu rostode índia continuou impassível. — Estou com fome, Sara. — você que vai ser a cozinheiraagora? Ela fez um sinal com a cabeça, mas não falou. Sara nunca forade falar muito. Fui para a mesa e sentei-me. — Quero uma tortilla con jamón. Ainda sem falar, ela pegou uma grande frigideira preta. Jogoulá dentro dois dedos de banha e colocou a frigideira em cima deuma das bocas do fogão. Um momento depois, cortou duas ou trêsfatias de presunto em pedaços e jogou-os, com três ovos, dentro dafrigideira. Observei-a, satisfeito. Ela era melhor do que La Perla, que nãome teria dado uma tortilla, mas me faria comer um pratarraz demingau. Resolvi fazer a suprema experiência. — Café con leche,— disse eu. La Perla e minha mãe só medavam chocolate. Sara colocou a xicara de café diante de mim sem uma palavra.Bebi-a em quatro ou cinco ruidosos goles, depois de ter colocadodentro três colheres bem cheias de açúcar mascavo. O açúcar disfarçou o gosto. Eu na verdade nunca havia gostado do café, mas tomá-lo fazia com que eu me sentisse uma pessoa crescida. Colocou a tortilla à minha frente. Estava meio amorenada equente de sair fumaça e durinha, como as que La Perla fazia.Esperei um pouco que esfriasse, e então peguei-a com os dedos ecomecei a comê-la, olhando Sara pelo canto dos olhos. Não dissera uma palavra sobre a necessidade de eu comercom o garfo e a faca, que estavam ao lado do prato. Ficou apenasali a olharme com uma expressão curiosa. Quando acabei, levantei-me e fui até a pia para lavar as mãos, que enxuguei depois natoalha pendurada ao lado. — Estava tudo muito bom,— disse com satisfação. Vi nos olhos dela alguma coisa que me recordou a hora em queos bandoleros se haviam aproximado dela na adega. Os seus olhostinham a mesma insondável resignação. Levantei-lhe a saia num impulso. As coxas nenhumamarca, e os cabelos pareciam intactos. Deixei cair a saia e olhei-a no rosto. — Machucaram muito você, Sara?

não

tinham


Ela sacudiu a cabeça em silêncio. — Fico muito satisfeito com isso. Notei então um leve sinal de lágrimas em torno de seus olhospretos. Tomei-lhe a mão e disse: — Não chore, Sara. Não deixarei que façam mais nada comvocê. Se tentarem fazer, vão morrer. De repente, ela abriu os braços e me abraçou com força. Sentilhe os peitos quentes no rosto e ouvi o bater acelerado do seucoração. Ela soluçava convulsivamente, mas sem fazer o menorruído. Fiquei muito tempo parado nos braços dela. A única coisa quepodia pensar para dizer era: — Não chore, Sara. Por favor, não chore. Ela me largou de repente. Quase escorreguei para o chão, masela já se afastara e estava colocando mais lenha no fogão. Não havia mais nada a dizer e eu sai da cozinha. A casa estava em silêncio quando atravessei a sala de jantar ea sala de visitas, indo sair na galeria. Já havia movimento do outro lado da estrada. Os bandoleirosestavam começando a acordar. O sol surgia por trás dos galpões e os seus raios já inundavam o pátio na direção da casa. Ouvi um rumorno fundo da galeria e virei-me. Aquela parte ainda estava mergulhada em sombras, mas eu vi abrasa acesa de um charuto e o vulto de um homem sentado nacadeira de meu pai. Sabia que não era meu pai. Ele nunca fumavacharutos tão cedo assim. Vio rosto melhor quando passei da luz para a sombra.Os olhos cinzentos me miravam fixamente. — Buenos dias, Señor General, — disse eu, cortesmente. Ele respondeu com igual cortesia. — Buenos dias, soldadito. — Tirou uma baforada do charutoe colocou-o cuidadosamente na borda da mesa. — Como está estamanhâ? — Muito bem, obrigado. Acordei cedo. — Eu sei. Já o tinha visto na janela em cima. — Já estava levantado? haviaouvido ninguém.

perguntei surpreso,

pois

não

Os seus pequenos dentes brancos se mostraram num leve sorriso.


— Os generais, como os meninos, têm de levantar-se cedopara ver o que é que o dia lhes reserva. Olhei para o acampamento do outro lado da estrada e disse: — Eles ainda estavam dormindo. Houve uma leve nota de desprezo em sua voz. — Campesinos. Só pensam é no que vão comer durante o dia.E dormem bem sabendo que a comida não lhes vai faltar. — Tornoua pegar o charuto. — Já comeu? — Já. Sara me deu desayuno. Ela estava chorando. — As mulheres sempre choram. Ela vai esquecer. — Eu não choro. Ele me olhou um instante antes de dizer: — Não, você é um homem. Os homens não têm tempo dederramar lágrimas pelo que já aconteceu. — Papá chorou ontem no cemitério,— disse eu e senti um nóna garganta ao lembrar-me. O sol poente lançando longas sombras nopequeno cemitério nos fundos da casa. O portão enferrujado querangia. O som cavo da terra negra, úmida, caindo sobre os caixões,e o murmúrio untuoso do latim do padre ecoando surdamente no ar.Engoli o nó na garganta e disse: — Chorei também. — Isso é compreensível,— replicou o general gravemente. — Até eu chorei. Mas isso foi ontem. Hoje, voltamos a ser homens enão temos tempo para lágrimas. Fiz em silêncio um sinal de assentimento. — Você é um menino corajoso. Faz lembrar meus filhos. Continuei calado. — Um deles é poucos anos mais velho do que você. O outroé um ano mais moço. Tenho também uma meninazinha de quatroanos. — Sorriu, puxou-me e sentou-me no seu colo. — Vivem nasmontanhas. Olhou para as montanhas distantes. — Estão em segurança lá em cima. Quem sabe se você nãogostaria de ir fazer-lhes uma visita? Há muito o que fazer nasmontanhas. — Haveria um cavalinho para mim? Ele me olhou pensativamente. — Já, não. Quando você crescer mais um pouco, talvez. Masvocê poderia ter um burro de passo seguro. — E será meu, mas de verdade? — É claro,— respondeu montarnele senão você.

o

general.

Ninguém

poderá


— Seria muito bom. Penso que vou gostar muito! Mas...Papá talvez não deixe. Ele só tem a mim agora. — Acho que seu pai deixará,— disse ele. — Vai ter muitotrabalho todo este ano e não terá tempo de parar aqui. Estarácomigo. Nessa ocasião, o sol já estava todo de fora. Inundava toda agaleria, e o calor do dia já começava a fazer-se sentir. Ouvi umleve barulho de coisa arranhada sob os nossos pés, como se alguémestivesse escondido embaixo do tabuado da galeria. Quase antes queeu me pudesse mover, o general levantou-se, e uma pistolalheapareceu de repente na mão. — Quién es?— perguntou com voz áspera. Houve mais barulho de coisa arranhada, e então ouvi um latidomuito meu conhecido. Saltei da galeria e olhei por um buraco quehavia na base de pedra. Um focinho frio e uma lingua amiga metocaram o rosto. Puxei o cachorro para fora e levantei-me com elea debater-se nos meus braços. — Perro! — gritei, muito contente. — Perro voltou!

5

Manuelo levantou a mão para fazer-nos parar, e em seguida, levou o dedo rapidamente aos lábios. Montado no cavalinho, eunão tinha coragem de respirar. Olhei para Roberto. Ele tambémestava muito atento. Roberto era o filho mais velho do general Diablo Rojo. Tinhaquase onze anos, sendo dois anos mais velho do que eu. Eu tinhanove anos, mas era mais alto do que ele quase uns oito centímetros.Ele mostrava muita inveja de mim, principalmente porque desde oano anterior era claro que eu estava crescendo mais depressa. Os outros continuaram em silêncio nos seus cavalos. Estavamescutando também. Fiz o possível, mas só pude ouvir o barulho dafolhagem agitada pelo vento na floresta onde estávamos. — Não estão longe,— disse Manuelo. — Teremos de andarsem fazer barulho. — Seria melhor se soubéssemos quantos são,— murmurouGato Gordo. Manuelo fez um sinal afirmativo. Gato Gordo sempre diziacoisas acertadas. Era um homem que pensava, talvez porque


fossemuito pesado. Não podia mover-se com facilidade e pensava muito. — Vou fazer um reconhecimento — disse Manuelo, descendodo cavalo. — Não,— replicou prontamente Gato Gordo. — Você serialogo denunciado pelas folhas secas e pelos galhos. Eles saberiamlogo que estamos aqui. Gato Gordo apontou para cima. — Pelas árvores, como os macacos. Nunca pensarão em olharpara cima. — Mas nós somos muito pesados — replicou Manuelo. — Umgalho poderia quebrar-se com o nosso peso e — puf! estaríamosmortos! — Mas eles não são pesados — disse Gato Gordo, olhandopara Roberto e para mim. — Não! — exclamou Manuelo, com tal violência que quasedeu um berro. — O general nos matará se acontecer alguma coisaao filho dele! — Dax pode ir,— disse mansamente Gato Gordo. Manuelo olhou para mim, com a dúvida estampada no rosto, edisse, hesitantemente; — Não sei... Antes que ele dissesse mais alguma coisa, estendi os braçosacima da cabeça e agarrei-me a um galho. Levantei-me na sela etrepei na árvore. — Eu vou,— disse lá de cima, olhando para eles. Roberto estava de cara fechada. Seus olhos fuzilavam. Eu sabiaque era porque eu ia e ele, não. Mas as regras do pai deleeram muito severas e tinham sempre de ser obedecidas. Robertonão se moveu. — Não faça barulho,— disse-me Manuelo. — Basta apurarquantos são e como estão armados. Depois, volte e venha nos dizer. Bati com a cabeça e subi pela árvore. A cerca de cinco metrosdo chão, quando os galhos já estavam ficando finos demais paraaguentar o meu peso, comecei a passar de uma árvore para outra. Eu era muito rápido, pois sempre gostara muito, como todosos garotos, de trepar em árvores, mas levei quase uma hora parachegar ao acampamento deles, a meio quilômetro de distância. E,se não


tivesse sentido o cheiro da fumaça, poderia ter passado semvê-los. Quando parei, estava bem acima das cabeças deles. Agarrei-me com força a um galho, com o coração batendo, certode que eles poderiam ouvir o barulho, ainda que estivessem conversando em voz alta. Recuei lentamente até ficar bem escondidodentro da folhagem. Como falavam tão alto, era evidente que não desconfiavam deque houvesse alguém por perto. Contei-os cuidadosamente. Haviacatorze homens, com os uniformes vermelhos e azuis desbotados esujos. Já haviam preparado a fogueira para a noite e de vez emquando um deles se levantava, ia apanhar uma acha de lenha ejogava-a na fogueira. Estranhei que nenhum deles estivesse preparando a comida da noite, mas essa dúvida foi logo resolvida. Uma mulher apareceu na pequena clareira. Um dos homens sentado mais perto do fogo, levantou-se e foi falar comela. As divisas da manga mostravam que era sargento. A voz deleera mais rispida naquele tranquilo entardecer. — Donde está la comida? — Já vem,— respondeu a mulher em voz baixa. Um instante depois, apareceram duas mulheres carregando umagrande panela de ferro. O cheiro de um ensopado de carne chegou-me ao nariz, e eu senti água na boca. As mulheres colocaram a panela perto dos homens e começarama servir a comida em pratos de metal. Depois que todos foramservidos, as mulheres levaram o que sobrara e afastaram-se paracomer num canto. Aproveitei-me desta preocupação com a comida para tomar ocaminho de volta. Dei volta à clareira pelas árvores até ver onde asmulheres tinham preparado a comida. A uns seis metros de distância, havia os restos de outro fogo. Havia também alguns cobertoresestendidos no chão, que mostravam onde as mulheres dormiam.Voltei. O sol estava quase desaparecendo quando cheguei. Embora osoutros estivessem atentos, à espera da minha volta, consegui descerno meio deles sem fazer o menor barulho. Fiquei muito orgulhosoquando vi suas caras espantadas. — Quatorze homens sob o comando de um sargento,— disseeu. — Já fizeram acampamento para passar a noite. — Quais são as armas que eles têm? — perguntou GatoGordo. — Vi fuzis e duas metralhadoras portáteis. — Só duas?


— Foi só o que eu vi. — Que GatoGordo.

será

que

estão

fazendo

por aqui? —

murmurou

— Deve ser uma patrulha,— disse Manuelo. — Estão sempremandando patrulhas para descobrir onde é que estamos. — Riu. — E nunca descobriram. — Quatorze homens eduas metralhadoras — murmurou GatoGordo, pensativamente. — Somos apenas cinco, sem contar os doisgarotos. Talvez seja melhor deixá-los. — Não pode haver ocasião melhor para atacá-los,— disseeu, impetuosamente. — As mulheres acabaram de dar comida para eles.Estão tão ocupados em encher a barriga que nem nos ouvirão chegar. — Há mulheres com eles? — perguntou Manuelo, surpreso. — Há, sim. — Quantas? — Três. — Desertores! exclamou montanhas com as mulheres.

Gato

Gordo.

Fugiram

paraas

— Talvez seja verdade então,— disse outro. — O general estáforçando o exército a debandar. A guerra acabará dentro em breve. — O exército ainda está de posse dos portos,— replicou GatoGordo. — Não poderemos vencer enquanto o general não tomarCuratu. Quando cortarmos o caminho deles para o mar, os imperialistas ianques não poderão mais ajudá-los. E então tudo acabará. — Soube que estamos marchando para Curatu,— disse Manuelo. — Que é que vamos fazer com esses soldados? — perguntouGato Gordo, fazendo a conversa voltar ao que interessava. — Não sei,— metralhadoras.

murmurou

Manuelo.

Eles

têm

duas

— Têm também três mulheres disse Gato Gordo, significativamente. — Desertores não têm espirito de luta,— disse Diego Gonzáles. — E já faz muito tempo que eu... Gato Gordo interrompeu-o com um olhar de advertência para Roberto e para mim. — Poderíamos, aproveitar as metralhadoras. nosagradeceria. Há sentinelas por lá, Dax?

O

general


— Não. Estão espalhados, comendo. mijadodentro da panela e eles nem notariam.

Eu

poderia

ter

antes

do

Manuelo tomou uma decisão. — Vamos atacá-los de surpresa. Pouco amanhecer,quando eles estiverem no melhor do sono.

Rolei o corpo, puxando bem o cobertor para proteger-me dafriagem da noite. Ouvi Roberto mover-se ao meu lado. — Está acordado? perguntei. — Si. — Não consigo dormir. — Nem eu. — Está com medo? — Não,— respondeu com voz desdenhosa. — Claro que não. — Eu também não. — Estou ansioso para que chegue a hora. Vou matar umdaqueles soldados. Vamos matá-los todos. — As mulheres também? perguntei. — Claro que não. — Que é que faremos então com elas? — Não sei. — Ele pensou um momento. — Violentá-las, euacho. — Creio que não gostaria disso,— murmurei. — Foi o quefizeram com minha irmã. — É uma coisa que maltrata as mulheres. — Isso é porque você ainda é garotinho disse ele. — Vocênão poderia violentar uma mulher ainda que quisesse. — Por quê? — Você ainda é muito pequeno. Não tem tamanho para isso. — Tenho, sim! exclamei, indignado. — Eu sou maior do quevocê! — Mas a sua coisa não é! Fiquei calado, porque era verdade. Eu tinha visto a coisa delemais de uma vez. Costumava brincar com ela no campo nos fundosda casa, e ai ela ficava duas vezes maior que a minha. — Seja como for, vou violentar uma,— disse eu, num desafio. Ele riu ironicamente. — Não vai poder. Ela não vai ficar dura. — Embrulhou-se nocobertor, cobrindo a cabeça. — Agora, vamos dormir. Preciso descansar um pouco. Fiquei sossegadamente ali deitado. Olhei para as estrelas. Pareciam às vezes tão baixas no céu, que eu poderia estender a mão etocá-las. Fiquei tentando descobrir qual seria minha mãe e qual


seriaminha irmã. Meu pai me dissera que elas haviam ido para o céu etinham passado a ser estrelas de Deus. Estariam me vendo naquelanoite? Afinal, fechei os olhos e peguei no sono. Foi Manuelo quem nomesmo instante.

me

acordou,

tocando-me.

Levantei-me

— Estou pronto,— disse eu. — Vou mostrar onde é que elesestão. — Não, Dax. Você vai ficar aqui com os cavalos. Alguém temde tomar conta dos cavalos, senão eles podem fugir. — Mas... — Você e Roberto vão ficar com os cavalos. Éa ordem que estou dando, — disse Manuelo com voz firme. Olhei para Roberto, mas ele desviou os olhos sem querer encarar-me. Não era afinal de contas tão grande assim, dissesse o quedissesse. Se fosse, não o deixariam ficar ali. — Está ficando tarde! — disse Gato Gordo. — Fiquem aqui e esperem até voltarmos,— disse-nos Manuelo. — Se até ao meio-dia não tivermos voltado, peguem os cavalos evoltem com eles para casa, estão entendendo? Assentimos, em silêncio e vimos os homens desaparecerem nafloresta. Ouvimos durante algum tempo o chiar das folhas secas e oestalar dos galhos, depois tudo ficou em silêncio. — Vamos olhar os cavalos, disse-me Roberto. Fui com ele até o lugar onde os animais estavam amarrados.Estavam pastando calmamente como se estivessem na fazenda. — Não sei por que não podemos nos divertir também,— disse eu. — Os cavalos estão peados e não poderiam ir muito longe. — Manuelo disse que tínhamos de ficar,— murmurouRoberto. Senti-me de repente cheio de coragem. — Se você quiser, fique. Eu é que não vou ficar! — Manuelo vai se zangar. — Ele nem vai saber — respondi. — Posso ir mais depressapelas árvores do que eles a pé. Comecei a trepar primeirogalho e disse:

pela

árvore

mais

próxima.

Parei

no

— Depois eu lhe conto tudo o que aconteceu! Roberto me olhou um momento e depois gritou, correndo paraa árvore. — Espere por mim que eu vou com você!


6

Não levei para chegar lá tanto tempo jásabia exatamente para onde ia. Ficamos atéque senti Roberto puxar-me a manga. Ele Gato Gordo quase à beira da clareira. nafolhagem.

como na véspera, pois escondidos nas árvores apontou, e vi Manuelo e Depois, desapareceram

De onde estávamos vimos os nossos homens tomarem posiçãoem volta dos soldados que dormiam. No acampamento, nenhumdeles se mexia. Estavam encolhidos debaixo dos cobertores, emtorno da fogueira que morria. Comecei a contar. A luz ainda fraca do amanhecer, contei apenas doze. Por maisque procurasse, não conseguia ver os outros dois. Compreendi então.Estavam com as mulheres. Fiquei sem saber se Manuelo havia percebido isso. Vi um movimento na borda da clareira. Gato Gordo estavafazendo sinal para alguém do outro lado. Virei a cabeça e vi Manuelo aparecer, com o largo machete na mão, logo seguido deDiego. Dois outros se mostravam ao lado de Gato Gordo. Manuelo fezum gesto com o machete, e todos correram em silêncio através daclareira. Vi os machetes descerem, e cinco soldados estavam mortosantes que os outros tivessem ao menos aberto os olhos. O ataque foi ferozmente eficiente. Mais dois foram abatidosenquanto tentavam fugir. Um morreuquando se sentava, e outro jáestava de joelhos quando Gato Gordo, com vigorosa cutilada, quaselhe cortou a cabeça fora. Até então, não tinha havido barulho, além dos movimentos doshomens que se debatiam no agoniado frenesi da morte. Então, umdos soldados virou o corpo de repente e começou a correr de quatro pés para o mato num esforço desesperado de fuga. Um tiro de pistolaecoou pela floresta, e os passarinhos deixaram• de cantar. O soldadoque fugia caiu de bruços no chão. Houve silêncio por um momento, enquanto os homensrecuperavam o fôlego. Por fim, Manuelo levantou-se. — Estão todos mortos? — Si,— respondeu Gato Gordo. — Todos eles?

nossos


Começaram em silêncio a verificar os corpos. Diego levantou acabeça e disse, de um que estava aos seus pés: — Acho que este aqui ainda está vivo. — Que está esperando então? — perguntou Manuelo. O machete de Diego se levantou, e a cabeça do homem rolou ameio metro do corpo. Diego nem parou para olhar. Passou a outrocorpo e cutucou-o com o pé. Em seguida, voltou para onde estavam Manuelo e Gato Gordo, tomando posição um pouco atrás deles. — Só estou vendo doze,— disse Gato Gordo. — Eu também,— confirmou Manuelo. — Onde estarão osoutros dois? O garoto disse que eram quatorze. — E três mulheres,— acrescentou Diego. — Ele podia ter-se enganado,— disse Gato Gordo. — É aindauma criança. — Acho que não — disse Manuelo. — Dois devem ter fugidocom as mulheres. — Não podem estar muito longe. Vamos persegui-los? — Não — disse Manuelo. — Eles já nos ouviram. Nunca osencontraremos dentro desse mato. Juntem as armas e as munições. Tirou do bolso um cigarrillo e acendeu-o, encostando-se auma árvore. Os outros estavam começando a juntar as armas quando ouvium barulho bem embaixo da árvore em que estávamos escondidos.Olhei. Era o sargento inimigo. Empunhava uma metralhadora e estava colocando-se em posição para varrer a clareira, apontando-a para Gato Gordo. Gritei sem refletir: — Cuidado, Gato Gordo! As reações de Gato Gordo foram perfeitas. Jogou-se dentro dafolhagem num pulo de lado, como o do animal de que tinha o nome.Mas Diego não. Olhou para cima, para a árvore ondeeu estava escondido, com um ar de surpresa no rosto. Uma rajadade metralhadora pareceu levantá-lo no ar e jogá-lo violentamentepara trás. O sargento levantou a arma para o alto da árvore. — Volte, Roberto! Volte! — gritei, saltando para outro galho. Ouvi o matraquear da metralhadora, que cessou quase tão depressa quanto havia começado. O sargento estava puxando


desesperadamente a alavanca. A metralhadora havia engasgado. Não espereipara ver mais nada. Roberto deu um grito atrás de mim. Olhei por cima do ombro.Embora fosse mais baixo do que eu, pesava muito mais e um galhose havia quebrado com o seu peso. Desceu por entre osgalhos e foi estatelar-se no chão, quase aos pés do sargento. Este jogou a metralhadora para o lado e jogou-se sobreRoberto. Rolou pelo chão e quando se levantou estava com o rapaz à frente dele, com a faca no pescoço de Roberto. Olhou para os nossoshomens por cima da cabeça de Roberto. A arma de Manuelo estavaapontada para ele, e o machete de Gato Gordo lhe pendia ao lado. Os outros dois se aproximavam em silêncio por trás deles. Não era preciso dizer ao sargento que ele estava com ostrunfos na mão. — Não se movam, senão o garoto morre! Manuelo e Gato Gordo trocaram olhares embaraçados. Eu sabiaperfeitamente o que eles estavam pensando. O general não ia gostardaquilo. Se acontecesse alguma coisa a Roberto, seria bem melhorque não voltassem. A morte na selva seria uma bênção em comparação com o que o general faria com eles. Não se moveram. Foi Gato Gordo voltadopara o chão.

quem

falou

primeiro,

com

o

machete

— Largue o garoto,— disse ele maciamente.— Em troca disso, deixaremos você fugir para a floresta em paz. O sargento deu uma risada nervosa e cuspiu para o lado. — Pensa que sou idiota? Vi o que fizeram com os outros. — Isto agora é diferente,— replicou Gato Gordo. Manuelo deu um passo curto à frente, e o sargento moveu amão com a faca. Uma lista de sangue apareceu no rostode Roberto. — Não se movam! — gritou o sargento. Manuelo ficou imóvel. — Jogue o fuzil no chão! Manuelo olhou para Gato Gordo, hesitante. Gato Gordo fez um sinal quase imperceptível e Manuelo deixou o fuzilcair. — Agora, os outros,— ordenou o sargento. Gato Gordo deixou cair o machete, e os outros dois largaramos fuzis. O sargento olhou um momento para as armas, e então decidiu que seria perigoso ele mesmo recolhê-las. — Varga! Venga aqui, Varga! A sua voz ressoou pela floresta. Não houve resposta.


— Varga! Varga! gritou ele de novo. Nenhuma resposta. — O seu companheiro fugiu,— disse Gato Gordo maciamente. — Será melhor para você fazer o que lhe estamos dizendo. — Não! — O sargento começou a dirigir-se cautelosamentepara as armas, levando Roberto à sua frente. — Para trás — gritou ele. — Afastem-se das armas! Todos recuaram pouco a pouco, e o sargento foi avançando. Já estava quase embaixo da árvore onde eu estava escondido,quando tive a ideia instantaneamente, como se eu soubesse todo o tempo o que era preciso fazer. Uma estranha raiva me dominou, comose um demônio tivesse tomado posse de mim. Tirei a faca do cintoe segurei-a com a lâmina projetada para fora, como uma espada. Ele estava bem embaixo de mim. Um grito feroz escapou daminha garganta, ao mesmo tempo que me atirei. — Toma, bandido! Vi o rosto branco voltado para cima quando me choquei comele. Senti no braço uma dor penetrante, enquanto os dois rolávamospelo chão. Dois braços então me agarraram e me empurraram. Roleium pouco pelo chão, até que pude levantar-me e vi Gato Gordocurvado sobre o corpo do sargento. Havia no rosto dele um olhar de espanto ao observar o sargento. — Está morto! — exclamou afinal. — O garoto matou-o! Olhei para o sargento. Estava com a boca aberta, com os olhos semvida, esbugalhados. Bem abaixo do queixo, saia-lhe do pescoço o cabo da minha faca. Olhei para Roberto. Estava estendido no chão, lutando pararecobrar o fôlego. Quando virou o rosto para mim, vi o sangue quelhe corria pela face. — Está bem, Roberto? — perguntei. Ele acenou afirmativamente, sem falar. Havia nos olhos deleum brilho estranho, quase como se estivesse zangado. Encaminhava-me para onde ele estava quando ouvi um grito àsminhas costas. Senti uma dor aguda na nuca, e, quando virei a cabeça, senti unhas arranharem-me o rosto. Cai para trás. Sacudi a cabeça para ver melhor e levantei a vista. Uma mulherse debatia, bem segura por Gato Gordo. Ela cuspiu em mim. — Assassino! Você o matou! Você não é uma criança, é ummonstro! Uma peste foi o que saiu da barriga de sua mãe! Gato Gordo bateu nela com força com o cabo do machete, eela desabou em silêncio no chão. Havia um leve traço de satisfaçãona


voz de Gato Gordo quando olhou em torno e viu as outras duasmulheres imobilizadas pelo fuzil de Manuelo. — Ah! — exclamou ele. — Encontramos las mujeres!

7

O índio Santiago tirou algumas folhas de uma moita de loureiroe esmagou-as, esfregando-as nas mãos. Depois, curvou-se e apanhouum pouco de lama da borda do poço. — Botem isto no rosto,— disse ele. — Fará passar a dor. Roberto e eraagradável.

eu fizemos

o

que

ele

mandava. A

lama

fria

— Dói? — perguntei-lhe respeitosamente. — Muito não. — Eu nunca fui cortado,— disse eu. Ele aprumou o corpo com uma espécie de orgulho e passou osdedos pelo pequeno talhe. — Acho que vai deixar uma cicatriz — disse ele, com ar deimportância. Olhou-me com um jeito critico. — Mas acho que vocênão vai ficar com cicatriz alguma. Um arranhão nunca é tão fundoquanto um ferimento de faca. Fiquei desapontado. Mas não tinha resposta para dar. Olhei para Manuelo e Gato Gordo. Estavam encolhidos debaixode uma árvore, conversando em voz baixa. De vez em quando, olhavam para as mulheres, que estavam sentadas no chão, na borda daclareira. Os irmãos Santiago estavam montando guarda a elas. — De que é que eles estão falando? — perguntei. — Não sei,— respondeu Roberto, que não estava olhando para Manuelo e Gato Gordo e, sim, para as duas mulheres. — A maismoça até que não é ruim. — Acha que se zangaram conosco? — perguntei. — Quem? — perguntou Roberto com espanto. Mas viu logoo que eu queria dizer e sacudiu a cabeça. — Acho que não. Afinalde contas, todos estariam mortos se nós não os avisássemos. — Si. — A verdade é que eu pulei em cima do sargento para atrapalhálo. Olhei para Roberto. Pensava que ele houvesse caído.


— Você é muito corajoso. — Você também é. — Olhou de novo para as mulheres. — Gostaria que eles parassem logo com essa conversa. Estou comuma vontade louca de cair em cima de uma delas agora mesmo. — Está? — Você ainda pergunta? Manuelo e Gato Gordo acabaram a conversa, e Gato Gordoveio para onde nós estávamos, passando por entre os cadáveres.Quando chegou junto ao corpo de Diego, parou. Santiago chegouperto e murmurou: — Pobre Diego! — Pobre Diego, uma ova! — replicou Gato Gordo. — Morreu por ser burro. Quantas vezes eu lhe disse que não ficasse deboca aberta para tudo! Bem feito! Santiago encolheu os ombros, e Gato Gordo continuou emnossa direção. — Estão bem, garotos? — Estamos,— respondeu Roberto por nós dois. — Bueno,— disse ele. — Acham que podem ir buscar os cavalos e trazê-los para cá? Temos muito o que carregar. Roberto falou antes que eu pudesse dizer alguma coisa. — Que é que vão fazer com as mulheres? — Vamos guardá-las até vocês voltarem. — Eu ficarei aqui para guardá-las — disse Roberto. — Mandeum dos outros com Dax. Gato Gordo olhou-o por um momento e voltou para ondeestava Manuelo. Voltaram a conversar em sussurros. Uma vez, GatoGordo levantou a voz, mas Manuelo o fez falar baixo. Por fim,Gato Gordo voltou. — Se deixarmos vocês ficarem, não vão dizer nada em casa? Roberto prometeu. Eu não sabia o que ele estava querendo dizer, mas, se Robertoia ficar, eu também ficaria. — Prometo também que não vou dizer nada. Gato Gordo me olhou um momento e disse: — Você não vai ficar. Temos um serviço muito mais importante para você do que ir buscar os cavalos. Gostaríamos que vocêservisse de sentinela. Não queremos que o soldado que fugiu voltee nos colha de surpresa como aquele sargento. Volte pelo caminhouns quinhentos metros e fique com os olhos bem abertos!


— Não sei — disse eu, hesitante. Olhei para Roberto, maseste ficou calado. Gato Gordo tirou a pistola do cinto. — Fique com isto. Se avistar o homem, dê um tiro para o arpara avisar-nos. Isso me convenceu. Era a primeira vez que alguém me confiava uma pistola. — Tenha cuidado,— disse Gato Gordo. — Não vá ferir-se coma pistola. — Fique descansado,— disse eu, convicto da minha importância. Corri os olhos em volta para ver se os outros estavam olhando. — Se houver alguma coisa, darei um aviso. Ia a cerca de cem metros de distância pelo caminho quandoouvi as risadas. Não consegui imaginar por que estavam rindo. Jáestavam fora das minhas vistas, mas o som ainda me seguia. Por fim,não ouvi mais nada. Quando calculei que já estivesse a uns quinhentos metros de distância, subi a uma árvore de onde podia ver tudoem volta. Cerca de quinze minutos depois, comecei a ficar inquieto. Se osoldado estava nas vizinhanças, eu não vira nem sinal dele. Quantotempo eu teria de ficar ali? Gato Gordo nada dissera a esse respeito.Esperei mais alguns minutos e, então, resolvi voltar e perguntar. Estava quase chegando lá quando ouvi de novo as risadas. Subiinstintivamente para as árvores. Alguma coisa me dizia que eles ficariam muito zangados comigo se eu voltasse naquele momento, mas acuriosidade foi mais forte do que eu. Estavam todos reunidos na borda da clareira. A principio, nãopude ver bem o que faziam, porque estavam à sombra de uma grande árvore. Dirigi-me sem fazer barulho para o outro lado da clareira.Mas só pude ver uma mistura de corpos. De repente, compreendi oque estavam fazendo. Contudo, não era exatamente como da outra vez. Aquelas mulheres não estavam gritando, não estavam com medo. Estavam era rindo, como se pouco se importassem com aquilo. Santiago, o velho, estava sentado, encostado a uma árvore comum cigarrillo no canto dos lábios. Havia no seu rosto um curiososorriso de satisfação. Onde estaria Roberto? De repente, eu o vi sairde dentro do mato com as calças na mão. Olhei para ele. Concordei a contragosto que tinha razão. Era maior do que a minha. Ficava em frente dele como um pequeno cabo de punhal.


Santiago, o moço, disse uma coisa aos outros pelo canto daboca. Quase que no mesmo instante houve silêncio e todos se voltaram para olhar para Roberto. Gato Gordo sentou-se, mostrando a barriga branca. Falou e eu ouvir perfeitamente a voz dele do outro lado da clareira. — Já era tempo. O general vai ficar satisfeito. Estão vendo?Já é um homem. A mulher com quem Gato Gordo tinha estado estendeu umbraço para puxá-lo de novo para ela. Ele bateu-lhe raivosamente namão. — Puta! — exclamou, empurrando-a, e levantou-se. Manuelo e Santiago, o moço, também se levantaram lentamente.Manuelo pegou um cantil, derramou um pouco de água na barrigae se enxugou depois com um lenço. Virou-se para Roberto e disse: — É como nós combinamos. Pode escolher. Roberto olhou para as mulheres. Estavam ali estendidas, nuas,com os corpos reluzentes de suor, olhando-o com certa indiferença. — Quero esta,— disse ele, apontando. A que ele tinha escolhido parecia pouco mais do que uma menina. Eu teria escolhido uma das outras, que tinham peitos maiores,mas aquela é que Roberto me tinha dito que queria. Vi que as pernas dele tremiam quando ele marchava para ela. Ele caiu de joelhosdiante da moça. Com um riso, ela o agarrou e o puxou para cimadela, levantando as pernas e fechando-as em torno dele. As nádegas e as coxas gordas e brancas da mulher davam quaseuma volta em torno do corpo dele. Olhei para os outros. Todosobservavam a cena com grande interesse. Um momento depois, Manuelo virou-se e jogou-se em cima da mulher que estava mais perto.Ouvi-a gemer quando fechou as pernas em torno dele. Houve outrogrito, e Gato Gordo se jogou em cima da outra mulher. Tornei a olhar para Roberto. Ele e a mulher moviam-se numadança furiosa e estranhamente sem ritmo. Comecei a sentir umaexaltação dentro de mim. O coração batia com força e uma dormuito esquisita começou a espalhar-se pelas minhas virilhas. Sentia boca de repente seca e fiquei sem poder respirar. Roberto começou a gritar, debatendo-se ferozmente como sequisesse livrar-se da mulher. Atordoado, deixei-me escorregar. Estendi a mão para pegar um galho, mas era tarde demais. Cai da árvorequase aos pés deles. Manuelo rolou pelo chão e me olhou, exclamando:


— Sem-vergonha! Levantei-me e gritei: — Vocês mentiram para mim! Gato Gordo virou a cabeça. — Você devia estar de sentinela no caminho! — Mentirosos! — gritei. Atirei-me à mulher mais próxima,contorcendo o corpo como vira Roberto fazer. — Também queroviolar uma mulher! Senti Gato Gordo pegar-me e esperneei. — Largue-me! Largue-me! Eu ainda me contorcia furiosamente quando Gato Gordo melevantou do chão. Alucinado de raiva, dei-lhe uma dentada norosto. Depois, comecei a chorar. — Se tenho idade para matar um homem, também tenhoidade para ficar em cima de uma mulher! Sou tão bom comoRoberto! Mas os braços de Gato Gordo prendiam-me de encontro ao seupeito suado. Senti o seu cheiro forte, e de repente toda a revolta etodo o calor me abandonaram. Ele me afagou a cabeça delicadamente e disse com voz muitobranda: — Calma, meu galinho, calma. Tudo tem sua hora. Não tardamuito e você já é um homem também!

8

As mulheres ficaram nervosas depois que os homens se vestiram. Falaram em voz baixa entre si, e a mais velha, a que mehavia arranhado, atravessou a clareira. — Vão nos deixar aqui no meio do mato? Manuelo acabou de afivelar o cinto. — Não fomos nós que trouxemos vocês para cá. — Mas, se ficarmos aqui, vamos morrer. ninguémpara proteger-nos, para dar-nos comida. Manuelo não respondeu. cápsulasdetonadas.

Tirou

a

pistola

e

Não

haverá

substituiu

as

Ela interpretou o silêncio como um principio de aquiescência eprocurou reforçar a sua posição. — Não fomos boazinhas para vocês? Não recebemos todosquantas vezes quiseram? Não nos queixamos, não foi?


Manuelo virou-se e olhou para nós. — Já pegaram todas as armas? — Já,— respondeu Gato Gordo. — Então pelocaminho.

vamos,—

disse

Manuelo,

dando

alguns

passos

A mulher correu para ele e agarrou-lhe o braço com o rostocontorcido de raiva. — Bandoleros! Vocês todos são uns animais sem um pingo desentimento! Serviram-se de nós como se fôssemos vasilhas para receber as suas imundícies. Qualquer de nós pode estar com um filhode vocês! Manuelo deu-lhe um empurrão, e ela caiu a alguns passos dedistância. — Cão! — gritou ela. — Quer mesmo que a gente morraaqui? — Quero,— disse ele displicentemente e, voltando-se, levantou a pistola e atirou. A bala atirou a mulher de encontro a uma árvore. Ela caiu paraa frente de joelhos e afinal se encurvou numa posição fetal junto aotronco da árvore. A mão ainda se agitou alguns instantes pelo chãoantes de ficar imóvel. Manuelo levantou a pistola ainda fumegante. — As outras duas fugiram,— disse Gato Gordo. Corri os olhos pela clareira. Apenas uma onda entre as folhas ficara como um sinal da presença delas. — Vamos atrás delas? — Não,— disse Manuelo, guardando a pistola. — Já perdemostempo demais com essas putas. Ainda temos um dia de viagem atéo vale para pegar a carne. Começarão a passar fome lá em casa senão andarmos depressa. — Isso servirá de lição a essas mulheres,— disse Gato Gordo,sorrindo. — Elas não são donas de um homem só porque abriramas pernas para ele! Só fomos chegar ao vale de Bandaya no dia seguinte, bem cedo.Começamos a descer a encosta da montanha ainda dentro da névoada madrugada. De repente, o sol rompeu as nuvens, e o vale apareceu estendido abaixo de nós, verde e belo como um espesso tapete. Aprumei-me na sela e olhei, procurando avistar a minha casa. Faziamais de dois anos que eu não a via. Lembrei-me da tarde em que fora tomada a decisão. Meu paie o general conversavam sossegadamente na galeria. De vez emquando, meu pai olhava para mim. Eu estava brincando no pátiocom Perro.


Havia-lhe ensinado um novo truque. Pegava um pedaçode cana e jogava-o o mais longe possível. Ele saia correndo, latindosem parar. Pegava então a cana e vinha trazê-la de volta para mimcontente da vida. — Dax? Parei com a mão levantada, pronta para jogar ainda uma vez opedaço de cana. Olhei para meu pai. — Si, Papá? — Venha cá. Joguei o pedaço de cana no chão e fui para a galeria. Perroagarrou prontamente a cana e veio com ela para os meus pés, quaseme derrubando. Quando comecei a subir a escada, ele ficou a olhar-me com uma expressão curiosa de expectativa. Sorri ao vê-lo paradoali. Ele sabia que não podia entrar na galeria. — Espere por mim ai,— disse eu. Perro se sentou no chão e começou a brincar com o pedaço decana como se fosse um osso, abanando devagar a cauda. Olhei para meu pai quando me aproximei dele. Tinha no rostorugas que eu nunca havia notado, e sua pele normalmente escurahavia adquirido um tom cinzento. Parei diante dele. — O general me disse que lhe falou de ir para a casa dele nasmontanhas. — Si, Papá. — Quer mesmo ir? — Ele disse que eu podia ter um burro. E, depois, quando crescer mais, um cavalo. Meu pai ficou em silêncio. — Ele também me disse que o senhor iria com ele. Se nãovai, prefiro ficar aqui com o senhor. Meu pai e o general se olharam. — Não me agrada deixá-lo, meu filho. Mas é preciso. — Por quê? — É importante. O general e eu fizemos uma aliança. Eu ainda não compreendia. Meu pai continuou: — O povo está oprimido. Há injustiça e fome na terra. Temosde fazer o que for possível para ajudá-lo. — Por que não traz todos para cá? — perguntei. — Aqui hácomida de sobra para todo o mundo. Meu pai e o general tornaram a se olhar. Meu pai me pegouao colo e disse pacientemente:


— Não podemos fazer isso, meu filho. É gente demais. Eu conhecia todos os campesinos tantosassim, e foi o que eu disse.

do

vale.

Não

eram

Meu pai sorriu. — Há muito mais campesinos do outro lado das montanhas. — Quantos? Duas vezes mais? — Muito mais. Milhares e milhares. Se viessem todos paracá, não haveria lugar nem para se estenderem no chão e dormirem. Tentei imaginar o que meu pai dizia, mas não pude. Tiveoutra ideia. — Vai com o general porque é prisioneiro dele? — Não, meu filho. O general Acreditamosque o povo deve ser ajudado.

e

eu

somos

amigos.

— Vai ser então um bandolero como ele? — Não, Dax, o general não é um bandolero. — Mas os homens dele são. — Não são mais,— explicou meu pai. — Todos os bandoleiros entraram para o seu exército. Esses homens são guerrilleros. — O exército tem farda azul e vermelha. Esses não têm farda.Parecem bandoleros. — Terão farda um dia — disse o general. Olhei-o, vi que o rosto dele estava impassível e disse: — Então ai vai ser diferente. Parecerão de fato um exército. Ouvi um tropel de cavalo que se aproximava e olhei para aestrada. Era meu avô, dom Rafael. — É Vovô! gritei, saltando do colo de meu pai e correndopara a cerca. — Holá, Papá Grande! Holá, Abuelo! Em geral, quando eu corria assim para a cerca e gritava, meuavô me respondia alegremente. Mas dessa vez ele ficou em silêncio.Quando desceu do cavalo, vi que ele estava muito zangado, poistinha a boca franzida e o rosto muito pálido. Meu pai levantou-se quando o velho começou a subir a escadada galeria. — Bienvenido, Dom Rafael! Vovô não respondeu à saudação. Olhou-o friamente e disse: — Vim buscar meu neto. Fiz menção de correr para ele, mas alguma coisa no seu tomde voz me fez parar. Fiquei a olhar para ele e para meu pai.


O rosto de meu pai estava ainda mais cinzento quando eleestendeu a mão e me puxou para ele. Podia sentir-lhe a mão trêmulano meu ombro. — Não creio que seja seguro para meu filho continuar nestevale depois que eu sair daqui. — Perdeu o direito a ele,— replicou Papá Grande com a mesma voz fria. — Aliando-se aos assassinos da mãe dele, deixou deproceder como pai. Quem se junta à ralé passa a ser ralé. Senti a pressão mais forte dos dedos de meu pai no meu ombro.Mas a voz não mudou. — O que aconteceu foi um acidente. Os homens que cometeram o crime já pagaram por ele. A voz de Papá Grande se alteou. — E isso fará viver de novo minha filha, sua mulher? Ou suafilha? Estão mortas e, logo no dia seguinte, você se dispõe a juntar-se aos assassinos delas. Entregaria seu filho aos cuidados dessagente? Meu pai não respondeu. — Não ficará satisfeito enquanto ele não for o que eles são!Assassinos! Terroristas! Bandidos! Papá Grande estendeu as mãos para pegar-me, mas meu pai me afastou do alcance dele. — Ele é meu filho,— continuou ele, com a mesma voz calma, — e ficará sendo meu filho. Não o deixarei aqui. Será retidocomo refém contra mim se o exército chegar. Estará em mais segurança nas montanhas. — Sangre negra!— gritou meu avô com todo o desprezo. — Sangue de preto! Filho de escravos! Não pode haver nada mais baixo! Pensei que fosse um homem, pois do contrário não teria permitido que se casasse com minha filha. Vejo agora que estava errado.Não há baixeza a que não seja capaz de descer diante dos conquistadores, como seus antepassados fizeram diante dos seus senhores! Nesse momento, o general levantou-se da cadeira e gritou: — Basta, velho! Papá Grande olhou-o como se ele fosse lixo. — Bandolero!— Meu avô proferiu a palavra como se fossea coisa mais obscena que eu já ouvira. O rosto do general ficou vermelho de raiva. — Pare! Não basta termos poupado a sua pessoa e os seusbens? Ou já está tão velho que procura a morte como um alivio aosseus achaques?


Papá Grande nem lhe deu resposta. Voltou-se para meu paicomo se o general nem estivesse ali. — Se tem algum amor por seu filho, deixe-o ficar comigo antesque seja tarde demais! Meu pai sacudiu a cabeça. — Vá embora! — gritou o general. — Vá antes que eu percaa paciência e cancele os favores que seu genro obteve para a suapessoa! Papá Grande olhou-o furiosamente. — Não preciso da sua paciência nem dos seus favores. Já conheci durante a minha vida muita gente da sua laia. Espero tervida para ainda ver sua cabeça espetada na ponta de uma lança comovi as dos outros! Deu as costas e desceu a escada da galeria atéchegar ao seu cavalo, com o corpo empertigado e altivo, vestido como terno branco como a neve no alto das montanhas. Montou e disseda sela: — Quando o exército chegar é que iremos ver a sua bravura! Olhou depois para mim, e sua voz se abrandou. — Adeus, meu neto — disse ele tristemente. — Já estou lamentandoo que lhe vai acontecer. Dito isso, esporeou o cavalo e afastou-se a galope. Fiquei aolhálo. Os cascos do cavalo arrancavam pequenas nuvens de poeirada terra batida da estrada. Olhei-o até desaparecer. Voltei-me entãopara meu pai, em cujos olhos havia uma tristeza tão grande quantoa que eu vira nos olhos de meu avô. De repente, tomou-me nosbraços e me apertou de encontro ao peito. — Meu filho, meu filho,— sussurrou ele. — Só peço a Deusque eu esteja fazendo por você o que é certo! O general bateu palmas vivamente, e um homem veio correndodo outro lado da estrada. Era um homem grande, o mais gordo queeu já conhecera, mas havia corrido com graça, leveza e agilidade. Lembrou-me os cabritos que eu vira saltar de pedra em pedra namontanha. Trazia o chapéu na mão. — Si, Excelencia? — Gato Gordo,— disse o general,— arrume-se e leve essemenino para as montanhas. Fica sob os seus cuidados e paramim você será o único responsável se alguma coisa acontecer a ele. — Si, Excelencia,— disse o homem com uma reverência. Voltouse depois para mim. — O menino está pronto para viajar? Meu pai olhou para o general. — Agora?


— O perigo aumenta de instante a instante. — Vá dizer a Sara para arrumar as suas roupas,— disse meupai, colocando-me no chão. — Está bem, Papá,— disse eu, obedientemente e sai da galeria. — Depressa, niño,— disse-me Gato Gordo. jáestarmos nas montanhas quando a noite cair.

É

melhor

Eu era muito tímido para dizer alguma coisa naquele momento, mas, naquela noite, quando o movimento de um animal me acordou,arrastei-me tremendo para onde ele estava, pelo chão gelado das montanhas. — Tengo miedo, Gato Gordo,— sussurrei. Ele me deu a mão. — Segure a minha mão, garoto, e eu o levarei sem perigo porestas montanhas. Tranquilizado, fechei os olhos e adormeci de novo. Havia mais de dois anos que isso acontecera, e naquele momento o sol iluminava o vale e eu podia abarcá-lo quase todo coma vista. Firmei-me nos estribos e senti uma onda de contentamentoinvadir-me. Havia muito tempo que não ia a casa. Papá Grandeficaria contente de saber que afinal de contas não teria de lamentar o que me havia acontecido.

9 Havia apenas poucos minutos que descíamos a estrada da montanha quando Manuelo de repente levantou a mão. Paramos, e ele desceu do cavalo para encostar o ouvido no chão duro da estrada. Escutou um momento e então chamou Gato Gordo para escutartambém. Pouco depois, estavam ambos montados de novo. — Temos de sair da estrada e esconder-nos,— disse Manuelo. — Há muitos cavalos subindo por esta estrada. Gato Gordo correu os olhos em torno. — Esconder-nos onde, nesta montanha sem árvores? — Temos de voltar então,— disse Manuelo prontamente, virando o cavalo. Eu havia brincado naquelas montanhas desde que era garotinho.


— Mais abaixo na estrada, logo depois da curva, há algumas árvores. Logo depois das árvores, há uma caverna onde podemosesconder-nos. — Dá para escondermos também os cavalos? — Ouvi Papá dizer uma vez que dava até para um exército. — Então vá na frente, Nósacompanharemos você.

depressa

disse

Manuelo.

Afrouxei a rédea do meu cavalo, e galopamos para a curva daestrada. As árvores estavam no mesmo lugar de que eu me lembrava delas. Sai da estrada e passei por entre as árvores até chegar à entradada caverna. — Chegamos! — disse eu. Manuelo saltou do cavalo num segundo. — Você e Roberto, levem os cavalos para dentro da caverna, — ordenou ele. — Os outros, venham comigo. Temos de apagaro nosso rastro na estrada. Saltaram todos e eu e Roberto seguramos as rédeas e levamosos cavalos para dentro da caverna. A principio, os animais relincharam e recuaram da escuridão, mas nós falamos brandamente com elese pouco depois se aquietaram. Roberto fez um nó das rédeas e amarrou tudo a uma pedra. Depois disso, corremos para a entrada. Gato Gordo e Santiago, o velho, andavam de costas para nós,varrendo com galhos o leito da estrada. Manuelo e Santiago, o moço,estavam armando uma das metralhadoras. Quando acabaram, pegaram-na e correram para a entrada da caverna. Quando Gato Gordo e Santiago terminaram, olharam com satisfação para a metralhadora. Gato Gordo tomou posição atrás daarma e fechou o olho sobre a mira, muito contente. Manuelo ordenou a Santiago, o moço: — Vá para as árvores. houveralguma dificuldade.

Cubra-nos

com

o

seu

fuzil

se

Quase antes que ele acabasse de falar, Santiago já estava empoleiradoentre os galhos. As folhas tremeram um momento e ele não foi mais visível. Manuelo olhou para os garotos. — Para a caverna, vocês dois! Antes que pudéssemos protestar, Gato Gordo levantou a mão.Ficamos parados, escutando. Já era bem claro o pesado tropel doscavalos. — São mais de vinte,— disse ele, fazendo um gesto para quenos deitássemos.


Manuelo rastejou na direção da estrada. Avistei a cabeça deleperto das árvores, erguendo-se para olhar a estrada. Tentei olhar para a estrada além dele, mas a curva da encosta da montanha a escondia. O tropel era mais alto, e a cabeça de Manuelo desapareceu. Obarulho vinha diretamente da estrada à nossa frente, depois passoue começou a diminuir. Manuelo voltou correndo. — Cavalaria! Toda uma tropa! Contei trinta e quatro homens. — Que estarão fazendo aqui? — murmurou Gato Gordo. — Não havia noticia de militares em Bandaya. — O fato é que estão aqui,— disse Manuelo, encolhendo osombros. Ouviu-se ao longe o som de um clarim e, depois, silêncio. Manuelo escutou um momento mais e, então, sentou-se atrás da metralhadora e acendeu um cigarrillo. Estava muito pensativo. — Olá, moço! — disse ele em voz baixa, mas penetrante. — Que está vendo dai? — Nada,— disse Santiago com a voz abafada pela folhagem. — A estrada está desimpedida. — Não é da estrada que estou falando! É do vale! Houve silêncio, e ele voltou a falar: — Há muita fumaça, mas está muito longe para se saber o queé que está queimando. — Não está vendo mais nada? — Não. Posso descer agora? — Fique ai! — Estou com os cojones machucados de me sentar neste galho.Gato Gordo riu. — Não é o galho que lhe está fazendo os cojones doerem. — Voltou-se para Manuelo. — Que é que acha? — Não sei. Pode ser apenas um grupo de passagem pelo vale. — E agora? Vamos voltar para casa? — Levando armas em lugar de carne? Não adianta. — Mas se houver soldados no vale... — Não sabemos se há. Os que vimos estavam se afastando. Gato Gordo nada disse. Santiago, o velho, foi sentar-se defronte dele. Ficaram em silêncio, olhando um para o outro. Senti a pressão nos rins. — Vou urinar.


Fui até uma árvore e comecei a urinar. Um instante depois,Roberto estava ao meu lado. Ficamos ali, com os dois pequenos riosamarelos a correr, dourados sob a luz do sol. Fiquei satisfeito. Elepodia ser mais velho e tudo o mais, mas eu urinava mais longedo que ele. Roberto não havia notado isso, e eu já ia chamar-lhe aatenção quando de repente tive de parar. Abotoei as calças e volteipara a entrada da caverna. Os três homens ainda estavam sentados em silêncio em tornoda metralhadora. Manuelo apagou o cigarrillo e guardou cuidadosamente a ponta no bolso. — Só há um meio de descobrir. Um de nós tem de ir até ovale. — Se houver mais militares, será perigoso. — Será mais perigoso se voltarmos para casa sem carne e semfazer nenhum esforço para consegui-la,— replicou Manuelo. — É verdade,— murmurou Gato Gordo. — Não irão gostardisso. — De jeito passarfome.

nenhum —

disse

Santiago, o

velho. —

Vão

Ambos olharam-no com surpresa. Era muito raro o índio falar. Manuelo perguntou a Gato Gordo: — Você irá? — Eu? Por que eu? — Porque você de nós todos é o único que já esteve no vale.É lógico, portanto, que vá você. — Mas só estive lá um dia. Logo depois, o general me mandoulevar aquele garoto ali para as montanhas. Manuelo olhou para mim. — Lembra-se do vale? — Si. — A sua hacienda fica muito longe daqui? — Uma hora e meia a cavalo. — E a pé? Um cavalo chamaria muito a atenção. — Três, talvez quatro horas. Manuelo pensou um pouco e disse: — Leve o garoto com você como guia. Gato Gordo resmungou: — Devíamos ao menos levar os cavalos. Você sabe quanto édifícil para mim caminhar. Além disso, tenho a impressão de que émuito perigoso. Podemos ser mortos. — Nesse caso, você não precisará dos cavalos,— disse Manuelo com decisão. — Vaya!


Gato Gordo levantou-se e pegou o fuzil. — Deixe isso ai! — ordenou Manuelo. — E esconda a pistoladentro da camisa. Se alguém passar por vocês na estrada, não verásenão um pobre campesino que vai para Bandaya com o filho.Se você estiver com um fuzil, atirarão primeiro e farão perguntasdepois. Gato Gordo não parecia nada feliz. — Quanto tempo você esperará por nós? Manuelo olhou para o sol e disse: — Devem ser oito horas. Segundo disse o garoto, chegarão àhacienda ao meio-dia. Esperaremos até o anoitecer. Se até entãonão tiverem voltado, iremos para casa. Gato Gordo olhou-o sem queixas. Cada um sabia o que o outroestava pensando. Se a situação fosse ao inverso, Manuelo reagiriada mesma maneira. Era uma das condições da vida. Gato Gordo virou-se para mim. — Vamos, garoto. Parece que o trouxe de casa e tenho delevá-lo de novo para lá. — Meus cojones não aguentam mais! — disse Santiago, omoço, de uma das árvores. — Que pena! — disse Gato Gordo, sorrindo. — Quem sabese você não prefere dar o passeiozinho que nós vamos dar? O sol estava quase no meio do céu quando nos escondemos nocanavial e olhamos para o outro lado da estrada. O paiol e a cozinhatinham sido completamente queimados. O calor das madeiras carbonizadas me chegava até o rosto. Sentia no estômago um começo denáusea. Levantei-me. Gato Gordo me fez voltar para o chão. — Fique quieto! Pode ser que haja alguns deles por ai! Olhei-o como se fosse alguém que eu não conhecesse e murmurei surdamente: — Tentaram queimar minha casa! — Foi por isso que seu pai mandou você para as montanhas. — Se ele soubesse, teria deixado que eu ficasse. Eu não deixaria tocarem fogo na fazenda. — Teriam tocado fogo em você junto com ela,— disse GatoGordo. Olhou atentamente os arredores e disse: — Vamos. Talvez a gentepossa saber alguma coisa.


Atravessei a estrada com ele. No meio do caminho, entre aestrada e a casa, encontramos um morto, caído de bruços no chão.Gato Gordo virou-o e disse com desprezo: — Campesino! Reconheci-o. Era o velho Sordes, o jardineiro. Disse isso aGato Gordo. — Foi melhor para ele,— disse, com o mesmo desprezo. — De qualquer maneira, iria perder o emprego. Continuamos para a casa. A galeria fora também queimada.Parecia ter caído dentro da adega. A quentura era bem mais intensa. Gato Gordo bateu com o pé numa tábua, que se desprendeu efoi cair na adega. Quase imediatamente, uma língua de chama seelevou lá debaixo. Demos volta pela casa até chegar aos fundos. — Talvez ainda haja alguém na adega,— disse eu a GatoGordo. — Se houver, já deve estar assado. Foi só quando chegamos às árvores que ficavam entre a casa eo paiol que vimos as duas mulheres. Estavam amarradas, costascom costas, ao tronco de uma árvore, e olhavam-nos com os olhosparados. Uma delas eu reconheci. Era Sara, a cozinheira. A outra eunão sabia quem era. Estavam nuas e tinham o corpo coberto de pequenos cortesnos quais o sangue se havia coagulado. As formigas já começavam asubir por elas. — Esta é Sara,— disse eu,— a que arrumou a minha mala. — La índia? — Sim. Fechei os olhos e lembrei-me de como ela havia preparado o meu café na última manhã que passei em casa. Abri os olhos eperguntei: — Por que não fizeram o que queriam com ela e não a mataram depois? Por que tiveram ainda de torturá-la? — Soldados! — exclamou Gato Gordo. — São piores do quenós. — Mas por quê? — Com certeza, pensaram que ela soubesse de alguma coisa e queriam que ela contasse. Bem, aqui não há mais nada. Podemos ir tratando de voltar. Estávamos quase na estrada quando ele me fez parar de repente e me disse nervosamente.


— Você se chama Juan. Não fale! Deixe que eu falo tudo porvocê! Só compreendi o que ele me estava dizendo quando vi de repente os seis soldados aparecerem com as suas fardas vermelhas eazuis e as carabinas apontadas para nós.

10

Gato Gordo tirou o chapéu com um sorriso servil no rosto. — Somos pobres campesinos que viemos para Bandaya procurar trabalho, Excelência. Meu filho e eu... O jovem tenente encarou-o. — Que é que estão fazendo aqui neste lugar? — Nada. Vimos a fumaça e pensamos que... — Pensaram que podiam roubar alguma coisa! — Não, Excelência,— protestou Gato Gordo com voz ofendida. — Pensamos que poderíamos ajudar em alguma coisa. A gentenão sabia que era um caso militar. O tenente olhou para mim e perguntou: — Que idade tem o garoto? — Meu filho Juan tem quase doze anos, Excelência. — Estamos à procura de um garoto de oito anos, filho dobandolero Xenos. — Não sabemos quem é,— disse prontamente Gato Gordo. O tenente voltou a olhar para mim e disse: — Não sei... O garoto que procuramos é escuro como seufilho. — Levante o corpo, Juan! — disse Gato Gordo e voltou-se parao tenente: — Está vendo como meu Juan é alto? Qual é o garotode oito anos que é desse tamanho? — Quantos anos você tem, menino? — perguntou-me de repente o tenente. — Tengo once anos, señor. — Por que é que você é tão escuro? Olhei para Gato Gordo. Não compreendia o que ele queriadizer. — A mãe dele é... O tenente interrompeu Gato Gordo. — Perguntei foi ao menino! Tomei fôlego.


— Mi mamá es negrita. Ouvi Gato Gordo dar um suspiro quase silencioso de alivio. Osoldado me fez outra pergunta. — Donde vives? — Lá em cima,— disse eu, apontando para as montanhas. — O menino se expressa muito bem para um campesino. — É a Igreja, Excelência,— disse prontamente Gato Gordo. — A mãe dele é muito religiosa. Por isso, conseguiu que ele frequentasse a escola dos padres jesuítas lá nas montanhas. O tenente olhou-o alguns momentos e disse: — Venha comigo. — Por quê, Excelência? — perguntou Gato Gordo. — Nãopode querer nada mais de nós. E nós queremos voltar para casa. — Voltarão depois. O coronel quer pessoalmentetodas as pessoas suspeitas. Marche!

interrogar

Os soldados tomaram rapidamente posição em torno de nós. — Para onde vai levar a gente? — perguntou Gato Gordo. — A la hacienda de dom Rafael Campos. Vamos! Seguiu pela estrada, e nós o acompanhamos, entre os soldados.Senti a mão de Gato Gordo no meu ombro, ao mesmo tempo queele me dizia em voz baixa: — Não pode reconhecer seu avô! — E se ele me reconhecer? — Vamos deixar isso para quando acontecer. Há tempos queele não vê você, que cresceu muito. É possível que não o conheça. — Que é que vocês dois estão conversando? — perguntou otenente. — Nada, Excelência,— respondeu Gato Gordo. — Estávamosdizendo apenas que estamos muito cansados e com fome. Uma tropa de cavalaria apareceu na estrada, e tivemos de ficarparados de lado para deixar os cavalarianos passarem. O tenenteperguntou a um dos oficiais: — Encontraram alguma coisa? O outro sacudiu a cabeça. — Nada. O tenente ficou olhando a tropa enquanto esta galopava para oacampamento. Havia homens, mulheres e crianças na hacienda de meu avô.Olharam-nos sem curiosidade, preocupados com as suas próprias desgraças. Gato Gordo levou-me para um canto.


— Conhece alguma dessas pessoas? — Não. Ainda não vi ninguém conhecido. — Bueno,— murmurou ele, correndo os olhos em torno. — Bem que eu gostaria de ter alguma coisa para comer. Estou com oestômago dando cambalhotas. O sol estava quente, e eu me sentia cansado e com sede. — Há um poço nos fundos da casa. — Nem pense nisso, murmurou Gato Gordo. — Eles haviam de ver logo que você já sabia onde é o poço. E ai estava tudoperdido. — Notou a expressão do meu rosto, e sua voz se suavizou. — Venha, niño. Temos de achar um lugar com sombra para vocêse deitar e descansar. Achamos um lugar perto de um carro no pátio da frente. GatoGordo se agachou e descansou as costas numa das rodas. Deiteimeembaixo do carro e dai a alguns minutos estava dormindo. Não sei quanto tempo havia dormido, quando Gato Gordo mesacudiu e disse: — Abra os olhos, niño. Sentei-me e esfreguei os olhos. O sol ainda estava alto no céu.Eu não podia ter dormido mais de meia hora. Os soldados estavam levando todo mundo para a galeria dacasa. Tivemos de levantar-nos e ir com os outros. Um soldado subiu a escada, olhou para nós e disse: — Formem em fila de dois. Havia talvez cinquenta pessoas ali no pátio, entre elas algunsgarotos da minha idade, mas a maioria eram adultos. Encaminhei-mepara a frente da fila, mas Gato Gordo me puxou para trás de umamulher gorda bem no meio do grupo. A porta da frente foi aberta, e dois soldados saíram da casa.Levavam um velho que se apoiava neles. Quase dei um grito ecorri para ele, mas Gato Gordo me segurou com um punho de aço. Era Papá Grande, mas não o Papá Grandede que eu me lembrava. A camisa branca e o terno dantes sempre bem-passados eimaculados estavam amarfanhados e sujos. Havia sinais de sanguenos cantos da boca, na barba e no colarinho. Seus olhos estavamquase exaustos de dor, e seu queixo tremia enquanto ele procuravaaprumar o corpo. Pararam na balaustrada da galeria, e um oficial saiu da casa eficou atrás deles. Tinha na farda galões de coronel. Olhou para nóstodos e depois para Papá Grande. Tinha um bigode muito fino, comoque traçado a lápis, e um sorriso cruel no rosto.


— Dom Rafael,— disse ele com voz ríspida, — essa genteque está ai diz que são campesinos do vale. Dizem que os conhecee que falará a favor deles. Quer olhar um por um e dizer-nos sehá algum ai que não conheça? Compreendeu? — Compreendo, sim?— disse Papá Grande com dificuldade. — Mas já lhe disse tudo o que sei. — Isso é o que vamos ver,— replicou o coronel com impaciência. Fez um sinal para o soldado na escada.— Faça a fila passarbem devagar. A fila dupla começou a passar pela galeria, enquanto Papá Grande olhava com o olhar parado. Gato Gordo e eu estávamosquase diante dele quando o coronel gritou: — Você, ai, garoto! Venha para a frente, onde se possa vervocê! Fiquei um momento sem saber que era comigo que ele estavafalando. Mas senti alguma coisa fria nas costas, e Gato Gordo meempurrou para a frente. Fiquei com os olhos voltados para a galeriano alto, sentindo ainda aquela pressão no meio da espinha. Nãopude saber o que era. Encarei diretamente os olhos de Papá Grande. Houve neles porum instante um súbito brilho de reconhecimento, mas logo as pálpebras desceram. Quando reabriu os olhos, estava com o mesmo olharvazio. O coronel nos estava observando atentamente. — Está bem,— disse ele. — Continuem. A fila recomeçou a andar. Senti cessar a pressão fria na espinha enquanto Gato Gordo se movia. Vi então o tenente que nosprendera dizer alguma coisa ao ouvido do coronel. O coronel bateu com a cabeça e gritou: — Alto! A fila parou. — Você ai! — disse ele, apontando para mim. — Saia! Olhei para Gato Gordo. O rosto dele estava impassível, masos olhos brilhavam. Segurou-me o braço e demos um passo à frente.Ele se curvou, todo atencioso. — Si, Excelencia. O coronel já se havia voltado para meu avô. — O tenente está me dizendo que prendeu aqueles dois pertoda hacienda de seu genro. Dizem que são campesinos das montanhasque estão procurando trabalho. Conhece esses dois? Papá Grande olhou para nós com um ar curiosamente distante.


— Parece que já os qualquerexpressão na voz.

vi

alguma

vez,—

disse

ele

sem

Mais uma vez, Gato Gordo se aproximou de mim, e eu senti denovo a fria pressão na espinha. Quis virar-me, mas ele me forçoucom a outra mão a permanecer na frente. — Quem são eles? — perguntou o coronel. Meu avô levou muito tempo para responder. Afinal, passou alíngua pelos lábios e disse com voz trêmula: — Sou um homem velho. Não me lembro de nomes. Mas já osvi muitas vezes aqui pelo vale procurando trabalho. O coronel olhou-me. — O garoto é bem escuro. Seu genro também é. — Há muita gente por aqui com sangue negro,— replicou calmamente o velho. — Nunca soube que isso era considerado umcrime. O coronel ficou um instante em silêncio. Depois, tirou a pistolae apontou-a para mim. — Pouco lhe interessa então que o garoto viva ou morra? Havia tristeza nos olhos de meu avô, mas ela desapareceu quando ele se voltou para o coronel. — Pouco me interessa. O coronel engatilhou lentamente a pistola. Papá Grande virouo rosto. O coronel não olhava para mim; olhava para meu avô. Senti de repente Gato Gordo empurrar-me para o lado. — Excelência,— gritou ele, — tenha piedade! Não mate meufilho! Não mate meu filho, pelo amor de Deus, Excelência! O coronel virou o cano da pistola de mim para Gato Gordo. — É capaz de morrer no lugar dele? — perguntou com vozfria. Gato Gordo se rojou pelo chão. — Piedade, Excelência, piedade! Por Dios! Meu avô virou-se e cuspiu na direção de Gato Gordo. — Mate logo os dois e acabe com isso! — disse ele ao coronel,com desprezo na voz. — Acabe com essa covardia chorosa. Isso meestá enojando! O coronel olhou-o e então guardou lentamente a pistola na capado cinto. Gato Gordo levantou-se prontamente. — Mil gracias! Deus o abençoe! O coronel fez um gesto. Vão andando.


Gato Gordo me levou para a fila. Fomos lentamente caminhando. Afinal, passamos todos por diante da galeria e ficamos ali em silêncio. — Ele não me conheceu, — disse eu em voz baixa a Gato Gordo. Conheceu, sim! — Mas... A mão de Gato Gordo apertou-me o ombro. O coronel vinha caminhando para onde nós estávamos. Parou à nossa frente. — Como se llama? — perguntou-me. — Juan. — Venha comigo. Virou-se e Gato Gordo ficou ao meu lado enquanto o seguíamos para a galeria. O coronel chamou um dos soldados. — Vá buscar o velho e mande os outros embora. O soldado passou os braços por debaixo dos ombros de meu avôe começou a ajudá-lo a descer as escadas. Houve um leve murmúrio abafado do lado da estrada. Voltei-me para olhar. Era o clamor dos campesinos ao verem meu avô arrastado assim da galeria. Havia uma nota de protesto e de ódio naquele murmúrio. —Diga a essa gente que saia daqui! — gritou o coronel. — Sefor preciso, abra fogo contra eles. — Fuera! Fuera! — disse o tenente, correndo para eles, de pistola em punho. Todos ficaram onde estavam a olhá-lo. Ele deu um tiro para o ar e os campesinos começaram lentamente a afastar-se. Quando a estrada estava vazia, o coronel voltou-se para mim. — O velho disse que pouco lhe interessava você viver ou morrer. Vamos ver agora se você é da mesma opinião a respeito dele!

11

Já eram quase três horas e o sol estava derramando fogo sobre a terra. O suor secava no corpo e a saliva se evaporava na boca, deixando um leve gosto enjoativo de sal. Apesar do calor, eu se dentro de mim um tremor incontrolável enquanto faziam Papá Grandedescer a escada da galeria. — Leve-o para o carro, — ordenou o coronel. O velho soltou o corpo e disse altivamente:


— Posso caminhar. O soldado olhou para o coronel, que fez um sinal de assentimento, e nós seguimos o velho que se encaminhava para o centro do esbraseado pátio. Quando chegou ao carro, virou-se e ficou de frente para eles. Havia linhas de abatimento e exaustão no rosto, mas os olhos se mostravam claros e firmes. — Tirem-lhe a roupa! — ordenou o coronel! Os soldados avançaram para ele. O velho levantou a mão como se quisesse detê-los, mas eles já haviam começado arasgar-lhe as roupas. O corpo magro era quase tão alvo quanto as roupas que havia usado. Sem elas, parecia pequeno, mirrado e frágil, com todas costelas à mostra. As nádegas e os quadris estavam flácidos e bambos pela ação do tempo. — Amarrem-no à roda! Os dois soldados encostaram-no à roda e lhe amarraram ao aro da roda os braços e as pernas estendidos. O eixo da roda lhe forçava as costas para a frente, fazendo o velho encurvar-se numa posição quase obscena. O rosto se contorcia de dor, pois as juntas duras se rebelavam contra aquela tensão. Fechou os olhos e virou a cabeça para evitar o sol. — O coronel fez um gesto. Não era preciso dizer aos soldados o que tinham de fazer. Um deles encostou a cabeça do velho ao aro da roda e passou uma correia de couro pela sua fronte a fim de impedir a cabeça de mover-se. Dom Rafael, — disse o coronel em voz tão baixa que a principio não percebi que era ele que falava. — Dom Rafael! Meu avô olhou-o. — Não há necessidade de nada disso, — murmurou o coronel, quase respeitosamente. Papá Grande não respondeu. — Deve saber onde o garoto está escondido. Os olhos de meu avô não vacilaram. — Já lhe disse que não sei. Ele foi levado por Diablo Rojo e não sei para onde. — É difícil de acreditar, Dom Rafael, — disse o coronel com voz ainda branda. — Mas é verdade. O coronel sacudiu a cabeça com aparente tristeza. — Seu genro, Jaime Xenos, aliou-se aos bandoleros, aos assassinos de sua filha. Sabemos que ele tem ambições politicas. Podemos deixar de crer que simpatiza com essas ambições?


— Se fosse esse o caso, seria tão louco ao ponto de ficar aqui na minha hacienda onde me encontrassem? — Deve ter pensado que a idade o protegeria. O velho respondeu com uma voz cheia de dignidade. — Nunca fui traidor. O coronel olhou-o em silêncio durante alguns momentos. Depois, virou-se para mim. — Onde é que mora? — Nas montanhas, señor. — Que veio fazer no vale? Olhei para Papá Grande e vi que os olhos dele me observavam. — Vim trabalhar, señor. — Não tem o que fazer em casa? Gato Gordo respondeu prontamente. — Não, Excelência. A seca... — Perguntei ao menino! — exclamou asperamente o coronel. — Não temos nada o que comer, — disse eu. Isso ao menos era verdade. — Conhece este homem? — perguntou ele, apontando para meu avô. — Si, señor. É Dom Rafael, o fazendeiro. — É Dom Rafael, o traidor! — gritou o coronel. Não respondi. De repente, ele me agarrou pelo pulso, puxando-me o braço e forçando-o para cima. Gritei de dor. — Ele é seu avô! — exclamou o coronel. — Nega que é? Tornei a gritar quando ele fez mais pressão sobre o meu braço.Senti-me tonto e vi que ia cair. Levei então uma pancada na cabeça e fui ao chão. Fiquei ali tão fraco que não me podia mover, soluçando com o rosto na terra. Ouvi a voz de meu avô, como se viesse de muito longe. Era fria e completamente destituída de sentimento. — Creio que isso basta para convencê-lo, coronel. Ninguém do meu sangue iria dar-lhe a satisfação de ouvi-lo chorar. Estaria abaixo da nossa dignidade. Ouvi uma praga e depois uma pancada surda. Levantei a cabeça e olhei. O coronel estava saindo de junto de meu avô com a pistola ainda na mão. O sangue corria pela face do velho e a barba já estava empapada de vermelho. Mas os lábios estavam firmemente apertados.


O coronel voltou-se para um dos soldados. — Molhe a correia em tomo da cabeça dele. Vamos ver se o sol o convence a dizer a verdade. Encaminhou-se para a galeria e Gato Gordo me ajudou a levantar. O ombro me doeu quando procurei mover o braço. Fiquei um instante parado a fim de recuperar o fôlego. Papá Grande me olhava em silêncio. Um momento depois, fechou os olhos e eu percebi a dor que sentia. Estendi a mão instintivamente, mas Gato Gordo me agarrou instantaneamente o braço e me forçou a recuar. Da galeria, o coronel tudo observava. Um soldado passou carregando um balde de água. Jogou a água com a mão no rosto de meu avô. O velho estremeceu e respirou forte quase sufocado pela água. Tentou sacudir a cabeça para tirar a água dos olhos, mas a correia de couro só lhe permitiu movê-la uma fração de centímetro. O sol batia em cheio nele. Já o corpo estava ficando vermelho sob a ação dos raios abrasadores. Eu sentia a dor da queimadura e da tira de couro que lhe apertava a cabeça e que eu via quase diante dos meus olhos secar e encolher-se. Abriu a boca e tentou tomar o ar. Ouvi passos atrás de mim. Era o coronel que se aproximara com um grande copo na mão, cheio de gelo. Parou diante de Papá Grande. Levou o copo à boca e tomou um gole. — Então, Dom Rafael, não gostaria de tomar comigo um ponche bem geladinho? Meu avô não respondeu. Só não podia deixar de olhar para o copo e de passar a língua pelos lábios ressequidos. — Uma palavra, — disse o coronel. — Basta uma palavra. Nada mais do que isso. Com esforço, o velho afastou os olhos do copo. Olhou firmemente para o coronel e disse-lhe com um desprezo tal como eu nunca havia sentido na voz de alguém: — E pensar que eu podia ter defendido vocês. Vocês são piores do que os bandoleros, que, ao menos, têm a desculpa da ignorância. Mas vocês, que desculpa irão apresentar diante de Deus? O copo se despedaçou quebrado pelo coronel de encontro à roda do carro. Encostou o caco na barriga nua de meu avô. — Você vai falar, velho! Vai falar! Meu avô tomou fôlego e cuspiu diretamente na cara do coronel. Deu então um grito involuntário, que logo lhe morreu na garganta, enquanto baixava os olhos, cheio de horror. O coronel afastou-se e


nós vimos por que o velho havia gritado. O caco do copo, com parte dos órgãos genitais dentro, estava cravado na sua carne. Comecei a gritar, mas Gato Gordo apertou-me o rosto contra a sua grande barriga e abafou a minha voz. — Deixe o garoto olhar! Gato Gordo largou-me. Mas conservou em meu ombro a mão que era uma advertência. Olhei para o coronel. Os olhos dele estavam frios. Virei-me para olhar meu avô. O corpo lhe pendia molemente das cordas que o prendiam. O sangue escorria lentamente do caco de vidro para o chão. Pisquei os olhos para conter as lágrimas. O coronel não me devia ver chorar. Papá Grande não queria que isso acontecesse. Os olhos do velho como que se suavizaram e eu vi que ele compreendia. Depois, fechou lentamente os olhos e o corpo amoleceu. — Está morto! — exclamou um dos soldados. O coronel se aproximou prontamente e levantou rudemente uma das pálpebras do velho. —Ainda não! — disse ele, com satisfação na voz. — Quem chega a ser tão velho quanto ele não morre com tanta facilidade. Ficam querendo viver para sempre. Chamem-me quando ele voltar a si. Ainda não almocei. Subiu, a escada da galeria e entrou na casa. — Estamos com fome também, — disse Gato Gordo a um dos soldados. — Dê-se por muito contente de não estar ali junto com ele, — disse o soldado, olhando para meu avô. Gato Gordo olhou para mim e voltou-se para o soldado. —Tenha ao menos pena do garoto. Deixe-me levá-lo para a sombra. Os soldados se olharam e um deles encolheu os ombros. — Bem, isso não é proibido. Mas não vá tentar nenhum truque, veja lá! Gato Gordo me levou para perto da casa. Jogou-se no chão à sombra da galeria e eu me deitei ao lado dele. Ficamos deitados de bruços, com a cabeça voltada para a casa e as costas para os soldados. — O ombro inda está doendo? — perguntou Gato Gordo. — Não, — respondi, embora ainda estivesse doendo um pouco. Olhou para o céu.


— O sol vai desaparecer daqui a algumas horas. Manuelo e os outros terão de ir-se embora deixando a gente. — Que é que o coronel vai fazer conosco? Gato Gordo encolheu os ombros. — Ou nos matará ou nos deixará em liberdade. Tudo depende do velho. Se ele falar, nós morreremos. Se não falar, ainda temos uma chance. De repente, lembrei-me do metal frio em minhas costas quando o coronel nos mandara sair da fila. — Mas eles não me matariam. Você me mataria antes! — Si. — Mas neste caso eles matariam você. Ele fez que sim com a cabeça e eu lhe disse que não estava zangado, mas não compreendia. — Para salvá-lo de sofrer como o velho está sofrendo. Nada disse. — Forçariam você a trair seu pai, a dizer onde é o nosso esconderijo. Você não resistiria. E, no fim, não adiantaria nada, pois eles o matariam de qualquer maneira. Começava a compreender. Assim é que tinha de ser. Aquilo era o centro das nossas vidas, a única coisa que tinha importância. Olhei por cima do ombro. O velho estava lá, imóvel, com o sol queimandolhe a pele. — Seria bom se pudéssemos matá-lo, — murmurei tristemente. Gato Gordo olhou-me, concordando. Disse então: Não vai tardar muito a morrer. Vamos rezar para que morra sem falar. Ouvimos uma voz atrás de nós. — Levantem-se! O velho já acordou. Vou chamar o coronel. O coronel aproximou-se, limpando elegantemente a boca com um guardanapo. — Dom Rafael! Meu avô não olhou para ele. — Dom Rafael! — tomou a dizer o coronel. — Está-me conhecendo? O velho rolou vagamente os olhos. — Selem o meu cavalo! — gritou de repente em delírio. — Vou para as montanhas matar eu mesmo os bastardos! O coronel afastou-se, com a cara aborrecida.


— Tirem-no dai e acabem de matá-lo. Não nos serve para mais nada. Já se ia afastando, quando me viu. — Um momento. Continua a dizer que o velho não é seu avô? Não respondi. Ele tirou a pistola do cinto. Rodou o tambor edeixou cinco balas caírem na palma da mão. — Só resta uma bala. Você vai matá-lo. Olhei para Gato impassível. Hesitei.

Gordo.

O

rosto

dele

estava

sombrio

e

— Mate-o! — gritou o coronel, entregando-me a arma. Olhei para a pistola em minha mão. Era pesada, bem mais pesada do que a de Gato Gordo. Olhei para o coronel. Tinha os olhos arregalados e o rosto vermelho. Bastaria uma bala. Mas depois eles me matariam. E a Gato Gordo também. Virei-me. Meu avô estava em silêncio quando me aproximei dele. O sangue ainda lhe escorria da boca, mas os olhos pareceram de repente ficar mais claros. — Que é, menino? Não falei. — Que é que você quer, menino? — tomou a perguntar. Senti um bolo no estômago quando levantei a pistola. Meu avôviu-a. Não se moveu. Pareceu-me ver um leve sorriso antes de puxar o gatilho. O coice da arma me fez vacilar um pouco, ao mesmo tempo que o grande revólver me caia das mãos. Olhei para o velho. Estava caído pela roda, com os olhos abertos que nada mais viam. Ouvi a voz do coronel atrás de mim. — Bueno! Depois, virou-se e voltou para casa. Olhei para meu avô. Senti as lágrimas correrem-me para os olhos e contive-as. Vivo ou morto, ele não queria que eu chorasse. Gato Gordo me pegou pelo braço e me levou para a estrada. Os soldados nos viram passar impassivelmente. Afinal, quando já estávamos a alguma distância, as lágrimas jorraram-me dos olhos. — Matei meu avô! — exclamei em soluços. — Não queria, mas matei! Gato Gordo disse sem diminuir o passo rápido e sem olhar paramim. — Qual foi o mal? Ele já estava quase morto! O que vale é estarmos ainda vivos!


12

Só fomos chegar de volta à caverna três horas depois do escurecer. Os outros já haviam partido. Eu estava tão cansado que mal podia ficar com os olhos abertos. Joguei-me no chão. — Estou com fome. — Vá-se acostumando, — disse Gato Gordo. Entrou na caverna e começou a procurar alguma coisa. — Estou com sede também. Ele não respondeu. Ao fim de algum tempo, tive curiosidade de saber o que ele estava procurando. — Que é que está fazendo? — Estou vendo se descubro há quanto tempo eles saíram. — Oh! Teve uma exclamação e apanhou no chão alguma coisa que logo jogou fora. — Levante-se! — disse ele de repente. — Saíram há apenas uma hora. Talvez ainda os alcancemos. — Como é que sabe? Que foi que encontrou? — perguntei, levantando-me. — Bosta de cavalo, — disse ele, saindo da caverna. — Ainda estava quente no centro. Tive de correr para acompanhá-lo. Nunca pensei que Gato Gordo pudesse ser tão rápido. Mas a respiração dele estava ofegante quando subíamos para o alto da montanha. A estrada estava quase tão clara quanto de dia, pois a lua brilhava no céu. A noite estava esfriando. Corri para impedir os dentes de baterem. — Ainda... ainda falta muito? — Eles não vão parar enquanto não estiverem do outro ladoda montanha. Olhei para o alto da montanha. Ainda faltavam bem uns trêsquilômetros para lá chegarmos. Atirei-me ao lado da estrada. Fiqueiali deitado, tentando recuperar o fôlego. Gato Gordo andou maisum pouco, mas não me ouviu e parou. — Que é que há? — Não posso mais andar,— disse eu, começando a chorar. — Estou com frio, estou com fome. Ele me olhou um instante e disse asperamente:


— Pensei que você fosse um homem. — Não sou homem,— murmurei, num gemido. — Estou comfrio e cansado. Ele se sentou ao meu lado. — Está bem. Vamos descansar. Meteu a mão no bolso e tirou uma ponta de cigarrillo. Acendeua cuidadosamente com a mão em concha sobre o fósforo porcausa do vento. Aspirou avidamente a fumaça. Olhei-a, tremendo de frio. — Tome,— disse ele,— tire uma fumaça. Isso o esquentaráum pouco. Fiz o que ele sugeriu e comecei logo a tossir e a sentirmesufocado. Quando acabei, senti-me estranhamente mais quente. Eletirou a blusa e passou-a pelos meus ombros. Depois, puxou-me parajunto dele. Acomodei-me para aproveitar o calor que vinha dele. Sentimeconfortável e seguro, e, antes de saber como, adormeci. Acordei com a primeira claridade do sol nos olhos. Rolei ocorpo no chão, tateando àprocura dele. Levantei-me de um salto.Não o vi. — Gato Gordo! Ouvi barulho dentro do mato. Virei-me e Gato Gordo apareceu, trazendo um coelho morto espetado na ponta de um pau. — Ah, já acordou! — Pensei que ... — Pensou que eu o havia abandonado? — perguntou, rindo. — Estava procurando alguma coisa para comermos. Agora, junte unsgravetos para fazer um fogo enquanto eu esfolo esse bichinho. O coelho estava um pouco duro, mas foi uma das coisas maisdeliciosas que já provei na vida. Quando acabamos, só restava umpequeno montão de ossos. Limpei a gordura do rosto com os dedose limpei-os, lambendo-os. — Estava bom. Gato Gordo sorriu e levantou-se. — Guarde os ossos no bolso. Teremos ao menos alguma coisapara roer durante o dia. — Apagou o fogo com os pés e, quandoacabou, disse: — Vamos. Acabei de guardar os ossos no bolso e segui-o pela estrada. — Desculpe o que houve ontem à noite. — Nem pense nisso. — Se não fosse eu, teríamos alcançado os outros.


— E se não fosse você, os meus ossos já estariam apodrecendolá embaixo no vale. Além disso, acho que de qualquer maneira não íamos alcançar os outros. — Que faremos agora? Como é que vamos voltar para casa? — Caminhando,— disse Gato Gordo. — O homem caminhava muito antes de aprender a montar em cavalos. Eu sabia que Gato Gordo detestava andar a pé. A cavalo, ia-sede Bandaya ao nosso refúgio nas montanhas em dois dias e meio.A pé, seria mais de uma semana. — Escute,— disse Gato Gordo. — Fique com os ouvidos bemabertos. Qualquer coisa que ouvirmos, sairemos da estrada. Nãopodemos facilitar. Compreende? — Si. Compreendo. Chegamos afinal ao alto da montanha, e pouco mais de umquilômetro adiante vimos um pequeno rio. — Vamos parar aqui para descansar disse Gato Gordo. Corri para a beira do rio, joguei-me à margem e comecei abeber avidamente a água. Pouco depois, Gato Gordo me puxou. — Chega. Descanse um pouco. Depois, pode beber mais. Recostei-me numa árvore. Os pés me doíam muito. Tirei asbotas, esfreguei os pés e, depois, mergulhei-os na água, sentindo adeliciosa frescura que me subia pelas pernas. Em contraste, sentia ocorpo seco e pegajoso com o suor acumulado daqueles últimos dias. — Posso tomar um banho? — perguntei. Ele me olhou como se eu estivesse louco. A gente das montanhas não tinha muito entusiasmo por banhos. — Está bem,— disse ele, — mas não demore muito, para nãotirar a proteção da pele. Tirei a roupa e joguei-me dentro da água. Foi um prazer ocontato da água fresca, e comecei a pular e bater os pés, muito feliz. Um peixinho prateado passou por mim emergulhei para pegálo. Escorregou-me entre as mãos quando levantei a cabeça.Ouvi então uma risada na margem. Duas meninas estavam ali me olhando, e eu não via GatoGordo. Sentei-me prontamente no rio raso. A menina menor voltou a rir. A maior voltou-se e chamou: — Papá! Diego! Venham depressa! Há um menino dentrodo rio! Um instante depois, apareceram espingardas apontadas para mim.

dois

homens

com

as


— Que é que está fazendo ai? — Estou tomando banho. — Vem, vá saindo. Comecei a levantar-me e voltei para dentro da água. — Jogue meus pantalones,— disse eu, apontando a roupa. O homem mais velho disse às duas meninas: — Virem-se de costas. A menorzinha riu outra vez, enquanto as duas se viravam. Levantei-me e fui até a margem. — Está sozinho? — perguntou o homem mais moço. — Não, señor,— respondi pegando os pantalones que ele meestendia. — Estou com meu pai. — Onde está ele? — Palavra que não sei, señor. Estava aqui ainda há pouco... — E ainda está,— disse Gato Gordo, saindo do mato com orosto gordo aberto num sorriso. Tirou o chapéu e fez uma reverência. — José Hernández, a su servicio, señores. Este é mi hijo, Juan. O maluco gosta muito da água. O mais velho virou a espingarda para ele e perguntou, desconfiado: — Que é que está fazendo aqui? Gato Gordo espingarda.

aproximou-se,

como

se

nem

tivesse

visto

a

— Meu filho e eu estamos voltando do vale para casa. Hámuita confusão em Bandaya. Os soldados estão lá. Não servia paraum homem pacifico que está com o filho à procura de trabalho. O cano da espingarda estava quase encostado à barriga deGato Gordo. — Onde é que você mora? — A uma semana de viagem daqui,— respondeu Gato Gordo. — E para onde vão os senhores? — Estanza. Estanza ficava a alguns dias de viagem de Bandaya, no caminhoda costa. A estrada virava para o sul duas serras adiante. Naqueleponto teríamos de deixá-la e tomar os caminhos que atravessavamas florestas e as montanhas. — Talvez nos permitam acompanhá-los,— disse Gato Gordo. — Ouvimos dizer que há bandoleros por ai. Os dois homens se olharam.


— É verdade,— disse o mais moço. — O coronel Gutiérreznos disse que há muitos bandidos. Onde estão os seus cavalos? — Cavalos? — disse Gato Gordo, rindo. — Podemos lá tercavalos, señor? Somos apenas pobres campesinos. Seriamos muitofelizes se tivéssemos um burrinho. O mais velho baixou a espingarda. — Está bem. Iremos até Estanza juntos. — Mas, Excelência... protestou o mais moço. — Não tem importância, Diego,— disse o outro com voz levemente aborrecida. — Que mal podem fazer um homem e um menino?

13

Sentei-me na porta de trás do carro, de costas para as duas meninas. Gato Gordo ia sentado na boléia com o Señor Moncada. Diego viajava ao lado num cavalo preto, com a espingarda atravessadano arção da sela. Moncada era um fazendeiro que havia ido buscaras filhas, que tinham passado uns tempos com os avós. Espreguicei-me e agarrei-me ao lado do carro para não cairse cochilasse. Olhei para o céu. Já estava quase escuro. Teríamosde parar dai a pouco, porque a estrada era muito perigosa para seviajar à noite. — Há um bosque depois da primeira curva,— ouvi Diegodizer. — Podemos passar a noite lá. O carro saiu da estrada e parou na relva entre as árvores. GatoGordo pulou da boléia antes mesmo que o carro parasse. — Depressa! — disse ele. — Vamos apanhar lenha para ofogo, antes que as mocinhas sintam frio! Olhei-o, surpreso. Gato osoutros.

Gordo

nunca

se

preocupava

com

— Vamos depressa! — disse ele. Comecei a juntar lenha. Vi Gato Gordo ajudar as duas meninasa descerem do carro. Quando cheguei com o primeiro punhado delenha, os cavalos já estavam amarrados, já haviam bebido água eestavam pastando. — Onde deixo isso? — perguntei. O Sr. Moncada apontou para o chão diante dele. Comecei a jogar a lenha, mas Gato Gordo me fez parar.


— Acho que está muito perto da estrada, señor. Podemos serfacilmente vistos, e isso talvez sirva de atração para convidados queninguém chamou. O Sr.Moncada olhou para Diego, que fez um sinal de assentimento. Gato Gordo foi mais para dentro do bosque e afinal disse: — Acho que aqui será bem melhor. Joguei a lenha onde ele mostrou. Quando voltei com nova braçada de lenha, o fogo já estava aceso. Joguei a lenha no chão e senti-me muito cansado. — Mais, — ordenou Gato Gordo. Cortou alguns dos galhosmaiores, aparou-os e formou uma tripeça com eles. Quando voltei,uma pesada panela de ferro estava suspensa da tripeça e já o cheirode um bom ensopado de carne começava a encher o ar. — Chega? — perguntei. Gato Gordo olhou para mim,com o rosto brilhando ao lado dofogo. — Por enquanto, chega. Há um rio a cem metros daqui, ladeira abaixo. Pegue outra panela e vá buscar água. Fui até o carro. Vera, a mais moça, olhou para mim e riu.Fiquei aborrecido. Aquela menina vivia rindo. — Que é que você quer? — perguntou Marta, a mais velha. — Uma panela para ir buscar água. Vera tornou a rir. — Por que é que você está sempre rindo? Ela redobrou as gargalhadas, e as lágrimas começaram a correrme pelo rosto. — Qual é a graça? — perguntei, zangado de verdade. — Você é tão engraçado, — disse ela, parando de rir. Olhei para mim mesmo. — Agora, não,— disse ela prontamente. — Hoje à tarde, quando estava dentro da água. É tão magro. Fiz uma careta. — É melhor do que ser gorda como você. — Aqui está a panela — disse Marta, Julgueiperceber uma ponta de irritação na voz dela. — Gracias,— disse eu, pegando a panela. — No hay de qué. Vera riu de novo. — Que é que há com ela? — perguntei.

abruptamente.


Marta encolheu os ombros. — Ora, Vera é uma criança. Tem apenas doze anos. Nunca viuum menino nu. — Você também nunca viu! — replicou Vera. — Mas eu tenho quatorze anos e não procedo mais como uma criança. Diego apareceu ao meu lado. — Já pegou a panela? — perguntou, desconfiado. — Si, señor. — Que é que está esperando então? Vá buscar a água, comoseu pai mandou. Afastei-me em silêncio. Ouvi a voz dele. — Que foi que ele disse? — Nada,— respondeu Marta. — Bem, trate de ficar longe dele. Não pude ouvir mais, pois entrei no bosque e desci até o rio.Gato Gordo estava à minha espera lá. — Depressa! Quanto depressa vão dormir.

mais

depressa

eles

comerem,

mais

— Que é que vai fazer? — Roubar os cavalos. Estaremos em casa daqui a dois dias.Além disso, gostei daquele cavalo preto. — Não vai ser fácil. Diego não confia em nós. — Vou matá-lo disse Gato Gordo, sorrindo. Houve um barulho no mato às nossas costas, e Gato Gordolevantou-se no momento em que Diego apareceu, de espingarda empunho. Será que ela nunca lhe sai das mãos? Gato Gordo enxugou as mãos nas calças. — Estava lavando as mãos. Um barulho me acordou no meio da noite. Virei-me embaixodo cobertor que o Sr. Moncada me havia emprestado e olhei paraGato Gordo. Estava ali dormindo e até roncando levemente. Olheipara o lugar de Diego. Ele não estava debaixo do seu cobertor. Olhei para o carro onde o Sr. Moncada e as filhas estavamdormindo. Dali não vinha barulho algum. Esperei mais um pouco.Talvez Diego tivesse ido fazer alguma necessidade no mato. Ouvi um cavalo resfolegar e virei a cabeça. Foi então que viDiego que se dirigia para o carro, de espingarda na mão e em posição de tiro.


— Psst! Gato Gordo acordou no mesmo instante. Fiz um gesto com asmãos e apontei. — Ele vai matá-los! Gato Gordo não se moveu. — Deixe-o — disse ele. — Isso nos poupará o trabalho. Diego rastejou até a frente do carro. Firmou então os pés elevantou o corpo, com a espingarda no ombro. Nesse momento, umgrito fino cortou o ar da noite. Diego atirou desesperadamente quando o Sr. Moncada desceu do carro. Tentou atingi-lo com a coronha da espingarda, e quando ambos rolaram, atracados, para o chão ao lado do carro, GatoGordo levantou-se e correu para eles. — A espingarda! — gritou ele para mim. — A espingarda! Parou perto dos dois homens que rolavam pelochão e eu vi Gato Gordo levantar a faca. Esperou um momento e, então, afaca desceu. Houve um grito, e Diego levantou-se, com as mãosestendidas para o pescoço de Gato Gordo. Dando um passo atrás, Gato Gordo esperou. Diego avançou, ea faca se moveu. Diego se dobrou ao meio e caiu para a frente.Gato Gordo meteu-lhe o joelho por baixo do peito e jogou-o parao lado,levantou-se em seguida prontamente, com a faca já preparada na mão. O Sr. Moncada estava de costas para ele. GatoGordo já ia levantando a faca quando o outro se voltou, empunhando a espingarda. Gato Gordo abaixou a mão. — Está bem, señor? — perguntou, com fingido interesse. O Sr. Moncada olhou para ele e depois para Diego, estendido no chão. — Era um bandolero! Tentou matar-me! — Foi uma sorte eu ter acordado, señor. O Sr. Moncada sorriu. — Sou seu devedor, meu amigo. Salvou-me a vida. Gato Gordo baixou os olhos, sem ter o que dizer. Mas, uminstante depois, conseguiu falar. — Não foi nada, señor. Nem assim lhe poderia pagar a suabondade comigo. Foi até onde estava Diego e empurrou-o com o pé. — Está morto. Onde foi que contratou esse homem?


— Em Bandaya. Disseram-nos que havia bandoleros na estradae que não seria bom eu viajar sozinho com as duas meninas. Essehomem me foi recomendado pelo coronel Gutiérrez. Estava trabalhando como guia para o exército. — Não passava de um bandoleiro,— disse hipocritamente GatoGordo. — Ia matá-lo e roubar os seus cavalos. Devia estar de olhoprincipalmente no cavalo preto. — O cavalo preto? Mas não é meu. Era dele mesmo. — Era? — perguntou Gato Gordo, arregalando os olhos. — Pela lei, o cavalo agora é seu. Gato Gordo me olhou sorrindo. Pela primeira vez, uma lei era a seu favor. O que pertencia a um bandolero passava automaticamente a ser de quem lhe tirava a vida. — Está bem, vozassustada.

Papá?

perguntou

dentro

do

carro

uma

Eu me havia esquecido das meninas. Olhei para o carro e visurgir cautelosamente a cabeça de Marta. — Estamos salvos! — exclamou dramaticamente o Sr. Moncada. — Pela graça de Deus, fomos salvos da morte! Este bom homem, arriscando a vida, protegeu-nos daquele assassino! Um momento depois, as duas meninas saltaram do carro, abraçaram o pai e começaram todos a beijar-se, a chorar e a rir. Afinal, o Sr. Moncada voltou-se para nós, com o rosto radiante. — Foi uma sorte para nós termos encontrado vocês hoje àtarde. Agora é que compreendo por que Diego não queria que vocêsviessem conosco! — Foi uma felicidade para todos nós, señor,— disse GatoGordo. Depois, virou-se para mim e falou com a voz de um proprietário: — Vá ver se o nosso cavalo está bem amarrado!

14

Eu havia acabado de jogar o último saco de sal no barril decarne quando percebi de repente que as duas meninas estavam nogalpão, olhando-me. Peguei a tampa do barril e comecei a pregá-la. — Vai para a sua casa amanhã? — perguntou Marta, ao fimde algum tempo. Era mais uma afirmação, do que uma pergunta. Bati com acabeça. Já fazia uma semana que estávamos na hacienda. O Sr. Moncada não tinha querido fazer o resto da viagem sozinho, e


GatoGordo, sem mais aquela, resolveu acompanhá-lo, especialmentedepois que o fazendeiro lhe dissera que tinha muito gado e queestava disposto a dar-nos como compensação quatro barris de carnesalgada e um carro para levá-los. É claro que Gato Gordo teria de deixar o cavalo preto em segurança, mas só até que devolvermos o carro. Assim, o trato foi fechado, e nós continuamos pela estrada para Estanza. Trabalhamos dia e noite para salgar a carne e prepará-la paraa viagem. Bati o último prego na tampa e me virei. — É verdade,— respondi afinal. — Iremos amanhã. — Que idade tem você? — perguntou Vera. — Treze anos,— respondi, sabendo que ela tinha doze. — Tem nada,— disse Marta, zombando. — Ouvi seu pai dizerque você tinha só dez. — Meu pai? — Por um momento, eu havia esquecido GatoGordo, que devia estar naquele momento na cozinha, entendendo-secom a cozinheira e provavelmente enchendo a barriga. — Você tem irmãos? — perguntou Vera. Disse que não. Comecei a sentir frio ali no galpão, depois dehaver parado de trabalhar, e vesti a camisa. — Você é tão magro,— disse Vera, rindo de novo. — Temos ossos todos de fora. Olhei-a com minhamagreza.

raiva.

Era

do

que

ela

sabia

falar,

da

— Não ligue para ela — disse Marta. — Está sempre procurando ver o que é que os homens têm. — Você também! — exclamou Vera. — Foi você que seguiuDiego quando ele foi urinar. — Mas foi você que me disse para onde ele tinha ido,— replicou Marta, e estremeceu, dizendo: — Aquele homem terrível! — Você não pensou isso naquela hora. Disse que ele era maiordo que Papá! Compreendi então. Marta baixou a voz e me disse em tom de confidência. — Ele viu que nós estávamos olhando. Sabe o que foi queele fez? Sacudi a cabeça. — Veio para o lugar onde estávamos escondidas. Ficamosassustadas, mas Diego riu e começou a brincar. Num minuto, ficoutrês vezes maior! Parecia o cavalo preto!


— O cavalo preto? — perguntei, sem perceber a ligação. Marta acenou impacientemente com a cabeça. — Sim! Papá disse que fará o cavalo preto cobrir seis éguasantes que seu pai traga de novo o carro! — Oh! — O señor Moncada não era bobo. Um só potro valiaquatro barris de carne. — Ele continuou a brincar e foi ficando cada vez maior — murmurou Vera. — Quem? — perguntei. Havia-me esquecido por um momento do que elas estavam dizendo. — Diego,— respondeu Marta. — Ficou com uma cara esquisita. Comecei a ficar interessado. — Que foi que aconteceu depois? — Nada,— respondeu Marta, com um tom de desapontamento. — Ouvimos Papá, que ia chegando, e voltamos correndo parao carro. Fiquei também desapontado. Estava tão ansioso quanto elapara saber o que ia acontecer. — De qualquer modo, eu não gostava de Diego,— apressou-seem dizer Vera. — Ele nos mataria depois que matasse Papá. — Antes disso, violentaria vocês, — disse eu, com um acento de autoridade. O meu tom as impressionou. — Como é que sabe? — Ora, sempre se violentam as mulheres antes de mata-las. — Por quê? — perguntou Marta. Encolhi os ombros. — Porque é assim que se faz. Vera me olhou com curiosidade. — Sabe muita coisa, não sabe? — Bastante, — respondi, cheio de importância. — Pode ficar igual a Diego? — É claro que posso. É muito fácil. Qualquer homem pode fazer isso. — Aposto que você não pode, — disse Marta. — Você é muito pequeno. — Não sou não! — repliquei irritado. As irmãs se olharam, cheias de interesse. — Prove então! — disse Marta. — Para quê? Talvez eu não esteja com vontade.


— Você é muito pequeno e tem medo de não poder fazer isso! — disse Marta. — Posso, sim! Vou provar! Senti os olhos delas seguirem a minha mão quando desabotoei as calças e comecei a brincar, como vira Roberto fazer. Um minuto depois, olhei. Nada estava acontecendo. — Talvez você esteja fazendo isso muito depressa, — sussurrou Marta. — Diego fazia muito mais devagar. Olhei-a, confuso. Talvez ela soubesse mais daquelas coisas da que eu. — Deixe-lhe mostrar como é, — disse ela, estendendo a mão. A mão dela estava quente e úmida. Comecei a sentir o seu calor e uma pressão subir-me pelo meio do corpo. Olhei para elas. Não tiravam os olhos de cima de mim. Vera passava a língua pelos lábios secos e nem pensava mais em rir. Comecei a sentir um tremor espasmódico no corpo. Olhei para meu corpo e senti um orgulho que me envolveu com o calor do sol pela manhã. — Não disse a vocês que podia? Agora, parem senão eu ataco vocês! — Você não tem coragem! — exclamou Marta. — Não? É melhor vocês fugirem e bem depressa! Elas não se moveram. Dei um passo para elas. Olhavam para minha coisa e eu a senti vibrar. Fujam! Fujam! — Qual é a que você vai atacar primeiro? — Qualquer das duas serve. Mas é melhor irem-se embora, As duas irmãs se olharam e Vera disse: Você, que é a mais velha. Eu não sabia o que fazer. Não tinha esperado aquilo. — Como é? Vão fugir ou não vão? Marta me olhou. — Está bem. Vou ser a primeira. — Não vai gostar. É melhor ir-se embora. Marta levantou a saia. Vai ou não vai? — perguntou com impaciência. Olhei para a leve penugem preta entre as pernas dela. Havia um brilho de desafio nos seus olhos.


—Está bem, — disse eu. Mas não se esqueça de que foi você quem quis. Fui para ela como me lembrava de Roberto ter feito com as mulheres na floresta. Caímos no chão. Abri-lhe as pernas e montei sobre ela e comecei a sacudir-me num movimento que parecia vir de dentro de mim. Mas sentia que estava em toda a parte menos onde eu queria. Senti então a mão dela pegar-me e guiar-me para onde ela queria que eu fosse O cabelo ali era fino, mas me espetava como uma porção de agulhas. — Pare de dançar, — disse ela. — Empurre! Mas eu não podia. Havia por dentro de mim uma dor feroz e excitante que não me deixava. Por mais que eu fizesse, não conseguia passar das bordas da carne dela. Ouvi-a gemer com o esforço de fazer-me entrar nela. — Qué pasa? Virei-me e vi Gato Gordo na porta, com um ar de incredulidade no rosto. Vera havia desaparecido. Ele chegou perto de mim e me levantou zangado. Bateu-me com a mão no rosto. —É assim então que você paga a hospitalidade do Sr. Moncada? Eu estava muito sem fôlego para responder. Procurei Marta. Ela já se havia levantado e corria pela porta a fora. Virei-me para Gato Gordo. Ele não estava mais zangado, porque até ria. —É melhor abotoar as calças. Comecei embaraçadamente a abotoar-me. Ele me passou afetuosamente a mão pela cabeça. —Eu sabia que essas duas descaradinhas iam dar em cima de você. Ande dai. Vamos preparar o carro para a viagem. Foi saindo do galpão, mas, chegando à porta, virou-se para mim. — Não fique tão surpreso. demorariamuito a ser um homem!

Eu

disse

que

você

não

15

Ouvi um tiro e, antes mesmo que o som tivesse parado deecoarme aos ouvidos, já me havia jogado ao comprido dentro docarro. Outro tiro, e Gato Gordo já estava deitado de bruços na valaao lado da estrada. Um momento depois, ele se levantou, com alama e a água a escorrerem-lhe do corpo, gesticulando iradamentepara a encosta e gritando com toda a força dos pulmões:


— Santiago! Filho de uma hiena, idiota e cego! Você já saiuzurrando como um burro da barriga de sua mãe! Não está vendoque sou eu, seu companheiro? Ping! Uma bala caiu na terra a menos de um metro de distância, e Gato Gordo se jogou de novo na vala. Dessa vez, não selevantou. Ficou deitado dentro da água, gritando: — Merda! Índio de merda! Sou eu, Gato Gordo! — Gato Gordo? — exclamou Santiago, o velho, cuja vozecoou pela montanha. — Sim, Gato Gordo, imbecil, cego, maluco! Gato Gordo! Houve um movimento no mato, e Santiago apareceu à beirada vala. — Gato Gordo! Por que não disse logo que era você? Gato Gordo se levantou da vala ainda mais sujo e molhadoque da primeira vez. A água lhe escorria da aba do chapéu para orosto, e ele resfolegava sem poder falar. — Gato Gordo, é você mesmo? exclamou Santiago, exultante, largando o fuzil para abraçá-lo. — Está vivo! — Claro que estou! — gritou Gato Gordo, ainda zangado. — Mas você fez o possível para que eu não estivesse! — Todos nós pensávamos que você tivesse morrido! — exclamou Santiago. — E aqui está você, são e salvo e sem uma marca! Gato Gordo olhou-se. A camisa e os pantalones novos que o Sr. Moncadalhe dera estavam imundos de lama. — Sem uma marca! — punhosfechados para o índio.

berrou

ele,

avançando

com

os

O soco atingiu bem em cheio o rosto de Santiago e o fez cair para trás na estrada. Olhou para Gato Gordo com uma expressãomagoada no rosto impassível de índio. — Está zangado comigo, Gato Gordo? Que foi que eu fiz? — Que foi que você fez? Olhe para a minha camisa nova,para as minhas calças novas! Tudo estragado! Está ai o que você fez! Quis dar um pontapé na cabeça do índio e Santiago se esquivou com a maior facilidade. Com o pé suspenso,Gato Gordo perdeu o equilíbrio e caiu novamente dentro da vala.Ficou ali ofegante, esgotando o seu repertório de pragas. Ouvi que alguém vinha por dentro do mato, e então Manuelo apareceu.Olhou para o índio ainda caído na estrada e viu Gato Gordodentro da vala. Disse então com voz calma: — Quando acabarem com essas brincadeiras de crianças, possosaber o que trouxeram nesse carro?


Já fazia doze dias que tínhamos partido das montanhas paraBandaya, embora parecesse que fazia quase um ano. Fomospara o acampamento, onde todos se aglomeraram em torno de nóse nos trataram como heróis. Quase não puderam esperar até que o primeiro barril foi aberto e as mulheres levaram a carne para acozinha. Durante todo o tempo da nossa ausência, tinham-se sustentado de caça e raízes. E bem mais de raízes, porque a caça tinhafugido das montanhas devido à seca. Havia oito homens, quatro mulheres e quatro crianças naquelepequeno acampamento nas montanhas que servia a Diablo Rojo de quartel-generale esconderijo. Três das mulheres eram dele; e trêscrianças. A outra mulher e a outra criança eram de Manuelo. Cada um dos três filhos do general havia nascido de mãe diferente. Roberto, o mais velho e meu companheiro, era escuro. Tinhafeições de índio, o que não era de espantar, pois a mãe dele erauma prima distante dos Santiagos. Eduardo, mais moço, era o quemais se parecia com o general, mas mostrava também a marca damestiçagem nas feições grosseiras. Só Amparo, a caçula, era clara eloura. O corpo era esbelto e ágil, os olhos, luminosos e vivos, sempre cintilantes de alguma exaltação intima. E não havia dúvida deque era a favorita do pai, como o era a mãe. Esta era elegante e loura, bem diferente das outras duas mulheres, escuras e corpulentas. As duas não gostavam dela, mas não se atreviam adizer coisa alguma contra ela. Viera da costa, e dizia-se que o general a conhecera numa casa de mulheres, embora ela dissesse que erafilha de um fidalgo castelhano arruinado e de uma refugiada alemã.De qualquer modo, procedia como grande dama, e as outras tinhamde cozinhar para ela e de servi-la como se fossem criadas. Quando o general estava ausente, ela passava a maior parte dotempo com Amparo, brincando com ela ou vestindo-a e despindoacomo se fosse uma boneca. Isso e o tratamento extremoso que amenina recebia do general e, por isso mesmo, de todos os homensdo acampamento, faziam-na perdida de mimos. Embora tivesse apenas sete anos, era imperiosa e de uma arrogância pronta e enormequando não faziam o que ela queria. Isso raramente acontecia, e todo mundo viviabanhado no radioso calor do seu sorriso. Amparo estava ao lado branco,quando desci da boléia.

do

carro,

com

um

belo

vestido

— Disseram que você estava morto disse ela, com voz umpouco decepcionada. — Mas não estou.


— Já rezei uma novena por você, e mamãe me prometeu quena primeira vez em que formos a uma igreja mandará celebrar umamissa. Olhei-a. Tínhamos sido crianças juntos, e eu percebia de repente que ela ainda não deixara de ser criança. — Desculpe. Se eu soubesse, teria deixado que me matassem.Um sorriso lhe encheu o rosto. — Sério, Dax? Você teria feito isso por mim? — Claro! Ela me jogou os braços pelo pescoço e me beijou o rosto. — Oh! Dax! Você é o meu favorito! Estou muito contentede não terem matado vocês! Palavra que estou! Afastei-a delicadamente, mas ela olhou para mim com os olhosbrilhantes. — Já tomei uma decisão, sabe? — Qual é, Amparo? — Vou me casar com você quando crescer. Vou dizer a mamãe, para ela ficar sabendo agora mesmo! E saiu correndo. Fiquei olhando-a até ela entrar na casa, comum sorriso nos lábios. Pouco antes da nossa partida, ela tivera umverdadeiro acesso de raiva porque resolvera casar-se com Manuelo ea mãe lhe havia dito que isso não era possível, porque Manuelo jáera casado. E antes de Manuelo, tinha sido um jovem mensageiroque o general mandara com noticias. Virei-me para o carro e comecei a desatrelar os cavalos. Do outro lado, Gato Gordo estava contando aos outros asqualidades do cavalo preto. Foi então que vi Roberto e Eduardo. Olhei para eles e disse: — Alô! Eduardo respondeu imediatamente. Era apenas alguns mesesmais moço que eu, mas muito menor e mais magro. Roberto limitou-se a olhar-me, carrancudo. Estava pálido, com os olhos amarelados e parecia doente. — Que é que há com você? — perguntei-lhe. Eduardo respondeu antes que o irmão pudesse abrir a boca. — Está com uma carga. — Uma carga? O que é isso? Roberto continuou calado; e Eduardo respondeu: — Não sei. Mas os Santiagos e Manuelo também estão comisso. A mulher de Manuelo está louca da vida com ele.


— Eduardo! — chamou de dentro da casa a mãe dele. — Tenho de ir. Acabei de desatrelar os cavalos em silêncio. Roberto continuoua olhar-me, e eu lhe passei as rédeas de um dos animais. — Ajude-me a levá-los para o pasto. Levamos os cavalos. Abri a porteira, tiramos os arreios e soltamos os animais lá dentro. Os outros que estavam no pasto olhavamos recém-chegados. — Veja só,— disse eu. — Estão fingindo que nem vêem osdois. Amanhã, estão todos amigos, correndo por ai. Cavalo é comogente. — Mas não pegam esquentamento disse Roberto, surdamente. — Não? E você, como foi que pegou? — Das mulheres na floresta. Todos nós pegamos. A mulherde Manuelo está furiosa com ele. — E é ruim? — Muito, não. Mas quando se urina dói muito. — Que é que tem uma coisa com outra? — Mas como você é burro! É ai que se pega a doença. Vocêvai ter também. Manuelo diz que não se é homem enquanto nãose pega uma doença. — Eu estive com uma mulher. — Foi mesmo? deincredulidade.

perguntou

Roberto,

com

a

voz

cheia

— Foi. Marta, a filha do Sr. Moncada, da fazenda onde nóspegamos a carne. Cai em cima dela no galpão. — Enfiou mesmo? Não sabia bem o que ele queria dizer. — Acho que sim. De qualquer maneira, não tive tempo denotar isso. Estava muito ocupado. Eu ainda estaria violentando amenina se Gato Gordo não me tivesse tirado de cima dela. — Qual era a idade dela? — Quatorze anos. — Então era uma menina. — E você acha que eu pegarei uma carga? — Não, ela é uma menina. É preciso ser uma mulher de verdade para pegar doença na gente. E Gato Gordo pegou também? — Não sei. Não me disse nada. — Talvez ele tenha tido sorte e não tenha pegado.


Voltamos para a casa, e eu fui pensando. Não podia compreender. Como era que só se era homem quando se pegava a doença ese tinha sorte quando não se pegava?

16

Gato Gordo resmungou quando eu o segui em direção ao posto de vigia. — Aonde é que pensa que vai? — perguntou ele. — Vou dar um passeio por ai respondi inocentemente. — Dê então seu passeio, mas precisa estar atrás de mim todavez que vou a algum lugar? Assim, vou acabar tropeçando emvocê. Acabará esmagado como uma lagarta. Não respondi, e ele continuou pelo caminho, dando de vez emquando irados pontapés nas pedras. Segui-o a uma distância prudente, não querendo ser esmagado como uma lagarta. Gato Gordohavia passado a semana toda assim, desde que Manuelo não o deixara voltar para pegar o cavalo preto. Manuelo dissera que tínhamospouca gente e não era possível dispensar ninguém. Havia em geral dez homens de guarda ao esconderijo. Mas doisdeles tinham morrido. Um fora morto pelo sargento na floresta e o outro morrera pouco antes da nossa partida. Ficara bêbado e tentara violentar uma das mulheres do general. Acho que foi a mãe deAmparo, mas não tenho certeza. Sei que ouvi um grito, e depoisdois tiros. Quando cheguei lá, o homem já estava morto. O Santiago moço é que estava de vigia. — Chegou na hora. Estou quase morto de fome,— disse ele. — O melhor remédio para esquentamento é estômago vazio, — disse maliciosamente Gato Gordo. — Nesse caso, aconselho você a pegar um. Se continuar a comer como está comendo, daqui a pouco não haverá mais cavalo queaguente. — Conversa! — replicou Gato Gordo. — O meu cavalo pretopoderia aguentar-me ainda que eu fosse cinco vezes mais gordo. — Sabe que não acredito nesse cavalo seu? Santiago,rindo e tomando o caminho do acampamento. — É inveja sua! Dax estava comigo e viu, não viu, Dax? — Vi, sim.

disse


Mas Santiago já ia longe. Voltei-me para Gordo.Estavaolhando pelas montanhas na direção de Estanza.

Gato

— Um grande cavalo, hem, Dax? — Un caballo magnifico! Gato Gordo sentou-se, encostou-se numa pedra com o fuzilnos joelhos e murmurou: — Manuelo não pode saber o que é ser animaldaqueles. Nunca teve um e não pode saber!

dono

de

um

Não respondi. — Até parecia que eu estava pedindo a mulher dele emprestada. Disse que tenho de ficar aqui porque temos muito pouca gente. Encolheu os ombros. — E se não tivéssemos voltado? Eu não estaria aqui paraManuelo me negar uma coisa tão simples, e eles estariam passandofome, só tendo para comer rato e raiz de pau. Continuei calado, mas Gato Gordo não parecia importar-se deque eu falasse ou não. — E depois de tudo o que fiz por eles, ainda têm a coragemde duvidar de que eu tenha o cavalo. — Largou o fuzil e acendeuum cigarrillo. — É mais do que um homem pode tolerar! Vi-o tirar uma fumaça e correr os olhos pelos arredores. Tudoestava em calma nas montanhas. Dai a uma hora tudo estaria escuro. — Boa noite, Gato Gordo disse eu, e tomei o caminho devolta para o acampamento. No meio do caminho, ouvi o grito de um peru selvagem. Quaseimediatamente, pensei em pegá-lo. Seria bom comê-lo. Eu já estavacansado de carne salgada todos os dias. — Glu, — glu, — glu! — gritei, chamando-o. O bicho respondeu, mas o som parecia vir muito da esquerda. Entrei pelo mato e chamei de novo. Ele respondeu, mas ainda estava se afastando de mim. Já era escuro quando consegui chegar perto dele. Não sei quem ficou mais surpreso quando a cabeça do peruapareceu de repente no mato à minha frente, se ele ou eu. Ficamosum momento ali parados, e então a grande ave levantou a cabeçapara protestar, mas eu no mesmo instante ataquei-o com a faca ecortei-lhe a cabeça. Senti o sangue bater-me quente na camisa quando a ave semcabeça passou por mim e foi cair mais adiante, debatendo-se deses-peradamente. Só uns dez minutos depois foi que o sangue


correutodo e o peru ficou imóvel. Já estava quase escuro quando o pegueipelas patas e levei-o no ombro, com o longo pescoço pendente àsminhas costas. Manuelo estava perto do cercado do pasto quando cheguei. — Onde estava? — perguntou-me, zangado. — Sabe muitobem que tem de voltar para casa antes de escurecer. Joguei o peru aos pés dele. — Deus do céu! — exclamou ele, admirado. — Onde foi queconseguiu isso? — Ouvi-o chamar quando voltava do posto de vigia. Manuelo pegou o peru. — Deve ter bem uns quinze quilos! Estrella, venha ver o queDax trouxe! Vamos ter banquete amanhã! Mas não houve banquete, porque os soldados chegaram naquela noite. Deve ter sido poucas horas antes do amanhecer que ouvi oprimeiro tiro. Pulei da cama e peguei os sapatos. Eu estava quasevestido, porque tinha dado para dormir como os outros desde anossa volta. Passei a mão na faca debaixo do travesseiro. Ouvi no interior da casa um grito de mulher. Não sai pelaporta. Pulei da janela para o telhado dos fundos e rolei por eleenquanto as chamas se erguiam da casa. Vi clarões de tiros e gritos de homens quando sai engatinhandona direção do mato. Saltei por cima de algumas moitas e joguei-medentro da vala. Prendi o fôlego, e então levantei cautelosamente acabeça. Só podia ver à luz do incêndio uniformes vermelhos e azuispor toda parte. Manuelo e Santiago, o velho, chegaram correndo dooitão da casa. Vi os clarões dos fuzis deles. Um soldado caiu eoutro gritou, levando a mão à barriga. Outro soldado atirou entãoem Manuelo alguma coisa que saiu rodando pelo ar. Não pude deixar de gritar. — Cuidado, Manuelo! Mas ninguém me ouviu. Num momento, Manuelo estava ali depé e no instante seguinte pareceu explodir em mil pedaços. Doissoldados atacaram então Santiago. O fuzil dele estava sem balas,mas Santiago começou a defender-se dos soldados, usando-o como se fosse um cacete. Os soldados conseguiram avançar, e eu ouvi o gritodele quando uma baioneta lhe entrou pelo pescoço e outra pelabarriga.


Baixei a cabeça e corri por dentro da vala para a frente da casa.Quando cheguei ao caminho do posto de vigia, que estava escondidopelo mato, ouvi um grito e vi Amparo, que fugia, com a camisolabranca levantada pelo vento. Agarrei-a pela perna, e ela foi ao chão.Tapei-lhe a boca com a mão e arrastei-a para a vala. Os olhos dela se voltaram para mim, arregalados, cheios deterror. — Silêncio! — disse eu num sussurro. — Sou eu, Dax! Ela ficou mais calma, e eu tirei a mão. — Fique deitada bem quietinha ai. Vou olhar de novo. Levantei a cabeça. Santiago moço, estava morto a poucosmetros de mim. Havia outros mortos caídos mais perto da casa. Os soldados ainda estavam ali. Uma mulher saiu correndo da casacom as roupas em fogo. Atrás dela, apareceu Eduardo, gritando: — Mamá! Mamá! Houve uma breve fuzilaria, e a mulher se estendeu no chão.Eduardo, que vinha logo atrás, caiu sobre ela, e um soldado correupara os dois e desceu a baioneta repetidas vezes. Outra figura saiu da casa, brandindo um machete com as duasmãos. Era Roberto, e o general teria sentido orgulho dele. Nãohavia medo no seu rosto, mas apenas ódio quando ele correu gritando para o soldado. Tomado completamente de surpresa, o soldado virou-se e correu. Mas era tarde. O machete desceu, e o braço do soldado pareceu desprender-se do seu corpo. Deu um grito de agonia e caiu,ao mesmo tempo que uma rajada de fogo partiu de trás dele. Roberto pareceu ficar suspenso no ar e foi cair ao chão, perto docorpo do irmão e da mãe deste. Depois disso, só houve o crepitar do fogo. Ouvi o choro deuma mulher. Três mulheres foram levadas para um canto da casapor alguns soldados. No meio ia a mãe de Amparo. Parecia estarconfortando a mãe de Roberto. A mulher de Manuelo estava derosto fechado, parecendo insensível. Um oficial aproximou-se. Não podia ver-lhe o rosto, mas nãoera necessário. Conheci-o no momento em que abriu a boca. Nuncamais esqueceria aquela voz até o dia de minha morte. — Estão todos mortos? — Estão, coronel respondeu o sargento. — Menos estasmulheres aqui.


— Bueno. Façam o que quiserem com elas. Mas lembrem-se deque devem morrer antes de partirmos. Jurei que não deixaria um sótraidor vivo! — Si, coronel! O coronel deu as costas e afastou-se para o outro lado da casa,desaparecendo. As mulheres já estavam despidas e estendidas no chão, e ossoldados faziam fila em frente de cada uma. Senti alguém moverseao meu lado. Era Amparo, com os olhos arregalados. — Que é que vão fazer? Eu sabia o que iam fazer. Mas não adiantava nada ela ver. Eraapenas uma menina. Como podia compreender o que os homensfaziam quando lutavam? Empurrei-a para dentro da vala. Vi que ela tremia de medo. Tomei-a pela mão e corri com ela para o caminho do posto devigia. Mas, quando chegamos lá, não encontrei Gato Gordo. Sabiapara onde ele tinha ido. Fora buscar o cavalo preto em Estanza. Olhei para o caminho que descia do outro lado para o sul.Não se via ninguém. Se andássemos depressa, poderíamos alcançá-lo.A primeira claridade do dia já estava começando a aparecer muitopálida no horizonte. — Estou com frio disse Amparo, tremendo na sua camisola de dormir. Gato Gordo me ensinara o que se devia fazer num momento assim. Tirei a minha pesada camisa índia e coloquei-a nos ombrosde Amparo. A camisa chegou-lhe quase às pernas. Depois, tirei ossapatos e calcei-os nos seus pezinhos nus. — Agora,— disse eu calmamente e procurando dar à minhavoz o máximo de segurança e certeza, — vamos caminhar um pouco.Descansaremos quando o sol começar a esquentar.

17

Estávamos no máximo a um quarto do caminho pelas montanhas abaixo quando ouvimos vozes de homens atrás de nós. Pegueino braço de Amparo e corri com ela para dentro do mato, até umlugar onde as moitas eram mais espessas. Escondemo-nos bem nahora. Ouvi um pesado tropel de botas, e quatro soldados apareceramdiante de nós com os fuzis em posição de atirar.


— Alto! — disse um deles, jogando-se no chão a uns trêsmetros, se tanto, de nós. — Não aguento mais. Não posso dar maisum passo. Os outros ficaram parados a olhá-lo. — Sentem-se também,— cansadosquanto eu.

disse

ele.

Vocês

estão

tão

— Mas o coronel mandou que patrulhássemos a estrada atéo fim. — E o coronel está vendo a gente? Está lá embaixo, enchendo-se de boa bebida, enquanto nós estamos aqui, nos esfalfandonestas malditas montanhas. Quero que o coronel vá à merda. Outro soldado sentou-se ao lado dele. — Um momento de descanso. Quem é que vai saber? Os outros se estenderam no chão. Um momento depois, umdeles se encostou a uma árvore. — Qual foi a que você pegou? O primeiro soldado respondeu: — Peguei todas. Logo que acabava numa, eu me levantava eentrava em outra fila. O segundo soldado sacudiu a cabeça. — Não admira que você esteja tão cansado. — Qual foi a sua? — A que estava gritando. Não sei por que fazia aquele barulho todo. Era tão grande que podia caber um cavalo lá dentro.Quase não senti nada. — Aquela não prestava,— disse um dos outros. — A loura era a melhor — disse o primeiro soldado, rindo. — A gente podia ver que tinha escola. Era tão boa que eu nemdemorei, Se a fila atrás de mim não fosse tão grande, eu teria repetido. E, dessa vez, garanto que teria demorado mais. — Tirou ocantil. — Preciso beber um pouco. Estou todo seco por dentro. Levou o cantil à boca, e a água lhe escorreu pelo canto daboca. — Estou com sede também,— murmurou Amparo. — Psiu! Ela torceu o corpo e bateu com a mão no rosto. — Mosquitos! Senti então as picadas dos mosquitos nas costas. Antes disso,estivera muito ocupado, observando os soldados. Com movimentosmuito cautelosos para não agitar o mato e chamar a atenção, puxeia camisola dela por baixo da minha camisa e cobri-lhe o rosto.


— Fique bem quietinha ai e não se mova. Os mosquitos nãovão mais morder seurosto. Mas a mim podiam morder. Eu estava nu da cintura para cima. Quase de segundo a segundo, sentia uma picada, mas nada podiafazer. Pelo menos, enquanto os soldados estivessem ali. Por fim, um deles se levantou. — Acho bom irmos andando. — Para quê? — perguntou outro. — Não há ninguém láembaixo. — Mas o coronel mandou patrulhar o caminho todo. O primeiro soldado riu. — Isso quer dizer que teremos de ir até o pé da montanha edepois subir tudo de novo. — Olhou para o sol. — Podemos ficaraqui até o meio-dia e depois voltar e dizer que não encontramosnada. Quem é que vai saber? — Mas não é direito... — Está bem, vá você sozinho, já que faz tanta questão. Ficaremos aqui descansando até você voltar. O que estava de pé olhou para os outros, mas nenhum fezmenção de acompanhá-lo. Ele então jogou-se no chão de novo. — Nisso tem razão. Quem é que vai saber? Virei a cabeça. O rosto de Amparo estava escondido pela camisola, e sua respiração era quieta e igual. Levantei cuidadosamentea camisola. Estava ferrada no sono. Cobri-lhe de novo o rosto e olhei para os soldados. Um delesestava deitado de costas, com os braços abertos, e roncava ruidosa-mente, com a boca aberta. Os outros se haviam acomodado à suamaneira e estavam começando a fechar os olhos. Seria bom se eu pudesse descansar também. Mas seria muitoperigoso. Lutei para conservar os olhos abertos. O sol subia pelocéu, e o dia estava ficando cada vez mais quente. As costas meardiam com as picadas dos insetos, mas eu não tinha coragem decoçá-las. Apesar de todos os meus esforços, minha cabeça de vez emquando caia para a frente num cochilo. Reagi ao máximo, mas devoter dormido também. Quando ouvi um barulho, acordei de repente. Os soldados estavam todos de pé. No momento em que osolhei, tinham ido urinar do outro lado da estrada. Um momentodepois, um deles disse para os outros: — Já é bem tarde. Podemos voltar.


Vi-os afastarem-se pelo caminho até desaparecerem além dacurva. Dai a pouco, não pude ouvir-lhes nem as vozes. Amparoainda estava dormindo. Acordei-a delicadamente. Ela levantou a cabeça e tirou a camisola do rosto. Os olhos ainda estavam cheios de sono. — Estou com fome,— disse ela, esfregando-os. — Vamos comer daqui a pouco. — Vamos voltar para casa. Mamá me prometeu que hoje agente ia comer no almoço o peru que você matou. — Não podemos ir. Os soldados ainda estão lá. O sonolhe desapareceu dos olhos, e a lembrança do que haviaacontecido a invadiu. Começou de repente a chorar. — Mamá! Mamá! Mamá! — Pare com isso! — disse eu com alguma rudeza. — Vou ver Mamá depois? — Claro! — exclamei, não sabendo como poderia dizer àpobre menina que nunca mais iria ver a mãe. — Como foi que vocêfugiu da casa, Amparo? — Quando os soldados levaram Mamá, eu estava escondidaembaixo da cama. Logo que eles saíram, pulei pela janela e comecei a correr. — Foi uma coisa muito inteligente o que você fez. — Você acha? — perguntou ela, com os olhos brilhantes. A coisa de que Amparo mais gostava era de elogios. Nuncase contentava com eles. — Sou bem inteligente, não sou? — Muito. Toda risonha e satisfeita, ela olhou para o caminho. — Já foram? — perguntou. — Já,— disse eu, levantando-me. — E nós temos de irtambém. — Para onde é que vamos? Pensei um instante. Não podíamos mais alcançar Gato Gordo, mas eu sabia para onde ele tinha ido. — Vamos para Estanza. — Estanza? Onde é isso, Dax? — É muito longe daqui. Teremos de caminhar. — Eu gosto de caminhar.


— Mas é preciso termos cuidado. Não podemos deixar ninguém ver a gente. Se ouvirmos que alguém vem vindo, teremosde nos esconder. — Poderão ser os soldados, não é? — Ainda que não sejam os soldados, teremos de esconder.Quem visse a gente poderia ir contar aos soldados.

nos

— Vou ter cuidado disse ela. — Mas estou com fome ecom sede. — Há um riacho ali adiante. — Também tenho de fazer xixi. Para isso não era preciso esperar. — Faça ai mesmo. Amparo se agachou e levantou as roupas. — Não posso fazer xixi se você ficar ai assim me olhando. Dei-lhe as costas, sorrindo. As meninas eram mesmo engraçadas. Que diferença fazia eu estar olhando ou não? Chegamos ao riacho dai a uma meia hora. Lembrei-me do queGato Gordo me havia dito e recomendei-lhe que não bebesse aágua com muita sofreguidão. Só um pouquinho. Estendi-me na margem e baixei a cabeça para a água. As costas me coçavam terrivelmente. O sol quente agravara as picadas dos mosquitos. Comecei a coçá-las e senti que tinha bolhas nas costas. Joguei um poucode água por cima do ombro. Amparo estava me olhando. — Você está com as costas todas mordidas. Mamá sempre mebota folhas de louro quando os mosquitos me mordem. — Como são essas folhas? — Estou vendo um bando delas ali. Apanhei um punhado do mato que ela me mostrara e tenteibotar as folhas nas costas, mas elas caiam. — Você não sabe nada, hem? — exclamou Amparo, exasperada. — Deixe que eu faço isso para você. Entreguei-lhe instantena água.

em

silêncio

as

folhas.

Ela

molhou-as

um

— Vire para rá. Virei-me. Senti as folhas úmidas e a água que me escorriapelas costas. Ela estava certa. Alguns minutos depois, a sensaçãode ardência e de coceira havia desaparecido. Fiquei olhando para oriacho. Vi algum coisa mover-se lá dentro. Era um pequeno cardume de peixes que passava.


Lembrei-me de que Santiago, o moço, costumava pescar arpoando os peixes com uma flecha. Procurei um galho reto e com agrossura necessária. Com a faca, tirei as folhas e fiz uma ponta bemfina com uma farpa. Depois, fui para a beira do riacho e agacheime. Os peixes reapareceram. Procurei fisgá-los com a vara, maseles foram mais ligeiros do que eu. O máximo que consegui foiquase cair dentro da água. Tentei de novo. Depois da terceira tentativa, comecei a ter uma ideia do que devia fazer. Os peixes sedispersavam, indo cada qual para o seu lado. Era preciso apenascalcular o que viria na minha direção. Resolvi que seria o que vinha mais atrás. Deixei-o passar aprimeira vez porque não achei que pudesse chegar muito perto demim. Da segunda vez, porém, ele chegou bem perto. Brandi a vara e senti a ponta fisgá-lo. Voltei-me exultante, com o peixe que se debatia espetado naponta da vara. — Vamos comer! Uma expressão de nojo apareceu no rosto de Amparo. — Cru? Como é que você vai assar isso? A minha exultação morreu. Deixei-me cair numa grande pedrachata. Dei um grito e um pulo. A pedra estava quente como umagrelha devido ao calor do sol. E se ela tinha quentura para queimarmeu traseiro, devia ter também para assar um peixe.

18

O peixe estava gostoso, ainda que um pouquinho cru. Pegueimais dois até matarmos a fome, e de cada vez tive de raspálos com a faca de cima da pedra. Foi muito bom comermos tanto entãoporque nos dois dias seguintes só encontramos algumas frutinhasdo mato. Na manhã do terceiro dia, topamos com uma mangueirae chupamos mangas com tanta avidez que tivemos dores no estômago e passamos o resto do dia ali, sem coragem de andar. Quando a noite caiu, Amparo começou a chorar. — Quero voltar para casa. Olhei-a em silêncio. Nada havia que eu pudesse dizer-lhe. Fiquei ali, desarvorado, como fica qualquer homem diante das lágrimas de uma mulher. O rostinho lindo de Amparo estava magro eabatido em consequência da diarréia.


— Estou com o bumbum doendo,— disse ela. Eu também estava. Devia ter juízo para não comer tantasmangas meio verdes. — Durma. Amanhã você estará melhor. — Não quero! — gritou ela, batendo o pé. — Já estou cansada de dormir no chão, de passar fome e frio e de sentir os bichosandarem pelo meu corpo. Quero voltar para casa e dormir na minhacama! — Mas não pode ser. — Quero! Quero! Quero! — gritou ela, sapateando no chão. Eu sabia que ela estava iniciando um dos seus famosos acessos.Mas eu não estava disposto a aguentar isso. Mandei a mão e bati-lheem cheio no rosto. Por um momento, ela ficou parada e atônita.Depois, as lágrimas lhe rolaram pelo rosto. — Você me bateu! — E bato de novo se não calar a boca! — disse rudemente. — Tenho raiva de você! Fiquei calado. — Estou falando sério! Não vou mais me casar com você! Deitei-me na relva e fechei os olhos. Por um momento, houve silêncio. Senti que ela se chegava paraperto de mim. Finalmente, ela aconchegou-se ao meu lado. — Estou com frio, Dax. Os lábios dela estavam realmente brancos de frio. Compreendique não podíamos dormir ali no descampado. Teria de procurarum lugar mais abrigado do vento frio que soprava da montanha paraa planície. — Levante-se,— disse eu, segurando-a. — Mas está escuro e eu estou cansada. Não posso mais caminhar. — Mas é preciso. Temos de procurar um lugar mais quente para dormir. Começamos a caminhar. Olhei para o céu. Não gostava dojeito dele. As nuvens estavam baixas e ameaçadoras, escondendo alua e as estrelas. O vento era frio e úmido, e eu sabia que a chuvanão tardaria. Caiu uma terrível pancada, açoitando-nos as costas com a forçado vento. Lembrei-me de que na manhã daquele dia avistara ao longeuma pequena floresta. Estaríamos lá se não nos tivéssemos enchidotanto de mangas. Tentei avistá-la através da escuridão, mas nãoadiantou.


Tínhamos de continuar caminhando e esperar que nãodemorássemos muito a chegar lá. Estávamos ensopados da cabeça aos pés. Levava Amparo pelamão, sentindo os pantalones molhados colados às pernas. A terra ficou mole e lamacenta sob os meus pés descalços. Amparo estava chorando de novo. Houve um momento em que elacaiu e eu levantei-a num repelão. Começamos a correr. Chegamosà floresta de repente. Parei debaixo de uma grande árvore. Estavarelativamente seco ali. A chuva não havia penetrado ainda a espessacúpula das folhas. Ficamos ali, tentando recuperar o fôlego. Percebi de repente que ela estava olhospareciam estranhamente brilhantes.

tremendo

demais. Os

— Dax, estou ouvindo vozes. Apertei-a bem contra mim, tentando aquecê-la com o calor domeu corpo. — Ainda estou ouvindo vozes,— disse ela, com a voz difícil e fina. Toquei-lhe a fronte. Estava bem quente. Devia estar comfebre. — Fique caladinha. Agora podemos descansar. Ela me empurrou, zangada, e disse: — Estou ouvindo vozes, sim. Escute. Mais para fazer-lhe a vontade do que por acreditar, escutei. Aprincipio, nada percebi, mas depois pareceu-me ouvir um fracomurmúrio de vozes. — Espere aqui que eu vou ver. Entrei pela floresta. Havia andado talvez um cem metros quando os vi. Eram três carroças que tinham sido levadas da estradapara o meio da floresta. Três homens estavam sentados numa delas,jogando cartas à luz de uma pequena lanterna. Mais três estavamdeitados do lado de fora das carroças. Estavam todos com os uniformes vermelhos e azuis do exército. Os fuzis estavam ensarilhadosdiante da primeira carroça. Não sabia se havia mais soldados. Trepei um pouco por umaárvore e olhei cuidadosamente as outras carroças. Estavam vazias,mas vi vários cobertores numa delas. Olhei para a carroça ondeestavam os jogadores e fiquei pensando em apanhar um cobertor. Pensei na febre de Amparo, e vi que não tinha outra coisa afazer. Ela estava sob a minha responsabilidade, como eu tinha estado sob a de Gato Gordo. Desci da árvore e me esgueirei em silênciopara a carroça que estava mais atrás. Com movimentos


rápidos,agarrei um cobertor e enrolei. Corri os olhos em torno para verse havia mais alguma coisa que eu pudesse levar. Vi uma caixa defósforos, e meti-a no bolso. Havia um pedaço de pele de toucinhoseca no chão da carroça, e peguei-a também. Levei apenas alguns minutos para orientar-me quando volteipara a floresta, e então foi fácil voltar para onde estava Amparo.Encontrei-a deitada quietamente. — Dax? — perguntou ela, batendo o queixo. — Sou eu, sim. Tire logo essas roupas molhadas. Tirei o cobertor e embrulhei-a nele. Depois cortei com a facaum pedaço de pele de toucinho. — Tome. Chupe isso. Deitei-me ao lado dela e cortei um pedacinho para mim. Estava áspero e salgado, mas o gosto na boca não deixava de seragradável. Senti que os tremores de Amparo iam pouco a poucodiminuindo, e dai a alguns minutos sua respiração regular memostrou que ela estava dormindo. Também com sono, pensei sorrindo que Amparo era uma menina bem bonitinha. Um passarinho que cantava numa árvore me acordou. Abri osolhos e olhei para cima. Através das folhas, vi o céu azul e claro.Olhei para Amparo. Estava toda enrolada no cobertor. As roupas dela estavam juntas num monte molhado aos seuspés. Apanhei-as e estendi-as numa moita, onde o sol se encarregariade secá-las. Quando ela acordou, levei um dedo aos lábios, recomendando-lhe silêncio. Cortei-lhe outro pedaço de pele de toucinho e disse em vozbaixa: — Espere aqui que eu já volto. Dai a poucos minutos, estava de novo no lugar onde os soldados haviam acampado. Soldados e carroças não estavam mais lá. Os restos de uma pequena fogueira ainda ardiam no centro doacampamento deserto. Joguei alguns galhos nela e voltei para buscar Amparo. O calor do fogo foi muito agradável depois daquela noite fria. Tentei calcular a hora pelo sol. Deviam ser quase nove horas. Tínhamos de continuar a viagem. Enrolei o cobertor, joguei-o sobreos ombros e nos encaminhamos para a estrada. Três vezes naquela manhã tivemos de sair da estrada para esconder-nos. Uma vez, foram vários homens a pé, de outra, um homem numa carroça e, finalmente, um homem e uma mulher


numacarroça. Fiquei tentado a fazer parar as carroças, mas desisti. Nãoadiantava arriscar-me, porque a frequência de carroças indicava quedevíamos estar perto de alguma vila. Quando viramos a primeira curva, vi casas e a fumaça de umachaminé. Sai com Amparo da estrada para dentro do campo. — Temos de dar volta à cidade sem passar por ela. Amparo concordou, e seguimos por dentro dos campos. O caminho seria mais longo, e já era quase noite quando deixamos acidade para trás. — Estou com fome disse Amparo. — A pele de toucinho não me enche a barriga. — Conseguiremos alguma coisa para comer esta noite. Eu havia visto alguns galinheiros, e, logo que encontrei umbom lugar para passarmos a noite, voltei. Mas voltei com Amparoporque ela se negou a ficar sozinha. Estava escuro como breu quando nos aproximamos de um galinheiro. Era nos fundos de uma casa, e tivemos de esperar até tera certeza de que todos tinham ido dormir. — Espere aqui e não se mova! — disse eu a Amparo. Avancei em silêncio, na ponta dos pés, com a faca nas mãos,e abri a porta do galinheiro. No mesmo instante, as galinhas começaram a fazer um barulho que podia ser ouvido a quilômetros de distância. Uma galinhabem gorda passou perto de mim, e eu a agarrei e no mesmo instante cortei-lhe a cabeça. Não consegui agarrar outra, que passava,mas segurei firmemente um franguinho branco cujo pescoço corteilogo. Guardei a faca. Peguei as galinhas pelos pés e corri para ondeestava Amparo, atirando-me ao chão junto dela no momento emque o dono da casa aparecia com a camisa de dormir batendo aovento. Estava com uma espingarda, e quando viu a porta do galinheiro aberta correu para fechá-la. Depois, saiu andando em direção a nós. — Que é? — perguntou uma mulher dentro da casa. — Deve ter sido a raposa de novo nas minhas galinhas! Algum dia ainda vou meter-lhe uma bala no corpo, maldita! Ficou ainda um momento ali e voltou para o galinheiro. Abriua porta e entrou. Toquei no braço de Amparo e fiz-lhe sinal para irmos saindo.No instante em que ele encontrasse duas cabeças de galinha dentrodo galinheiro saberia logo que não tinha sido nenhuma raposa.Corremos a toda até ao nosso esconderijo e sentimos de repente quenão estávamos mais cansados. Até Amparo estava


sorridente e felizde ver as galinhas suspensas sobre o fogo, com os piolhos pulando precipitadamente das pernas para não serem carbonizados.

19

Os dias tornaram-se noites e as noites viraram dias. Tínhamosperdido toda a noção do tempo, quando descemos a última montanha e chegamos ao deserto. Calculava vagamente que já havíamospartido do esconderijo umas três semanas antes, mas não tinhacerteza. Eram mais ou menos duas horas da tarde quando ficamos aliolhando através do deserto a serra além da qual ficava o vale fértile verde em torno de Estanza. Havia algumas carroças na estrada,e eu sabia que não podia atravessá-la com dia claro. Seriamos facilmente vistos, pois não havia onde nos pudéssemos esconder naquele areal. Procurei calcular a distância com os olhos. Havia levado trêshoras para atravessar aquele trecho na carroça com Gato Gordo.Isso devia corresponder a uns trinta quilômetros. Poderíamos cobriressa distância caminhando a noite inteira. Voltei-me para Amparo. O rosto estava muito queimado de sol e os cabelos louros,descorados. As sobrancelhas e as pestanas de tão brancas pareciam quase invisíveis. As faces se mostravam magras e abatidas,e eu lhe podia ver os ossos sob a pele e o cansaço que lhe repuxava os cantos da boca. Tirei um osso de galinha do bolso. Amparocomeçou a chupar o osso devagar, deixando-o umedecer-se bemcom a saliva. Ela também havia aprendido muito naquelas semanas. Várias vezes por dia tínhamos tido de sair da estrada e esconder-nos. Mais de uma vez tínhamos quase dado de cara com patrulhas de soldados, mas havia-se desenvolvido em nós uma espéciede sexto sentido que nos avisava da proximidade do perigo. — Temos de atravessar esse Ficaremosdescansando até escurecer.

areal

Ela não fez comentário algum. Sabia fossenecessário eu explicar-lhe.

à

noite,

Amparo.

por quê, sem que

— Temos alguma coisa para comer? — perguntou ela, aindacom o osso na boca.


— Não. Olhei em torno. Aquilo ali não era lugar de caça. Havia algumas árvores, mas dessas árvores mirradas que só se encontram nosdesertos. Isso mostrava que também não devia haver muita água. — Mas não estamos longe de Estanza, Amparo. Lá teremosmuito para comer e beber! Ela olhou as carroças que passavam na estrada e perguntou: — Todos eles nos odeiam? Todos querem nos matar? — Não sei,— respondi, surpreso com a pergunta. — Por que é então que temos de ficar sempre escondidos? — Porque não sabemos quais são os amigos e quais os inimigos. Ela ficou em silêncio por algum tempo e disse de repente: — Mamá está morta. Roberto, Eduardo e os outros, também. É por isso que não podemos voltar, não é? Não respondi. — Pode-me dizer que eu não vou chorar. — É, sim, Amparo. — Papá está morto também? — Não. Ela se virou e olhou para o deserto. Ficou calada durantemuito tempo. Afinal, voltou-se e olhou para mim. — Se Papá estiver morto também, você promete casar-se comigo e tomar conta de mim? Ela me parecia tão magra e indefesa, como Perro quando nãosabia que eu queria fazer-lhe uma festa. Peguei-lhe a mão, queestava quente e confiante, na minha. — Você muitotempo.

bem sabe que sim. Isso já está combinado há

Ela sorriu. — Ainda tem algum osso? Tirei o último do bolso e dei a ela. — Vamos procurar alguma sombra e tentar dormir, disse eu. O vento chegou bem forte naquela noite, quando começamosa atravessar o deserto pela estrada. Tremíamos ao seu impactogelado. — Está bem, Amparo? Ela fez um sinal afirmativo e, fechando mais a camisa emtorno do corpo, baixou a cabeça por causa do vento. — Espere,— disse eu, e, desenrolando o cobertor, cortei-o aomeio com a faca. Não iriamos mais precisar dele na fazenda do Sr. Moncada.


— Tome. Use isso como uma ruana, um capote. Ela enrolou sobre o corpo o seu pedaço de cobertor, e eu fiz omesmo. O vento parecia mais forte. De vez em quando, levantavaa areia, que nos vinha bater no rosto como uma porção de agulhas. Depois de algumas horas de caminhada pela superfície compacta do leito da estrada, estávamos com a pele do rosto doloridae cobertos de uma leve camada de poeira. Saímos várias vezes no escuro do leito da estrada e nos enterramos na areia até os tornozelos. Era tão forte o vento, que eutinha dificuldade em ver para onde íamos. Tentei olhar para asestrelas a fim de orientar-me, mas estavam encobertas pelas nuvens.Mais de uma vez fomos arrastados e tivemos de lutar para voltarà estrada. — Não enxergo nada,— disse em certo momento Amparo. — A areia está me entrando pelos olhos. — Faça um capuz,— disse eu, cobrindo-lhe a cabeça com ocobertor e só deixando uma pequena abertura na frente para elaolhar. — Está melhor assim? — Está. Fiz o mesmo e deu resultado. Continuamos a andar e, dentroem pouco, tornamos a não ver mais a estrada. Levamos quase umahora para encontrá-la de novo. — Não posso mais andar, Dax,— disse Amparo. — Os sapatos estão cheios de areia. Fi-la sentar-se e esvaziei-lhe os sapatos. Depois, levantei-a. — É só mais um pouco. Continuamos. Eu senti a garganta dolorida e seca. Dentro dopeito, a respiração era estertorosa. De repente, o céu começou aclarear. Por um momento, foi um cinza muito leve, atéque o sol surgiu nas montanhas atrás de nós. Fiquei sem poderacreditar no que via! O sol estava nascendo do lado oeste! Mas compreendi logo o que havia acontecido. No meio danoite, havíamos perdido o rumo e passamos a caminhar em sentidoinverso. Estávamos bem no meio do deserto, em plena luz do dia.Virei-me e olhei para a estrada no rumo de Estanza. Avistei umacarroça ao longe. Peguei a mão de Amparo e corri para fora da estrada. Tudoera plano. Não havia absolutamente onde nos pudéssemos esconder.Disse a Amparo que se deitasse, e deitei-me na areia ao lado dela.Cobrimos a cabeça com os cobertores. Eu esperava que nos confundíssemos com a areia a ponto de enganarmos quem passasse.


Ouvi o barulho das rodas da carroça. Levantei uma ponta docobertor e olhei. A carroça havia passado. Já estava me levantandoquando vi outra carroça que se aproximava. Cai prontamenteno chão. — Que é? — Outra carroça. O sol estava começando a esquentar a areia. O calor começavaa ficar insuportável. — Nada podemos fazer, Amparo. Teremos de esperar outravez a noite. Há muita gente na estrada. — Estou morta de sede. — Fique quieta e procure não pensar nisso. Sentia o suor correr-me pelas costas e entre as pernas. Passeia língua nos lábios. Estavam secos e salgados. Levantei o cobertor.A estrada estava deserta em toda a sua extensão. — Está bem — disse eu. — Vamos andar um pouco. Mascubra a cabeça com o cobertor por causa do sol. O calor que subia da estrada desenhava coisas diante dos meusolhos. Meus pés começaram a queimar. — Estou com sede, Dax. — Vamos andar mais um pouco. Depois, a gente pára e descansa. Conseguimos andar cerca de meia hora. A areia estava tãoquente que, quando saímos da estrada e tocávamos nela, tínhamos de tirar o pé como de um ferro em brasa. Eu sentia a língua secae grossa. Procurava fazer a saliva correr por ela a fim de refrescá-la,mas a saliva logo secava. — Está doendo, Dax. Minha boca está doendo. Amparo estava soluçando mansamente. Seus ombros tremiam. Eu sabia que ela tinha de molhar os lábios fosse como fosse. Tireia faca e fiz um talho na ponta de um dedo. O sangue apareceulogo. — Diabo! — Que foi? perguntou Amparo. — Cortei-me,— disse eu, estendendo o dedo para ela. — Quer chupar um pouco para sarar? Ela levou o dedo até à boca. Um instante depois, perguntou. — Chega? Olhei o dedo. Apertei-o fazendo sair mais um pouco de sangue. — Chupe mais um pouco, para não haver dúvidas.


Ela obedeceu. Dessa vez, as bordas do talho ficaram brancas. — Agora está bem. — Ótimo. — Ela levantou a ponta do cobertor e disse: — Está começando a escurecer. E estava mesmo. O dia terrível havia quase passado e a noitevinha chegando. Já não era tanto o calor que subia da areia. Olheipara a estrada que passava entre as montanhas. Do outro lado,ficava Estanza. — Se caminharmos a noite toda, estaremos lá ao amanhecer. — Não podemos beber um pouco de água, Dax? — Daqui até Estanza não há água. Ela foi até o lado da estrada e sentou-se. — Estou cansada. — Eu sei, Amparo,— disse, cobrindo-a com o meu cobertor. — Veja se dorme um pouco. Amanhã, tudo isso estará acabado. Ela se estendeu no chão e fechou os olhos. Um instante depois,estava dormindo. Tentei dormir também, mas uma dor indefinidanão me deixou. Para onde quer que me virasse, o corpo pareciadoer. Deixei Amparo dormir cerca de duas horas. Foi mais ou menos uma hora depois do nascer do sol que chegamos afinal à fazenda do Sr. Moncada. Havia na frente da casaII muitos cavalos amarrados, mas eu não vi ninguém. Fiz sinal a Amparo para não fazer barulho enquanto passávamos para o fundo. A fumaça estava saindo da chaminé da cozinha. Senti tão forteo seu cheiro que quase cai com uma vertigem de fome. Chegamosà porta da cozinha. Abri-a, segurando ainda a mão de Amparo. Estava escuro, e não pude ver logo as coisas com clareza. Umamulher gritou, e então eu vi. A cozinheira estava de pé à beirado fogão e três homens estavam sentados à mesa da cozinha, doisdeles de frente para mim. Percebi logo que estavam fardados devermelho e de azul. Virei-me e empurrei Amparo pela porta afora. — Corra! Ela saiu como um coelhinho pelo pátio. Fui atrás dela. Derepente, ouvi um grito às minhas costas, e, quando me virei paraolhar, tropecei num pedaço de pau e cai. Quando tentei levantarme, um soldado passou correndo por mim. — Corra, Amparo! Corra! Outro soldado correu para mim. Virei-me para enfrentálo,puxando a faca. Mas tonteei. O cansaço e a noite sem sono tiraram-me as forças. Mas vi bem a cara do soldado e nada mais


houveem mim senão raiva e ódio. O desejo de matar me fazia tremer. — Gato Gordo! — exclamei e atirei-me contra ele, de facaem punho. Ele nos traíra. Por isso é que os soldados haviam encontradoo nosso esconderijo. Por culpa dele é que tanta gente fora morta,e tudo porque ele estava ansioso por vir buscar um miserávelcavalo. Quando tentava feri-lo com a faca, ouvi Amparo gritar. Olhei evi que um soldado a havia agarrado. Arrastava-a para onde estávamos, enquanto ela gritava e esperneava. Senti-me de novotonto. Gato Gordo estava olhando para mim, com o rosto muitopálido. — Dax! — Sim, é Dax mesmo! — exclamei, como um alucinado. — Não morri como os outros. E vou matá-lo! Vou cortar seus cojonese fazer você engoli-los por essa garganta imunda! — Não, Dax! Não! — Traidor! — Avancei para ele, mas havia alguma coisa esquisita com o chão. Ondulava como se fosse o mar em Curatu, aondeeu tinha ido uma vez com meu pai. — Traidor. — Dax! Mas era outra voz que me chamava, uma voz que eu nãohavia esquecido, embora não a ouvisse havia mais de dois anos.Tirei os olhos de Gato Gordo e olhei para a porta da cozinha, ondeestava meu pai. Mas havia alguma coisa estranha, e eu pensei queestivesse maluco. Meu pai estava também com uma farda doexército. — Papá!— exclamei. Dei um passo na direção dele, mas melembrei de Gato Gordo e de novo senti-me dominado pela raiva. — Vou matar você! Matar! Armei o braço para enfiar-lhe a faca no pescoço, mas a luzdo sol me cegou. Pisquei os olhos, e de repente tudo começou aficar escuro. A faca me caiu das mãos. Senti que ia caindo parao chão, quando os braços de alguém me seguraram. A escuridão continuou, e eu me lembro de ter pensado: Comopode estar tão escuro se o sol nasceu ainda agora? Então do meioda escuridão, ouvi a voz de meu pai. Havia nela amor. E dor. Etristeza também. — Meu filho! Meu filho, que foi que eu fiz com você? E, então, a noite caiu misericordiosamente sobre mim e mecobriu.


20

O velho de batina recostou-se na cadeira e juntou os dedosenquanto esperava pela minha resposta. Seus olhos pretos dele brilhavam atrás dos vidros dos óculos. — Tentarei melhorar, monsenhor disse eu. — É o que espero, Diógenes,— disse ele com uma voz emque havia tanta convicção quanto na minha. A escola não fora feita para mim. A rotina e a monotonia dasala de aula eram para mim coisa pior do que uma prisão. De algumas coisas eu gostava, e nelas me saía bem. Línguas. Inglês, francês. Até alemão. Latim era uma língua morta, e só os padres ausavam nas suas cerimônias. Não podia interessar-me menos porela. Já estava ali havia dois anos e tinha sido reprovado duas vezesem latim. Era por isso que estava diante do diretor da escola. — O seu ilustre pai foi um dos nossos melhores alunos,— disseme pontificalmente o diretor. — Sempre foi o primeiro emlatim. Se quer seguir o caminho dele como advogado, precisaaprender latim. Parecia esperar uma resposta, e eu murmurei: — Si, Monseñor. — Tem de melhorar também as notas nas outras matérias,— disse ele, olhando para o meu boletim em cima da mesa. — Hámuitas em que não conseguiu senão a nota mínima de aprovação.Linguagem, literatura, história, geografia... Olhei pela janela enquanto ele falava com a sua voz grossa.Via dali Gato Gordo à minha espera no portão da escola. Era umafigura imponente com a sua farda vermelha e azul, e, como sempre,era o centro da admiração de um grupo de empregadas e governantas que esperavam também outros alunos. Mas eu nuncame havia habituado a vê-lo de farda. Ainda que o exército fosse nossoe o general tivesse passado a ser o presidente. A revolução já estava terminada havia quase três semanasquando eu e Amparo chegamos a Estanza. Tínhamos levado quasecinco semanas na viagem, e durante todo esse tempo não tínhamostido coragem de falar com qualquer pessoa. Ainda me lembro de quando o general entrou no meu quartona hacienda do Sr. Moncada alguns dias depois. Estava deitadona cama, ainda fraco da febre que me havia abalado o organismo. Ouvio bater das suas botas diante da minha porta e virei a cabeçapara cumprimentá-lo. Não era muito alto, mas com o uniforme decomandante-em-chefe do exército parecia um gigante.


O rosto ainda era magro e anguloso e os lábios, finos ecruéis sob os olhos cinzentos, tão firmes como sempre. Colocouafetuosamente a mão sobre a minha na colcha branca. — Soldadito. — Señor General. — Vim agradecer-lhe ter trazido minha filha. Não respondi. Não sabia o que ele tinha de me agradecer. Eunão poderia ter feito outra coisa. — Viu... murmurou ele com a voz estranhamente hesitante,— viu o que aconteceu aos outros? Bati com a cabeça. — Roberto e Eduardo? Poderiam estar ainda nas montanhas?Os corpos deles não foram encontrados. — Morreram, señor,— disse eu, olhando para o lado para nãover a dor nos seus olhos. — Eu os vi morrer. — Foi... foi rápido? — Foi, sim, Excelência. E morreram como homens em combate, não como meninos. Eu mesmo vi Roberto matar dois. Ele explodiu de repente. — Maldito Gutiérrez! — O coronel? — perguntei. — Sim, Gutiérrez, o carniceiro de Bandaya! O miserável sabiada rendição do governo e do armistício antes de subir para asmontanhas! — Armistício, Excelência? — Sim, soldadito, uma trégua. Toda a luta foi suspensa enquanto se discutia a rendição. Voltou-se e foi até a janela, falando de costas para mim. — A guerra já havia acabado quando ele atacou o esconderijo. Fechei os olhos. Tudo tinha sido à toa. Todos haviam morridosem necessidade. E meu avô também. Tudo por culpa do coronel.Senti o ódio crescer violentamente dentro de mim. Ouvi alguém à porta e voltei a cabeça. Gato Gordo me traziaa comida numa bandeja. Ainda tinha no braço o curativo do ferimento que eulhe fizera com a faca. — Vejo que já está acordado, meu galinho de briga,— disse ele. Nisso, a voz do general explodiu. — Que aconteceu ao vigia? Por que os outros não foramavisados a tempo de fugir? Que foi que houve?


Gato Gordo ficou de repente muito pálido, e sua testa secobriu de suor. Havia nos seus olhos um medo que eu nunca haviavisto, nem mesmo quando enfrentáramos a morte juntos. Tornei a fechar os olhos. Eu sabia o que havia acontecido epor quê. Gato Gordo havia abandonado o seu posto. Mas eu nãoera mais uma criança. Sabia que uma morte a mais não iria fazerressuscitar os que já estavam mortos. E, se Gato Gordo estivesseno posto de vigia, teria sido apenas um cadáver a mais. Abri os olhos e disse ao general: — Não sei, Excelência. Acordei quando ouvi os primeirostiros. Logo que vi que a casa estava se incendiando, sai pela janela e fui esconder-me na vala. Lá encontrei Amparo. Peguei amão dela e fugimos. — Fez muito bem disse ele, tocando-me na mão com extremo carinho. — Meus filhos morreram, mas o espirito e a coragem deles continuam vivos em você. Hei de considerá-lo semprecomo meu filho. Notei com surpresa que havia um principio de lágrimas naqueles olhos cinzentos. Mas o general não podia estar chorando. Elemesmo me dissera que os homens não choram. — Obrigado, Excelência. Ele levantou o corpo, encaminhou-se para a porta e disse: — Vou deixá-lo almoçar. — Amparo como está? — perguntei-lhe. Ele sorriu. — Já está boa. Não sente mais nada. Vou Curatucomigo. Fique bom logo e vá ficar conosco.

levá-la

para

Os seus passos se afastaram pelo corredor, e eu me virei paraGato Gordo, que ainda estava pálido, mas sorridente. — Você me devolveu a minha camisa disse ele. — O que lhe dei foi a sua cabeça! — exclamei, cheio deraiva. Empurrei a bandeja. — Pode levar isso que não estou comfome! Ele deixou o quarto em silêncio, e eu olhei pela janela. Masnão vi o sol, nem o céu azul, e não ouvi o canto dos pássaros.Só via o coronel e só ouvia a sua detestada voz. O ódio me dominou de novo, deixando-me um gosto amargo na boca. Se ele aindaestava vivo, eu iria um dia procurá-lo e matá-lo. Poucas semanas depois, estava em Curatu. Meu pai havia encontrado uma casa no alto de um morro sobre o mar, não muitolonge da casa onde os pais dele tinham vivido. Logo depois, fuimatriculado no colégio dos jesuítas onde ele havia estudado, e


omesmo monseñor que fora seu professor estava comentando asminhas falhas como estudante. Voltei a prestar atenção ao que ele dizia. — Há promessa em você,— dizia ele, — mas tem de esforçar-se muito para alcançar uma posição em que possa ser um orgulho para seu pai. — Está bem, monseñor. Vou esforçar-me. — Bueno,— disse ele, sorrindo. — Vá em paz, meu filho. — Gracias, monseñor. Sai da salinha quelhe servia de gabinete e corri para oportão. Gato Gordo se destacou do meio das suas admiradoras. — O carro está esperando, excelencito. Desde que saíramos de Estanza, ele não me chamara mais pelonome. Era só excelencito. Eu não podia ir a lugar algum nem fazero que fosse, sem ele estar perto. Uma vez ele me disse que o general e meu pai tinham-no designado para ser meu guardacostas.Ora, eu não precisava de guarda-costas. Podia cuidar de mim mesmo. Mas isso não havia adiantado nada. Gato Gordo estava sempreao meu lado. Olhei para a limusine Hudson preta com o chofer fardado eentreguei os livros a Gato Gordo. — Não quero ir de carro. Estou com vontade de andar um pouco. Virei-me e comecei a descer a ladeira que ia para a cidade.Um instante depois, ouvi o barulho do motor. Olhei para trás: Ocarro vinha em marcha lenta atrás de mim, com o chofer e GatoGordo sentados no banco da frente. Sorri. Nisso ao menos GatoGordo não havia mudado. Preferia em qualquer hipótese nãoandar a pé. Sentei-me depois numa pilha de tábuas no cais do porto efiquei olhando a descarga de um navio. Ouvi os marinheiros insultando os estivadores em francês e estes responderam em espanhol.Meu professor de francês ficaria surpreso com os meus conhecimentos se me ouvisse dizer algumas das obscenidades que elesproferiam. Olhei para a bandeira azul, branca e vermelha, pendente domastro. O vento desfraldava-a orgulhosamente. Corri os olhos pelocais. Havia mais dois navios atracados. Um tinha a bandeira doPanamá e o outro era grego. Tinham-me dito que antes da revolução nunca havia menos devinte navios no porto, na maioria ingleses e norte-americanos. Mas os Estados Unidos e a Inglaterra haviam proibido os nossos portosaos seus navios. Meu pai dizia que era porque tinham aliança como governo anterior e ainda não haviam reconhecido o novo


governo. Fiquei sem compreender por que isso tinha de ser assim, enquanto as nossas bananas apodreciam nos cais, canaviais inteiroseram queimados e o café era atacado pelos bichos nos armazéns. Ouvi passos atrás de mim e voltei-me. Dois garotos vinham naminha direção. Estavam com as roupas esfarrapadas e sujas quepareciam ser uma espécie de uniforme naquela parte da cidade.Pararam diante de mim, e um deles tirou o boné e me falou respeitosamente: — Alguns centavos para matar a fome, Excelência? Fiquei embaraçado. Não tinha dinheiro. Não precisava de dinheiro. Sempre que queria alguma coisa, Gato Gordo a compravapara mim. — Não tenho dinheiro,— disse rispidamente, para dissimular a minha confusão. — Um centavo chega, señor. Pelo amor de Deus. Desci das tábuas e disse: — Desculpem, mas não tenho nem um centavo comigo. Os dois trocaram olhares incrédulos. Senti-me mal. Não erammuito mais velhos do que eu, mas me haviam tratado de uma maneira subserviente, quase vergonhosa. Estavam bem à minha frente,na estreita passagem entre os montes de tábuas, e eu não tinha poronde passar. — Com licença,— disse eu. Vi as caras deles se fecharem. Não se moveram. — Que é que vocês querem? Já disse que não tenho dinheiro! Ficaram calados. — Deixem-me passar! — exclamei, começando a ficar zangado. Não sabiam aqueles idiotas que se eu tivesse dinheiro já lhesteria dado? — Ele quer passar,— disse zombeteiramente o maior deles.O menor sorriu e me arremedou numa voz de falsete. Para mim não era preciso mais nada. A raiva me subiu pela cabeça.Um momento depois, o menor era atirado dentro da água e o maiordeu um grito quando meu pontapé o atingiu nos cojones. Caiude joelhos, com as mãos nas virilhas, rolou pelo chão do cais coma dor e, quando eu o empurrei com o pé, caiu também dentroda água. Estava olhando para eles quando ouvi passos atrás de mim. — Que foi que houve? — perguntou Gato Gordo. — Não queriam me deixar passar.


— Campesinos!— elesdentro da água.

exclamou

Gato

Gordo,

cuspindo

para

Voltei para a limusine preta que nos esperava fora do portãodas docas. Perguntei a Gato Gordo antes de entrar no carro: — Por que é que estão pedindo esmola? — Quem? — Aqueles dois,— disse queestavam saindo da água. — Mendigos osombros.

eu,

sempre,—

mostrando

disse

Gato

os

dois

garotos

Gordo, encolhendo

— Disseram que estavam com fome. — Há sempre quem tenha fome. — Mas por quê? Não disseram que para estavamfazendo a revolução, para acabar com isso?

isso

é

que

Gato Gordo me olhou com um brilho estranho nos olhos. — Já tomei parte em três revoluções, sabe? Ainda não vinenhuma que enchesse a barriga dos campesinos. Quem é campesino nasce para passar fome. — Por que foi então que brigamos? Gato Gordo sorriu. — Para que não ficássemos como eles e tivéssemos de pediresmola para comer. Olhei-o por um momento, e então, tirei o pé do estribo dalimusine. — Tem algum trocado ai, Gato Gordo? Estendi a mão, e ele deixou cair nela algumas moedas. Volteipara o cais. Os dois garotos me olharam, desconfiados, manifestamente com medo, mas o menor cuspiu nos meus pés. — Campesinos! Joguei-lhes as moedas e, dando-lhes as costas, afastei-me.

21

O palácio presidencial ficava no centro da cidade. Ocupavadois quarteirões e era cercado por um muro de tijolos e cimentode mais de cinco metros de altura, que realmente separava das ruaso edifício do palácio. Só havia duas entradas, uma do lado norte,voltada para as montanhas, e outra no sul; de frente para o mar.Era uma


verdadeira fortaleza. Havia sempre guardas emquantidadenos dois portões e sentinelas patrulhavam à noite os altos muros. Em virtude de um decreto de um dos presidentes anteriores, em quem haviamatirado de um edifício próximo quando ele passavapelos jardins da residência para o salão de despachos, todos osedifícios situados nos dois quarteirões em torno do palácio tinham sidodemolidos. Não havia assim quaisquer janelas de onde se avistasseo interior da fortaleza presidencial. Mas isso não impedira queaquele mesmo presidente fosse assassinado. Depois de vários meses de humilhação com o fato de ele andar em público com aamante, a mulher o havia assassinado. Os soldados do Portão Sul ficaram em posição de sentido quando a limusine preta passou. Olhei-os displicentemente de dentro do carro. Este virou para a direita e tomou o caminho da Residência, umedifício branco de pedra no canto sudeste. Quando a limusine parou em frente e eu saltei, os soldados ali postados meolharam sem curiosidade porque já sabiam da minha visita semanala Amparo. O apartamento de Amparo ficava na ala direita. A esquerdaera do pai dela. No centro, ficavam as salas de audiência. Fui levado para a grande sala do canto do seu apartamento. Como sempre,tive de esperar. A Princesa, como agora a chamavam, estava sempreatrasada. Estava olhando pela janela, quando ela chegou em companhiada dueña. Estava com um elegante vestido branco, e os cabelos louroslhe caiam pelos ombros. Estendeu-me a mão imperiosamente. Beijei-a, de acordo com o costume. — Amparo,— disse eu muito sério. — Dax! — exclamou ela, sorrindo. — Gostei muito de ter vindo. Dizíamos as mesmas coisas todas as semanas e ficávamos àespera das palavras habituais da dueña. Vieram na hora exata. — Bem, vou deixar vocês dois à vontade, crianças. Esperamos a velha sair e fechar a porta e sorrindo.Corremos logo para a janela, a fim de olhar.

olhamo-nos,

A dueña estava saindo de fato pela porta do lado. Gato Gordoesperava ali, de quepe na mão, e os dois se dirigiram juntos para opequeno apartamento da dueña, no edifício dos empregados. — Ela espera todas as semanas pela sua visita,— disse Amparo, rindo. — Pela minha, não. — Vamos olhá-los? — disse ela, rindo ainda.


Sacudi a cabeça. Não tinha vontade naquele dia. Corríamos àsvezes para o quarto de Amparo, de onde, por uma janela, podíamos ver o quarto da dueña. Era enfadonho. Faziam sempre a mesmacoisa. Eu não sabia como Gato Gordo não ficava enjoado como nósficávamos só de olhá-los. — Que é que você quer fazer então? — Não sei, Amparo. — Você hoje não está nada divertido, sabe? Olhei-a. Amparo aos nove anos era uma menina ainda mais bonita de cadavez que eu a via. E tinha plena consciência disso. Mas vivia muitosozinha. Não podia afastar-se um só instante dos muros do palácio,nem mesmo para ir à escola. Os professores iam dar-lhe aulaem casa. Todas as tardes, outras crianças rigorosamente selecionadastinham permissão para visitá-la. As duas filhas do Sr. Moncada,que estavam estudando num colégio particular em Curatu, apareciam uma vez por semana. Outras filhas de aristócratas e políticoslocais tinham também a sua vez. Uma vez por mês, havia umafesta, a que todos compareciam. Fora daí, Amparo vivia num mundo povoado inteiramente poradultos. Havia ocasiões em que eu sentia que ela era mais velhado que eu. Sabia muito mais sobre tudo o que acontecia no mundo.Contava-me sempre boatos maliciosos sobre as pessoas. Foi sentar-se no sofá junto de mim. — Que foi que o Monsenhor lhe disse? — Como soube perguntei,surpreso.

que

ele

me

mandou

chamar?

— A dueña me disse,— respondeu ela, rindo. — Ela disseque, se não fosse seu pai, você teria sido expulso da escola. — Onde foi que ela ouviu isso? — Foi um dos ajudantes de Papá que disse. Papá quer sempre saber do seu boletim escolar. O presidente devia ter coisas mais importantes em que pensar do que nas minhas notas na escola. Por que aquele interessepor mim? — Papá pensa muito em você. Diz que, se meus irmãos nãotivessem morrido, seriam como você. Às vezes, gostaria de ter nascido homem. Assim, papai não ficaria tão triste. — Ele prefere ter você a qualquer dos outros, Amparo. — Acha mesmo? — É claro.


— Vou ser muito esperta, sabe? Vou ser capaz de fazer tantoquanto qualquer homem. — Tenho certeza disso. Era sempre mais cômodo concordar com Amparo. Era a melhor maneira de evitar discussões. — Quando é que você vai para Paris? — Paris? — perguntei, realmente surpreso. — Você vai para Paris,— disse ela, positivamente. — Ouvi meu pai dizer. Seu pai vai para lá numa missão comercial.Os Estados Unidos e a Inglaterra não querem mandar os seusnavios para fazer comerciar conosco. Temos de achar novos mercadospara os nossos produtos, senão estaremos perdidos. A França pareceo mais lógico. — Meu pai pode ir e não me levar. — Não. Ele vai passar alguns anos lá. Ouvi Papá dizer quetomará providências para você cursar uma boa escola lá. — É engraçado eu não ter sabido de nada. — Isso só ficou resolvido hoje de manhã. Ouvi tudo o queos dois discutiram na mesa do café. Pensei no cargueiro francês que vira nas docas. Talvez viajássemos nele. Fui até a janela e olhei para o porto. Não vi o naviono cais. Com certeza, já havia partido. Amparo veio para junto de mim. — Vamos dar um passeio lá fora? — Se você quiser. Descemos pela sua porta particular, que dava para um jardinzinho. Quando saímos, dois soldados começaram a andar a alguma distância atrás de nós. Passamos um portão de ferro e nosdirigimos para o edifício da administración. Soldados fizeram continência quando passamos. Um carro havia parado em frente do "pequeno palácio", comoera chamada a casa dos hóspedes. Um homem saltou do carro e entrou apressadamente no edifício. Não pude ver-lhe o rosto. — Quem é? Amparo encolheu os ombros. — Já o tenho visto várias vezes. Creio que é o procurador deLa Cora. Eu sabia quem era La Cora. Era a mais recente numa sériede moradoras do pequeno palácio. O Presidente gostava de tertudo ao seu alcance.


— Não creio disseAmparo.

que

ainda

tenha

de

vê-lo

muitas

vezes,—

— Por quê? — Acho que Papá já está ficando enjoado de La Cora. Nestasemana, ele jantou comigo quase todas as noites. Havia uma nota maliciosa de triunfo em sua voz. É claro que eu sabia das mulheres que haviam passado pelopequeno palácio. Cada qual ficava ali seis semanas em média edepois desaparecia. O presidente era um homem de gosto muitovariável. La Cora havia demorado na Residência mais do que amaioria. Já estava ali havia quase dois meses. — Como é ela? — Não é muito bonita,— disse Amparo desdenhosamente. — Ouvi dizer que é. — Mas não acho. Tem seios enormes. Assim, veja. E estendeu os braços arqueados quase meio metro à frente. — Eu gosto de um busto grande. Ela se olhou. Os seus seios mal estavam começando a formar-se. — Pois eu terei busto grande, maior do que o dela. — Tenho certeza disso,— murmurei, para não discutir. — Você gostaria de ver La Cora? — Acho que sim. Amparo virou-se e dirigiu-se para a entrada do pequeno palácio. O soldado de serviço fez continência e abriu a porta. Entramosna casa, e um mordomo veio receber-nos. Amparo olhou-o arrogantemente e disse: — Quero ver La Cora. O homem hesitou. Era evidente que não sabia o que fazer.Mas Amparo estava habituada a ser obedecida. — Deve saber que não gosto de esperar! — Pois não, Princesa,— disse o mordomo com uma mesura. — Quer ter a gentileza de acompanhar-me? Levou-nos para um apartamento da ala esquerda do edifício eparou à porta. Ouvia-se lá dentro um leve rumor de vozes. O mordomo bateu. As vozes se calaram. Um momento depois, uma perguntou: — Quem é? — La Princesa está aqui. — La Princesa?

mulher


— Si, señorita. Quer vê-la. Houve de novo um rumor de vozes e a porta se abriu. Umamulher alta de grandes olhos negros e cabelos pretos presos numcoque, apareceu. Olhou para Amparo e deu um passo atrás. — É uma honra para mim, Princesa. Amparo entrou no apartamento como se este lhe pertencesse. — Pensei que seria bom tomarmos chá juntas. A mulher olhou de relance para um homem que estava àjanela. Vi-o fazer um sinal indiferente. Seu rosto era magro e estavacoberto por cerrada barba. Os olhos eram muito escuros e brilhantes. — Será um prazer para mim, Princesa,— disse La Cora, ebateu palmas. O mordomo chegou à porta. — Chá, sim, Juan? Amparo disse: — Gostaria de lhe apresentar meu amigo, Diógenes Alejandro Xenos. La Cora cumprimentou-me de cabeça, e eu fiz uma reverência. — Muito prazer, señorita. — Posso apresentar-lhe o meu procurador, señor Guardas? O homem cumprimentou, batendo os calcanhares à maneira militar. — A su servicio. — Olhou em seguida para La Cora. — Espero que possa convencer Sua Excelência a comparecer. Prepareitudo especialmente para esta noite. — Ele comparecerá. O Sr. Guardas dirigiu-se para a porta. — Peço licença para retirar-me. Tenho uns assuntos urgentes para resolver. Amparo bateu com a cabeça e ele tornou a fazer uma reverência e saiu. Fiquei certo de que aquele homem já havia sidomilitar. Mostrava-o na sua postura, e até na cadência do passo. La Cora apertou mais o peignoir em torno do corpo e levou amão aos cabelos. — Se tivesse sabido da sua visita, Princesa, me teria preparado. Pode conceder-me um momento para vestir alguma coisamais apropriada? — Sem dúvida. Amparo voltou-se para mim logo que La Cora saiu da sala. — O busto é bem grande, não é? Ouvi de repente uma voz pela janela aberta. Fui até a janela eolhei. Não pude ver quem estava falando, pois a pessoa estava


bemabaixo da janela e escondida das minhas vistas. Mas a voz me parecia estranhamente conhecida. — La bomba deve ser colocada na mesa exatamente à meianoite! — É o que será feito, Excelência,— respondeu alguém. — Não se esqueça. Não quero falhas! Houve um momento de silêncio e então dois homens apareceram. Um era o mordomo; o outro, o señor Guardas. O mordomolevantou a mão como que em continência, e o Sr. Guardas saiu.Não era de admirar que a voz me parecesse conhecida. Ouviraamomentos antes. Amparo estava se olhando ao espelho e me perguntou: — Você acha que meu busto vai ficar tão grande quanto o de La Cora? — Acho que sim,— respondi secamente. Ela viu o meu rosto pelo espelho e perguntou: — Que é que o está preocupando? — A festa desta noite deve ser bem grande, Amparo. Vaihaver até fogos de artificio na mesa. — Como foi que soube disso? — Soube agora mesmo. Ouvi o procurador de La Cora darinstruções ao mordomo. Quer que a bomba seja colocada na mesaexatamente à meia-noite. Que espécie de festa será essa? A voz de La Cora fez-se ouvir da porta. — É uma festinha que vamos oferecer ao presidente e aalguns dos seus ministros e auxiliares para comemorar o seu segundo aniversário como nosso chefe e benfeitor. — Ah! Essa deve ser a razão para la bomba à meia-noite. La Cora riu. — Diz isso de uma maneira que até parece haver alguma coisade sinistro. É uma bomba, sim, mas feita de sorvete. — É uma ideia muito interessante,— disse eu. — La bomba de helado. La Cora olhou para Amparo. — Bem sabe como seu pai gosta de sorvete. Nesse momento, o mordomo entrou com a bandeja do chá. — Mudei de ideia,— disse Amparo de repente. — Lembrei-me de que tenho de estar agora mesmo na Residência. Vem comigo, Dax?


Olhei para La Cora como se pedisse desculpas e sai para acompanhar Amparo, que já ia desaparecendo no corredor. Alcanceiaantes que ela chegasse à porta da frente. — Por que está tão zangada? — perguntei, abrindo-lhe aporta. — Odeio essa mulher! Os dois soldados voltaram encaminhamos para a Residência.

a

seguir-nos

quando

nos

— Por quê? Que foi que elalhe fez? Ela me olhou friamente. — Não nega que é um homem como os outros. Não vê nadasenão peitos grandes. — Não é verdade. — Claro que é. Vi como você a estava comendo com os olhos. — Que é que você queria que eu fizesse? Não havia muitomais o que olhar. Amparo parou perto da sua porta particular. — Você nunca me olhou assim! — Mas prometo que vou olhar quando você crescer. — Se fosse um cavalheiro, você me olharia assim desde já! Olhei-a e, mesmo sem querer, tive de rir. — Está rindo de quê? — Mas se não há nada para olhar! Vi a mão dela levantar-se e segurei-a antes que me atingisseo rosto. — Por que isso, Amparo? — Odeio você — disse ela, com os olhos fuzilantes. — Fiquesabendo que nunca mais em minha vida quero botar os olhosem você! Encolhi os ombros e sai pelo jardim. — Dax! — Que é? Ela estendeu as mãos. — Você não me deu um beijo de despedida.

22


Senti que me sacudiam os ombros. Virei o corpo para o ladoe tornei a enfiar-me nas cobertas, quentes e macias. Não queria irpara a escola. Podia até alegar que estava doente. — Acorde, Dax! — disse a voz aflita e urgente de GatoGordo. O meu subconsciente registrou aquele tom de voz. Eu já o ouviraantes. Na selva, nas montanhas. Significava perigo. Sentei-me nacama, já bem acordado. — Que é? — Seu pai quer vê-lo agora mesmo! Olhei para as janelas. Estava tudo escuro ainda. — Agora? — Imediatamente! Sai da cama e vesti-me. Olhei para o relógio. Duas horas damadrugada. Senti um frio tremor envolver-me. Acabei de vestirme,trêmulo. — Ele foi ferido! Está morrendo! Gato Gordo conservou-se carrancudo e em silêncio. Olhei-o quando ele me deu o paletó. — La bomba! Vi-lhe a surpresa estampada no rosto. Falei antes dele. — La bomba de helado! Asesinato! Ele se benzeu. — Já sabia? Segurei-lhe as mãos. — Meu pai está vivo? Diga! — Está vivo, sim. Mas temos de andar depressa! O chofer já estava ao volante da grande Hudson preta com omotor ligado. Entramos em silêncio, e ele partiu imediatamentepara o palácio presidencial. Os guardas nos deixaram passar sema exigência habitual de identificação. Saltei do carro e entrei antes mesmo que Gato Gordo se levantasse. O vestíbulo estava cheio de gente. Vi o presidente sentadonuma cadeira a um canto. Estava nu da cintura para cima, e ummédico lhe prendia ataduras na parte superior do peito. O rostodele estava pálido e abatido quando se voltou para mim. — Onde está meu pai? Ele fez um gesto na direção do apartamento de La Cora. — No quarto. Sem dizer mais nada, corri para o apartamento. Na sala ondeAmparo e eu tínhamos estado naquela tarde havia caliça e


poeirapor toda parte. Metade da parede dos fundos havia ruído. Corripelo que restava da porta, para a sala de jantar. Todas asjanelase portas tinham sido arrancadas. As mesas e cadeiras estavam empedaços. Os corpos de dois homens estavam estendidos no chão,mas não perdi tempo em olhar para eles. Passei por outra porta e cheguei a um pequeno vestíbulo. Havia do outro lado uma porta fechada, diante da qual dois soldadosmontavam guarda. Um deles abriu a porta quando me viu. Parei logo que entrei. Havia dois padres lá dentro. Um altarportátil tinha sido instalado aos pés da cama, e a luz da vela estendia uma sombra vacilante sobre o crucifixo na parede. Um dospadres estava ajoelhado diante do altar. O outro, curvado sobre acama, levantava um crucifixo sobre a cabeça de meu pai. Do outrolado da cama, estava um médico com uma seringa de injeçãona mão. Senti de repente as pernas muito fracas. Tropecei ao entrar noquarto e tive de apoiar-me numa cadeira para não cair. — Papá! Corri então para junto da cama, com as lágrimas a corrermepelo rosto. Papai estava cor de cinza, e eu lhe senti o suor frio norosto quando o beijei. Ele não se moveu. Olhei para o médico. — Morreu! O médico sacudiu a cabeça. — Não minta! Sei que ele morreu! Coloquei as mãos sob os ombros de meu pai a fim de levantá-lo. Ele gemeu, e eu tirei as mãos como se as tivesse queimado.Havia um espaço vazio do lado esquerdo. Olhei para o médico. — Onde está o braço dele? — Foi arrancado por uma explosão,— disse o médico. Pressenti um brilho sobre a minha cabeça e olhei. O dossel dacama era todo feito de espelhos, que refletiam tudo o que se passava na cama. Corri os olhos pelo quarto. Tudo eram veludos vermelhos e dourados. Nas paredes, grandes quadros com mulheresnuas. E em cada canto do quarto havia estátuas de pares em posições obscenas. Meu pai gemeu de novo. Olhei para ele. A fronte estava cheiade suor. O médico enxugou-lhe o suor com um lenço. Levanteimelentamente e disse: — Levem-no daqui! — Não,— disse o médico. — É muito perigoso removê-lo!


— Pouco me importa! Tirem-no daqui! Não quero que elemorra neste quarto de prostituta! Senti a mão do padre nos meus ombros. — Meu filho. Desvencilhei-me dele. — Quero meu pai fora daqui! A cama de uma puta não élugar para um homem morrer! O médico principiou a falar, mas calou-se quando uma voz sefez ouvir atrás de mim. Era o presidente. Estava à porta, com asataduras passadas pelo peito nu. — É o filho dele,— disse o presidente. — Façam o que orapaz está mandando. — Mas... protestou o médico. — Ele será levado com cama e tudo para o meu quarto naResidência! A palavra do presidente era categórica e definitiva. Fez umgesto para os soldados que estavam no corredor atrás dele. Cobriram Papá com mais colchas. Foram precisos dez homens para levantar a pesada cama e carregarem-na até a Residência. Gato Gordo e euseguimos a cama em silêncio, e só depois que vi meu pai no quartodo presidente foi que me voltei para o padre que viera conosco doapartamento de La Cora. — Agora, padre, vou rezar! A débil luz da madrugada estava entrando no quarto quandoo presidente abriu a porta uma hora depois. Aproximou-se da camae olhou para meu pai, enquanto eu o olhava em silêncio. Seu rostonão traduzia emoção alguma. Depois, voltou-se para mim. — Vamos, soldadito. Está na hora do café. Sacudi a cabeça. — Pode deixá-lo. Está fora de perigo. Olhei-o bem nos olhos. — Não iria mentir para você. Está fora de perigo. Acreditei no presidente. Ele me botou a mão no ombro quandosaiamos do quarto. Olhei da porta. Meu pai parecia estar dormindo.Podia ver os cobertores arfarem ao movimento calmo da sua respiração. Descemos. Senti o cheiro de comida quente e fiquei de repentecom fome. Sentei-me à mesa, e um empregado colocou diante


demim um prato sofregamente.

de

presunto

com

ovos.

Comecei

a

comer

O presidente sentou-se à cabeceira da mesa, e outro empregadolevou-lhe uma xicara de café bem quente. Estava com uma camisafolgada, de modo que eu não podia ver se seu peito ainda estavacom ataduras, mas seu braço se movia com dificuldade quando elelevantou a xicara. — Sente-se melhor agora? — perguntou ele, quando acabeide comer. Fiz com a cabeça um sinal afirmativo. Um empregado me deuuma xicara de café com leite. Estava quente e bom. Quando acabei, perguntei: — Que aconteceu a La Cora? Os olhos do presidente flamejaram. — La puta! Fugiu! — Como assim? — Saiu da sala no momento em que o sorvete foi colocadoem cima da mesa. Disse que estava muito abafado lá dentro e queia tomar um pouco de ar, mas saiu imediatamente do palácio numcarro preto. Ela e outro homem, um homem de barba, no banco detrás. O mordomo estava dirigindo. Mas nós a encontraremos, eentão... — Os guardas não fizeram parar o carro? — Não, e já pagaram pela sua negligência. — A bomba estava no sorvete? — Como sabia? — perguntou ele, surpreso. Falei-lhe da conversa que tinha ouvido, na véspera, da janelado apartamento de La Cora. Ele me ouviu em silêncio. Quandoacabei, bateram na porta. O presidente fez um sinal a um empregado, que foi abrir a porta. Um capitão do exército entrou e fez continência. — Encontramos La Cora e o mordomo, Excelência. — Bueno,— disse o interrogá-los pessoalmente.

presidente,

levantando-se.

Quero

— Mas já estão mortos, Presidente! — Eu disse que os queria vivos! — Quando os encontramos, já estavam mortos. Estavam nocarro preto em que fugiram. Levaram vários tiros, e ainda porcima estavam ambos com o pescoço cortado. — Onde encontraram o carro? — En la Calle de Paredos, Presidente.


Eu conhecia a rua. Descia das montanhas para as docas. — Em que parte? — Perto do porto. — E o homem de barba? — Nem sinal dele. Procuramos por ali tudo, vasculhamosaté as docas. Havia desaparecido. O presidente ficou um momento em silêncio e então disse: — Obrigado, capitão. Virou-se então para mim, — Agora, você deve ir descansar. Mandei preparar um quartode hóspedes para você. Ficará conosco até seu pai restabelecer-sepor completo. Tive um sono inquieto, entrecortado de sonhos agitados. Numdeles, eu estava de novo no pátio da fazenda de meu avô, O solestava muito quente, e eu ouvi uma voz bem conhecida dizermeque só havia uma bala no revólver e que eu tinha de matarmeu avô. Nesse momento, acordei com os olhos arregalados. Sabia afinalonde tinha ouvido aquela voz. O procurador de La Cora, Sr. Guardas, o homem de barba, era o coronel Gutiérrez. Pulei da cama e vesti-me às pressas. Não sabia como, masdaquela vez eu o encontraria. Dessa vez, ele não fugiria. Porqueeu ia matá-lo.

23

Gato Gordo veio atrás de mim quando sai do quarto. Desci ocorredor e abri a porta do quarto de meu pai. — Como está ele? — Ainda está dormindo,— respondeu-me o médico. Continuei pelo corredor em direção à escada. Amparo estavasubindo quando comecei a descer. Ela me fez parar, e, pelo menosdaquela vez, não se fazia de princesa. — Como vai seu pai, Dax? — Está bem. Está dormindo. — Foi bom você ter acordado. Venha almoçar comigo. — Não posso,— disse eu, continuando a descer a escada. — Tenho muito o que fazer! Cheguei à porta da frente e fiz sinal para o carro.


— Onde é que vamos? — perguntou Gato Gordo. — As docas. Não esperei que ele abrisse a porta. Entrei de um salto, e elese acomodou no banco da frente. — Que é que vamos fazer, Dax? — Vamos procurar o homem de barba que fugiu. — Como vai conseguir isso? A polícia e o exército vasculharam toda a cidade e não acharam nem sombra dele.

Encolhi os ombros e fiz o carro ir até o ponto onde eu tinhaestado na véspera. Os mesmos garotos estavam ali, pescandono cais. — Campesinos! Eles se voltaram de cara fechada. Entreolharam-se e voltarama concentrar-se na sua pesca. — Campesinos!— continuei. — Vocês me pediram ontem alguns centavos. Trouxe hoje cem pesos para vocês! Não desviaram dessa vez o olhar, mas era evidente quenão acreditavam em mim. — Venham cá. Não quero fazer nenhum mal a vocês. Hesitaram um momento. Depois, largaram seaproximaram. O mais velho tirou o boné.

os

caniços

e

— Que deseja de nós, Excelência? — Quero que me descubram um homem. — Fiz-lhes umabreve descrição do procurador de La Cora, com barba e tudo. — Ele esteve por aqui ontem à noite. Quero saber onde está agora. Olharam um para o outro. — Um homem assim é muito difícil de achar, Excelência. — Mais difícil de achar do que cem pesos? — A policia já esteve procurando esse homem e não encontrou — disse o maior. — E a policia ofereceu cem pesos pela informação? — perguntei, fazendo menção de voltar para o carro. — Não queremos encrenca com as autoridades, Excelência. — Não haverá encrenca. — Bem, vamos ver o que podemos descobrir. — Bueno, voltarei dentro de duas horas. Se me trouxerem ainformação, ganharão cem pesos. Voltei para o carro, curiosorespeito no olhar.

Gato

Gordo

me

— Acha que eles vão descobrir alguma coisa?

olhou

com

um


— Se estão com tanta fome como dizem, vão descobrir. Agora, vamos voltar para casa que eu tenho de pegar dinheiro. Fui diretamente ao escritório de meu pai. Sabia onde ele guardava a pequena caixa de ferro — na última gaveta da mesa. Achave ficava na gaveta do outro lado. Abri a caixa e tirei cempesos. Depois, como estava com fome, fui à cozinha e pedi à cozinheira que me preparasse alguma coisa para comer. Às quatro e meia da tarde, saltei do carro nas docas em companhia de Gato Gordo. — Não disse que eles não iriam descobrir nada? — perguntou Gato Gordo. — Veja! Nem estão aqui! — Mas virão. Voltamos para o carro e ficamos esperando. Chegaram quasevinte minutos depois. Apareceram num beco do outro lado da rua,fizeram sinais para mim, assobiaram e desapareceram. Atravesseiarua seguido de Gato Gordo e entrei no beco, onde não podíamosser vistos da rua. — Trouxe o dinheiro? — perguntou o mais velho. Tirei os cem pesos do bolso. — Trouxeram a informação? — Como podemos saber se você nos dará mesmo o dinheiro? — Como posso saber se me dirão a verdade depois de receberem o dinheiro? Entreolharam-se e encolheram os ombros. — Somos forçados a confiar uns nos outros. O mais velho fez um sinal afirmativo. — Às três horas da madrugada de hoje, um homem como o que procura embarcou num navio no armazém 7. É o que está coma bandeira do Panamá. — Se estão mentindo, vão se arrepender. — Não estamos mentindo, Excelência. Dei-lhes o dinheiro e sai do beco. No armazém 7, saltei docarro e vi o navio. Aproximei-me e comecei a subir a prancha. Maso marinheiro de guarda no portaló nos barrou a passagem. — Vamos partir daqui a uma hora. Não pode haver mais visitas! — Vamos — disse eu a Gato Gordo, e desci a prancha. Nem esperei que o carro parasse. Sai correndo, afastei os guardas e entrei no gabinete do presidente. Ele levantou os olhos,surpreso. Havia vários homens com ele, mas não dei oportunidade a ninguém falar.


— Sei onde está o coronel Gutiérrez! — Que tem Gutiérrez a ver com essa interrupção? — Ele é também o Sr. Guardas, o homem de barba quefugiu. O presidente não perdeu tempo. Pegou o telefone em cimada mesa. — Diga ao capitão Borja para preparar imediatamente umdestacamento e levá-lo para a porta do edifício dos escritórios. Imediatamente! Voltou-se para mim. — Onde? — Num navio panamenho no armazém 7. Temos de ir depressa. Vão sair do porto daqui a menos de uma hora! O presidente se encaminhou para a porta. — Mas não podemos retardar a partida de um navio, presidente! — disse um dos homens que estavam na sala. — Será umaviolação das convenções internacionais! O presidente voltou-se para ele, irritado. — As convenções internacionais que vão para o diabo! — Emseguida, sorriu. — Além disso, quem se atreveria a protestar contraa visita de um presidente? Colocou a mão em meu ombro e me levou pela porta com ele. O comandante do navio estava visivelmente aborrecido. — Peço a indulgência de Vossa Excelência. Se perdermos estamaré, sofreremos um atraso de meio dia, seguramente. Mas a voz do presidente era muito suave. — Tenho certeza de que o seu governo, que tanto admiro,ficaria muito mais inquieto do que o senhor, se me fosse recusadauma visita ao seu navio. — Mas, Excelência... A voz do presidente perdeu de repente a brandura. — Tenho de insistir, Capitán. Ou me deixa dar uma busca abordo ou deterei o seu navio sob a acusação de ter abusado danossa hospitalidade dando refúgio a um assassino, inimigo da Pátria! — Mas não temos passageiros, Excelência. Só temos os tripulantes que estão a bordo desde que saímos do nosso porto deregistro há mais de quatro semanas! — Neste caso, mande a tripulação apresentar-se para a revista! O comandante hesitou. — Imediatamente!


O comandante voltou-se para o primeiro-piloto. — Convoque todos os homens para o convés de vante! Um momento depois, a tripulação começou a reunir-se. Haviatrinta e dois homens, que formaram duas fileiras no centro doconvés. — Sentido! Os homens se perfilaram. — Estão todos os tripulantes aqui? — perguntou o presidente. — Si, Excelencia— respondeu o comandante. O presidente voltou-se para o Capitão Borja. — Vá com dois homens dar uma busca completa no navio.Certifique-se de que não há ninguém escondido em canto algum! O capitão fez continência e apressou-se em cumprir a ordem. Os outros soldados ficaram em posição de sentido, e o presidente voltou-se para mim. — Vamos olhar essas caras? Um barbado não será difícil dereconhecer. Mas não era fácil. Nenhum dos homens usava barba. Quandopassávamos pela segunda vez por entre as filas, o capitão Borjareapareceu e disse que não havia mais ninguém a bordo. — Você preocupada.

o

viu?

perguntou-me

o

presidente

com

voz

Sacudi a cabeça Mas os meus dois informantes não poderiamter inventado aquilo. Não eram suficientemente espertos para tanto. O comandante do navio se aproximou, com um leve sorriso desatisfação. — Está satisfeito agora, Excelência? O presidente não respondeu. Olhou para mim, e eu exclamei: — Não! Ele está aqui! Não pode deixar de estar! Com certeza, raspou a barba! — Como é então vai reconhecê-lo? Fiz um sinal ao presidente para curvar-se e disse-lhe algumacoisa ao ouvido. Ele sorriu e voltou-se para o primeiro homemda fila: — Como se llama usted? — Diego Cárdenas, Excelência. O presidente passou para o homem ao lado. — Y usted? — José Maria Luna.


Chegamos ao terceiro homem da fila. O presidente parou emfrente de um homem vestido com as roupas sujas de mecânico.Tinha o rosto besuntado de óleo, e até os cabelos estavam sujos. — Como se llama usted? O homem hesitou, olhou para mim e disse com voz áspera: — Juan Rosario... O presidente já havia passado para o homem seguinte, mas eume voltei. — Juan Rosario o quê? — Rosario y Guard... Interrompeu-se bruscamente e avançou para mim, com asmãos para o meu pescoço. — Bastardo negro! Duas vezes eu devia ter matado você! Masdesta vez vou matar... Enterrei as unhas nas mãos dele, tentando tirá-las do meupescoço. Já sentia faltar-me o ar nos pulmões, e meus olhos começarem a esbugalhar-se. Então, Gato Gordo aproximou-se dele portrás e a pressão em meu pescoço cessou de súbito. Fiquei ali tentando recuperar o fôlego e olhei para o homemno convés. Ele sacudiu a cabeça, rolou o corpo e me olhou. Osolhos eram os mesmos. Frios, cruéis, implacáveis. Podia mudar acor dos cabelos, raspar a barba, engrossar a voz, mas não podiamodificar aqueles olhos. O único olhar que me lançou o haviadenunciado. Abri o paletó e peguei a faca que trazia escondida no cinto.Segurei a lâmina e avancei para o pescoço dele como o faria parao pescoço de uma galinha, mas fui agarrado antes que pudessechegar onde ele estava. Olhei para o presidente. A voz dele eracalma, quase suave. — Não é preciso matá-lo. Você não está mais na selva. Dois meses depois, eu estava à amurada de outro navio que seafastava de terra. Olhei para o cais e vi Amparo, que me davaadeus. — Adiós, Amparo! Ela gritou alguma coisa, mas o barulho era muito, e eu nãopude entender. O navio dirigiu-se lentamente para o canal. Quasenão se podiam distinguir mais as pessoas no cais. Além, avistava-sea cidade e, depois, as montanhas verdes e lindas ao sol da tarde. Senti o braço de meu pai em meu ombro e olhei-o. Seu rostoestava magro, e ele ainda não se habituara à perda do braço,


mas os olhos eram claros e tinham um brilho que não conhecia ainda. — Olhe bem, meu filho. Estamos a caminho de outro mundo. Eu via Gato Gordo pelo canto dos olhos. Meu pai continuoua falar e eu me voltei para a terra. — Vamos para um mundo velho, mas que será novo para nósambos. Por isso, olhe bem, meu filho, e guarde bem na lembrançaa cidade, as montanhas e as planícies da sua terra. Quando vocêvoltar, nãoserá mais um garoto! Será um homem!


Livro 2

PODER e DINHEIRO

1 O médico acabou de dar a injeção e puxou a agulha. Virousepara o jovem que estava aos pés da cama e disse: — Isso o fará dormir, Dax, e lhe conservará as forças para acrise que pode vir esta noite. O rapaz nada disse imediatamente. Foi para o lado da cama edelicadamente enxugou o suor da fronte do pai. — De qualquer modo, ele morrerá,— disse ele calmamente esem levantar os olhos. — Nunca se sabe,— disse o médico. — Seu pai já nos tem assustado em outras ocasiões. Tudo está nas mãos de Deus. Sentiu o impacto dos olhos castanhos do rapaz, quepareciam ler-lhe o fundo da alma. — Costuma-se dizer lá na selva,— disse Dax,— que para umhomem entregar o seu destino nas mãos de Deus deve ser umaárvore. Só as árvores acreditam em Deus. A voz do rapaz era branda, e o médico ainda não pudera habituar-se àquele francês suave, atenuado, quase sem sotaque. Aindase lembrava da luta que o rapaz tivera com a língua quando o conhecera sete anos antes. — Você não acredita? — Não. Já vi coisas tão terríveis que não me pode restarmuita fé. Dax olhou de novo para o pai. Os olhos de Jaime Xenos estavam fechados. Parecia estar descansando. Mas havia uma palidezcinzenta sob a pele escura, e a respiração era pesada e difícil. — Vou chamar um padre para dar-lhe os últimos sacramentos, — disse o médico. — Prefere o contrário? Dax encolheu os ombros.


— Não é o que eu prefiro que tem importância e, sim, aquiloem que meu pai acredita. O médico fechou a maleta. — Voltarei esta noite depois do jantar. Depois de um último olhar para o pai, Dax acompanhou o médico pelo corredor. Quando a porta do consulado se fechou depois do médico, Daxfoi para o gabinete do pai. Gato Gordo e Marcel Campion, jovemsecretário francês e tradutor de seu pai, olharam-no com uma pergunta. Dax sacudiu a cabeça em silêncio e foi até a mesa. Tirou umcigarrillo da caixa e acendeu-o. — Convém passar um telegrama ao presidente disse ele aMarcel. — "Pai à morte. Mande instruções." O secretário deixou imediatamente a sala. Pouco depois, ouviuse atrás da porta fechada o bater de uma máquina de escrever. Gato Gordo exclamou, irritado: — Pelo sangue da Virgem! É assim que tudo acaba! E nestaterra fria dos diabos! Dax nada disse. Foi até a janela. A noite estava caindo ehavia começado a chover. A chuva suavizava os sujos edifícios cinzentos da rua que levava a Montmartre. De algum modo, pareciasempre estar chovendo em Paris. Como naquela noite em que ele chegara de Corteguay, haviasete anos. Tinham parecido um grupo de rústicos, com as golas dospaletós levantadas como uma fraca proteção contra a fria chuvae a neve de fevereiro e com as malas empilhadas no passeio ondeo chofer do táxi os havia deixado. — O portão está fechado disse Gato Gordo. — Não háninguém em casa. — Toque haveralguém.

outra

vez

a

campainha.

Não

pode

deixar

de

Gato Gordo puxou o cordão da campainha. O barulho encheua rua estreita e ressoou de casa em casa, mas ninguém apareceu. — Eu posso abrir o portão! — Então abra! Que é que está esperando? Os movimentos de Gato Gordo foram quase rápidos demaispara serem seguidos pela vista. A automática estava fumegante namão dele, e o barulho dos tiros havia ribombado dentro da noitecomo se fosse trovoada. — Maluco! exclamara zangado, o pai de Dax. — Agora, apolícia virá saber o que foi que houve e o mundo inteiro saberáque nós não


pudemos entrar no nosso consulado! Seremos levadosao ridículo. E não adiantou nada, porque o portão continua fechado. — Não está, não,— respondeu Gato Gordo, tocando-o com o pé. O portão se abriu, rangendo nas dobradiças enferrujadas. Xenoshesitou um instante, mas se dispôs a entrar na casa. Gato Gordo o deteve com o braço. — Espere um pouco. Não estou gostando disso. Deixe-meentrar na frente. — Ora essa! Que é que pode haver de errado? — Já há muita coisa errada,— disse Gato Gordo. — Ramirezdevia estar aqui, mas a casa está vazia. Talvez seja uma armadilha.Ramirez pode ter-nos traído. — Tolice! Ramirez nunca faria isso. Fui eu mesmo que propusa nomeação dele ao presidente. Apesar disso, Jaime Xenos ficou de lado e deixou Gato Gordoentrar primeiro na casa. O caminho estava cheio de mato, quelhes batia nas pernas. — Acha que a porta da frente também está trancada? — perguntou Dax. — É o que vamos ver. Gato Gordo fez sinal para que fossem para o lado da casa,agachou-se e estendeu a mão para torcer a maçaneta da porta. A porta se abriu silenciosamente. Olharam para a escuridãolá dentro, mas nada puderam ver. A automática reapareceu nas mãosde Gato Gordo. Murmurou ele baixinho. — Lá vou eu com Deus! Ouviram-no tropeçar no escuro, praguejar nomesmo instante em que as luzes se acendiam:

e

afinal

dizer

— Não há ninguém aqui! Entraram e ficaram de olhos arregalados. Parecia que um tufãohavia passado pela casa. Havia destroços por toda parte, papéisespalhados pelo chão, restos de cadeiras quebradas empilhadas nomeio da sala. Uma mesa na cozinha parecia ser o único móvel querestava na casa. — Os ladrões andaram por aqui,— disse Gato Gordo. O pai de Dax olhava tudo com uma estranha expressão demágoa, como se não pudesse acreditar no que via. Disse finalmentecom tristeza: — Ladrões, não. Traidores.


Gato Gordo acendeu um cigarro e, quando viu o pai de Daxapanhar um papel no chão e examiná-lo, arriscou uma explicação: — Talvez a gente tenha errado o endereço. O pai de Dax sacudiu a cabeça. — Não, é aqui mesmo. E mostrou o papel com as armas de Corteguay. Dax olhou para o pai e disse: — Estou cansado. O velho abraçou o filho e disse: — Não podemos ficar aqui. Teremos de passar a noite numhotel. Vi o letreiro de uma Pensión lá embaixo na ladeira quandovínhamos para cá. Vamos. Talvez não possamos encontrar comida,mas ao menos descansaremos durante a noite. A empregada bem-arrumada fez uma reverência quando abriu aporta. — Bon soir, messieurs. O pai de Dax limpou cuidadosamente os pés no capacho antesde entrar e tirou o chapéu. — Tem três quartos aqui por esta noite? Um olhar de espanto apareceu no rosto da empregada. Olhou para Gato Gordo, que estava ao lado do cônsul, com os braços cheios de malas. Depois, olhou para Dax. — Marcaram alguma coisa? — perguntou ela polidamente. O cônsul ficou confuso. — Marcar o quê? Ah, fazer reservas dos quartos! — O seu francês limitado não o ajudava. — C'est nécessaire? Aquilo estava acima das forças da empregada. Abriu a porta de uma saleta e disse: — Se quiserem ter chamarMadame Blanchette.

a

bondade

de

esperar

aqui,

vou

— Merci. O Pai de Dax foi na frente e depois que todos entraram a empregada fechou a porta. Ouviram no interior da casa uma risada de mulher. A sala era luxuosamente mobiliada com bons tapetes e sofás e poltronas ricamente estofados. Um fogo crepitava na lareira e num aparador havia conhaque e copos. Gato Gordo viu a garrafa e disse, indo até o aparador: — Assim é que eu gosto! Um pouco de conhaque, Excelência?


— Não sei se devemos. Afinal de contas, nem sabemos para quem está preparado o conhaque. — Para os hóspedes,— disse Gato Gordo, com uma lógica que lhe parecia irrefutável. — Do contrário, por que estaria aqui? Serviu um copo para o cônsul e tomou o seu de um gole. — Que bom! — exclamou, e serviu-se logo de outro. Dax sentou-se numa poltrona diante da lareira. O calor o envolveu, e ele sentiu os olhos pesados de sono. A porta se abriu, e a empregada fez entrar na sala uma simpática mulher de meia-idade. Estava irrepreensivelmente vestida com um vestido de veludo preto e usava um duplo colar de pérolas róseas ao pescoço e um grande anel de brilhante no dedo. O pai de Dax cumprimentou-a. — Jaime Xenos. — Monsieur Xenos. — Olhou para Gato Gordo e, depois, para Dax. Se não gostou de Gato Gordo ter-se servido do conhaque, não deu o menor sinal disso. — Em que posso servi-los, cavalheiros? — Precisamos de alojamento para esta noite, — disse o pai de Dax. — Somos do consulado de Corteguay aqui mesmo nesta rua, mas parece que houve algum desencontro e lá não há ninguém. A voz da mulher foi extremamente delicada. — Pode regulamento.

mostrar-me

os

passaportes,

monsieur?

um

— Está bem, — disse o pai de Dax, entregando-lhe o passaporte de couro vermelho. Madame Blanchette examinou-os por um momento e em seguida apontou Dax: — Seu filho? — Oui e meu attaché militaire. Gato Gordo ficou cheio de orgulho e serviu-se de outro conhaque. — É o novo cônsul? — Oui, Madame. Madame Blanchette instante e então disse:

devolveu

os

passaportes.

Hesitou

um

— Se me der licença um instante, vou ver se há quartos vagos. Já é tarde e estamos com a casa cheia. — Merci, Madame. Sou muito grato à sua gentileza. Madame Blanchette saiu fechando a porta e ficou por um momento no fover. Encolheu então os ombros, entrou no corredor e


abriu a porta de uma sala mais ricamente mobiliada do que aquela de que havia saído. Via-se ao centro uma mesa de jogo, à qual estavam sentados cinco homens que jogavam cartas. Atrás deles, estavam algumas mulheres belas e jovens, vestidas na última moda. Duas delas estavam conversando num sofá junto à lareira. — Banca! — exclamou um dos jogadores. — Diabo! — disse outro, jogando as cartas em cima da mesa. Depois, levantou os olhos para Madame Blanchette. — Foi alguém que interesse? — Não sei, Barão. Foi o novo cônsul de Corteguay. — Que era que ele queria? Informações sobre aquele patife do Ramírez? — Não. Queria quartos para dormir. O jogador que pegara a banca riu. — O coitado viu com certeza a sua tabuleta. Bem lhe disse que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. — Você naturalmente mandou-o embora, não foi? — perguntou o barão. — Não, — respondeu Madame Blanchette. eupretendia fazer. Mas vi depois o rapazinho...

Era

o

que

— Ah, está com o filho? — Oui, Barão. Mas acho que nada posso fazer. — Un moment, — disse o Barão de Coyne, levantando-se. — Gostaria de vê-los. — Que é que há, Barão? — perguntou o jogador à sua esquerda. — Ramírez já não o explorou bastante nesta mesma mesa? Ficou-lhe devendo mais do que a qualquer de nós — cem mil francos no mínimo. — É verdade, — disse o que estava com a banca. — Acha que pode arrancar isso do novo cônsul? Todos nós sabemos que o Corteguay está arruinado. O Barão de Coyne olhou para os seus amigos e disse: — Vocês são um bando de cínicos. Estou apenas com curiosidade de ver que espécie de homem nos mandaram desta vez. — Que importância tem isso? Todos eles são iguais. Só querem é o nosso dinheiro. — Quer falar com ele, Excelência? — perguntou Madame Blanchette. — Não. Quero apenas vê-los.


O barão acompanhou-a até à parede ao lado e ela levantou um reposteiro. Havia uma abertura fechada por um vidro. — Pode vê-los daqui, — disse ela, — mas eles não nos podem ver. Há um espelho do outro lado. A primeira coisa que o barão viu quando olhou foi o garoto que dormia na poltrona, com o rosto abatido e cansado. — Deve ter a mesma idade de meu filho, — disse ele com surpresa a Madame Blanchette. — A mãe dele deve ter morrido, pois do contrário não o deixaria vir assim com o pai. Alguém sabe para onde o Ramírez foi? Madame Blanchette encolheu os ombros. — Ouvi dizer que estava na Riviera Italiana, mas ninguém sabe com certeza. Na semana passada, um caminhão encostou à noite ao portão do consulado e levou tudo o que havia lá. O barão fechou a cara. Era por isso que tinham ido procurar um quarto. Conhecia bem Ramírez e sabia que ele não devia ter deixadonem uma acha de lenha. Viu então o homem alto aproximarse da poltrona e colocar uma almofada debaixo da cabeça do rapaz. Havia no seu rosto muito escuro uma expressão curiosa de gentileza. O barão deixou cair o reposteiro e voltou-se para Madame Blanchette. Já vira tudo o que queria. O pobre homem ficaria assoberbado de problemas logo que se soubesse que havia em Paris um novo cônsul do Corteguay. Todos os credores de Ramírez iriam bater-lhe à porta. Dê-lhes o meu apartamento no terceiro andar. Acho que Zizi não se importará de eu passar a noite no quarto dela.

2

Parecia ainda o meio da noite mas já eram dez horas da manhã quando Marcel Campion ouviu baterem na sua porta. Rolou na cama e cobriu a cabeça com o travesseiro. Mas ainda assim ouvia a voz estridente da dona da pensão. — Está bem, está bem! — gritou ele, sentando-se na cama. — Volte depois. Prometo que vou pagar o seu dinheiro! — O telefone está chamando, monsieur. — A mim? — disse Marcel Campion, franzindo as sobrancelhas e tentando descobrir quem poderia estar-lhe telefonando. Levantou-se da cama. — Diga a quem for que espere um pouco que eu já vou descer.


Foi até ao lavatório, encheu a bacia de água e lavou o rosto. Do espelho, os olhos avermelhados o examinavam tristemente. Procurou lembrar-se vagamente da qualidade do vinho que bebera na noite anterior. Fosse qual fosse, era horrível, mas ao menos tinha sido bem barato. Enxugou o rosto com a toalha e, vestindo um robe, desceu. A conciergeestava sentada à sua mesa e ele pegou o telefone. Ela fingiu que não estava prestando atenção, mas ele sabia que estava. — Alô? — Monsieur Campion? — perguntou uma voz de mulher. — Oui. — Um momento que o Barão de Coyne já vai falar. A voz do barão fez-se oportunidade de ficar surpreso.

ouvir

antes

que

Marcel

tivesse

— Estou falando com Campion empregado do consulado do Corteguay? — Sim, Excelência, — respondeu Marcel, com a voz cheia de respeito. — Mas não trabalho mais lá. O consulado foi fechado. — Sei disso. Mas o novo cônsul acaba de chegar. Acho que deve voltar. — Mas, Excelência, o ex-cônsul ainda me deve três meses de ordenado! O barão não era evidentemente homem que gostasse de ver as suas sugestões discutidas. — Volte a trabalhar que eu garanto o seu ordenado! Desligou, deixando Marcel com o fone no ouvido. Desligou afinal o aparelho. A concierge se aproximou dele, sorrindo. — Monsieur vai voltar a trabalhar? Marcel não respondeu. Ela sabia tão bem quanto ele. Ouvira tudo. Subiu a escada, meio tonto. O Barão de Coyne era um dos homens mais ricos da França. Por que se interessava por um país pequeno como o Corteguay? Muita gente não sabia nem onde ficava. O telefone tomou a tocar e a conciergeatendeu. Estendeu o fone para Marcel. Para o senhor. Alô? — Campion, — disse a voz que ele logo reconheceu como a do barão. — Quero que vá para lá imediatamente!


Marcel olhou para o relógio quando chegou à Rua Pelier e começou a subir a ladeira. Onze horas. Andara bem depressa, mesmo para atender às ordens do barão. O homem do armazém estava varrendo o passeio em frente à loja e cumprimentou-o. — Bonjour, Marcel. Que anda fazendo por estas bandas? — Bonjour. Vou ao consulado. — Vai trabalhar de novo? Quer dizer que aquele merde do Ramírez voltou? Ele ainda me deve mais de sete mil francos! — Três mil francos, — retificou Marcel no mesmo instante. Nunca se esquecia de coisas assim. — Três mil, sete mil, vem dar na mesma! Ramírez desapareceu e eu perdi o meu dinheiro! Mas, espere! Há alguma novidade? Pode-me dizer. — Não sei ainda. Acabo de saber que chegou um novo cônsul e vim ver se volto para o meu emprego. — Neste caso, — disse o dono do armazém pensativamente,— talvez o meu dinheiro ainda não esteja perdido. Se conseguir que me paguem, darei a você cinquenta por cento. Mil e quinhentos francos. — Três mil e quinhentos — respondeu Marcel no mesmo instante. O negociante olhou-o um instante e depois deu um largo sorriso, batendo no braço de Marcel. — Ah, Marcel, Marcel! Eu sempre disse que quem lhe quisesse passar a perna teria de ficar de olhos bem abertos! Vá lá! Três mil e quinhentos francos! Marcel continuou a subir a ladeira. Quando avistou o consulado, atravessou, num impulso, para o outro lado da rua antes de chegar, lá e ter logo de entrar. A primeira coisa que viu foi que haviam arrebentado a fechadura do portão. Com certeza, tinham tido de fazer isso para poder entrar. O proprietário é que não ia gostar. Notou em seguida o rapaz no jardim da frente, limpando o mato. Embora o tempo estivesse frio, ele estava apenas com uma camisa de meia e os músculos dos braços se moviam enquanto ele trabalhava com a larga lâmina, muito atento ao que fazia. Marcel olhou para o instrumento que o rapaz tinha na mão. Não podia saber o que era. Lembrou-se então de que já vira aquilo numa fotografia que Ramírez lhe mostrara. Era um machete. Marcel estremeceu. Era uma arma predileta dos selvagens. Examinou o rapaz. Com aquela cara, não podia ser francês. Com a firmeza que mostrava no manejo do machete, também não. Fosse


quem fosse, havia chegado com o novo cônsul. De repente, o rapaz levantou os olhos e deu com ele. Os olhos eram pretos e penetrantes. Marcel podia jurar que o macheteestava virado para ele e podia atingi-lo a qualquer momento. O rapaz sorriu, mostrando dentes muito brancos, mas o sorriso nada tinha de amistoso. Marcel sentiu um tremor percorrer-lhe o corpo. Em seguida, sem compreender por que, deu meia-volta e começou a correr, ladeira abaixo. Sentia os olhos do rapaz sobre ele até que dobrou a primeira esquina. Entrou numa brasserie e pediu: — Conhaque. Bebeu o conhaque de um gole e pediu café. Sentiu o calor da bebida enquanto engolia o café. Se não fosse o fato de que o Barão de Coyne lhe havia falado pessoalmente, nunca pensaria em voltar a trabalhar ali, entre aqueles selvagens. Viu da sua mesa o rapaz entrar na mercearia do outro lado da rua. Pagou a conta apressadamente e atravessou à rua. Olhou da porta e viu o rapaz pegar dois pães, um pedaço de queijo e um rolo de salsichas. Marcel hesitou um instante e entrou na mercearia. O rapaz não se voltou para olhá-lo. Estava muito atento ao dono do armazém, que embrulhava as compras. — Trezentos francos, — disse o homem. O rapaz olhou para o dinheiro que tinha na mão. Marcel viu que eram duas notas de cem francos. — Neste caso, terei de não levar alguma coisa, — disse o rapaz num francês horrível. O dono do armazém já ia tirando as salsichas quando Marcel disse: — Não seja explorador. É dessa maneira que quer receber o seu dinheiro do consulado do Corteguay? O rapaz pareceu compreender a referência ao consulado, mas o resto fora tão ligeiro que não entendeu nada. Olhou para Marcel e reconheceu-o. — Não sei qual é seu interesse nisso, Marcel, — disse o negociante. Mas empurrou o embrulho por cima do balcão e recebeu os duzentos francos. — Merci, — disse o rapaz e saiu. Marcel seguiu-o ao passeio.


— É preciso ter sempre muito cuidado com eles, — disse em espanhol. — Roubam até os olhos da cara quando sabem que estão tratando com um estrangeiro. Os olhos do rapaz eram insondáveis. Lembravam a Marcel os olhos de um tigre que vira no jardim zoológico. Havia os mesmos clarões ferozes amortecidos. — É o novo cônsul do Corteguay? — Sou filho dele. Quem é o senhor? — Marcel Campion. Trabalhei no consulado como secretário e tradutor. A expressão do rapaz não mudou, mas Marcel julgou notar um leve movimento da mão e adivinhar o volume de uma faca por baixo do paletó. — Por que estava me olhando? — Pensei que o novo cônsul pudesse querer os meus serviços. Mas... Não concluiu a frase. O conhecimento da faca escondida estava fazendo-o nervoso. — Mas o quê? — O cônsul anterior ficou-me devendo três meses de ordenado. — Ramírez? — Sim, Ramírez. Vivia prometendo que o dinheiro chegaria na outra semana. Um belo dia, vim trabalhar e encontrei o consulado fechado. — Acho que é melhor entrar para falar com meu pai. Marcel olhou para a mão do rapaz e viu que estava vazia.Deixou soltar-se o fôlego, que estava contendo e murmurou: — Será uma honra para mim. Subiram juntos a rua. Quando chegaram ao consulado, o novo cônsul estava sentado a uma pequena mesa, no centro da grande sala vazia, tendo à sua frente um grupo de homens enfurecidos que gritavam e gesticulavam. — Gato Gordo! — gritou o rapaz, correndo por entre eles para junto do pai. Um instante depois, Marcel sentiu-se atirado para o lado por um homem enorme e gordo que passou pela porta. Lutou para não perder o equilíbrio e quando conseguiu firmar-se nos pés viu que o gordo e o rapaz enfrentavam os homens de faca em punho.


Os homens recuaram. Um súbito silêncio caiu sobre a sala. Marcel viu a palidez do medo no rosto dos homens e compreendeu que não devia estar muito diferente deles. Naquele momento, estavam todos em outro mundo. Um mundo de morte e violência. Paris havia desaparecido. Percebeu também que aquela não era a primeira vez que o rapaz e o homem enfrentavam o perigo juntos. Tinha havido muitos outros momentos como aquele. Isso se mostrava na comunicação quase tácita que havia entre eles. Reagiam quase com o mesmo espírito. Por fim, um dos homens falou. — Mas só queremos o nosso dinheiro. Marcel não pôde deixar de sorrir. Era um método de afugentar credores que eles ainda não haviam conhecido. E muito eficiente, por sinal. Gostaria de experimentá-lo com os seus credores, particulares. O cônsul levantou-se. Marcel ficou admirado. Era muito mais alto do que parecera quando estava sentado. Mas o rosto mostrava abatimento, um abatimento mais moral do que físico. — Se esperarem um pouco na outra sala, examinarei todos os casos — disse ele. — Mas um de cada vez. Os credores se voltaram e passaram em silêncio por onde Marcel estava. Quando o último saiu, ouviu a voz do rapaz. Feche a porta. Marcel. Não era voz de garoto. Era a voz de um guerreiro, habituado a ver as suas ordens obedecidas. Marcel fechou em silêncio a porta. Quando tomou a olhar, as facas haviam desaparecido e o rapaz estava atrás da mesa, junto do pai. — Está bem, Papai? — perguntou, com uma voz cheia de solicitude e de amor. Marcel teve a impressão de que tudo era quase como se o rapaz fosse o pai e o pai, o filho.

3

No escritório de paredes revestidas de lambris e com pesado mobiliário de couro, o barão escutava atentamente, sentado à sua grande mesa lavrada. Embora ouvisse em segundo plano o murmúrio familiar do tráfego na Praça Vendôme, Marcel ainda não podia acreditar inteiramente na realidade de tudo o que lhe vinha acontecendo naquela semana desde que voltaram a trabalhar. A voz do barão se fez ouvir.


— Qual é o total das contas que Ramírez deixou para pagar? — Quase dez milhões de francos — respondeu Marcel. — Oitenta milhões de pesos na moeda deles. Como era seu costume, o barão converteu automaticamente a importância em dólares e libras. Cento e sessenta mil dólares. Quarenta mil libras esterlinas. — E o cônsul pagou tudo isso do seu bolso? — Achou que tinha essa obrigação — disse Marcel. — Ramirez fora recomendado por ele e ele sabe que o tesouro do país não pode arcar ainda com essa despesa. — Onde conseguiu dinheiro? — Com agiotas. Pagou uma comissão de 20%. — Foi depois disso que o cônsul resolveu ir a Ventimiglia para ver se Ramírez podia restituir alguma coisa? — Foi, mas já era tarde demais. Cinco dias de trabalho naquela casa úmida e sem aquecimento, dormindo em cima de um lençol estendido no chão frio, deram conta do cônsul. O Sr. Xenos amanheceu naquele dia com febre alta. Chamei o médico à tarde e ele disse logo que o cônsul devia ser internado imediatamente num hos- pital. O Sr. Xenos protestou, mas perdeu os sentidos de repente e nós o levamos para o hospital no carro do médico. O barão sacudiu a cabeça. — A honra de um homem é ao mesmo tempo o seu bem mais valioso e o seu luxo mais caro. — Compreendo perfeitamente o cônsul, — disse prontamente Marcel. — É um dos homens mais honestos e mais idealistas que já conheci. O que me intriga é o garoto. Não tem nada do pai. O pai é sentimental, o filho é racional; o pai é impulsivo, o filho é controlado. Mas parece um jovem animal da selva, na sua maneira de pensar e de agir. Só tem lealdade para com uma pessoa — o pai. — E então o rapaz e o tal ajudante foram para Ventimiglia? Marcel bateu com a cabeça. Ainda se lembrava de quando haviam voltado para o frio consulado depois do hospital. — Penso que vou devolver as passagens que compramos para Ventimiglia para seu pai e para mim e receber o dinheiro, — disse Marcel a Dax, cujo rosto era uma máscara impenetrável. Não, — disse Dax, olhando para Gato Gordo. Marcel suspeitou de que tivesse havido alguma comunicação invisível entre eles, pois Gato Gordo bateu com a cabeça concordando antes mesmo que Dax falasse de novo. — Compre mais uma passagem. Iremos os três fazer uma visita ao nosso amigo Ramírez. Creio que já está bem na hora.


Horas depois, estavam sentados na encosta de uma colina ao sol da Riviera no ocaso, olhando para a vila embaixo. Três homens estavam sentados a uma mesa no pátio, com uma garrafa de vinho entre eles. No ar tranquilo da tarde, ouvia-se leve rumor das suas vozes. — Qual é Ramírez? — O magro, que está no meio. — E os outros dois? — Devem ser guarda-costas. Ramírez nunca anda sem eles. — Conheço o grandão — disse Gato Gordo. — Chama-se Sánchez e era da guarda pessoal do Presidente. Sempre desconfiei de que aquele cachorro era um traidor! Algumas mulheres apareceram no pátio levando Ramírez deu uma palmada numa delas quando passava.

comida.

— Quem são elas? — perguntou Dax. Marcel encolheu os ombros. — Não sei. Ramírez sempre teve muitas amantes. Dax sorriu, mas Marcel não sentiu calor algum naquele sorriso. — Ao menos, sabemos que ele não dorme com os guarda-costas. Isso nos facilitará o trabalho. Temos de saber qual o quarto dele antes de irmos lá esta noite. — Como poderemos entrar? — perguntou Marcel. — A porta com certeza estará trancada. — Não será problema, — disse Gato Gordo, rindo. — Pularemos o muro. — Mas isso é ilegal, — murmurou Marcel. — Poderemos todos acabar na prisão. — E Ramírez roubou o dinheiro legalmente? — perguntou Dax com voz seca e cheia de desprezo. Marcel não respondeu. Gato Gordo encostou-se a uma árvore e riu satisfeito. Estendeu a mão e desmanchou afetuosamente os cabelos de Dax. — Até parece que estamos nos velhos tempos lá em nossa terra, hem, jefecito? — Deve ser o quarto do canto, o que tem a sacada, — disse o rapaz. Nesse momento, as portas altas se abriram e Ramírez chegou à sacada. Ficou ali debruçado no peitoril fumando um cigarro. Parecia estar olhando para o mar que ficava além da casa. Daí a pouco, apareceu uma mulher que ficou ao lado dele. Ele jogou o cigarro fora


e ouviu-se o riso da mulher. Em seguida, Ramírez entrou na casa com ela. As portas que davam para a sacada ficaram abertas. — É muita hospitalidade do traidor, — murmurou Gato Gordo.— Agora, teremos de procurar o caminho por dentro da casa. As luzes do quarto se apagaram e toda a casa ficou às escuras. Gato Gordo começou a movimentar-se, mas Dax o fez parar com um gesto. — Vamos dar-lhe mais dez minutos. Estará então tão ocupado que não ouvirá o barulho nem de mil cavalos. Dax foi o primeiro a escalar o muro de pedra. Um instante depois, Gato Gordo estava ao lado dele. Ajudaram Marcel a subir e ele conseguiu a muito custo chegar lá em cima. Um momento depois, deixaram-se cair em silêncio no terreno da casa. Dax e Gato Gordo começaram imediatamente a correr sem fazer barulho e Marcel acompanhou-os como pôde. Os dois dobraram o canto da casa e, antes que Marcel alcançasse, já estavam no teto da varanda. Subindo a balaustrada pedra e, depois, suspendendo-se com a barriga curvada na borda telhado, Marcel subiu também. Dax já havia passado do telhado varanda para a sacada.

os de do da

Gato Gordo virou-se e, sem o menor ruído, ajudou Marcel a subir. O francês sentia a sua respiração ofegante soar como uma trovoada aos seus ouvidos. Era um milagre que não o ouvissem da casa. — Espere aqui até nós lhe fazermos sinal, — disse Dax ao ouvido de Marcel. — Se aparecer alguém, avise-nos. Marcel sentiu a onda gelada do medo espalhar-se pela boca do estômago. Dax e Gato Gordo já estavam colados à parede, cada qual de um lado da porta da sacada. Marcel pensou por um momento que estivessem rezando. De repente, compreendeu o que faziam: estavam acostumando os olhos ao escuro que encontrariam no quarto de Ramírez. As mãos dos dois se moveram quase ao mesmo tempo e Marcel viu o brilho das facas. Fechou os olhos. Pensou que fosse vomitar e lutou para conter a náusea. Quando abriu os olhos, os dois haviam desaparecido, embora ele não tivesse ouvido o menor barulho. Escutou muito atento, com o coração a bater desordenadamente. Houve um débil gemido dentro do quarto, o estalar de uma cama e um baque como de alguma coisa jogada no chão. Depois, mais nada. Marcel sentia o suor brotar-lhe da testa. Teve vontade de fugir, mas o seu terror do que eles podiam fazer se ele fugisse era maior do que o seu medo do que poderia acontecer se ficasse.


A voz de Dax a chamá-lo do quarto foi um sussurro apenas. — Marcel! Parou cheio de horror à porta. Ramírez e a mulher, inteiramente nus, estavam estendidos no chão. — Estão mortos? — perguntou em voz baixa. — Não, — disse desdenhosamente Dax. — O traidor desmaiou. Tivemos de fazer a mulher desmaiar também para não gritar. Arranje-me alguma coisa para amarrá-los. — O quê? — Procure no armário, — disse Gato Gordo. — A mulher deve ter meias de seda. Marcel abriu febrilmente as gavetas. Quase no mesmo instante, encontrou o que procurava. Gato Gordo já estava metendo uma das meias de Ramírez na boca do traidor. — É bom ele provar o seu próprio fedor, — murmurou ele, rindo. Marcel entregou as meias sem falar. Com rapidez e perícia, Gato Gordo amarrou-os e amordaçou-os. Quando acabou, levantou-se. — Isso deverá aquietá-los por algum tempo. E agora, Dax? — Vamos esperar que o traidor volte a si. Depois, descobriremos onde está o dinheiro. Não deve estar longe. Quanto foi que meu pai disse que ele roubou, Marcel? — Seis milhões de francos nestes últimos dois anos. — A maior parte ainda deve estar aqui. Ele não teve tempo de gastar tudo isso. Ramírez foi o primeiro a voltar a si. Abriu os olhos e viu Dax curvado, sobre ele, com uma faca no seu pescoço. Os olhos se arregalaram de terror. Teve-se por um momento a impressão de que ia perder de novo os sentidos, mas se recobrou e olhou para Dax. — Está-me ouvindo, traidor? Ramírez fez um sinal afirmativo com a cabeça e um som abafado veio de trás da mordaça. — Então, escute. Estamos aqui para pegar o dinheiro que você roubou. Se nos der o dinheiro, nada acontecerá nem a você, nem à mulher. Do contrário, você morrerá e não vai ser depressa. Outro som abafado veio da mordaça. Dax levantou a faca para que Ramírez pudesse vê-la bem. — Vou tirar-lhe a mordaça. Basta um movimento seu para ser castrado e começar a morrer com o sangue que vai perder.


Marcel prendeu a respiração enquanto Dax tirava a mordaça. Felizmente Ramírez não era herói. — E agora, onde está o dinheiro? — perguntou Dax. — Não tenho mais nada! — murmurou Ramírez com voz rouca. — Perdi tudo no jogo! Dax riu e moveu prontamente a faca. Um traço de sangue apareceu na barriga de Ramírez. O homem fez uma cara de horror ao ver o seu sangue. Rolou os olhos e a cabeça caiu desamparada. — O covarde desmaiou de novo, — disse Gato Gordo a Dax.Poderemos ficar nisso a noite toda. Dax foi até ao lavatório e pegou um jarro. Voltou e despejou-o todo em cima de Ramírez. O homem imediatamente acordou, quase sufocado com a água. Ao mesmo tempo, a mulher começou a debater-se. — Segure-a! — ordenou Dax. — Assim ela vai acordar a casa toda! Gato Gordo curvou-se para a mulher e deu-lhe uma bofetada. Embora toda amarrada, ela tentou dar-lhe um pontapé. Gato Gordo riu. — Ela ao menos tem a coragem que falta a esse traidor! Sentou-se pesadamente em cima dos quadris da mulher e fechoua grande mão no pescoço dela, prendendo-a de fato ao chão. — Onde está o dinheiro? — tornou a perguntar Dax. Ramírez não respondeu. Estava olhando para Gato Gordo epara a mulher. Mas rodou a cabeça quando Dax bateu nela com o cabo da faca. — Já lhe disse que não tenho mais nada! Gato Gordo olhou para o traidor. — Ela parece boa, mas tem os peitos pequenos demais. Ramírez ficou calado. Gato Gordo olhou para Dax. — Estou que não posso mais. Há três dias que estou virgem de mulher. — Está bem, — disse Dax, sem tirar os olhos de cima de Ramírez. — Pode ficar com ela. Quando acabar, Marcel pode andar também, se quiser. O protesto que subiu à garganta de Marcel não chegou a ser articulado. Viu aquele olhar de fera da selva no rosto de Dax. A mulher começou a debater-se enquanto Gato Gordo lhe abria as pernas com um joelho. Desabotoou as calças.


— Fique quieta, menina, que você vai ficar até muito contente. Vai ficar sabendo o que é um homem de verdade em comparação com aquele que está ali. As palavras saíram precipitadamente da garganta de Ramírez. — Ali! No cofre da parede, atrás da cama! — Melhorou muito, — disse Dax, rindo. — Como é que se abre o cofre? — A chave está no bolso das minhas calças. Dax apanhou as calças jogadas em cima de uma cadeira e tirou uma argola de chaves. — São estas? — São. Atrás do quadro na parede. Dax atravessou o quarto. Tirou o quadro e colocou a chave no cofre de metal preto. — Não quer abrir! — disse ele, voltando-se iradamente para Ramírez. — Essa éa chave do carro. Deve haver disseRamírez,tirando osolhos de cima de Gato Gordo.

outra,—

Marcel não podia deixar de olhar. Até então, aviolênciacarnalforauma coisade que só tivera notícia pelos jornais. Sentiu-se ator-doado com uma estranha agitação. Aquilo não se parecia absolutamente com o que conhecia. Era uma coisa fria, selvagem e brutal. Gato Gordo já havia entrado na mulher. Marcel viu o corpo dela estremecer todo com o impacto. — Marcel! Ele desviou a vista dos dois e dirigiu-se para onde estava Dax. O cofre estava cheio de maços bem arrumados de notas. — Meu Deus! — exclamou ele. — Não fique aí de boca aberta, Marcel! Pegue uma fronha e me ajude a embrulhar esse dinheiro! Marcel não pôde deixar de olhar por cima do ombro enquanto segurava a fronha para Dax. Olhou para Ramírez. O traidor estava com os olhos fixos em Gato Gordo e na mulher. Foi só depois que ele passou a língua pelos lábios que Marcel percebeu o que ele estava pensando. O dinheiro tinha sido esquecido. O mundo todo estava alucinado. Nada fazia mais sentido. Dax, depois de um olhar breve para os dois que se agitavam no chão, não lhe deu maior atenção. Era como se o que estivesse acontecendo fosse uma ocorrência perfeitamente comum. Marcel viu-se dominado por uma excitação sexual toda particular. Sentia as pernas fracas e


trêmulas, mais do que da primeira vez em que estivera com uma mulher. — Bueno! — exclamou Dax, satisfeito. A fronha estava quase cheia. Amarrou o lado aberto com uma meia de seda. Depois, sentouse na cama e olhou para Gato Gordo. — Veja se não vai passar a noite toda aí. Ainda temos de sair daqui. Olhou para a outra chave na argola e já a ia jogar de lado quando perguntou de repente a Marcel: — Sabe dirigir? Marcel fez um sinal afirmativo. — Bueno! Não há nada como uma viagem de automóvel com a fresca da noite. — Quanto foi que conseguiram recuperar? — perguntou o barão. — Quase quatro milhões e meio de francos, — respondeu Marcel, voltando ao presente. — Fico satisfeito com isso. Aquele rapaz é ótimo. Já chegaram a uma decisão sobre a escola que ele vai frequentar? — Ouvi o cônsul falar numa escola pública. Mas isso foi antes de recobrar-se o dinheiro. — O dinheiro infelizmente não vai ajudar muito. Mal dá para cobrir os empréstimos feitos pelo cônsul para pagar as contas. Quero que você sugira a ida do rapaz para De Roqueville. Mas é a escola mais cara de Paris! — E é também a melhor. Meu filho está lá. Pagarei as despesas e tomarei todas as providências. Para não dar na vista, será oferecida uma bolsa ao rapaz. A nota de dez mil francos que levava no bolso tranquilizava muito Marcel à sua saída do escritório do barão. As suas finanças estavam em franca prosperidade. O dono do armazém não tinha sido o único que lhe pagara uma comissão pela cobrança das contas. Mas ainda tinha uma dúvida que o atormentava. Sabia tanto por que o Barão de Coyne estava interessado no cônsul e no filho quanto soubera na manhã em que recebera o primeiro telefonema.

4


A campainha tocou na mesa de seu pai. Dax saiu da janela e pegou o interfone. — Oui, Marcel? — Seu amigo Robert está aqui. — Merci. Peça-lhe que entre. Dax desligou o interfone e voltou-se para a porta. Robert apareceu e atravessou a sala com a mão estendida. — Vim logo que tive a notícia. Apertaram-se as mãos à maneira européia, como sempre faziam quando se viam ou se separavam, ainda que estivessem estado juntos naquela manhã treinando pólo no clube. — Muito obrigado. Como foi que soube? — Pelo gerente do bar no clube. Ele me falou do telefonema que você recebeu. Dax mordeu os lábios. Paris não era de certo modo diferente de qualquer cidadezinha do interior. Dentro em pouco, toda a cidade saberia e os repórteres começariam a aparecer. — Há alguma coisa que eu possa fazer? — Não há nada que ninguém possa fazer. Só nos resta é esperar. — Ele estava doente hoje de manhã quando você saiu de casa? — Não. Se estivesse, eu não teria ido treinar. — É claro. — Papai não é muito forte, como sabe. Desde que chegamos à Europa, ele é de vez em quando atacado de resfriados muito fortes. Era um em cima do outro. Parece que perdeu toda a resistência. Marcel o encontrou caído em cima da mesa. Levou-o lá para cima com a ajuda de Gato Gordo e chamou o médico. Este disse que era o coração e foi então que telefonaram para mim. — Isto aqui não é clima para seu pai, Dax. Ele devia ter ficado na Riviera. — Meu pai nunca deveria ter vindo para cá de modo algum. As preocupações e as tensões foram demais para ele. Além disso, nunca mais voltou a ser o que era depois que perdeu o braço. — Por que não voltou então? — O seu senso de responsabilidade é muito grande. Ficou porque a sua presença era necessária. Os primeiros créditos que ele conseguiu com o banco de seu pai salvaram o nosso país da bancarrota. — Poderia ter voltado depois disso.


— Você não conhece meu pai, Robert. Isso foi apenas o começo. Bateu em todas as portas na Europa à procura de ajuda para a nossa terra. As recusas e as humilhações transformaram-no num velho. Mas ele continuou a lutar. Dax pegou um cigarro e acendeu-o. — Os primeiros anos aqui foram terríveis para ele. O cônsul anterior deixou tudo em situação calamitosa e ele regularizou tudo. Pagou todas as contas do seu bolso, embora com isso tivesse ficado pobre. Até hoje, ele não sabe que eu sei que tudo foi vendido para pagar essas contas — a nossa casa em Curatu, as suas economias, tudo o que ele tinha. Só não tocou foi em nossa hacienda em Bandaya, naturalmente porque quer que um dia ela seja minha. — Nunca soube disso. — É verdade, — disse Dax, com um sorriso amargo. — Se não me tivesse aparecido por um verdadeiro milagre aquela bolsa na De Roque, eu teria estudado numa escola pública. Ainda assim, meu pai teve de privar-se de coisas necessárias para que eu me vestisse decentemente e houvesse gasolina no carro para Gato Gordo trazerme para casa nos fins-de-semana. Robert de Coyne olhou para Dax. Era estranho que ninguém na escola houvesse jamais suspeitado disso. Havia na escola jovens príncipes reduzidos à pobreza, mas todos sabiam quem eram. Estavam ali estudando porque davam prestígio social ao estabelecimento. Mas Dax era sul-americano e todos pensavam que os sul-americanos eram ricos. Possuíam minas de estanho, poços de petróleo e fazendas de gado. Não se via um só que fosse pobre. De repente, muitas coisas que haviam acontecido naqueles primeiros anos da escola se esclareceram. Por exemplo, o caso ocorrido no fim da sua primeira semana de aulas. Era uma tarde de quintafeira entre a última aula e o jantar. Hora de recreio. Nos fundos do ginásio, haviam formado uma roda em torno de um dos novos alunos. Os olhos negros do rapaz fitavam impassivelmente os outros. — Por que é que eu tenho de lutar com um de vocês? Sergei Nikovitch respondeu com uma expressão de paciente enfado: — É porque na semana que vem temos de tirar a sorte paraver em que quarto você ficará enquanto estiver na escola. Se não lutar, como é que vamos saber se queremos você ou não? — Não tenho também o direito de escolher?


— Só se você ganhar. seucompanheiro de quarto.

Nesse

caso,

poderá

escolher

o

O novato pensou um instante e disse: — Parece-me idiota, mas estou disposto a lutar. — Muito bem,— disse Sergei. — Seremos honestos. Pode escolher com quem quer lutar para que não tenha de enfrentar um maior do que você. Mas não poderá escolher um menor. — Escolho você. Sergei fez uma cara de espanto. — Mas eu sou bem mais alto do que você. Não seria justo. — É por isso mesmo que escolho você. Sergei encolheu os ombros com uma cara de quem lava as mãos do caso e começou a tirar o casaco. Nesse momento, Robertde Coyne se aproximou do novato. — Mude de ideia disse ele, ansiosamente. — Lute comigo, que sou do seu tamanho. Sergei é o maior e o melhor lutadorda turma. O novato sorriu. — Muito obrigado. Mas já demais.Para que piorar as coisas?

escolhi.

Tudo

isso

é

idiota

Robert olhou-o, admirado. Sempre pensara assim, mas era aprimeira vez que via alguém ter coragem de dizer aquilo em voz alta.Sentiu uma instintiva simpatia pelo novato. — Você pode ganhar ou perder, mas eu ficarei feliz se tivera sorte de escolher você como meu companheiro de quarto. O novato olhou-o com repentina timidez e disse: — Muito obrigado. — Pronto? — perguntou Sergei. O rapaz tirou o casaco e fez um sinal afirmativo. — Pode escolher ainda disse Sergei. — La boxe, la savateou o vale-tudo. — Vale-tudo disse o outro, apenas porque não sabia o queeram as outras duas modalidades de luta. — Bien. A luta estará acabada quando um de nós bater, desistindo. Na verdade, a luta acabou antes disso. E acabou também comaquele costume na Escola De Roqueville. Tudo aconteceu tão depressaque terminou enquanto os outros rapazes ainda estavam à esperade que acontecesse alguma coisa. Sergei havia estendido os braços na posição convencional doslutadores e começou a rodar em torno do novato, que estava


comos braços caídos dos lados. Então, Sergei tentou agarrá-lo, e osmovimentos do outro foram tão rápidos que se tornou quase impossível acompanhá-los com a vista. Com a mão espalmada, Dax deuuma cutilada no braço estendido de Sergei, e, quando esse braçopendeu, desamparado, para o lado, ele atacou de novo. Torceu ocorpo, e isso pareceu dar mais força à cutilada da mão com queatingiu as costelas de Sergei. Mal houve tempo de ver a expressãode surpresa no rosto de Sergei quando seu corpo se dobrou, e ooutro, dando a volta, foi atingir-lhe a base do crânio com os nósdos dedos da mão fechada. Sergei desabou no chão. O novato fitou-o um instante e voltou-se para os outros, que o olhavam, incrédulos. O novato não estava nem respirando com força. Viram-no voltar e apanhar o casaco, que dobrara cuidadosamente. Já se ia afastando, mas se virou para eles. — Escolho você como meu companheiro de quarto,— disseele a Robert. Olhou para Sergei, que ainda estava estendido nochão. — Vão buscar socorro para ele. Está com o braço quebradoe duas costelas também. Mas vai ficar bom. Não o matei. O porteiro do Royale Palace era uma figura imponente. Erabem alto, pois tinha quase dois metros, calçado com as botas. O grandechapéu de cossaco fazia-o ainda mais alto, e o uniforme rosa eazul, com as grandes dragonas e os cordões dourados passados pelopeito davam-lhe a aparência de algum general saído de uma opereta de Franz Lehar. Ele exercia suas funções à porta do hotel como um general.As estantes para a bagagem estavam dobradas e guardadas numcanto escondido, e ai do boy que se esquecesse de colocá-las daquela maneira exata. Sua voz estentórica de sotaque muito carregado podia chamar um táxi que estivesse até a três quarteirões dedistância. Dizia-se dele que tinha sido outrora coronel de um regimentode cossacos, mas isso nunca fora provado. Só se sabia ao certo queele tinha sido conde e parente afastado dos Romannoffs, e quenum dia de inverno, em 1920, havia aparecido assim daquele jeitoà porta do hotel. Desde então, estava ali. O conde Ivan Nikovitchnão era homem de fazer confidências ou de manter quaisquer conversas de natureza pessoal. A cicatriz de sabre no rosto, mal ocultapela barba preta espessa e sempre muito bem-tratada, era suficiente para desanimar quem o tentasse. Naquele momento, estava sentado numa cadeira muito pequena para ele e olhava o filho meio reclinado na cama. Não havianele nem cólera, nem compaixão pelo filho, mas apenas aborrecimento.


— Você foi um idiota,— disse ele. — Nunca se luta com umadversário que não conhece as regras. Pode-se morrer assim. Asregras são feitas para a nossa proteção e para a proteção do inimigo. Foi por isso que perdemos para os bolchevistas. Eles também não conheciam as regras. Sergei ficou embaraçado. Aquilo era pior que a dor que sentia.A facilidade e a rapidez com que fora derrotado, e por um garotobem menor do que ele. — Eu não sabia que ele não conhecia as regras. — Mais uma razão para você explicar as regras a ele,— replicou o pai. — Isso o atrapalharia tanto que você poderia vencê-lo com a maior facilidade. Sergei pensou um momento e sacudiu a cabeça. — Acho que não, papai. — É bem provável que ele tivesse desrespeitado as regras. Ouviu-se um rumor de vozes pela janela aberta. O conde Nikovitch levantou-se e foi olhar. — Gostaria de ver esse rapaz disse ele, cheio de curiosidade. — Estará entre esses ai? Sergei virou a cabeça e olhou pela janela. — É aquele bem moreno, que está ali sozinho. O conde viu Dax atravessar o campo para outro prédio daescola, sem ao menos olhar com curiosidade para os outros garotos.Quando ele desapareceu, o Conde Nikovitch voltou-se para o filho. — Acho que tem razão. Aquele não respeita as regras eobserva regras próprias. — É um rapaz que não tem medo de andarsozinho. No ano seguinte, Dax e Robert se mudaram para o andar imediatamente inferior, e passaram assim de ano em ano, de um andarpara outro, do último ao primeiro, até completarem seu tempo deestudos na De Roqueville. Eram já "antigos" em comparação comos garotos mais novos, que se alojavam em outro prédio. Era porisso que tinham a companhia de Sergei. Os mais antigos viviamnum quarto para três. Era um principio da escola, baseado na crença de que três éum número mais produtivo do que dois ou quatro. Quatro num quartosignificava em geral a formação de dois grupos de dois, e dois sónum quarto não era um arranjo economicamente interessante. Daxe Robert tinham começado a arrumar as suas coisas, quando bateram na porta. Robert foi abrir, e Sergei apareceu, de maleta namão.


Era difícil dizer quem ficou mais surpreso. Sergei conferiu opapel com o número do quarto que lhe deram na secretaria e olhoupara o número da porta. — Não há dúvida. É este mesmo o quarto. Colocou a maleta no centro do quarto. — Não fui eu que pedi isso, fiquem sabendo,— explicou eleaos outros dois, que o olhavam em silêncio. — Meu companheirode quarto saiu da escola, e o préfet me designou para este quarto. Os outros continuaram em silêncio. Desde a luta, Sergei e Daxtinham evitado ao máximo falar-se. De repente, Sergei sorriu, com quente vitalidade. — É uma felicidade para mim não ter de lutar por estequarto. Não sei se o meu esqueleto aguentaria. Robert e Dax se entreolharam, e o esboço de um sorriso apareceu nos lábios deles. — Como está você em literatura? — perguntou Robert. — Bem mal. — E em matemática, física e química? Uma expressão de tristeza se estampou no rosto de Sergei àmedida que ele sacudia a cabeça a cada pergunta. — Em que é que você é bom então? — perguntou Robert. — São essas matérias em que mais precisamos de quem nos ajude. — Não sei,— confessou Sergei. — Também sou fraco nelas. — História, geografia, francês? — perguntou Dax. — Não sou bom em nada disso. Dax olhou para Robert, com um sorriso secreto nos lábios. — Precisamos de um companheiro de quarto que nos ajude.Você parece não servir muito para isso. — De fato murmurou Sergei tristemente. — Não há nada que você possa nos ensinar? Sergei pensou um instante e então riu. — Sei dezessete maneiras de me masturbar! Os outros dois levantaram os braços e fizeram uma reverência: — Seja bem-vindo ao clube!

5


A limusine Citroën preta parou perto do campo de pólo eJaime Xenos saltou. Olhou para a confusão de cavalos e cavaleirosno campo e apertou os olhos. — Onde está Dax? — É um dos que estão com chapéu vermelho e branco,— disse Gato Gordo. — Olhe, ali está ele. Um cavalo se separou dos outros e veio correndo pelo ladodo campo. O esbelto rapaz que brandia o maço foi levando a bolapelo chão em pequenos golpes cuidadosos, não a deixando fugirao seu controle. Um adversário veio do outro lado do campo, e Dax virouprontamente o seu animal e atirou a bola através do campo numpasse para um companheiro. Este, por sua vez, passou a bola, adiantando-a, e Dax, que já se havia colocado para recebê-la, impulsionou-a entre os postes do gol sem que nenhum dos adversáriosse tivesse aproximado dele. Virou o cavalo e foi juntar-se à sua equipe no centro do campo. — Sr. Xenos? O cônsul voltou-se. quecheirava a cocheira.

A

voz

era

de

um

homem

mirrado,

— Oui? — Sou o treinador prazerconhecê-lo.

de

pólo,

Ferdinand

Arnouil.

É

um

— O prazer é meu. — Fico muito contente Jáobservou seu filho?

de

que

tenha

vindo,

Excelência.

— Um momento apenas. Devo confessar que não conheço o jogo. — É compreensível. Nestes últimos anos, o pólo tem perdidomuito da sua popularidade. E creio que o sucesso do automóvel foio que mais contribuiu para esse declínio. Xenos fez um gesto polido de assentimento. — Os moços não querem mais aprender a montar. Têm maisinteresse em aprender a dirigir. É por isso que, quando aparece umjovem como seu filho, é da maior importância desenvolver suasqualidades. — Ele é bom, então? — Bom? Dá a impressão de que voltamos aos velhostempos exclamou Arnouil. — Seu filho nasceu para este esporte.Parece que já nasceu com os pés nos estribos.


— Sua opinião me dá muita satisfação,— murmurou o paide Dax, olhando para o campo. O jogo havia recomeçado, e Dax iaà frente de todos, guiando o cavalo com os joelhos e procurandoreter a bola. — Já está vendo que não pode ficar com ela,— disse o treinador. — Veja como vai passá-la para o companheiro de equipedo outro lado. Dax se curvou na sela e bateu na bola por entre as patas doseu cavalo. O companheiro prontamente recolheu-a e avançou, aomesmo tempo que Dax conseguia desviar para o seu lado parteda equipe adversária. — Magnifico!— exclamou o treinador. — Quer saber porque lhe pedi que viesse até aqui? — Sim? — No ano que vem, seu filho poderádisputar o campeonato escolar.

terá

dezesseis

anos

e

— Bien. — Mas para poder inscrever-se, terá próprios. É uma exigência irredutível.

de

possuir

cavalos

— E se não possuir? Arnouil encolheu os ombros de maneira tipicamente francesa. — Não poderá jogar, por melhor que seja. — De quantos cavalos vai precisar? — Dois cavalos pelo menos, embora três ou sejampreferíveis. Um cavalo descansado para cada chukker.

quatro

— Quanto custa um cavalo? — perguntou Xenos, sem olharpara o treinador. — De trinta a quarenta mil francos. — Compreendo. O treinador olhou-o atentamente. — Poderá ter dificuldade em encontrar cavalos queprestem. Mas conheço uma pessoa que tem alguns animais de sobrae quer desfazer-se deles. Xenos sabia o que ele queria e forçou um sorriso. — Se acha que vale a pena, meu filho terá cavalos seus. — Fico satisfeito de que pense dessa maneira, Excelência. Garanto que não se arrependerá. Seu filho será um dos grandes jogadores desta época. Despediram-se, e o cônsul ficou olhando o homenzinho depernas arqueadas afastar-se. Sabia o que Gato Gordo estava


pensando. Voltou cansadamente para o carro e esperou até que Gato Gordosentar-se ao volante. — Que é que acha? — Isso é apenas um jogo,— disse Gato Gordo. — É mais do que isso. E um jogo reservado para quem têmdinheiro para gastar nele. — Isso nos deixa de fora. — Não podemos ficar de fora. — E não podemos entrar,— replicou Gato Gordo. — Hácoisas muito mais necessárias. — Dax podia tornar-se de certo modo um símbolo do nossopais. Os franceses podem ajudar-nos. — Mande pedir então ao presidente os cento e sessenta milfrancos para os cavalos. O cônsul sorriu. — Gato Gordo, você é um gênio! Gato Gordo ficou sem saber o que dizer. Olhou o cônsul peloespelhinho do carro. — Não vou pedir o dinheiro, mas os cavalos,— disse Xenos. — Aqueles cavalinhos nossos, fortes e ágeis como cabritos monteses, devem ser perfeitos para esse jogo. Tenho certeza de queo presidente terá prazer em mandar-nos alguns. O treinador encontrou Dax quando ele saia do vestiário depois do jogo. — Acabei de falar com seu pai. Ele me garantiu que vocêterá os seus cavalos no ano que vem. — Foi mesmo? O treinador fez um sinal afirmativo: — Ele ainda está aqui? — Lá no fundo, perto do portão. Mas Dax já vira o carro e saiu correndo para lá. O pai saiudo carro e abraçou-o. — Por que não me disse que vinha, Papá? O pai sorriu. Dax estava crescendo. Já lhe batia no ombro.Mais um ano e poderia olhar de cima para ele. — Porque não sabia que poderia vir. — Fico muito contente de vê-lo aqui. Era a primeira vez que o pai aparecia na escola. — Há um lugar onde possamos tomar chá? — Na aldeia há uma pâtisserie.


Entraram no carro. — O treinador me disse que o senhor lhe garantiu que tereimeus cavalos no ano que vem. — Disse, sim. — E onde é que vamos conseguir o dinheiro? Não podemosfazer isso, Papá. O cônsul sorriu. — O presidente montanhas.

nos

mandará

quatro

bons

cavalos

das

Dax olhou-o em silêncio. — Por quê? Há algum mal nisso? O rosto do pai ficara tão preocupado que Dax não teve coragem de dizer-lhe que bons cavalos de pólo precisavam de anosde treinamento. Apertou a mão do pai, sorriu e disse: — Mal nenhum. É magnifico! — Não seja bobo, disse Sergei. — Vá passar o verão conosco em Cannes. O pai de Robert tem lá uma vila e um barco. — Não. Tenho de trabalhar com os cavalos para que estejam em forma no outono. — Está perdendo o seu tempo,— disse Sergei positivamente. — Você nunca transformará aqueles pangarés das montanhas emcavalos de pólo. — O treinador acha que tenho uma chance. — Não sei por que seu pai não compra cavalos já treinados.Todo mundo sabe que vocês, sul-americanos, nadam em dinheiro. Dax sorriu. Sergei nem desconfiava da verdade. — Seria bom para o meu pais se os cavalos prestassem. Meupai diz que isso poderia convencer os europeus de que podemosfazer outras coisas além de plantar café e bananas. — Bem,— disse Sergei, levantando-se. — Vou até a aldeia.Há uma garçonete nova na pâtisserie. Quer vir também? Dax sacudiu a cabeça. Havia outras coisas que ele poderiafazer com cinco francos. — Não. Tenho de estudar um pouco para os exames. Sentou-se à sua mesa depois que Sergei saiu. Havia trêsanos que estava na França. Sentiu-se inquieto, levantou-se e foiaté a janela. Olhou para os gramados e os jardins bem-tratados. Uma onda de saudade encheu-lhe o peito. Desejou estar nassuas montanhas selvagens e incultas. Tudo na Europa era limpo ebem-


arrumado. Não havia emoção em descobrir um novo caminho,uma maneira nova de descer as montanhas. Havia sempre as mesmas estradas. Toda a civilização parecia ser assim. Até seu pai, que eranaturalmente disposto a observar as regras e as respeitava, nuncapensara que tudo pudesse ser tão fechado e estreito. A cada novarecusa, a cada decepção, ele parecia encolher-se mais para dentrode si mesmo. A traição de Ramirez tinha sido apenas o começo. Tinha havido outros incidentes, muito mais sutis e aniquilantes. As promessas feitas ao Corteguay de apoiá-lo na sua luta para libertar-se do domínio econômico dos ingleses e dos americanos não sehaviam concretizado. Cada dia surgiam rugas novas no rosto deseu pai. Havia uma incerteza, uma hesitação que marcava sem dúvida o inicio da velhice. Aqueles três anos de insucesso haviam exigido dele um pesado tributo. Dax sentia tudo isso, e havia momentos em que queria dizerao pai que aquela vida não era para eles e que deviam voltar imediatamente para os seus campos e as suas montanhas, para ummundo que compreendiam. Mas esses impulsos ficavam sufocadosdentro dele. Sabia que o pai não escutaria, nem poderia escutar. Ainda era dominado pela determinação de cumprir a sua missão e aesperança de consegui-lo. Nisso bateram à porta do quarto. — Entre. A porta se abriu, e o barão de Coyne entrou. Era a primeiravez que se encontravam. — Sou o pai de Robert. Deve ser Dax. — Sim, senhor. — Onde está Robert? — Não deve demorar, senhor. — Posso sentar-me? Sem esperar uma resposta, o barão deixou-se cair numa cadeira. Correu os olhos em torno do quarto e disse: — As coisas não mudaram muito desde o tempo em quepassei por aqui. — Acho que não. O barão olhou-o de súbito. — Já pensou que as coisas raramente mudam, por mais quea gente queira?


— Não sei, Sr. Barão. — Dax não tinha muita certeza do que obarão estava querendo dizer. — Depende da coisa que queremosque mude. — Escute. Robert me disseque você talvez não possa passaro verão conosco. — Infelizmente, sidoconvidado.

não.

Mas

sou-lhe

muito

grato

por

ter

— Por que não vai? — Estou treinando alguns cavalos do Corteguay para jogarem pólo, — disse Dax, sentindo quanto a desculpa era esfarrapada. — Uma coisa muito louvável. Tenho muito interesse pelosresultados que conseguir. Se tiver êxito, isso poderá ser de muitovalor para o seu pais. Mostrará à França que o Corteguay podefazer outras coisas além de plantar café e bananas. Dax olhou para ele. Eram quase as mesmas palavras que seu pai havia dito. Sentiu-se mais animado. Se um homem como o pai de Robert pensava assim, as coisas talvez não fossem tão ruins quanto pareciam. Talvez ainda houvesse esperança para a missão de seu pai.

6

Sylvie começou a tirar os pratos, e Dax levantou-se da mesa.Um momento depois, saiu. Arnouil e Gato Gordo se recostaramnas cadeiras. Gato Gordo preparou um cigarro. Arnouil ficou em silêncio algum tempo e depois colocou umaponta de charuto na boca. Esperou que Gato Gordo acabasse deenrolar o cigarro e o acendesse. — O rapaz vive muito sozinho. Nunca ri. Gato Gordo soprou uma baforada de fumaça e não respondeu. — Ele não devia ter ficado aqui trabalhando durante o verão, — disse o treinador. — Devia ter ido com os amigos. — Os cavalos não estão dando certo? — Mais do que isso. Parecem feitos para o jogo de pólo.Será uma verdadeira revolução. Mas o pai dele não pode deixar dever que um rapaz precisa divertir-se.


Gato Gordo tirou o cigarro da boca e pensou que para umfumo francês até que aquele não era muito ruim. Só um pouquinhoadocicado, talvez. — Dax não é como os outros rapazes,— disse ele ao treinador. — Algum dia, ele será uma pessoa importante em nossa terra.Talvez chegue até a ser presidente. — Bem, Napoleão também foi garoto. Mas não creio que eletivesse deixado o seu destino privá-lo da sua mocidade. — Napoleão foi soldado porque quis. Ninguém o forçou aser um guerreiro desde os seis anos de idade. — Foi o que aconteceu com Dax? — Sim. Dax não tinha ainda sete anos quando o próprio Presidente segurou a metralhadora enquanto Dax puxava o gatilho parafuzilar os assassinos da mãe e da irmã. O treinador ficou um momento em silêncio e disse: — Não admira então que ele não seja capaz de sorrir. A noite estava calma e o ar fresco com as primeiras brisas do oeste quando Dax chegou à cocheira. Os cavalos relincharamao vê-lo chegar, e ele tirou o açúcar que sempre levavano bolso e deu um pedaço a cada um. Depois, afagou-os gentilmente. Os animais tornaram a relinchar. — Vocês devem estar saudosos como eu, murmurou — Dax.Sabia que eles não gostavam da cocheira. Preferiam a liberdade dopasto. — Dax? — Era Sylvie que falava da porta. — Estou aqui com os cavalos. — Que é que está fazendo? — perguntou ela, encaminhando-se para ele. — Achei que devia fazer-lhes um pouco de companhia. Devemestar com saudade da nossa terra e sentir-se muito sozinhos. — Você também sente saudades, Dax? Era a primeira vez que lhe faziam essa pergunta. — Às vezes. — Deixou alguém por lá? Dax pensou um momento em Amparo, a quem há trêsanos não via. Como estaria ela? Mas ele sacudiu a cabeça. — A bem dizer, não. Eu tinha nove anos quando uma garotinha disse que ia casar-se comigo. Mas já deve estar crescida enem se lembra mais disso.


— Tenho um namorado,— disse ela. — Está na marinha. Jáhá seis meses que não o vejo, e ele só deverá aparecer daqui a maisseis meses. Era a primeira vez que Dax pensava em Sylvie como umamoça. Até então, ela fora para ele apenas uma pessoa que andavapelas cocheiras, montava nos cavalos e participava das brincadeirassem qualquer reserva. Tirando os cabelos compridos, não pareciahaver nela nada de feminino, nem mesmo saliências arredondadasvisíveis sob a camisa de homem com mangas arregaçadas que elausava com calças de brim justas. De repente, ele percebeu a suavidade feminina de Sylvie. — Desculpe, — disse ele, sem saber ao certo por que lhepedia desculpas. Mas achava que naquele momento ela parecia tãosozinha quanto os cavalos ou quanto ele mesmo. Os cavalos relincharam de novo. Dax tirou alguns torrões deaçúcar e entregou-os a ela. — Querem comer açúcar dasua mão, Sylvie. Ela se aproximou das baias e os cavalos chegaram o focinho, ansiosos pelo açúcar. Ela riu quando um deles a empurroue ela perdeu o equilíbrio, tropeçando para trás e indo bater em Dax. Este fechou involuntariamente os braços em torno do corpo dela. Ela voltou o rosto para ele, e os dois ficaram a se olhar porum momento. Depois, Dax a largou, sentindo uma contrição quasedolorosa na boca do estômago. — Acho que eles já comeram demais. — Já — disse ela. Parecia estar esperando. Dax sentiu o aperto no corpo, o latejar nas têmporas. Virou-se e começou a sair, passando por entre as baias. — Dax! Ele se voltou e olhou-a. — Também me sinto sozinha. Ele não se moveu. Ela foi até onde Dax estava e pousou amão nele. Com um gemido quase frenético, ele a abraçou, e todasas tensões da mocidade e da solidão explodiram dentro dele. Mais tarde, estava deitado em silêncio no seu quarto ouvindoa respiração de Gato Gordo na outra cama. A tensão dentro deletinha sido aplacada. De repente, ouviu no escuro a voz de GatoGordo. — Andou com ela? Ele ficou tão surpreso que nem tentou negar. — Como é que sabe?


— Nós dois só faltamos ver. — Nós dois? Você e o pai dela? — Claro — disse Gato Gordo, rindo. — Você pensa que eleé cego? — Ficou zangado? — Não tinha motivo nenhum para isso. O noivo dela estáausente há quase um ano. E nesta época do ano toda a potrancaprecisa ser bem servida. Além disso, ela tem idade bastante... — Como assim? Ela deve ser da minha idade. — Tem vinte e dois anos. Foi o pai mesmo que me disse. Vinte e dois anos, pensou Dax. Quase sete anos mais velha.Não era de admirar que houvesse tomado a iniciativa. Devia tê-lojulgado um idiota por haver esperado tanto. Sentiu-se de novoexcitado ao lembrar-se do que havia acontecido entre eles. Derepente, levantouse da cama. — Aonde é que vai? Dax chegou à porta e riu. Aquilo era uma nova evasão, umanova espécie de liberdade. Deveria ter descoberto isso há maistempo. — Não foi você mesmo que me disse que uma vez só nãochegava?

7

Robert entrou na sala a tempo de ouvir o pai dizer: — Para que é que você quer uma piscina? Não tem o Mediterrâneo todo à sua disposição? Sua irmã Caroline fez uma cara de amuo. E quando o belorostinho dela ficava assim, não havia quem lhe resistisse, inclusiveo barão. — Mas é tão gauche,— disse ela, com o lábio inferior tremendo. — Todo mundo vai à praia. — Que diferença faz? — Papá!— exclamou Caroline, quase em prantos. O barão olhou para ela e, depois para o filho. Robert sorriu.Tinha experiência demais para tomar partido. A irmãzinha tinhauma maneira de agir toda pessoal. — Está bem, está bem,— disse por fim o pai. — Você teráa sua piscina.


O rosto de Caroline floriu num sorriso. Ela beijou o pai esaiu correndo alegremente da sala, quase jogando ao chão o mordomo que ia entrando. — Monsieur Christopoulos deseja vê-lo, senhor. — Desculpe-me, papai. Não sabia que estava ocupado. O barão sorriu. — Não, Robert. Não saia, que isso não demora. Robert sentou-se numa cadeira da biblioteca do outro ladoda mesa do pai. Viu o visitante entrar e sentar-se. O nome dohomem não lhe parecia de todo desconhecido, mas não seinteressou muito por ele. Apanhou uma revista e começou a folheá-la distraidamente, quando alguma coisa que o pai disse lhe chamoua atenção. — Já pensou no Corteguay? Robert levantou a cabeça. — Registrar os seus navios ali seria mais valioso do que registrá-los no Panamá. — Não compreendo como,— replicou o visitante com umforte sotaque grego. Robert consultou a memória, e o nome lhe surgiu perfeitamente identificado. Christopoulos. Era o jogador que, em Zographose André, dirigia o sindicato que controlava o vatout em todos oscassinos de Monte Carlo e Biarritz. Que teria um jogador a vercom navios? — Em caso de guerra,— disse o pai dele, — o Panamá teriade declarar-se ao lado dos Estados Unidos. O Corteguay não temlaços dessa espécie. Nem com a Inglaterra, nem com os EstadosUnidos, nem com ninguém. É o único pais sul-americano que podemanter a sua neutralidade, porque não corre o perigo de perder aajuda externa ou o apoio financeiro, porque são coisas que já lheforam negadas. — Mas em caso de guerra, os Estados Unidos procurariamnaturalmente aproximar-se do Corteguay. Como se pode ter certezade que lá resistiriam a isso? O barão sorriu. — Uma frota mercante claramente neutra com base nas Américas, com o direito de transitar em todos os mares livres de ataquesde qualquer dos lados, valeria a sua tonelagem em ouro. Deve-setratar desde já de assegurar essa neutralidade. — Isso poderia custar muito caro,— disse o grego pensativamente, olhando as unhas manicuradas. — Não é fácil sustentarum pais.


— É verdade. Mas é isso exatamente o que deve ser feito, — disse o barão, levantando-se e dando a entender que a conversahavia terminado. — Minha participação no projeto depende disso. Christopoulos levantou-se também. — Darei essa informação aos meus companheiros. Muito lheagradeço ter-me dado esses momentos do seu precioso tempo. — Não tem o que agradecer,— disse o barão, sorrindo. — Foi um prazer sentar-me a uma mesa em sua companhia sem umbaralho entre nós. — Sempre tive a impressão umacriança inocente em suas mãos.

de

que

sem

O barão riu. Christopoulos, considerado domundo, não era muito dado a elogios.

o

as

cartas

maior

sou

tailleur

— Pois hoje à noite estarei no cassino para dar-lhe uma oportunidade de recuperar a confiança. — A bientôt. — Christopoulos apertou a mão do barão esaiu. Quando a porta se fechou, o barão olhou para o filho, eRobert se levantou. — Acha mesmo que vai haver guerra, Papai? — Infelizmente, acho, mas não já. Daqui a cinco ou seis anos,talvez. Mas é infalível. A Alemanha está ansiosa por uma revanche,e Hitler só se manterá no poder se der essa oportunidade ao povo. — Mas deve haver um meio de impedi-la. Se o senhor podever isso com tanta antecedência... — Mas nem todo mundo concorda comigo. Por que acha queo matriculei em Harvard e sua irmã em Vassar? Robert não respondeu. — Como está o seu amigo que joga pólo? — Dax? — Sim. De acordo com os jornais, a maneira de jogar delefoi a sensação esportiva do ano na Europa. — Dax está muito bem. Sabia que ele foi convidado paraintegrar a equipe nacional da França nos encontros internacionais? — Mas como reserva. É ainda um pouco moço. — Tem dezessete anos. Estão usando a idade dele como pretexto. Têm é medo dele. — Talvez, Robert. Não foi sem razão que lhe deram o apelido de Le Sauvage. Costa ainda está no hospital, pois seu amigo o fez cair deliberadamente do cavalo para impedi-lo de fazerum gol.


— Dax joga para vencer. Diz ele que não há outra razão parao jogo. — Sempre ouvi espiritoesportivo.

dizer

que

havia

uma

coisa

chamada

— Para Dax, não. O campo de pólo é para ele como a selvade sua terra natal. Diz ele que perder ali é morrer. Sabia que opai dele é o cônsul do Corteguay? — Ouvi dizer. Que tal é ele? — É muito diferente de Dax. Delicado e muito mais moreno. Só tem um braço. Dax diz que ele o perdeu na explosão deuma bomba durante um atentado contra o presidente. — Algum dia teremos de convidar os dois,— disse o barãodisplicentemente. — Gostaria de conhecer mais a terra deles. A própria Madame Blanchette abriu a porta. — Monsieur Christopoulos está à sua espera. Marcel entrou. Aquilo confirmava as suas suspeitas de que osindicato não se limitava a controlar casas de jogo na França. Acompanhou-a até um pequeno salão. O grego levantou-se. — Obrigado por ter vindo, Monsieur Campion. Tenha a bondade desentar-se. — Não estendeu a mão, nem Marcel deu qualquer demonstraçãode haver notado isso. Sabia o seu lugar. Sentou-se numa poltronae ficou esperando, curioso por saber por que o jogador mandarachamá-lo. Não teve de esperar muito. — Soubemos que o jogo na Flórida vai ser proibido. Temosinteresses também em Cuba e no Panamá, mas estamos pensandono Corteguay. Desde que as condições sejam interessantes, é claro. Marcel fez um sinal de assentimento, mas nada disse. Na aparência, era coisa legitima, mas na realidade não tinha muito sentido.O Corteguay estava muito longe dos Estados Unidos para atrair osturistas. Cuba, a apenas cento e quarenta quilômetros da costa daFlórida, era realmente o que lhes interessava. Mas, se era nissoque Christopoulos queria que ele acreditasse, não custava nadafazer-lhe a vontade. Como que continuou:

sentindo

a

franqueza

do

que

dizia,

o

outro

— Nós sabemos sem dúvida que o Corteguay e os EstadosUnidos não mantêm no momento relações muito amistosas. Masestamos pensando no futuro. O tempo costuma alterar as circunstâncias. Daqui a dez anos, tudo poderá ser diferente.


— De fato,— murmurou Marcel. — Temos de olhar muito para a frente no nosso ramo denegócio. Julga que talvez o governo do Corteguay possa ter receptividade? — É difícil,— murmurou Marcel. — O país é pobre. Não acha que aproveitariam as oportunidades de renda que nós poderíamos proporcionar? — Bem,— disse Marcel com um sorriso,—, a questão todase resume no seguinte: o Corteguay precisa de assistência agora enão de promessas para o futuro. — Talvez certas pessoas de posição pudessem exercer influência — sugeriu o jogador. — Conversei sobre o assunto certa vezcom o ex-cônsul Ramirez. Ele me pareceu muito interessado. Marcel sabia muito bem que Ramirez aceitara cem mil francosdo sindicato exatamente a esse titulo. Convenceu-se então de queera naquilo mesmo que Christopoulos estava interessado. Não haviaoutro motivo para aquele encontro. — O Sr. Xenos é uma pessoa muito diferente do cônsulanterior. — Mas deveria receber bem alguma assistência financeira.Consta que ainda está pagando dividas bem avultadas. — É verdade,— disse Marcel. — Mas o Sr. Xenos é umhomem excepcional, pois é honesto e idealista. A simples ideia detirar algum proveito pessoal do fato de representar seu país é paraele uma coisa repugnante. Além disso, seria francamente contrárioa qualquer projeto que pudesse tirar um centavo que fosse dareceita dos seus pobres concidadãos. — Poderíamos proibir a entrada de naturais do país, como temos feito em alguns lugares. — Nesse caso, os benefícios do seu projeto seriam extremamente duvidosos. O cônsul deve saber muito bem que não haveráoutra fonte de dinheiro para as mesas de jogo. O jogador ficou um momento em silêncio e então perguntou: — Que espécie de proposta acha que poderia interessar aocônsul? As respostas vieram prontamente: — Indústria, comércio, investimentos, qualquer coisa que ajude o Corteguay a exportar os seus produtos. A economia do paísé baseada na agricultura. — Acha que uma linha de navegação seria interessante paraeles?


— Sem dúvida. Creio que o transporte barato para os seusprodutos de exportação teria para o país extraordinário interesse. — Tenho um sobrinho em Macau,— prosseguiu o jogador. — Administra os cassinos ali. Mas tem também uma empresa denavegação, quatro cargueiros de origem japonesa. Não trabalhamtanto quanto seria de desejar, e sei que ele anda à procura denovos mercados. Talvez eu possa fazê-lo interessar-se pela ideia. — É possível que esteja ai uma solução. Quase com certeza,com isso poriam o pé na porta. O cônsul poderia estudar então aoutra proposta, uma vez que isso fosse conseguido. — Compreende naturalmente, Monsieur Campion, que, se esta nossaconversa der algum resultado, sua colaboração não será esquecida? — Muito obrigado. É extrema generosidade da sua parte. — Diz que Christopoulos está querendo estabelecer uma linha de navegação em troca de privilégios de jogo? — perguntou o barão. — Marcel fez um sinal afirmativo. — E já tocou nessa ideia ao cônsul? — Não, Excelência. Achei que primeiro devia vir dizer-lhe. — Bien, fez exatamente o que devia. Acho que já está na hora de eu conhecer o cônsul. — Oui, monsieur. Quer que fale com ele para marcar uma hora? — Não. Ele já tem hora marcada com um dos meus bancos. Creio que é melhor que nos conheçamos nessas circunstâncias. — Como quiser, Excelência.

8

— Caroline é uma cadela! — disse Sylvie, rolando na cama o esbelto corpo de garota, tremendo de raiva. Tirou um cigarro do maço na mesinha de cabeceira e acendeu-o. — Parece que está com ciúmes, — disse Dax, levantando a cabeça do travesseiro. — Não estou com ciúmes coisa nenhuma. Apenas não gosto daquela cadela, só isso. — Por quê?


— Porque ela pensa que com o dinheiro do pai pode comprar tudo. Vi bem como ela olhou para você, depois do jogo na semana passada. Parecia um gato diante de um pote de creme. — Você está com ciúmes, — disse Dax. — Por quê? Eu não tenho ciúmes de Henri. — Ele não está presente bastante para você ter ciúmes dele. — Nem mesmo quando ele está. Lembre-se de que eu estava no quarto ao lado e ouvi tudo o que aconteceu e, apesar disso, não tive ciúmes! — Não e você é um monstro! — Ela se lembrava bem daquela noite. Fizera de propósito todo o barulho que era possível sem acordar a casa toda. E Dax não tinha dado o menor sinal de interesse nem de uma maneira, nem de outra. — Não me liga absolutamente! Para você, eu podia ser uma pedra. E agora vai passar uma semana toda de férias na vila dessa gente em Cannes. Sei muito bem o que é que vai acontecer! — Se sabe, me diga, porque eu não sei. — Ela vai fazer você perder a cabeça. Conheço bem o tipo. — E não conta com a minha pessoa para nada? Afinal de contas, eu só corresponderei se quiser. Sylvie olhou para ele. — Você nada poderá fazer. Desde já. Olhe para você. Basta falar nela e já está excitado. Você é um animal! Dax riu. — Não é nada disso. Que é que você pode esperar ficando assim nua diante de mim e com esse cheiro gostoso de pecado? Ela olhou um instante para ele, apagou o cigarro no cinzeiro e ajoelhou-se na cama. Tocou-o ternamente. — Quelle armure magnifique,— murmurou. — Tão pronta, tão forte. Jáé tão grande que não me cabe nas mãos. Desceu a cabeça para ele e Dax sentiu na carne o seu calor. Puxou a cabeça dela contra ele. Dax sentiu a latejante agulhada da dor correr-lhe pelas virilhas. Deitou-se iradamente de bruços para que a sua angústia não se tornasse visível a todos. Sylvie tinha razão. Que cadela! Provocava, provocava e depois fugia. Murmurou uma porção de nomes em inglês. Preferia dizer nomes feios em inglês. Havia um tom rude e direto nas obscenidades anglo-saxônias. Exprimiam exatamente o que queria dizer. O francês era muito evasivo. O espanhol tinha palavras muito compridas.


Perdia-se o fôlego antes de se dizer o que se queria. O inglês, sim, é que era uma língua econômica. Dizia-se muito com poucas palavras. Ouviu o riso de Caroline e voltou-se para olhá-la. Ela estava de pé à beira da piscina falando com Sergei e com o irmão dela, Robert. A seda úmida do seu pequeno maiô de uma só peça se colava aos seios pequenos e à barriguinha levemente arredondada com uma espécie de despreocupação. Ela tomou a rir e Dax viu que o estava olhando pelo canto dos olhos. Deu-lhe as costas. Que fosse para o inferno! Ela sabia exatamente o que estava fazendo com ele. Olhou através do gramado para o lugar onde o pai dele e o barão estavam sentados à sombra de uma glicínia com seu primo inglês. Era estranho notar como os dois eram diferentes. Era difícil acreditar que tivessem um antepassado comum, o apavorado negociante polonês que havia fugido do pogrom no gueto de Varsóvia. Viajara à noite através da Europa coberta de neve, levando cosida na roupa uma fortuna em brilhantes. E a previsão do homem fora fantástica. Havia mais de cem anos mandara o filho mais velho para a Inglaterra, enquanto ele e o mais moço ficaram na França, onde se haviam estabelecido como agiotas e donos de casas de penhores. Tinham tratado calmamente dos seus negócios apesar das guerras que ensanguentaram a Europa e tinham prosperado até que os bancos De Coyne na França e o Banco Coyne em Londres se tomaram dos mais sólidos da Europa, chegando a rivalizar com os dos Rotschilds. Os dois ramos da família tinham recebido honrarias nos países adotivos. O avô do barão recebera o título de nobreza de Napoleão, e Sir Robert Coyne, de quem o amigo de Dax tinha o nome, fora feito cavaleiro pelo Rei da Inglaterra por serviços prestados durante a Grande Guerra. O barão havia acabado de falar e Sir Robert estava respondendo. Era alto e louro e os seus olhos azuis se mostravam muito frios enquanto ele falava com o seu primo baixo, moreno e de olhos castanhos. Só o pai dele parecia calado e pensativo. Que conversa seria aquela? Tudo parecia convergir para aquele encontro. As pressões urgentes do Corteguay haviam chegado ao máximo. Se não fosse possível obter financiamento rapidamente, seria extremamente duvidoso que o Presidente conseguisse manter-se no poder em face da fome do povo. A água fria caiu em cima de Dax com um choque. Sentou-se no mesmo instante. Caroline estava de pé, olhando para ele e rindo. Ele


fez menção de pegá-la e ela correu, mergulhando na piscina. Esquecendo-se de que a água era fria demais para o seu gosto, ele mergulhou atrás dela. Ela deu um grito fingido de medo, ao mesmo tempo que se afastava dele em rápidas braçadas. Saiu da piscina pelo outro lado antes que ele pudesse alcançá-la. Dax sabia que não a alcançaria. Ela nadava muito melhor do que ele. Ficou da piscina olhando furiosamente para ela. — Covarde! — exclamou ele. — Teve medo de deixar que eu a pegasse! Sabia o que iria acontecer! — Que é que iria acontecer? — perguntou ela, erguendo a cabeça num desafio. — Você sabe, — disse ele sem poder tirar os olhos dos seios que o maiô revelava perfeitamente. — Nada iria acontecer, — disse ela, sorrindo, muito segura de si. — Tem certeza? Ela fez um sinal afirmativo. — Tem coragem de encontrar-se comigo esta noite no vestiário da piscina depois que todos forem dormir e ver se acontece alguma coisa ou não? Ela o olhou por um momento e disse: — Está bem. Esta noite, no vestiário da piscina. Depois de dizer isso, afastou-se. Ele ainda estava dentro da água olhando para ela quando Sergei chegou nadando ao lado dele. — É a sua vez, amigo. — A minha vez? Que quer dizer com isso? Sergei riu. — Acabará em jejum e terá de contentar-se com isso, como todos nós. Dax não respondeu. Ainda a acompanhava com os olhos quando ela entrou no vestiário da piscina. Mais tarde naquela noite, ambos ouviram o ruído. Eram passos no passeio de cimento em tomo da piscina. A voz de Caroline se elevou um pouco na escuridão. — Quem pode ser? Ele tapou-lhe com força a boca. — Silêncio!


Os passos se aproximaram e depois hesitaram. Os dois ficaram de respiração presa. Por fim, os passos se afastaram e desapareceram dentro da noite. — Quase, — murmurou ele com um suspiro que por pouco se transformou num grito porque ela cravara os dentes na mão dele. — Por que fez isso? Você me machucou a boca e eu resolvi machucá-lo também. — Cadelinha! — exclamou Dax, estendendo as mãos para ela. Mas Caroline já se havia levantado e, à luz fraca que vinha dajanela, ele a viu compor o vestido. — Acho bom sairmos daqui. — Um barulhinho e você fica apavorada! — E você não está? — Não. E, além disso, ainda não acabei. Ela se aproximou e ele sentiu-lhe a mão nas calças. Ela desabotoou-o rapidamente e ele sentiu a quente umidade da sua mão. Caroline! — Um estranho sorriso chegou aos lábios dela. — Não está com medo, está? — De que iria ter medo? Dessa vez, ele não pôde deixar de gritar de dor. As unhas compridas de Caroline se enterraram na sua carne e, no mesmo instante, ela correu para a porta e abriu-a. — Sinto muito, Dax. Ele não respondeu. Sentiu de novo um riso secreto na voz dela. — Você não podia pensar que eu fosse tão fácil quanto a filha de um cavalariço, não é mesmo? Saiu então e ele ficou sozinho. Sentiu um ímpeto de raiva crescer por dentro dele enquanto se encaminhava para a pia e abria a torneira. Sergei morreria de rir se chegasse a saber do que havia acontecido. Mais zangado do que nunca, enxugou-se e saiu. Olhou um momento para a vila às escuras e tomou o caminho da estrada. Cannes estava apenas a um quilômetro de distância. Encontraria mulheres por lá. Isso nunca faltava. Ela que fosse para o inferno. Tentasse as suas artes de provocação com Sergei e até com o irmão, se quisesse. Os dois deviam ser civilizados bastante para servir a esses pequenos divertimentos dela.


Um vulto emergiu de repente da escuridão e começou a andar ao lado dele. Não precisou de olhar para saber quem era. — Aonde é que vai? — Foi você que andou, por perto do vestiário? — perguntou, irritado. — Será que você não me conhece? — perguntou Gato Gordo, rindo, — Se fosse eu, você não me ouviria. — Quem foi então? — Seu pai. — Meu pai? — exclamou Dax, com a sua raiva apavorada. — Ele sabia que eu estava lá dentro? — Sabia. É por isso que estou aqui. Ele quer falar imediatamente com você. Dax seguiu em silêncio Gato Gordo até a casa. O pai dele levantou a vista ao vê-lo entrar. — Que estava fazendo com aquela moça lá dentro? Dax olhou para o pai. Poucas vezes tinha-o visto tão zangado. Não respondeu. — Você está louco? Não pensou no que aconteceria se o surpreendessem lá com ela? Acha que o barão ainda iria conceder um empréstimo ao pai do homem que lhe desonrou a filha? Dax continuou calado. — Tudo estaria perdido. As negociações dariam em nada. Tudo aquilo por que lutamos e sofremos estaria arruinado. E tudo por culpa da sua insensatez! Dax olhou para o pai e pela primeira vez notou o tremor das mãos, os sinais de velhice e de exaustão no rosto. — Desculpe, Papá, — disse ele, aproximando-se. — Mas não tem motivo nenhum para preocupar-se. Não toquei nela. O pai acalmou-se. O que havia de certo na sua vida era a sinceridade existente entre eles. Sabia que o filho não lhe iria mentir. Tem toda a razão, Papá. Fui um insensato. Mas isso não tornará a acontecer. O pai abraçou-o e murmurou: Dax, Dax! Em quantos mundos você tem de aprender a viver por minha causa? Dax sentiu a angústia e a fragilidade do pai. De repente, viu-se tomado de uma tristeza e teve uma compreensão que ainda não conhecera. Beijou ternamente o rosto do pai e disse:


Só quero viver no seu mundo, meu pai. Sou seu filho. Era a primeira vez em que Dax compreendia que o pai estavamorrendo.

9

Não havia dor, embora Jaime Xenos soubesse que estava morrendo. Olhou para o padre. Havia tanto que ele queria explicar. Mas as palavras lhe passavam pelo cérebro e não encontravam meio de chegar-lhe à boca. Estava cansando. Nunca se sentira tão cansado assim. Virou a cabeça para o travesseiro e fechou os olhos. O murmúrio do padre foi-se amortecendo. Talvez pudesse dizer o que queria depois de descansar um pouco. Não havia medo. Apenas uma grande tristeza. Havia tanto para fazer, tanto que ele ainda poderia fazer. Mas agora tudo isso havia acabado. Não havia mais tempo. Dax. A palavra parecia queimar-lhe a cabeça. Dax sozinho. E ainda era tão moço! E tão cheio de vida! Havia tantas coisas que ele ainda não lhe ensinara. Tantas coisas que o rapaz precisava saber. Os problemas do mundo não se resolviam apenas com a simples energia física da mocidade. Queria dizer-lhe isso. E muito mais. Mas era tarde. Tarde demais. Adormeceu. Dax atravessou o quarto para onde estava o médico. — Está dormindo, — disse o médico. — É um bom sinal. Dax saiu do quarto com o médico, deixando o pai em companhia do padre. Gato Gordo estava junto à porta. — Como vai ele? — No mesmo — respondeu Dax e voltou-se para o médico. — Quando... — Talvez esta noite, talvez amanhã de manhã. Ninguém pode dizer. — Não há possibilidade? — Há sempre possibilidade. Marcel apareceu. — Um repórter do Paris Soir está ao telefone. — Diga que não há notícias. — Não foi por isso que ele telefonou. — Por que foi então?


Marcel não olhou para ele. — Querem saber se vai continuar a jogar pólo. Dax fechou o rosto e cerrou os punhos. — É só nisso que eles pensam. Um grande homem está morrendo e eles só se preocupam com os seus divertimentos imbecis? Lembrou-se de que os repórteres lhe haviam dado o nome de “Selvagem”, depois do jogo com a Itália, quando ele fizera dois italianos caírem e um deles, gravemente ferido, tivera de ser internado no hospital. Haviam-no cercado depois, fazendo perguntas. — Como se sente em relação aos dois machucaram?

homens que se

— Pouca sorte deles, — respondeu displicentemente. — Isso não é esporte para quem não sabe manter-se na sela. — Parece que não se importa com o que pode acontecer a eles. — E devo me importar? A mesma coisa pode acontecer comigo todas as vezes que entro em campo. — Mas não aconteceu com você, — disse um repórter. — Sempre acontece com alguém do outro time. — Que quer dizer com isso? — perguntou Dax, friamente. — Parece estranho que você sempre se envolva num acidente quando os adversários vão marcar um gol. E são sempre eles que se machucam e não você. — Está por acaso sugerindo que eu faço isso de propósito para machucá-los? — Não, mas... — Jogopara vencer e issosignifica nãodeixar o outro ladofazer gols seestiver em meu poder impedi-lo.Nãosou responsávelpelo fato de que os outros não saibam montar. — Masdeve haver espíritoesportivo. — Essa história de espíritoesportivo éparaquem gosta deperder. A mim só me interessa vencer. — Ainda que mate alguém? — Ainda que me matem! — retorquiu Dax. — Mas o pólo é um esporte e não uma guerra! — exclamou outro repórter. — Como é que sabe disso — perguntou Dax. — Já esteve dentro de um campo com meia tonelada de animal e de homem avançando sobre você? Experimente um dia e mudará de opinião.


Naquela mesma noite, fora chamado ao telefone na hora do jantar. Era um dos repórteres que lhe haviam falado à tarde. — Sabia que o italiano acaba de morrer no hospital? — Não. — É só isso que tem para dizer? Nem ao menos diz que sente o que aconteceu? — Dizer isso para quê? Faria o homem voltar à vida? E havia batido o telefone. Era estranho que se lembrasse de tudo isso naquele momento em que o pai estava morrendo. Nada podia alterar esse fato. Nem a sua volta apressada de Londres depois do jogo entre a França e a Inglaterra. Nem mesmo a notícia do contrato sobre os navios, tinha tido mais importância do que qualquer outra coisa. Tudo isso chegara tarde demais. A única modificação resultante da publicidade fora o aumento do público. Todas as localidades para o jogo seguinte tinham sido vendidas e quando os times entraram em campo houve um murmúrio nas arquibancadas. Dax levantou a cabeça surpreso e olhou para Sergei que ia montado ao seu lado. O russo sorriu. — Você é um astro. Essa gente toda está aqui para vê-lo. Dax sentiu um frio correr-lhe pela espinha. — Vieram ver-me matar alguém. — Ou ser morto por alguém, — acrescentou o russo. O público foi quase atendido. Já para o fim do quarto chukker, houve um choque no centro do campo e três cavalos caíram, com Dax entre eles. Fez-se completo silêncio enquanto os outros dois jogadores se levantaram e saíam do campo. Mas houve um murmúrio geral quando Dax se levantou. Olhou um instante para as arquibancadas e então virou-se prontamente para ajudar o seu cavalo a levantar-se. O cavalo ficou tremendo, com os flancos arquejantes e Dax carinhosamente lhe afagou o pescoço. — Nós os logramos desta vez, hem, amigo? Gato Gordo entrou então no campo com outro animal. Houve alguns aplausos quando ele tornou a montar. Quando ele, zombeteiramente, deu adeus, a ovação foi estrondosa. — Não compreendo, — disse ele, parando ao lado de Sergei. — Nem procure compreender, Dax. Você agora é um herói!


Até os jornais reconheceram o fato e no fim daquele ano ele foiincorporado como titular à equipe nacional da França. Tomou-se o mais jovem jogador com um handicap de oito gols a entrar num campo. Estava a um mês do seu décimo oitavo aniversário. Mas como tudo isso lhe parecia vazio naquele momento em que esperava a morte do pai. Tudo. Todos os planos que lhe tinham parecido tão importantes. Lembrou-se de uma noite na escola, perto do fim do ano escolar. Os três estavam juntos no quarto. Tinha-se recostado na cadeira e pusera os pés em cima da mesa. — Como se saiu nos exames, Sergei? — Não sei, — disse Sergei, franzindo o rosto. — A última prova foi bem difícil para mim. Dax olhou para Robert. Quase não havia necessidade de perguntar-lhe. Nos últimos três anos, Robert sempre fora o primeiro da classe. Estava arrumando os livros. — Como se sente, Robert? Sei lá! Satisfeito e, contudo, um pouco triste. De certo modo, vou sentir saudades disto aqui! — Pois eu não! — gritou Sergei. — É com verdadeira alegria que vou dar o fora! — E quais são os seus planos, Sergei? — Que planos? Não haverá mais escola gratuita para mim. Não conseguirei mais bolsas. Todos agora lá acham que os comunistas não vão sair mais do poder. Quem é então que quer saber de um russo branco? — Que é que vai fazer então? — perguntou Robert. — Vai trabalhar? — Em quê? Que diabo é que eu posso fazer? Arranjar um emprego como o de meu pai? Ser porteiro de um hotel ou de um cabaré? — Mas terá de fazer alguma coisa, — disse Robert. — Talvez vá para Harvard como você, — disse Sergei sarcasticamente, — ou acompanhe Dax para a escola militar de Sandhurst. Mas quem conseguirá isso para mim? O general meu pai? Robert ficou calado. Sergei olhou-o e pediu desculpas delicadamente. — Não tive a intenção de ser grosseiro. — Não tem importância, — murmurou Robert. — A verdade é que eu já sei o que vou fazer, — disse Sergei. — Que é?


— Vou-me casar com uma americana rica. Parece que elas gostam de príncipes. — Mas você não é príncipe, — disse Dax, rindo. — Seu pai é conde. A diferença não é muita. Para elas, um título é um título. Lembra-se daquela da festa naquela noite? Quando ficamos sozinhos, ela olhou para mim e disse com uma voz reverente: “É a primeira vez que vejo um príncipe nu”. “E sou diferente dos outros?”, perguntei-lhe. “É, sim”, respondeu ela. “É púrpura, púrpura real!” Quando as risadas cessaram, Robert perguntou a Dax: — E você? — Acho que vou para Sandhurst. Está tudo arranjado e meu pai quer que eu vá. — Esses ingleses são assim mesmo! — exclamou Robert, irritado. — Só lhe concederam matrícula porque querem que você jogue pólo para eles! — Que diferença faz? — perguntou Sergei. — Eu bem que gostaria de ir pelo mesmo motivo. — Meu tio é que deve ter conseguido isso, — disse Robert. — Viu como ele ficou entusiasmado quando esteve aqui no ano passado e viu você jogar. Meu pai pensa que isso pode concorrer para melhorar as relações entre a Inglaterra e o Corteguay. Talvez consigamos mesmo a linha de navegação. — Julguei que tudo estivesse resolvido quando meu pai organizou a companhia. Gastaram cinco milhões de dólares para obter os direitos. — Mas os navios não vieram. Parece que aquele jogador grego havia arrendado os navios aos ingleses antes de saber que o negócio estava fechado com o Corteguay. — Alguém saiu logrado. Seu pai e o meu. Seu pai, especialmente. O que ele conseguiu com os cinco milhões de dólares foi uma licença de importação e exportação que lhe garante a comissão de 5% sobre todos os fretes. Mas isso pouco vale quando não há navios. Ficaram em silêncio durante algum tempo. Embora ambos estivessem pensando a mesma coisa, nenhum disse uma palavra a este respeito. Era evidente demais. Foi Sergei que quebrou o silêncio.


— Ainda temos neste verão dez jogos até começar o outono. Isso significa pelo menos umas quarenta festas e quarenta pequenas diferentes para levarmos para a cama. Tudo pode acontecer. — Eu sei o que é que vai acontecer. — Que é? Dax esboçou um sorriso. — Você acabará com uma doença púrpura real!

10

O cônsul entrou no escritório a passo lento, apoiado na bengala. — Bom dia, Marcel. Marcel levantou os olhos do jornal que estava dobrando cuidadosamente e colocou no centro da mesa do cônsul. — Bom dia, Excelência. Jaime olhou para o jornal. — Venceram? Marcel sorriu. — É claro. E Dax voltou a fazer mais pontos. Todos o consideram um herói. O cônsul sentou-se à mesa e pegou o jornal. Estava cheio de elogios a seu filho. Sacudiu a cabeça. — Isso não me agrada muito. Toda essa atenção. Isso não serve para quem é tão moço. — Não fará mal algum a Dax. Apesar da idade, tem muito juízo. — Tomara que assim seja, — disse o cônsul e mudou de assunto. — Já chegou alguma resposta de Macau sobre os navios? — Ainda não. — Não compreendo. Ouvi dizer que os ingleses estavam ansiosos por liberá-los. Os navios estão parados no porto. E até agora, silêncio. — Essas coisas demoram. — Tanto tempo assim? Já faz um mês que Sir Robert prometeu apressar as coisas em Londres. Para os ingleses, o tempo não quer dizer nada. Para nós, tem uma importância enorme. — A última carta de Sir Robert dizia que ele estava-se esforçando ao máximo. — E está mesmo?


— O dinheiro que o barão empregou no contrato dos navios era metade dele. — Mas ele é também diretor das linhas inglesas. — Dois milhões e meio de dólares são dinheiro demais para se perder. — Ele poderia perder muito mais se os ingleses não tivessem mais o direito de embargar os nossos embarques. O secretário não respondeu. O pai de Dax recostou-se cansadamente na cadeira. — Acho às vezes que não sou o homem para este lugar. Tudo é muito complicado. Não há ninguém que diga o que realmente pensa. — Ninguém poderia fazer melhor, Excelência. Ê que essas coisas são mesmo demoradas. — Talvez seja verdade, — disse o cônsul com um sorriso triste. — Mas eu não posso esperar muito. Marcel sabia o que ele queria dizer. O cônsul ficava dia a dia mais frágil. A estrutura outrora quase gigantesca do homem como que se encolhera e enfraquecera. Passara a só andar de bengala. E não se tratava de uma afetação de diplomata, como o cônsul dissera, brincando. Além disso, estava mais uma vez resfriado e devia estar na cama. — Vamos mandar outra carta para o Presidente, — disse o cônsul. — Quero atualizar as informações que ele tem. Talvez ele tenha mudado de ideia acerca da conveniência de mandar Dax para a escola inglesa. Foi com sentimentos complexos que Dax entrou no campo inglês. Era a última vez que defenderia as cores da França. No ano seguinte, estaria jogando pelos ingleses e por Sandhurst. Olhou para as arquibancadas e viu Sir Robert e suas duas filhas. As moças deram-lhe adeus e ele respondeu. Sergei riu. — Você está arrumado, hem? Qual é a que vai pegar primeiro? — Você está louco? Para mim já chega o que aconteceu comCaroline. Meu pai me mataria. — A mais lourinha parece que vale a pena até de se morrer por ela. E parece caidinha por você. Ouviu-se o apito soar no campo. O time inglês já estava presente. —Vamos, — disse Sergei. — Venha conhecer os seusfuturos companheiros de equipe. E ensine-lhes logo como é que se joga.


A festa naquela noite foi na casa de Sir Robert em Londres. Os ingleses haviam jogado bem mas sem imaginação e perderam. Mas o próprio Dax teve de reconhecer que eram bons esportistas. O capitão inglês parecia completamente sincero quando foi dar parabéns pela vitória aos franceses. Dax estava sozinho junto às portas que davam para o jardim, observando as danças. Sergei, que dançava com uma loura alta, piscou-lhe o olho. Dax não pôde deixar de rir. Sergei já havia escolhido a sua presa para aquela noite. — Está-se divertindo? Dax voltou-se e viu Sir Robert. — Muito. Obrigado, senhor. Sir Robert sorriu* — Creio que gostará disto aqui. Pode ser que não tenhamos estilo como os franceses, mas tentamos compensar isso com um pouco de conforto. Dax estava começando a gostar da reserva inglesa. Não conhecia uma casa mais luxuosa do que aquela. Nem a casa do barão em Paris podia comparar-se com ela. — Ninguém poderia desejar mais, Sir Robert. Tudo é perfeito. — Peço-lhe que considere esta casa como sua enquanto estiver em Sandhurst. Já dei ordens para que lhe preparassem um apartamento e estamos à sua espera para o fim-de-semana no campo. — Muito obrigado, senhor. Não sei mesmo o que dizer. — Então não diga nada. Considere-se em casa. Recebi uma carta de seu pai esta manhã. — Como está ele? — Seu pai nunca fala muito de si. A carta só falava de negócios. Mas, a propósito, como vai ele de saúde? — Infelizmente, não vai muito bem. Na verdade, não sei se devo deixá-lo desta vez. Talvez eu pudesse aliviar-lhe um pouco o trabalho se ficasse em casa em vez de vir para Sandhurst neste ano. Sir Robert olhou-o com alguma hesitação e disse: — Posso falar-lhe como uma pessoa mais velha? — Por obséquio, Sir Robert. Apreciarei muito a sua opinião. — Se eu fosse seu pai, ficaria mais satisfeito com a sua ida para Sandhurst. A impressão que você fará aqui será muito mais útil para ele e para seu país do que a sua permanência ao lado dele. Dax ficou em silêncio. Era exatamente o que seu pai teria dito. Apesar disso, talvez nenhum deles tivesse razão, pois ainda havia a


questão da saúde de seu pai. Se ele não pegasse outro resfriado e se aqueles malditos navios fossem logo liberados, as tensões do pai talvez se atenuassem e ele não teria tanta inquietação de afastar-se. — Muito obrigado, Sir Robert, — disse ele em voz alta. — Creio que é exatamente o que farei. Mais tarde, depois da festa, ele rolou na cama e acendeu o abajur da mesinha de cabeceira. Olhou o relógio. Três horas e ainda não tinha podido dormir. Levantou-se e foi até à janela. O tráfego era mínimo e ele ficou olhando a rua. Pensou de repente em Sergei. Conseguira um carro emprestado para levar a pequena para casa e só deveria voltar com dia claro, se voltasse. Mas viu em dado momento os faróis de um carro brilharem no pátio. Sergei saltou e um momento depois estava no seu quarto. — Por que é que ainda está acordado? — perguntou ele, olhando desconfiadamente para o quarto. — Estava com alguma delas aqui? — É só nisso que você pensa, Sergei? — E há mais alguma coisa em que valha a pena pensar? Infelizmente, perdi o tempo com a tal que levei para casa. — Não se pode ganhar sempre, — disse Dax, rindo. — Sabe o que foi que ela me disse? Sir Robert vai dar-lhe este apartamento enquanto você estiver em Sandhurst. — Já sabia. — E sabe que os quartos das meninas são do outro lado do corredor? — E daí? —Dax sabia por que ambas tinham feito questão de pôlo ao corrente do fato. — Você não pode deixar de tomar conhecimento delas, — disse Sergei, tirando a camisa. — Estão ambas no ponto e prontas. E estão ainda acordadas, sabe? Vi luz quando passei pela porta delas. — Tem cigarros? Sergei entregou-lhe o maço e disse: — Devem estar à sua espera. — Só quero é que não se cansem de esperar. Sergei sacudiu a cabeça com fingida tristeza. — Você está cometendo um erro, rapaz. Se não for você, será outro. Com que é que está preocupado? O pai delas está na outra ala da casa e não ouvirá nada. Devemos estar no mínimo a um quilômetro de distância. Dax riu.


— Cale essa boca e vá dormir. Não tenho culpa de que você tivesse ficado em seco esta noite. Na realidade, Sir Robert estava no seu escritório, estudando o mais recente relatório sobre a situação do Corteguay. Levá-lo-ia no dia seguinte para a sua casa de campo a fim de guardá-lo juntamente com os anteriores. Havia mais segurança lá, embora aquilo pouco sentido fizesse para os criados, caso eles o lessem. Apertou os lábios. Havia muita pressão sobre ele. Às vezes, não podia deixar de irritar-se com o primo. O barão era muito francês, muito sentimental. Que importância tinha que o cônsul do Corteguay fosse um homem de honra? Além disso, era um homem doente. Não compreendia o barão que, se os navios fossem retidos um pouco mais, o governo poderia cair? Era um idiota, se não compreendesse isso. A situação do governo era precária. Os bandolerosjá estavam em atividade nas montanhas. Dessa vez com dinheiro inglês e armas inglesas. Os camponeses tinham fome. Por quanto tempo ainda passariam fome pelo presidente, que também não passava de um bandolero? Os navios tinham de ser retidos. Um prejuízo de dois milhões e meio de dólares não era nada para impedir que o governo do Corteguay entrasse em acordo com os gregos. Quando o governo afinal caísse, o prejuízo seria mais do que compensado com a volta dos navios ingleses ao Corteguay.

11

Dax desceu da camioneta da estação à porta da casa de campo de Sir Robert pouco depois das sete horas da noite seguinte. O mordomo abriu-lhe a porta. — Seja bem-vindo, senhor, — disse ele, tomando-lhe a valise. Dax entrou com ele na casa, que lhe parecia estranhamente silenciosa, em comparação com o movimento que esperava. — Onde estão os outros? — O senhor é o primeiro. As senhoritas deverão chegar no trem das dez horas. Sir Robert só chegará amanhã com os outros convidados. Abriu a porta do quarto de Dax e depôs a mala. — Quer que abra e arrume tudo, senhor?


— Não, muito obrigado. Eu mesmo trato disso. Há muito pouca coisa. — A que horas gostaria de jantar, senhor? Dax teve fome de repente. Olhou para o relógio. — Vou tomar banho primeiro. Às oito horas será ótimo. Não demorou muito jantando. Comeu com rapidez e apetite e aum quarto para as nove havia terminado. — Há um rádio no escritório, — disse o mordomo. — E jornais também. Dax ligou o rádio e deixou-se cair numa confortável poltrona de couro. Alguns minutos depois, levantou-se e foi até à mesa para pegar um jornal. Quando o apanhou, uma carta que estava embaixo caiu no chão. Dax a recolheu e já ia colocá-la na mesa quando notou que era escrita em espanhol. Desde que já estava aberta e fora do envelope, olhou distraidamente e de repente viu a assinatura. Ramírez! Isso bastou para fazê-lo ler o primeiro parágrafo. “Quero mais uma vez felicitá-lo pelo seu descortino quanto à aquisição dos quatro cargueiros japoneses, impedindo assim que caíssem nas mãos dos nossos inimigos. As informações que tenho recebido de minha terra indicam que o governo está sob extrema pressão e precisa de auxílio imediato.” Dax sentiu enregelar-se apesar do fogo que crepitava na lareira. Que espécie de homem era aquele que, com uma mão, oferecia conforto, amizade e até a hospitalidade do seu lar e, com a outra, ajudava os inimigos que queriam destruí-lo? Continuou a ler. “A revolta está ganhando ímpeto. Mas, como sabe, temos grande falta de armas e munições e, como essas coisas só podem ser obtidas a um preço proibitivo, pois são contrabandeadas dos países vizinhos através dos Andes, sou contra a minha vontade obrigado a pedir-lhe fundos a mais. Não gostaria de sobrecarregar a sua sempre solícita generosidade, mas necessitamos urgentemente de dez mil libras para que os nossos planos tenham o êxito que todos esperamos. Se isso não for possível, creio que até cinco mil serão uma grande ajuda." Dax teve um sorriso amargo. Gostaria de saber quanto desse dinheiro ficaria no bolso de Ramírez antes de ser mandado para o Corteguay. “Muito lhe agradeceria uma resposta pronta. Até então, queira aceitar a minha gratidão e a dos meus compatriotas pela sua ajuda à


nossa mútua luta para derrubar o despótico bandido que ilegalmente domina o nosso pobre país.” Ramírez! Se não tivesse com tanta raiva, poderia até achar graça. Ramírez, o ladrão, o covarde, o traidor, arvorando-se em acusador e justiceiro. Dax olhou para a carta. O pai dele teria de ter conhecimento dela. E o barão também. De repente, ocorreu-lhe uma ideia. E se o barão já soubesse? E se o barão também fizesse parte do plano? Não sabia mais em quem confiar. Dobrou a carta e guardou-a no bolso. Teria de advertir seu pai. Saiu da sala com raiva. Partiria para Paris naquela mesma noite. Mas viu imediatamente que isso seria o que podia fazer de mais errado. Sir Robert estranharia a sua partida repentina. Isso só serviria para chamar-lhe a atenção para a carta desaparecida. Era melhor passar o fim-de-semana e até demorar-se um pouco mais. Fazendo um esforço, voltou para a poltrona. Quando o mordomo apareceu para comunicar-lhe a chegada das moças, encontrou-o a ler tranquilamente o jornal. As duas eram tão parecidas que podiam ser julgadas gêmeas, embora não o fossem. Enid, a mais velha, tinha dezoito anos e a outra, Mavis, era um ano mais moça. — Não disse que ele estaria aqui hoje à noite? — disse uma delas à outra. Dax tomou-lhe a mão. — Alô, Enid. Ela riu. — Eu sou Mavis. — Nunca pude distinguir entre vocês. — Mamãe e Papai já chegaram? — Não, o mordomo me disse que só os está esperando amanhã. — Ótimo! — disse Enid. — Isso quer dizer que teremos a casa à nossa disposição esta noite. — Poderíamos fazer uma festinha particular, — disse Mavis.A quem poderíamos convidar? — Para que ter esse trabalho? — perguntou Enid, olhando para Dax. — Tenho certeza de que nós três podemos divertir-nos muito. — Festa? — exclamou Dax, rindo. — É só em que vocês pensam? Estou tão cansado que só penso agora é num banho quente e numa boa noite de sono. — Por que você é sempre tão sério? Por que nunca pensa em divertir-se?


— Vou pensar nisso amanhã. Estendeu-se na grande banheira de mármore e fechou os olhos. Relaxou por completo o corpo. Ouviu então um leve ruído e abriu os olhos: Olhou para a porta que dava para o seu quarto. Não havia ninguém lá. Ouviu de novo o ruído e a sua estranheza aumentou. De repente, a porta se abriu e as duas irmãs apareceram juntamente com o ar frio do corredor atrás delas. — Fechem essa porta, por favor! — exclamou ele, estendendo a mão para pegar uma toalha. — Querem que eu morra gelado? Mas Mavis foi mais rápida. Puxou a toalha antes que ele pudesse segurá-la enquanto Enid fechava a porta. Dax procurou cobrir-se com as mãos, mas logo desistiu, vendo que era impossível. Elas ainda estavam rindo. — De que é que estão achando tanta graça? A banheira de vocês não está funcionando direito? Enid sentou-se num banquinho ao lado da banheira. — Resolvemos, como estava tão cansado, dar em você um dos nossos banhos medicinais. — Banhos medicinais? — Sim, são muito estimulantes. Todas as colegas tomam lá na escola. Estendeu a mão e abriu , a torneira de água fria. Dax quase deu um pulo da banheira quando aáguageladalhe bateu nas costas. — Vocês duas estão loucas! — gritou ele. As duas o empurraram para dentro da água. —Fique quietinho aí. Tome um gole disto, vamos!—disseEnid, pegando uma garrafa. —Que é isso? — Conhaque. A garrafa estava pelo meio. — Onde foi que pegaram isso? — No armário de bebidas de Papai. — Mas já está quase vazia! Estávamos aborrecidas e bebemos um pouco, — disse Mavis. — Você não quis a festa. — Tivemos então a ideia de vir dar em vocêumbanhomedicinal, — acrescentou Enid. — Miss Purvis, lá na escola, sempredizque não há nada melhor para quem está cansado.


Explicaram como era o banho. Estavam ambas altas. Dax encolheu os ombros e tomou um gole de conhaque. Isso ao menos o aqueceria. Mavis meteu os dedos na água. — Já está bem fria. Que é que você acha? Enid experimentou a água. — É, já está bastante. Dax tomou outro gole de conhaque e se estendeu na banheira, resignado. — E agora? — Você vai ver, — disse Mavis. — Saia da banheira. — Está bem. Passe uma toalha. — Não. Saia da banheira primeiro. — Isto é que não! — Não? — exclamou Enid, rindo. Tornou a abrir prontamente a torneira de água fria. Dax pulou da banheira quase antes de ser atingido pelo jato gelado. Ficou ali tremendo enquanto elas lhe batiam no corpo com as ásperas toalhas turcas. — Está doendo! Parem com isso! O que elas fizeram foi bater com mais força. Ele começou a pular, procurando livrar-se delas sem deixar cair a garrafa. Afinal, conseguiu esquivar-se e correr para o quarto. Jogou-se na cama e puxou os cobertores para cima do corpo. Elas foram para junto da cama e ficaram a olhá-lo. — Agora que já se divertiram, por que é que vocês duas não vão direitinho dormir nas suas camas? Houve um curioso olhar entre elas. — Está bem, — disse Mavis. — Devolva a nossa garrafa. Dax tomou outro gole. — Não vou devolver nada. Acho que tenho o direito de beber tudo depois do que passei. Posso até pegar uma pneumonia. Ele estava começando a sentir-se bem. — Se quiserem, terão de vir tomar de mim. Elas se moveram para ele ameaçadoramente. Ele colocou a garrafa embaixo do travesseiro e cruzou os braços no peito. De repente, elas puxaram os cobertores, deixando-o nu em cima da cama. Dessa vez, ele não fez qualquer tentativa de cobrir-se. — E agora? Que é que vocês vão fazer?


— Nunca vi nada tão imensamente belo! — murmurou Enid em voz quase reverente ao mesmo tempo que desabotoava a blusa do pijama. Houve uma hora durante a noite em que uma das irmãs saiu e foi buscar outra garrafa de conhaque, mas Dax não poderia dizer qual tinha sido. Trocavam de lugar e ele não sabia mais quem era quem. Tinha porém certeza de uma coisa. Não era a primeira vez que elas haviam praticado aqueles jogos juntas. Enid — ou era Mavis? — bebeu um gole da garrafa e disse: — Não me lembro de já ter sido tão bem amada assim. — Deu um suspiro e olhou para o rosto de Dax que estava com a cabeça no colo dela. — E nós que pensávamos que você fosse... — Fosse o quê? Mavis — ou era Enid? — levantou a cabeça do colo dele e disse: — Não sabe? Homossexual! Ele riu. — Por que pensaram isso? Há tanta gente que é, — disse ela séria. — Acho que é por causa dos internatos. Ficam ali dentro sem mulher, andam juntos e a maioria acaba gostando. — Com pequenas como vocês ao alcance da mão? — Pois alguns deles até conosco só sabem fazer assim, — disse Mavis. — Dizem que é melhor. De outra vez, nós vamos experimentar. — Ótimo, — disse Enid, rindo. Dax acordou logo que amanheceu o dia. Estendeu a mão e sentiu o calor de uma nudez. Sentou-se na cama, estendeu a mão por cima de Enid e apanhou o relógio na mesinha de cabeceira. Quase cinco horas. Olhou para as pequenas que dormiam. Os franceses tinham razão a respeito das mulheres inglesas. Não tinham o encanto das francesas, mas na cama não havia ninguém que se comparasse com elas. Pareciam verdadeiras gatas no cio. Sacudiu-as. Mavis abriu os olhos. Já é dia, — disse ele. — Não é melhor vocês irem para seus quartos? Oh! — murmurou ela, espreguiçando-se. — Enid já se levantou? Mas Enid não quis abrir os olhos e no fim os dois tiveram de carregá-la pelo corredor. Dax deixou-a na cama e já ia saindo quando Mavis o segurou pelo braço. — Dax...


— Hem? — Foi uma boa festa, não foi? Ele sorriu. — Foi grande. — Podemos fazer uma festa assim outra vez, não podemos? — É claro. Ela olhou para ele e sorriu. — A casa vai ficar muito cheia neste fim-de-semana. É uma pena você não poder ir a Brighton durante a semana. Temos o nosso apartamento perto da escola. Quem diz que eu não posso? Acha que seria bom eu levar um amigo? Seria, mas... — murmurou ela, com um ar preocupado. — Ah, não tenha receio, que ele sabe ficar calado. Você o conhece. É Sergei, o russo que joga pólo comigo no time francês. — Então está bem. Vamo-nos divertir muito. Quando é que vocês vão? — Segunda-feira à noite, se está bem para vocês. Ainda naquela manhã, antes que alguém chegasse, foi até à aldeia e telefonou para Sergei no hotel em Londres. Como prêmio pela vitória, a equipe estava com alguns dias de folga. Não se preocupou com a possibilidade de Sergei não aparecer, depois de haver-lhe explicado. Sergei sabia exatamente do que ele estava falando.

12

Sir Robert olhou para as fotografias em cima da sua mesa. O seu rosto não mudou de expressão quando ele levantou a vista. — Sabe que pode ir para a cadeia por isso? Dax ficou impassível. Sabia que Sir Robert estava blefando. O silêncio envolveu a sala. Só se ouvia o rumor distante do comércio na zona bancária lá fora. Sergei lhe havia dito a mesma coisa quando Dax lhe expusera a ideia no hotel em Brighton, mas Dax rira. — Como? Acha que Sir Robert vai querer publicidade? Será impossível guardar sigilo sobre as filhas dele. Está bem, mas veja lá que o meu rosto não saia nas fotografias.


— Não é seu rosto que eu quero, — dissera Dax. — Vamos sair que eu tenho de comprar a máquina e os filmes. — Compre também material de revelação. Você não pode mandar revelar essas fotografias na esquina. E se as pequenas não concordarem com a ideia? — Quando tiverem bebido o suficiente, farão tudo, — dissera Dax e tinha tido razão. Sir Robert folheou as fotografias e colocou-as numa pequena pilha em cima da mesa. Quanto quer por elas? — Nada, — respondeu Dax. — São suas. Neste caso, quanto quer pelos negativos? — Há em Macau quatro navios que foram há dois anos prometidos a meu pai. Quando os navios chegarem ao Corteguay, os negativos lhe serão remetidos pelo correio. — Isso está fora de discussão, — disse Sir Robert. — Não sou o dono desses navios. — Ramírez pensa que é. — Ah! Foi isso então que aconteceu à carta? Dax não respondeu. —•É esse então o seu conceito de honra? Trair a hospitalidade que lhe foi dada? A voz de Dax começou a mostrar sinais de cólera. — Quem é o senhor para me dar lições de honra, quando o valor da honra para o senhor é saber quanto pode ganhar com a traição? Sir Robert olhou para as fotografias e disse: — Faço o que é melhor para a Inglaterra. Dax levantou-se e disse: — Tanto por sua causa, Sir Robert, quanto pela minha, prefiro acreditar nisso a pensar que fez o que fez por simples cobiça. Encaminhou-se para a porta, mas a voz de Sir Robert o fez parar. — Preciso de tempo para pensar nisso. Não há pressa, Sir Robert. Vou voltar para Paris hoje. Se até ao fim da semana que vem eu não tiver tido uma reação favorável ao meu pedido, a carta de Ramírez será mostrada a meu pai e a seu primo, o barão. Depois, mil cópias dessas fotografias, serão distribuídas através da Europa. Sir Robert apertou os lábios e olhou friamente para Dax.


— E se houver uma reação favorável, como diz? Não espera decerto que eu me comunique diretamente com a sua pessoa? Não, Sir Robert. Saberei da sua decisão imediatamente por intermédio de meu pai. E Ramírez? Não quer que faça alguma coisa a respeito dele? Um clarão amarelo luziu nos olhos negros de Dax. O banqueirosentiu um arrepio ante a súbita ferocidade que houve na voz do rapaz. Não, Sir Robert. Eu me entenderei pessoalmente com ele. O café de Sir Robert esfriou quando ele deparou com o seguintetítulo no jornal: EX-DIPLOMATA ASSASSINADO NA RIVIERA ITALIANA Sentiu as mãos tremerem quando se lembrou do olhar e da voz de Dax no seu escritório. Estremeceu de pensar que havia convidado o rapaz a hospedar-se na sua casa quando estivesse em Sandhurst. O rapaz não passava de um selvagem. Toda educação, todo o polimento, era apenas uma leve capa de verniz que cobria o homem da selva. Não se podia saber de que era capaz uma fera daquelas. Poderiam ser todos assassinados enquanto dormiam. Era muito estranho que tudo de repente parecesse muito perto. Não era mais de cifras num balanço de banco que se tratava. Era de gente, de seres humanos, dele, de suas filhas, de vida e de morte. Suas filhas. Era horripilante pensar delas numa cama com aquele selvagem. Por que haviam procedido assim? As duas nunca lhe tinham dado o menor aborrecimento. Não tinha tido coragem de falar com elas sobre as fotografias. Eram tão finas que ele não sabia nem como podia abordar o assunto. De repente, a raiva lhe subiu pela cabeça. Compreendia tudo. Fora um louco em duvidar delas. Todo mundo sabia que os selvagens conheciam poções misteriosas que nem a ciência moderna conseguira desvendar. Devia ter sido isso. O rapaz conseguira dar um afrodisíaco às meninas. Talvez até numa inofensiva xícara de chá. Percebeu imediatamente o que tinha de fazer. Era preciso afastá-las dali. Sua esposa entrou na sala e sentou-se à mesa defronte dele. — Como está, querido? — perguntou ela, passando geléia numa torrada.


— As meninas têm de ir para a casa de sua prima no Canadá? — exclamou ele. Ela o olhou surpresa, esquecendo a torrada. — Mas julguei que já estivesse decidido que não iriam. Você mesmo disse que Chamberlain não permitiria uma guerra na Europa! — Mas ele ainda não é primeiro-ministro! As meninas vão e não quero mais discussões sobre o assunto! Sir Robert levantou-se abruptamente e saiu da sala, enquanto a mulher o acompanhava com o olhar espantado. Encaminhando-se para o carro em que iria para o escritório, pensou que aquela decisão era apenas parte da solução. A outra parte era fazer o Corteguay receber os seus quatro navios. Não se tratava mais apenas da ameaça de escândalo ou da mancha que ficaria na sua honra se seu primo e outras pessoas soubessem da sua traição. Era uma coisa mais simples e fundamental. Pela primeira vez na vida, Sir Robert não se sentia protegido pela sua posição e pelo seu dinheiro. Nada disso poderia desviar o golpe da faca de um assassino. Dançava-lhe na espinha o pavor gelado da morte. O som abafado dos tambores ecoou nas docas enquanto Dax seguia pela prancha o caixão coberto com a bandeira. Os marinheiros, metidos ainda desajeitadamente nos seus novos uniformes da marinha mercante do Corteguay, ficaram em posição de sentido. Em silêncio, Dax viu o caixão passar das mãos da guarda de honra de soldados franceses que o haviam levado para bordo para as mãos deles. Os soldados ficaram então perfilados, enquanto os marinheiros levavam o caixão pelo convés. Seguiu-os lentamente, não se sentindo à vontade no fraque novo que usava e com a cartola que tinha na mão. Fechou os olhos quando os marinheiros inclinaram um pouco o caixão para passar com ele pela estreita porta do camarote. Pensou que o pai nunca havia sonhado em voltar para o Corteguay num navio com o seu nome. Fora a primeira coisa que Dax notara quando o cortejo chegou ao cais. Jaime Xenos. As letras brancas pintadas no casco preto ainda estavam frescas demais para que se percebesse embaixo o nome anterior — Shoshika Maru. Era a primeira viagem que fazia da França para o Corteguay um navio da recém-criada frota mercante. Fazia pouco mais de um mês do dia em que ele estava sentado no escritório de seu pai e Marcel chegara com o telegrama da Inglaterra. Ainda se lembrava do sorriso do pai ao lê-lo.


Nosso amigo Sir Robert conseguiu afinal os navios para nós! Dax sorriu ao ver a felicidade que havia nos olhos do pai. — Agora, quando chegar a ocasião, talvez voltemos para casa num navio nosso. A ocasião chegara, mas de uma maneira que nenhum deles havia previsto. O pai estava de volta para casa, mas ele, não. O telegrama do Presidente fora explícito: “Meus sentimentos pela morte de seu pai que foi um verdadeiro patriota. Comunico-lhe foi nomeado cônsul em Paris e deve ficar no seu posto até segunda ordem”. Passaram correias em tomo do caixão para prendê-lo e protegêlo da turbulência do mar. Depois, os marinheiros saíram um por um, fazendo continência enquanto passavam, até que só ele e Gato Gordo ficaram no camarote. Gato Gordo disse em voz baixa: — Vou esperá-lo lá fora. Dax olhou para o caixão ainda coberto com a bandeira verde e azul do Corteguay, tendo ao centro a águia branca de Cortez, que havia dado o nome ao país. Depois, aproximou-se e encostou a mão no caixão. — Adeus, Pai, — murmurou ele. — Terá sabido algum dia o bem que eu lhe queria?

13

Eram quase onze horas quando Sergei acordou e saiu meio tonto de sono ainda do quarto para a cozinha. O pai dele estava sentado à mesa. — Por, que não foi trabalhar? — perguntou Sergei, surpreso. — Não estou trabalhando mais lá. Vamos para a Alemanha. — Para quê? Todos sabem que os hotéis de Paris são os que pagam mais em toda a Europa. — Não vou mais fazer esses trabalhos servis. Sou soldado e vou voltar para a minha profissão. — Em que exército? — perguntou Sergei sarcasticamente. Desde garotinho, ouvirá falar na formação de um exército derussos brancos que voltaria em triunfo à pátria. Mas isso nunca dera em nada. E todos sabiam que nunca seria possível. — No exército alemão. Ofereceram-me um posto em comissão e eu aceitei.


Sergei riu enquanto se servia de uma xícara de chá fumegante do samovar colocado em cima do aparador. — O exército alemão, Papai? Um bando de idiotas treinando com fuzis de madeira e planadores. — Nem sempre terão fuzis de madeira e planadores. As fábricas não estão paradas. — Está bem, Papai. Mas por que é que tem de lutar por eles? — Eu os ajudarei a marcharem contra a Rússia. — Seria capaz de lutar num exército estrangeiro contra os russos? — Os comunistas não são russos! — exclamou o conde iradamente. — São georgianos, ucranianos, tártaros manobrados pelos judeus que se servem deles para os seus fins próprios! Sergei ficou calado. Sabia que não podia discutir muito com o pai sobre aquele assunto. Começou a tomar o seu chá. — Hitler está certo! — continuou o pai. — O mundo não terá paz nem segurança enquanto os judeus não forem exterminados. Além disso, von Sadow afirma que Hitler deseja devolver a Rússia aos seus governantes legítimos! — Há outros que vão com o senhor? — A princípio, não. Mas irão depois. Pode começar a arrumar as malas. Sergei olhou para o pai. Sabia havia muito que ele não era o mais inteligente dos homens. Estava sempre metido em todos os planos alucinados para a restauração da monarquia e conseguia ser sempre quem perdia dinheiro e quem ficava em posição ridícula com o insucesso dos planos. Daquela vez, não seria diferente. Os outros esperariam, observando enquanto o pai assumia os riscos e prontos depois a mostrarem a sua compaixão pelo fracasso. Mas ninguém pensava em indenizá-lo dos esforços que fazia por todos eles. Deu um suspiro. Não adiantava querer dissuadir o pai. Quando o Conde Ivan tomava uma decisão, estava acabado. Não recuava mais. As palavras lhe saíram dos lábios quase antes de saber que as havia proferido. — Não irei com o senhor. Quem ficou surpreso dessa vez foi o pai. Naquela mesma semana, Sergei estava sentado desajeitadamente na cadeira que ficava em frente à mesa na sala onde o pai de Dax tivera escritório. De certo modo, era difícil para ele aceitar o fato de que, menos de um ano antes, ele e Dax estavam


cursando a escola juntos. Nos meses que se haviam seguido à morte de seu pai. Dax parecia mais velho, mais amadurecido. — Como vê, preciso de um emprego, — disse Sergei. — E não vejo nada que eu possa fazer. Foi por isso que vim procurá-lo. Talvez você possa ter uma ideia que me ajude. Sei que anda muito ocupado e foi por isso que hesitei em vir procurá-lo. — Pois não devia ter hesitado. Dax não quis dizer ao amigo que na verdade não havia muito o que fazer. Não havia ainda muita gente interessada no Corteguay. A única coisa que havia realmente mudado fora a sua vida social. Começaram de repente a convidá-lo muito para festas e reuniões. Havia alguma coisa que seduzia os franceses na ideia de um jovem cônsul cujas qualificações para o posto se resumiam na sua categoria internacional de jogador de pólo. — Temos de conseguir alguma coisa para você, — disse ele, sorrindo para Sergei. — Eu lhe daria um lugar provisório no consulado mas vou para minha terra no mês que vem. O Presidente resolveu nomear novo cônsul. — Mas eu pensei... — Ah, não! Só fiquei no cargo interinamente, até o Presidente encontrar uma pessoa que servisse. — E que é que você vai fazer? — perguntou Sergei, mais interessado no amigo do que em si mesmo. — Ainda não sei. O Presidente me escreveu dizendo que tem planos a meu respeito, mas eu não sei quais são eles. Talvez ir para Sandhurst, como ele havia planejado. De qualquer modo, saberei quando chegar lá. Os dois jovens ficaram em silêncio durante algum tempo. Afinal, Dax perguntou: — Quer ir para o Corteguay comigo? — Muito obrigado, Dax, mas não me sentiria bem numa terra estranha. Quero ficar em Paris. — Compreendo. Vou pensar no seu caso. Se souber de alguma coisa, procurá-lo-ei imediatamente. Sergei levantou-se. — Muito obrigado. — Escute, Sergei, tenho algum dinheiro sobrando e se você precisar de alguma coisa está às suas ordens. Sergei baixou os olhos. Cinco mil francos. Teve a tentação de aceitar, mas sentiu vergonha. — Não, muito obrigado. Tenho com que me arrumar.


Mas estava zangado consigo mesmo ao sair do consulado. Os dez francos que tinha no bolso mal lhe durariam até o dia seguinte. E osenhorio já estava reclamando o dinheiro do quarto. Impulsivamente, tomou o caminho do hotel onde o pai havia trabalhado. Quando lá chegou, ficou parado a olhar o edifício tão conhecido. Por que tinha ido até ali? Seu pai não estava mais à porta e não podia dar-lhe o dinheiro de que ele precisava. Atravessou a rua até um café e se sentou debaixo do toldo. Pediu um café. Tomou o café, pensando em qual dos seus amigos poderia ter alguma coisa, um coquetel ou uma festa para onde o levassem e onde ele pudesse matar a fome sem dar na vista. Uma voz interrompeu-lhe as elocubrações. — Sergei Nikovitch? Levantou os olhos. Teve a impressão de que conhecia o homem que estava diante dele. Viu então que era o chefe da portaria do hotel onde seu pai trabalhara. — Alô, — disse ele, sem poder lembrar-se do nome do homem: O homem sentou-se sem esperar convite. — Já teve notícias de seu pai? Sergei olhou-o friamente. Teve por um momento a tentação de levantar-se e sair sem responder. O sujeito era excessivamente presunçoso. Depois, a curiosidade o venceu. O homem não estaria ali puxando conversa sem ter um propósito definido. — Nenhuma. — Não confio nos alemães. Dei conselho a seu pai para que não fosse. Sergei nada disse. Sabia muito bem que o chefe da portaria não havia feito nada disso. Não teria coragem. O pai tê-lo-ia esmagado como a um inseto, que ele era. Um garçom se aproximou. — Dois conhaques, — pediu o chefe da portaria e voltou-se então para Sergei. — E você, como é que vai? — Muito bem. — Já arranjou alguma coisa? Que diabo? pensou Sergei. Não há segredos nesta terra. — Tenho várias propostas que estou examinando. — Pois estive pensando em você hoje, — disse o homem enquanto o garçom chegava com os conhaques. — Não sabia se Sergei Nikovitch estava fazendo alguma coisa. Sergei olhou-o em silêncio.


— Se não está, talvez se possa arrumar-lhe alguma coisa. Basta que você se decida entre as suas muitas propostas. Sergei pegou seu conhaque. — Na zdorovie! Ao menos, o patife tinha delicadeza bastante para não dizer de cara que sabia que Sergei não tinha proposta nenhuma para examinar. — A vôtre santé! Estava na hora de Sergei mostrar algum interesse. Se não mostrasse, tudo acabaria ali mesmo. Sentiu-se um pouco melhor com o calor do conhaque no estômago e perguntou: — Qual é a sua ideia? O outro baixou a voz. — Como sabe, há sempre muitos turistas hospedados no hotel. Entre eles, muitas senhoras ricas sozinhas. Elas têm sempre dificuldade em sair à noite sem ter quem as acompanhe. Sergei interrompeu-o. — Está sugerindo que eu seja um gigolô? O chefe da portaria levantou a mão em sinal de protesto. — Nada disso! Essas senhoras jamais quereriam saber de um gigolô! São pessoas de posição social impecável. Nunca pensariam em ter como cavalheiro um homem que não fosse igual a elas... ou melhor! — Que é que está sugerindo então? — Algumas dessas senhoras estão interessadas em conhecer a gente bem. Seriam muito generosas para quem as introduzisse nos bons círculos sociais. — É só isso? — Bem, o resto será com você, — disse o homem, encolhendo os ombros expressivamente. — Não compreendo, — disse Sergei. — Qual é o seu interesse nisso? — Farei as apresentações de você às senhoras. Por isso, receberei cinquenta por cento do que você ganhar. Sergei tomou outro gole de conhaque. O chefe da portaria com certeza receberia também uma boa gorjeta das mulheres pela apresentação. — Vinte e cinco por cento. — Feito.


Sergei se arrependeu imediatamente da sua generosidade. O homem se contentaria provavelmente com dez por cento. — Há uma em particular muito interessante, — continuou o chefe da portaria. — Está no hotel há quase uma semana. Quando lhe levei os jornais americanos hoje de manhã, ela me falou de novo nessa possibilidade. Se está interessado, ela está agora mesmo na portaria. Sergei hesitou. Era provavelmente o contrário. Ele seria levado para ser submetido à aprovação da mulher. Apertou os lábios. Teve um momento a tentação de mandar para o diabo aquele alcoviteiro. Mas ainda tinha nos ouvidos a voz grosseira do senhorio. Levantouse e ajeitou inconscientemente a gravata. — Vou ver. Depende de eu achar que serve. É aquela, ali, — disse o chefe da portaria quando entraram no vestíbulo do hotel. — A que está sentada na poltrona vermelha do canto. A mulher levantou os olhos quando Sergei entrou e ele teve uma surpresa. Não era velha como julgava. Devia estar por volta dos trinta anos. Sempre pensara que só as mulheres bem velhas reclamavam os serviços de um gigolô. Os olhos azul-escuro encaravam-no firmemente. Sergei sentiu que havia ficado muito vermelho quando tirou os olhos de cima dela. — Que é que acha? — Tem alguma importância o que eu ache? — perguntou Sergei. Viu então o espanto no rosto do homem e acrescentou: — Está bem. Pode até ser interessante. — Bon. Ela é muito distinta. Você vai gostar dela. — Casada? O homem olhou-o, indignado. Que espécie de homem você pensa que eu sou? Acha que eu seria louco para fazer você perder tempo com uma mulher solteira?

14

A Sra. Harvey Lokow tinha dois filhos num colégio interno, quatro milhões de dólares que os pais lhe haviam deixado e um marido que estava convencido de que, se tomasse férias naquele verão, Roosevelt encontraria na sua ausência um jeito de arrumar o país.


— Não poderei ir este ano, — disse ele à mulher. — Ninguém sabe as asneiras que aquele homem da Casa Branca poderá fazer. — Que é que ele pode fazer? E ainda que faça, nós ficaremos com dinheiro suficiente. — Será que você não compreende que estamos num período de crise? — perguntou ele, irritado. — Ele quer largar tudo nas mãos desses malditos sindicatos. — E você vai impedi-lo? — Sim, claro que sim! Ao menos, ele não se meterá nos meus negócios! Ela ficou calada. Os negócios não eram propriamente dele. O pai dela havia fundado a companhia havia muitos anos e Harvey entrara para ela depois do casamento. Com a morte do pai, ela herdara as ações e Harvey se tornara automaticamente presidente. Mas tudo isso havia sido convenientemente esquecido. — Vou para o escritório. — E eu vou para Paris. Sozinha, já que você não quer ir comigo, — dissera ela, tomando repentinamente a decisão. — Você não vai apreciar nada. Não conhece ninguém lá. Ela havia esperado em silêncio que ele se decidisse afinal a acompanhá-la. Mas isso não acontecera e ela estava havia quase uma semana sozinha naquele hotel de Paris pensando no que ele havia dito. De fato, não estava apreciando nada. Estava sozinha numa cidade onde uma mulher sozinha não é nada. Olhou-se no espelho alto quando saiu do banho. Tinha trinta e oito anos e, embora o seu corpo não tivesse mais a firmeza da juventude, não parecia ter a idade que tinha. Os seios ainda eram firmes, felizmente. Nunca tinham sido grandes demais, de modo que não caíam com o próprio peso e a barriga era quase lisa. Mas os olhos eram o que ela tinha de melhor. Eram grandes e de um azul-escuro que brilhava com uma luminosidade própria e um ardor íntimo que o tempo não havia arrefecido. De repente, sem causa aparente, encheram-se de lágrimas. Aborrecida consigo mesmo, embrulhou-se num robe e passou para a sala do apartamento no momento em que batiam na porta. — Entrez, — disse ela, pegando um cigarro. Era o chefe da portaria. — Os seus jornais, Madame. Vendo que ela lutava prontamente um fósforo.

para

acender

o

cigarro,

— Merci, — disse ela, batendo as pálpebras rapidamente.

riscou


Mas ele já vira as lágrimas. — Madame quer o carro para esta noite? Ela hesitou um momento e sacudiu a cabeça. Não havia lugar algum onde uma mulher pudesse ir sozinha. Iria jantar de novo no seu apartamento, na solidão. Não gostava de comer no grande salão do hotel. O chefe da portaria olhou-a. — Quem sabe Madame não estaria interessada num cavalheiro para acompanhá-la à noite? Ela o olhou envergonhada dos seus pensamentos. — Um gigolô? — É claro que não, Madame, — disse ele, notando o leve tora de desgosto na voz dela. Ela pensou nos gigolôs que tinha visto e nas mulheres a quem acompanhavam. Era uma coisa que sempre dava na vista e ela nunca toleraria que a olhassem como olhavam para aquelas mulheres. — Não quero um gigolô. — Nunca me passaria pela cabeça uma coisa dessas, Madame. Mas há um rapaz no hotel que já viu Madame e está com muito interesse em conhecê-la. — Um rapaz? — perguntou ela, sentindo-se de algum modo lisonjeada. — E não é gigolô? — Não, Madame, — disse ele e baixou a voz num tom confidencial. — Tem sangue real. Ela hesitou. — Não sei. O chefe da portaria se aproveitou prontamente da indecisão dela. — Se Madame estiver por acaso na portaria, poderei providenciar para que fale com ele. Se Madame aprovar, poderei tratar então da apresentação. Se não o aprovar, o homem respeitará o desejo de Madame, apesar da decepção que vai sentir. Garanto que não a importunará mais. Embora ela já houvesse decidido que não desceria para ver o homem surpreendeu-se a tomar cuidados especiais com a maquilagem. Olhou-se ao espelho. Os olhos brilhavam com uma luz que não havia neles desde muito tempo. Sentia-se jovem e interessada. Só vou olhar, disse ela consigo mesma, ao sair do quarto. Vou olhar e depois continuar a viver como estou vivendo. Que mal pode haver nisso? Sentiu-se um pouco envergonhada de estar sentada ali na portaria. Estava certa de que todo mundo sabia exatamente o que ela


estava fazendo ali. Olhou para o relógio e decidiu esperar mais dez minutos. Já estava para levantar-se e voltar para o apartamento quando os dois entraram. Era realmente moço, foi a primeira atônita impressão que teve. Mas lembrou-se de repente de que lera em algum lugar que os franceses preferiam as mulheres mais velhas. Era bem alto, foi a segunda impressão. Superava em altura o chefe da portaria e os ombros largos e os cabelos pretos meio revoltos davam-lhe de fato um ar de príncipe. Calculou que devia ter vinte e quatro anos. Mas era a idade dela que a fazia exagerar. Na realidade, Sergei ainda não tinha vinte anos. Correu com os olhos o vestíbulo à procura dela. De repente, os seus olhos se encontraram e ela o viu ficar vermelho. O chefe da portaria não estava então mentindo, pensou ela, surpresa. Só um homem que tem mesmo muita vontade de conhecer uma mulher, fica assim corado ao vê-la. Quando ele virou os olhos, ela fez um sinal afirmativo para o chefe da portaria. No mesmo instante, perplexa com a sua audácia, correu para o elevador. Nunca tivera um caso amoroso desde que se casara e era por isso que tudo parecia irreal em torno deles. O tempo parecia haver parado e, se não havia amor, ao menos o romance estava presente. Naquele dia, três semanas depois, esperou Sergei com uma carta na mão. Sergei compreendeu tudo ao ver a carta e se sentiu triste porque havia acabado por gostar daquela mulher calma e inteligente. — Chegou a hora do seu regresso, não é? — perguntou ele, aceitando um drinque. — Amanhã, — disse ela. — Então vamos ver esta noite a parte de Paris que você ainda não conhece. Passaremos a noite na rua. Ela ficou em silêncio durante algum tempo e disse: — Para mim, já chega de conhecer Paris. Ele largou o corpo e abriu os braços. Ela se jogou neles e Sergei sentiu-lhe o rosto molhado de lágrimas. Ficaram muito tempo em silêncio. O dia morreu, a noite começou e ás luzes se acenderam de rua em rua por toda a cidade. Ela afinal falou. — Vou pedir alguma coisa. Você deve estar com fome. — Não estou. O silêncio caiu de novo e eles ficaram olhando para as luzes.


— Paris é linda à noite. Ele não se moveu. Ela se agitou nos braços dele. — Nunca fui jovem, — disse ela. — Sei disso agora. — Você será sempre jovem. — Agora, sim, serei, graças a você. — Vou levar você até ao navio, — disse ele, de repente. — Não. É melhor desde o trem eu me ir acostumando a ficar sozinha. — Terei saudades de você. — E eu também de você, — disse ela com os olhos sombrios. — Mas você ao menos volta para a sua família, para junto daqueles que a amam. — E você? — Não sei. Meu pai quer que eu vá ficar com ele na Alemanha. Não quero ir, mas... — Não deve ir! — Lá terei o que fazer — disse ele, encolhendo os ombros. — É melhor do que ficar aqui sem fazer nada. — Não, será um erro. O que os nazistas estão fazendo é horrível. É melhor você não ter participação alguma nisso. O Presidente Roosevelt diz... — Ora, o Presidente Roosevelt é judeu! — exclamou ele. — Meu pai diz que o verdadeiro nome dele é Rosenfeld e que ele está aliado aos comunistas. Ela começou a rir e então viu o olhar de espanto dele. — Você me faz lembrar meu marido, que sempre diz essas tolices. — Viu que ele se ofendera e acrescentou: — Desculpe, mas você sabe que isso não é verdade e que o Presidente Roosevelt não é judeu... Ele nada disse. — Você tem é de arranjar um emprego. — Onde? Quem me empregaria? Não há nada que eu possa fazer! Ela sentiu o desespero dele e abraçou-o com força. O pronto calor masculino dele atingiu-a e envolveu-a. Mais tarde, muito mais tarde, ela murmurou timidamente: — Era mesmo a mim que você queria ser apresentado naquele dia na portaria? Não era a qualquer mulher que aparecesse? Ele compreendeu o que ela queria ouvir e disse: — Não, era a você. Desde o primeiro momento em que a vi.


Eram cinco horas da manhã, mas o chefe da portaria estava àespera dele quando Sergei saiu do hotel. — Então? Quanto foi que ela lhe deu? Sergei olhou-o um momento e então, negligentemente, tirou o cheque do bolso. O outro pegou o cheque e deu um assobio. — Sabe de quanto é?Sergei sacudiu a cabeça. Não havia nem olhado. — Cinco mil dólares! Sergei nada disse. Ainda estava pensando na mulher que deixara no quarto. — Você deve ser de aço, — disse o chefe da portaria. — Andou tanto com ela que ela perdeu a cabeça. Não absolutamente por isso, pensou Sergei. Sabia por que o cheque tinha sido tão grande. Era para que ele pudesse ficar em Paris sem ter de ir para onde estava o pai. — E ela prestava? — perguntou o chefe da portaria. — Algumas dessas americanas são muito boas. Sergei olhou-o com frieza, mas o homem continuou: — Bem, isso não tem importância, porque ela vai-se embora amanhã. Há outra mulher no hotel que viu você na portaria. Quando ela me falou sobre você, eu disse que estaria livre a partir de amanhã, isto é, hoje. Ela quer que você jante com ela amanhã à noite. Sergei afastou-se abruptamente. O chefe da portaria ficou a olhá-lo, ainda com o cheque na mão e disse: — Ela quer que você vista o smoking, para acompanhá-la a uma soirée em casa de uma amiga.

15

Dax levantou os olhos da carta. — Parece que afinal de contas não vamos voltar para casa. — Vamos então ficar aqui? — perguntou Gato Gordo. Dax sacudiu a cabeça. — Não. O Presidente resolveu que eu devo fazer o que meu pai queria e ir estudar. Mas não em Sandhurst. Em Harvard. — Nos Estados Unidos? — perguntou Gato Gordo, espantado. — Sim, nos Estados Unidos!


—- Então o Presidente deve estar doido, Dax! Eles nos odeiam! São capazes de matar-nos! — O Presidente sabe o que está fazendo. A universidade onde vou estudar é uma das melhores do mundo. Marcel, que estava de pé ao lado da mesa, perguntou: — Não é para onde vai também seu amigo Robert? — É, sim. Gato Gordo levantou-se. Isso não me agrada nada! É uma terra cheia de índios e de gangsters! Vamos ser assassinados à traição. Tenho visto os filmes deles! — Será que o gordo está com medo? — perguntou Dax, rindo. — Medo nunca! — exclamou Gato Gordo, levantando orgulhosamente a cabeça. — Mas fique sabendo que enquanto estiver lá, nunca dormirei sem minha faca debaixo do travesseiro! Depois de dizer isso, Gato Gordo saiu da sala e Marcel disse então a Dax. — Já há algum tempo que eu estou para falar-lhe uma coisa. — Que é? — Estou com vontade de sair do consulado. — Compreendo. Não era surpresa para Dax. De há muito, não sabia quanto tempo Marcel ainda iria ficar com o ordenado que lhe pagava o Corteguay. De certo modo, era uma sorte que ele tivesse demorado tanto. — Esperarei naturalmente até o novo cônsul ficar familiarizado com o serviço. — Meu país ficar-lhe-á muito grato. Tem alguma coisa em vista? Marcel sacudiu a cabeça. — Tenho quase trinta anos. Está em tempo de eu tentar alguma coisa nova. Não sei ainda exatamente o quê. Mas, se não sair daqui agora, nunca mais sairei. Não era essa exatamente a verdade. A transação já fora feita com o barão e com Christopoulos. O sobrinho do jogador não estava satisfeito com as linhas de navegação. Queria voltar para o movimento das salas de jogo. Christopoulos resolvera trazê-lo para a França, mas só depois que ele passasse mais um ano com as linhas de navegação. Marcel iria para Macau ostensivamente para dirigir o cassino, mas na realidade para aprender o negócio. Tinham também a missão de comprar quantos cargueiros pudesse.


Marcel havia acumulado muito dinheiro, sem que ninguém soubesse. Pretendia usar esse dinheiro como uma entrada para a compra dos navios. Só depois de haver adquirido o título de posse de um navio, passá-lo-ia ao sindicato, mas ainda assim não o venderia logo. Limitar-se-ia a arrendá-lo a longo prazo. Com o dinheiro do arrendamento faria os pagamentos pelos navios e acabaria sendo o proprietário dos mesmos. Tinha certeza de que não teria dificuldade em convencer o sindicato das vantagens desse plano. Reduziria o investimento inicial do sindicato que lhe poderia até agradecer essa maneira de poupar-lhe o capital. A voz de Dax o despertou do seu momentâneo devaneio. — Temos de procurar alguém para substituí-lo. Quem sabe se meu amigo Sergei não está interessado? Ainda no mês passado, ele me disse que precisava de um emprego. Mas não foi preciso encontrar Sergei. A concierge do seu apartamento disse que naquela mesma semana ele havia arrumado tudo o que era dele e se mudara sem deixar o seu novo endereço. A única conclusão a que Dax pôde chegar foi de que seu amigo tinha ido viver com o pai na Alemanha. Sergei estava aborrecido. Nada o entediava mais do que o jogo. Fossem cartas ou roleta, o simples fato de ter de ficar sentado e esperar era intolerável para ele. Mas a velha já o havia esquecido na sua absorção. Aquela não era como a americana. Era uma francesa muito sabida, muito velha e muito rica que sabia exatamente o que queria. Queria apenas a companhia de um homem moço e de boa figura e Sergei correspondia perfeitamente às suas exigências. No momento em que o viu na portaria do hotel, teve certeza disso. O acordo feito tinha sido simples e direto. Sergei lhe serviria de companhia. Teria um salário de dois mil francos por dia e ela pagaria todas as suas despesas, inclusive de roupas. Dois dias depois, haviam partido para Monte Cario. O cassino realizava duas sessões por dia e ela comparecia a ambas. Às vezes, Sergei se espantava com a firme determinação com que ela jogava fora o seu dinheiro, mas, ao fim de algum tempo, não pensou mais nisso. Parecia que a fonte de onde ela tirava o dinheiro era inesgotável. Duas semanas já haviam passado e ela não parara uma só vez. Estavam começando a terceira semana com outra sessão de matinê. Sergei se levantou da mesa e foi até ao terraço. Olhou para o porto. Os iates brancos cintilavam nas límpidas águas azuis e o


palácio se elevava róseo na colina do outro lado. Desceu a escada para o jardim. Sentiu fortemente o aroma das flores depois do ambiente confinado e asséptico do cassino. Ficou no fundo do jardim, com as mãos nos bolsos a olhar para o mar. — Isto é muito bonito, não é? Era alguém que falava às suas costas e Sergei voltou-se, surpreso. Havia uma regra tácita de que nunca se devia falar com desconhecidos no recinto do cassino. Era um velho, sentado num banco, com as mãos pousadas no castão de ouro de uma bengala, os cabelos brancos e a barba branca muito bem tratada quase a confundir-se com a brancura do seu temo de seda. Não era preciso ninguém dizer a Sergei quem era aquele homem, embora fosse a primeira vez que o via. Dizia-se que o velho era o maior negociante de munições do mundo e também que era o dono do cassino onde estavam. O seu iate era o maior e o mais belo do porto. Sergei respondeu automaticamente em russo. — Muito bonito de fato, Sir Peter. — Você é Sergei Nikovitch, não é? — Da. — Tem tido notícias de seu pai, o Conde Ivan? — Não, senhor. Recebi apenas uma carta, logo depois que ele chegou a Berlim. O velho voltou a cabeça para o mar e pareceu olhar para bem longe. Não compreendo por que esses bobos perdem tempo jogando quando há tanta beleza aqui fora. Sergei nada disse. — Seu pai também está perdendo tempo, Sergei. A Mãe Rússia que nós amávamos está perdida para sempre e nós nunca mais a veremos. Sergei continuou calado. — Mas seu pai é cossaco e que é que um cossaco sabe fazer senão lutar? Mesmo quando a batalha está perdida, o cossaco não desiste. A voz do velho perdeu o seu tom filosófico, tomou-se mais áspera e ele voltou pára Sergei os penetrantes olhos azuis. — Mas ao menos seu pai tem suas razões para o que está fazendo. Quais são as suas?


Sergei ficou tão espantado com a pergunta que não pôde responder. O velho continuou. — Está aqui com uma velha idiota que tem tanto dinheiro que não sabe mais o que fazer com ele. Perde então os dias em lugares como este. E consegue que você a acompanhe como um boneco para ganhar dois mil francos por dia. Nada havia que o velho não parecesse saber. Sergei se limitou a olhá-lo. — Você me envergonha, Sergei Nikovitch! — disse o velho indignadamente, levantando-se. — Você me envergonha! Sergei conseguiu afinal falar. — Mas que era que eu podia fazer? — Podia ir trabalhar como envergonhou do trabalho honesto.

fez

seu

pai.

Ele

nunca

se

Quando o velho começou a afastar-se, dois homens apareceram misteriosamente e colocaram-se cada qual de um lado dele, Sergei olhou-os surpreso, mas para o velho aquilo pareceu a coisa mais natural do mundo. Os seus guarda-costas estavam sempre junto dele. — Vá jantar comigo esta noite, — disse ele, falando por cima do ombro. — Às sete horas. Seja pontual. Já estou velho e não gosto de comer tarde. A casa branca, com colunas e chão de mármore, ficava bem no alto do monte mais alto de Mônaco. Era mais alta do que até o palácio róseo dos Grimaldis, que eram os governantes titulares do pequeno país, porque mesmo eles aceitavam o fato de que Peter olhasse de cima para eles. Através da comprida mesa de mogno, Sergei olhou para Sir Peter e do outro lado para a sua jovem esposa francesa. Ela estava ali muito tranquila com todos os seus brilhantes e pérolas brilhando à luz das velas. Durante todo o jantar, mal havia aberto a boca. — Meus filhos morreram, — disse de repente o velho, — e eu preciso de um homem moço em quem possa confiar. Alguém cujas pernas sejam mais fortes do que as minhas e váaonde eu não posso mais ir. O horário é longo, o trabalho enfadonho e exaustivo, o salário pequeno. Mas eu lhe darei a oportunidade de aprender. Interessa-lhe? — Sim, muito, — disse Sergei, voltando-se para ele.


— Muito bem, — disse o velho, com satisfação na voz. — Agora, vá até ao hotel e diga a Madame Goyen que não voltará com ela para Paris. — Ela já voltou sozinha, Sir Peter, — disse Sergei, gostando do leve ar de surpresa que se estampou no rosto do velho.. Tinha havido uma cena naquela tarde. A causa fora o fato de que a velha tinha achado que não podia jantar sozinha. Considerava uma humilhação aparecer no salão do hotel para jantar sozinha ou mesmo pedir comida no quarto. Todo mundo sabia que Sergei estava com ela. Que iriam pensar quando a vissem sozinha? Mas Sergei tinha sido irredutível e ela, impulsivamente, arrumara as malas e partira. Sergei, na verdade, só havia sabido da partida dela ao descer do quarto para ir jantar com Sir Peter. O gerente o chamara discretamente para um canto e lhe apresentara a conta. Sergei ficou indignado. A imunda velha o deixara sem ao menos pagar o quarto. — Tratarei disso amanhã. O gerente foi delicado, mas firme. — Desculpe, cavalheiro. O dinheiro tem de ser pago esta noite. A conta lhe levou quase todo o dinheiro e ele se via na mesmasituação em que começara. No dia seguinte, teria de sair do hotel e procurar algum alojamento mais barato. Já havia decidido que não voltaria para Paris. — Ótimo, — disse Sir Peter. — Amanhã, pegue o que é seu no hotel e venha para cá. — Sim, senhor. Sir Peter levantou-se. — Estou cansado e vou dormir. Sergei levantou-se mas Sir Peter fez sinal para que ele ficasse sentado. — Se vai ficar aqui, tem de habituar-se com isso. Vou-me deitar todas as noites imediatamente depois do jantar. — Voltou-se para a mulher e disse com voz mais terna: — Fique com o nosso convidado. Não há razão para você subir cedo esta noite. Houve silêncio na mesa depois que o velho saiu. Sergei levantou a xícara de café e olhou a mulher, pensando na espécie de vida que ela poderia ter com aquele velho. Mas ela não estava pensando nele. Estava pensando em Sir Peter e no homem bom e inteligente que ele era. Sir Peter olhou-os da balaustrada no alto da grande escada e sorriu. Tinha oitenta anos e sua mulher vinte e oito. Tinha vivido


bastante para saber que uma mulher jovem precisava de mais alguma coisa do que de jóias, riquezas e uma afeição tranquila. Viuos levantarem-se da mesa e irem para o terraço. Dirigiu-se para o seu quarto. Entrou e fechou a porta. Tinha feito o que era justo. Era melhor que ela se entendesse com um bom moço como Sergei do que com um dos tipos equívocos que andam sempre na vizinhança dos cassinos. Além disso, com Sergei, ele podia sempre manter a sua vigilância sobre as coisas. Se a qualquer tempo houvesse sinais de alguma coisa mais séria, poderia sempre mandar o rapaz embora.

16

Sergei não levou muito tempo para descobrir que não era mais do que um moço de recados enfeitado. Muitas vezes, naqueles primeiros meses, ficou sem saber por que Sir Peter se dera ao trabalho de contratá-lo. Mas um dia tudo se tomou claro. Voltara naquela manhã do banco em Monte Cario com vários papéis que o velho tinha imediatamente de assinar. Entrou diretamente na biblioteca que servia ao velho de escritório e encontrou Madame Vorilov ali sozinha. Ela levantou os olhos do jornal que estava lendo. Sergei hesitou à porta. — Não queria perturbá-la, Madame, — disse respeitosamente. — Trouxe alguns papéis para Sir Peter assinar.

ele

— Entre, — disse ela, sorrindo. — Sir Peter foi para Paris. Sergei se espantou. Em geral, sabia resolviaviajar, o que, aliás, era muito raro.

quando

Sir

Peter

— Acho que devo então ir para lá também. Os papéis são importantes. — Podem esperar até amanhã.É quando ele deve estar de volta. — Muito bem, Madame, — disse Sergei ainda da porta. — Vou até ao banco informar. — Leva o seu trabalho muito a sério, não é? — perguntou ela com um sorriso. — Não compreendo. Ela apontou para o telefone. — Aquilo pode dar mais rapidamente a informação de que os papéis não podem ser assinados hoje. — Mas...


— Não seja bobinho. Telefone e tome férias pelo resto do dia. Você ainda não se concedeu uma folga desde que veio para cá. — É muita bondade da sua parte, — disse ele, sorrindo e entrando na sala. — Mas eu não saberia como matar o tempo se estivesse de folga. Ela se levantou e foi até à janela. Lá embaixo, a baía se estendia com os seus iates brancos e as suas velas. — Sir Peter não lhe dá muito tempo para divertir-se. Ele colocou os papéis dentro de uma pasta em cima da mesa e pegou o telefone. — Não acho que ele tenha essa obrigação. Ela se voltou de repente para ele. — Sabe por que foi que ele lhe deu esse emprego? Ele a olhou, com o telefone esquecido nas mãos. — Não, e bem que gostaria de saber. Não parece precisar absolutamente de mim. — Você foi empregado por minha causa. Ele pensou que eu precisava de você. Sergei largou o telefone. — Ele me ama, — continuou ela, — e quer que eu tenha tudo. Foi por isso que trouxe você aqui para casa. — Ele lhe disse isso? — Claro que não. Acha que ele seria tão sem tato a ponto de dizer que tinha trazido um amante para mim para dentro de casa? — Desculpe, mas eu não sabia... — Claro que não sabia e é uma coisa que me agrada em você. Sempre foi muito cavalheiro para que uma coisa dessas lhe passasse pela cabeça. — Quando Sir Peter voltar amanhã, vou despedir-me. Ela olhou para ele. — Você é um cavalheiro. Para onde vai? Que é que vai fazer? Tem algum dinheiro? Ele pensou nos cem francos por semana que Sir Peter lhe pagava e sacudiu a cabeça. — Então não seja idiota. Só saia daqui quando tiver dinheiro. — A cem francos por semana? — Isso foi uma coisa que Sir Peter me ensinou, — disse ela. — Há sempre uma oportunidade de ganhar dinheiro quando se vive ao lado de muito dinheiro.


— Infelizmente, parece que eu não tenho nenhum talento para ganhar dinheiro. — Não gosta de trabalhar, não é mesmo? — Decerto que não, — disse ele, rindo. — É muito aborrecido e nunca a gente se diverte. Para mim, chega. — Como é que espera então conseguir dinheiro? — Sei lá! Talvez encontre uma americana rica que esteja disposta a casar-se comigo. — Neste caso, talvez fosse preferível servir de gigolô a Madame Goyen. — De qualquer modo, é preciso ter dinheiro para ganhar dinheiro, — disse ele. — Quem sabe? Talvez eu possa ajudá-lo. Agora, pode ir. Tem o resto da tarde de folga. Ele bateucom a cabeça e saiu da biblioteca, mas não saiu da casa. Em vez disso, foi para o quarto, tirou as roupas suadas e tomou um banho de chuveiro. Depois, estendeu-se na cama e acendeu um cigarro. Antes de chegar ao fim, ouviu a esperada batida em sua porta. Sorriu, apagou o cigarro, enfiou um robe e abriu a porta. — Entre. — Tenho uma ideia que pode ajudá-lo. — Sério? Ele viu os olhos da mulher se voltarem para a frente aberta do seu robe, ao mesmo tempo que o rosto dela ficava vermelho. Fez um esforço para olhar para o lado, mas não conseguiu vencer a fascinação que aquela visão lhe provocava. — Eu... — Pois eu tenho uma ideia melhor, — disse ele, abraçando-a e levando-a para a cama. — Acho que já está em tempo de fazer jus ao meu salário. — Preciso falar com você, — disse ela, quando entrou na sala de jantar. — Não suba depois do jantar. Ele fez um sinal de que havia compreendido e foi para o seu lugar de costume na mesa. Ficou de pé até Sir Peter chegar e então os dois se sentaram. Depois do jantar, Sir Peter foi dormir, como sempre. Sergei foi para o terraço e ficou esperando. Pouco depois, ela apareceu. Encos-


taram-se ao parapeito, olhando o sol chamejante que se escondia por trás das montanhas. — Estou grávida, — disse ela. — Com trinta e dois bidés nesta casa... murmurou ele surpreso, mas conteve-se. — Tem certeza? Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça. Estava muito pálida. — Será que Sir Peter considerou essa possibilidade? Ela não respondeu. — Já disse a ele? Não. — E que é que vai fazer? — Já falei com o meu médico para tomar as providências. — Não vai poder. Ele descobrirá. — Mas tenho de arriscar-me, — disse ela, desesperadamente. — Que mais posso fazer? Ele acendeu um cigarro e olhou-a pensativamente. — Quando? — Amanhã. Ele vai passar a tarde toda numa reunião no banco. Você terá de me levar de carro para a cliniquee de me trazer de novo para casa. Não confio nos empregados. Encontrarei algum pretexto para passar alguns dias de cama. — A que horas? — Não descerei para almoçar. Fingirei de manhã que não me estou sentindo bem. — A que horas? — Depois do almoço. Logo que ele sair para o banco. — Pousou a mão no braço dele e disse: — Sinto muito. — E eu também, — disse Sergei, olhando para ela. Ela ainda ia dizer alguma coisa, mas mudou de ideia. Entrou na casa. Ele a viu subir a grande escadaria e voltou-se para olhar o mar. O sol desapareceu e a noite caiu. Mas ele não saiu dali. Ela olhou para o relógio. Quase duas e meia. Ouvira a grande limusine descer a ladeira havia mais de meia hora. E nada de Sergei! De repente, bateram de leve na porta e ela se levantou e foi abrir. — Por que demorou tanto? — perguntou ela, mas no mesmo instante as palavras lhe morreram na boca. Não era Sergei que estava ali. — Posso entrar?


— Sem dúvida, — murmurou ela, recuando da porta. — Sergei lhe disse? — Disse. Ele viu as lágrimas nos olhos dela e a sua voz que murmurava: — Não é preciso dizer-lhe quanto sinto o que aconteceu... — Mas está chorando por quê? — perguntou o marido, olhandoa firmemente. — Não há motivo algum para isso. Vamos ter um lindo filho! Sergei ia no trem naquela tarde, olhando a paisagem. Havia momentos em que se podia descortinar a vastidão do Mediterrâneo da corniche por onde passavam os trilhos. Em outras ocasiões corria por entre duas montanhas, que pareciam guardá-lo como sentinelas gêmeas. Olhou para o jornal que tinha na mão sem realmente vê-lo. Sabia que havia agido bem. E não sabia disso apenas pelo fato de Sir Peter haver-lhe dado cem mil francos. O olhar de alegria do velho é que lhe havia revelado isso. Ele não fora contratado apenas para ter um caso com ela. Fora mais do que isso. Tinha sido contratado para fazer o que o velho nunca poderia fazer e agora estava feito. Um sorriso lhe crispou os lábios. Não era mau. Cem mil francos para servir de reprodutor não era nada mau. Assim, sim. Era melhor do que trabalhar para viver.

17

— A primeira coisa que você terá de fazer será comprar algumas chinesinhas. A língua era o francês mas com um forte sotaque gutural grego. O sobrinho de Christopoulos não era absolutamente como Marcel o havia imaginado. Era baixo, mas esbelto e muito simpático. Os seus ternos irrepreensivelmente talhados, em muitas coisas superiores a tudo o que Marcel via na Europa. — Afaste-se dos refugiados, -— continuou Eli. — As mulheres brancas só lhe darão aborrecimentos. Se não pegar uma doença, acabará em confusões com a policia. Elas andam sempre metidas em conspirações e encrencas. — Para que preciso de qualquer mulher? — perguntou Marcel. — Posso passar perfeitamente sem elas.


— É o que você pensa. Você ainda não conhece a espécie de mulheres que há por aqui. No momento em que você aparecer, estenderão a mão para você e não descansarão enquanto não o segurarem. E há mais uma coisa. Os chineses são uma raça esquisita. Só aceitam a gente depois que a gente os aceita. — E comprar pequenas chinesas indicará isso? — Indicará isso e mais ainda: que você pretende ficar por aqui. O fato de ficar ou não é sem importância. Uma vez que você compre uma pequena, passa a ser responsável por ela. E será sempre, ainda que saia daqui, pois ela ficará no seu lugar. Compreende? Marcel concordou. Era estranho, mas compreendia. — Depois, terá de comprar roupas decentes. — Que é que há com as minhas roupas? Mandei fazê-las antes de sair de Paris. — São muito européias, — disse Eli. — Só os refugiados usam aqui roupas européias. Além disso, os franceses são os piores alfaiates do mundo para roupas de homem. Há bons alfaiates em Hong Kong. — Isso não! — gemeu Marcel. A viagem da noite anterior no pequeno vapor de Hong Kong tinha sido a pior parte da viagem desde Paris. — Não voltarei ali! — Isso não será necessário, — disse Eli, rindo. — O meu alfaiate virá aqui para as provas. — Mas que é que eu vou fazer com as roupas que já comprei? — Dê-as a alguém, — respondeu displicentemente o grego. — Talvez algum chinês as aceite em troca de outra coisa, possivelmente uma criada. Mas não receberá muito por elas. — Levantou-se e disse: — Vamos. O meu apartamento fica no edifício nos fundos do cassino. — Eu gostaria de ver tudo antes, se é possível. — Sem roupas adequadas, não. Só Deus sabe quanta face você já perdeu quando atravessou o cassino carregando a sua bagagem! Bateu palmas e um empregado apareceu para levar a bagagem de Marcel. — Não podemos nem ir comprar as pequenas enquanto você não tiver roupas. Nenhum chinês respeitável seria capaz de vender uma filha a um homem vestido como você! Ela se chamava Lótus de Jade. Tinha quatorze anos e era muito delicada. A pele linha a cor do marfim róseo, os olhos eram grandes e negros e o rosto de um feitio oval muito puro e não redondo como o da maioria das chinesas. Andava de maneira tão graciosa e leve


sobre os pés como se estes não tivessem sido absolutamente enfaixados. Marcel podia dizer só de vê-la que não era como as outras. Olhou para o pai dela. O homem estava calmamente sentado, tomando o seu chá. Marcel voltou-se para Eli. Também ele estava em silêncio, tomando chá. Um momento depois, falou, mas em cantonês, língua que Marcel não compreendia. — Seu chá tem a fragrância de mil flores, Venerável Tao. — É uma débil tentativa de agradar ao gosto dos meus veneráveis hóspedes, — replicou o chinês suavemente. — Concede-me permissão para falar em inglês? É a língua do meu amigo. — Sem dúvida, — disse Tao com uma gentil mesura. Dirigiu-se a Marcel: — O francês é uma língua que eu muito aprecio. Tem uma música muito semelhante à nossa. Marcel não pôde ocultar o seu ar de surpresa, mas se lembrou de, ser polido. — Agradeço a indulgência que mostra pela minha ignorância. O chinês curvou-se graciosamente. Apanhou um martelinho emcima da mesa e bateu num pequeno gongo. Antes que o som musical tivesse morrido, o chá tinha sido levado e haviam colocado um comprido cachimbo fino diante dele. Ele colocou o bojo raso sobre a chama de uma pequena vela dentro de um copo no centro da mesa. Depois, virou o bojo para que a chama pudesse atingir-lhe o interior. Por fim, levou o cachimbo delicadamente à boca. Marcel olhava-o fascinado. Nenhum dos homens de quem haviam comprado as duas primeiras pequenas era como aquele. Em comparação com ele, pareciam comuns e até vulgares. Você precisa é de uma moça de boa casta, — havia-lhe explicado Eli. — Uma moça de boas maneiras e boa educação que possa servir de dona-de-casa e ser a sua esposa número um. Será ela que receberá seus amigos e dirigirá sua casa. Ela manterá sua face. — Vamos consegui-la então, — tinha dito Marcel, que estava cansado das demoras, primeiro as roupas, agora as pequenas. Estava começando a achar que nunca o deixariam entrar no cassino. — Não é tão fácil assim, — dissera Eli. — Não há muitas moças boas disponíveis. Em geral, os chineses ricos as querem para si mesmos. — Que é que devo fazer então? Esperar até conseguirmos uma?


— Calma, amigo, isto aqui é o Oriente e não a França. As coisas aqui não se fazem tão depressa quanto em sua terra. Mas não perca a esperança. Soube de umapequena que poderá preencher todas as exigências, mas... — Mas o quê? — interrompeu-o Marcel com impaciência. — Vamos logo consegui-la e pronto! — Com tanta pressa, não. Há alguma coisa com a moça. Já está velha e ainda não foi escolhida. Pedi aos meus agentes que investigassem o caso. — Velha? — exclamar a Marcel. — Que idade? — Mais de quatorze anos. — E você diz que é velha? — É velha, sim, num país onde as meninas mais dotadas se casam com oito ou dez anos. Por fim, os agentes fizeram um relatório satisfatório. Lótus de Jade era muito bela, bem-educada e muito instruída. Cantava com uma bela voz e tocava vários instrumentos, inclusive a pequena lira de que os chineses tanto gostam. Eli teve de fazer muitas perguntas para saber por que ainda não tinha sido escolhida e afinal o defeito foi revelado. Lótus de Jade caminhava como uma mulher ocidental. Era como se os pés dela nunca tivessem sido enfaixados. O pai chamara vários especialistas, mas eles nada haviam podido fazer. Ele se havia resignado então a tê-la para sempre em casa. Naquele momento, o homem olhou benevolamente para Marcel e disse: — A fragrância da papoula é muito repousante depois do chá. Marcel admirou-se de uma civilização que permitia uma pessoafumar calmamente uma cachimbada de ópio depois do chá e persistiaem enfaixar os pés das meninas apesar de todas as leis baixadas para reprimir o costume. Devia estar na hora do início das negociações. — Meu amigo veio aqui para estabelecer um lar, — disse Eli. — Que os deuses da fortuna o assistam, — disse o chinês. — É um homem de muita posição no mundo do Ocidente. — Sinto-me honrado de que ele tenha entrado em minha casa. — Ele está à procura de uma esposa número um, — prosseguiu Eli, — alguém com quem ela possa compartilhar da sua velhice e dos seus bens.


— Muitos ocidentais têm assim falado, — disse o chinês, — mas acabaram voltando para a sua terra e deixando lares vazios e corações partidos. Marcel sentiu-se desanimado. O chinês estava contra ele. Olhou para Eli. Mas este tinha uma resposta pronta. — Meu amigo está disposto a fazer um seguro contra essa possibilidade, embora tenha certeza de que ela nunca virá a ocorrer. Tao fumou o cachimbo e disse: — Acabei por depender de Lótus de Jade. Ela é sem dúvida alguma a mais inteligente e mais bela de todas as minhas filhas. — E é também a mais velha, quase além da idade de um casamento favorável. — Só porque tenho tido muito cuidado na escolha de um marido para ela. Tão bela flor exige um jardim todo especial. — O excesso de cuidado tem levado muitas moças para os jardins do outro lado da montanha, — replicou Eli. Todos sabiam o que isso significava. As moças mais velhas eram vendidas para os bordéis do outro lado do porto. A expressão de Tao não mudou quando ele olhou para Marcel. — Como é que se pode julgar a afeição de outra pessoa? — Meu amigo oferece mil dólares de Hong-Kong como prova da sua sinceridade. O chinês fez um gesto displicente com o cachimbo. — Isso não passa de uma insignificância comparado com a estima que tenho por Lótus de Jade. Marcel viu com surpresa Eli levantou-se. — Agradecemos ao Venerável Tao a sua hospitalidade graciosa e pedimos mil perdões por ter-lhe tomado o precioso tempo. Tao ficou inquieto com essa terminação abrupta das negociações. A despeito de si mesmo, as palavras lhe saíram dos lábios. — Um momento, um momento. Por que é que os ocidentais estão sempre com tanta pressa? De trás do grande biombo, Lótus de Jade tudo observava e sorriu quando Eli tornou a sentar-se e as negociações recomeçaram. Ela havia notado que o homem que fora comprá-la não se havia levantado quando seu amigo assim fizera. No dia seguinte, um robusto policial português estava sentado diante da mesa de Eli. Tirou um lenço e enxugou o suor do rosto.


— Chegou ao nosso conhecimento que seu amigo está comprando esposas, — disse ele, olhando para Marcel. — Sabe que há leis que proíbem esses costumes? Eli riu. — É contra a lei um homem contratar empregadas para a sua casa? — Decerto que não, — disse o policial, sorrindo. — Mas julguei que era uma boa oportunidade para conhecer o seu amigo. Eli fez as apresentações. — O tenente e detetive Goa mantém-se vigilante por nós caso haja alguma dificuldade. Os dois homens se apertaram as mãos. — Todos os meses ele recebe um envelope com dez mil dólares de Hong-Kong. Ninguém conseguiu saber ainda de onde vem esse envelope. O policial riu. — Há sempre dois homens extras de serviço aí fora todas as noites. Marcel olhou para Eli. — E tem havido algum problema? — Nos anos que passei aqui, não — disse Eli. Marcel voltou-se para o policial, com um sorriso: Talvez um policial aí fora seja bastante. Dessa maneira, as suas despesas poderiam ser cortadas pela metade. A risada franca do policial ressoou pela sala. — Acho que seu amigo e eu vamos nos entender muito bem. Soube que ele contratou Lótus de Jade, filha do velho Tao,como dona-de-casa. É um sujeito de sorte. Há muito tempo, tenho de olho aquela pequena, mas estava esperando que o preço baixasse para ficar ao meu alcance. Os jogadores de fan-tan sentados à grande mesa levantaram a cabeça quando viram Marcel eEli atravessarem o cassino. — O novo proprietário, — disse um deles. — Pelas roupas pode ver-se que é um homem de riqueza e posição, — disse outro. — Muito inglês. O que ele queria realmente dizer era que Marcel era claro e tinha cabelos castanhos, sendo diferente de Eli, que era moreno. — Só um homem de grande riqueza poderia abrir sua casa comprando quatro esposas numa semana! — disse outro jogador.


— Sim, — acrescentou o primeiro, — e uma delas, que será a esposa número um, é a filha de Tao, Lótus de Jade. Vocês conhecem o velho Tao. Aposto que o ocidental pagou um bom dinheiro, ainda que os pés dela não sejam como devem ser. — Vamos começar o jogo, — disse outro com impaciência. — Todos sabem que os ocidentais são pouco inteligentes a respeito dessas coisas.

18

O cheiro da cidade velha era penetrante quando Marcel virou para a rua estreita. Ali não era possível fugir dele. Os prédios altos conservavam a rua permanentemente na sombra e mal havia espaço para passar um ricksha, quanto mais um automóvel. Marcel correu os olhos pela rua. Ao fundo ficavam os cais. Os gritos dos vendedores de peixe ecoavam pela rua tortuosa e por toda a parte havia o cheiro do peixe que não fora vendido e apodrecia no chão. Os mendigos esperavam ansiosamente que os vendedores dessem as costas. Um garoto puxou Marcel pelo braço. Era pequeno e não devia ter mais de oito anos, mas os olhos eram bem velhos. — Poontang, mister? Marcel sacudiu a cabeça. — Muito limpa. Estilo ocidental. Oriental. Moça, como quiser. Marcel sacudiu de novo a cabeça. Mas o garoto não desanimava assim. — Oitoanos? Cinco? Meninos? Gosta de meninos? Muito bom. Marcel não se deu ao trabalho de responder. Abriu a porta da casa onde o garoto estava e entrou. O forte cheiro de incenso com que se pretendia esconder o cheiro de ópio chegou-lhe ao nariz. Resistíu ao impulso de espirrar quando o jovem chinês se aproximou dele. Do outro lado da porta fechada, ouviu-se a voz do garoto da rua num palavrão. O jovem chinês fechou a cara. — Não sei o que está havendo com as crianças hoje em dia. Não têm respeito pelos mais velhos. Peço mil desculpas. Marcel sorriu.


— Não tem importância, Kuo Minh. A árvore deixa de ser responsável pelos frutos que caem ao chão. Kuo Minh curvou-se. — Mostra muita compreensão. Meu pai e meus tios estão esperando lá em cima. Subiram os velhos degraus desconjuntados até o último andai do prédio. Embora já houvesse passado muitas vezes por ali, Marcel sempre se admirava da diferença que havia entre aquele andar e os outros. De repente, os corredores apareceram esquisitamente incrustados de teca e madeiras raras e as portas eram de ébano ricamente polido com enfeites de marfim. Kuo Minh abriu uma dessas portas e afastou-se para o lado a fim de deixá-lo passar. Uma bela moça com o traje tradicional de seda ajoelhou-se aos seus pés para tirar-lhe os sapatos e calçar-lhe sandálias chinesas. Quando ela desapareceu,Marcel entrou com o jovem chinês na sala ao lado. Os quatro homens que estavam sentados à pequena mesa Ievantaram-se e fizeram uma mesura. Marcel correspondeu ao cumprimento e aceitou o convite do pai de Kuo Minh para sentar-se. Quase no mesmo instante, outra moça levou chá. Os quatro homens esperaram polidamente que o hóspede acabasse o chá. Como de costume, foi o pai de Kuo Minh quem falou. Só depois que trocaram frases gentis sobre a saúde de Marcel e a saúde de suas quatro esposas foi que começaram a tratar de negócios. — Tem alguma resposta sobre as armas? — Tenho, — respondeu calmamente Marcel. O velho olhou para os outros e voltou-se de novo para Marcel. — Muito bem. Podemos pagar com uma boa quantidade de papoula. Marcel deixou que um ar pesaroso lhe aparecesse no rosto. — É com muita relutância que tenho de comunicar que o meu cliente está interessado em navios e não em papoula. O pai de Kuo Minh prendeu a respiração. Mas o nosso comércio sempre foi feito com apapoula. — Consta que o mercado está ruim para a papoula. De qualquer maneira, é em navios que o meu cliente está interessado. Os chineses começaram a falar rapidamente entre si. Marcel nem tentou seguir o que diziam. Estavam falando muito depressa para o seu chinês ainda reduzido. Além disso, não importava muito que ele compreendesse ou não. Sabia muito bem o que queria.


Fazia mais de um ano que tinha chegado a Macau. E naquele ano havia ficado mais rico do que jamais sonhara. Quase que com a primeira transação. As armas é que tinham feito isso. As armas e o ópio. Todos os senhores da guerra queriam armas. A única maneira pela qual estas podiam chegar à China era de contrabando nos pequenos barcos de pesca que navegavam entre o continente e Macau. E a única maneira pela qual podiam pagar era com a papoula. Mas os japoneses tinham sido muito mais espertos do que Marcel previra. Embora tivesse muito dinheiro para negociar, isso era uma ninharia em comparação com o que os japoneses queriam pelos seus navios. Foi nessa época, quando procurava desesperadamente meios de aumentar o seu capital, que se meteu no tráfico de armas. Tudo começara quando se havia encontrado o corpo de um homem boiando no mar perto do cais. O tenente Goa estava no escritório de Marcel quando foram dar-lhe a notícia. Levantou-se, sacudindo a cabeça. — É um caso que nunca resolveremos. O morto é um dos agentes de Vorilov. — Sir Peter Vorilov? — Sim. Ele faz muitos negócios por aqui. No momento em que fez a pergunta, Marcel compreendeu que a mesma era idiota. — Mas vender munições não é contra a lei? O policial o olhou de maneira peculiar e perguntou: — Quase tudo o que se faz não é contra a lei? Mal o policial saiu, Marcel correu para pegar o vapor da tarde para Hong-Kong. Não queria passar um telegrama de Macau. Tinha certeza de que a polícia recebia cópia de todos os seus telegramas. O que mandou para Sir Peter Vorilov, em Monte Cario, estava assim redigido: “Seu agente Macau morto. Ofereço meus serviços sujeito aprovação Christopoulos. Esperarei resposta Hong-Kong Hotel Península, Kowloon, vinte e quatro horas.” A resposta chegou em menos de doze horas. Dizia: “Serviços aceitos”. Estava assinado “Vorilov”. Dois dias depois, Kuo Minh havia aparecido em seu escritório. Outros também apareceram e era sempre a mesma coisa. Armas em troca de papoulas. Em menos de uma semana, ele descobriu que as armas que Vorilov vendia eram antigas e não tinham saída em qualquer outro lugar do mundo e que o preço que ele recebia no estrangeiro pela papoula era mais de cinco vezes o que ela lhe


custava. Estava realmente lucrando dos dois lados em cada transação. Um ano depois, quando recebeu do banco suíço o extrato da sua conta, ele próprio ficou surpreso. Tinha a seu crédito mais de três milhões de dólares em ouro. Foi então que Marcel resolveu voltar aos seus planos iniciais. Comprar navios. Mas, se ele abordasse os japoneses, estes perceberiam o seu interesse. O único recurso era fazer os chineses conseguirem os navios para ele. Por fim, o velho se voltou e falou rapidamente com o filho, que depois disse a Marcel: — Dizem que não têm dinheiro para comprar os navios. Só têm papoula. E os homens macacos não recebem papoula. Marcel fingiu que estava pensando sobre o que haviam dito. — Sabem de algum navio que possam conseguir? Os homens conversaram rapidamente entre si. Dessa vez, o velho falou diretamente a Marcel: — Há pelo menos dez navios velhos que podemos comprar, mas são muito caros. Talvez custem ainda mais. Marcel conservou-se impassível. — Quanto? — Não adianta, — replicou o velho, — pois não temos o dinheiro. Marcel voltou a fingir que estava refletindo. —Ajudaria se eu conseguisse outro mercado para a sua papoula? — Ajudaria muito, — disse o velho. — Vou procurar informações, mas duvido de que possa obter preços tão altos. — Seremos sempre seus devedores. Bon, — disse Marcel, levantando-se. — Falarei logo que tiver alguma resposta. Todos se levantaram e cumprimentaram-no cerimoniosamente. Depois que os passos de Marcel se afastaram pelo corredor, voltaram a conversar. — São todos a mesma coisa, — disse um deles. — Mais cedo ou mais tarde, a ambição acaba vencendo-os. — Sim, — disse o outro. — Seria de esperar que ele ficasse satisfeito em roubar tanto a nós quanto ao russo. Mas não, isso não lhe basta. Agora, quer ainda mais para comprar os seus malditos navios.


— Acho que já está na hora de mandá-lo fazer companhia ao outro nas águas da baía,.— disse um terceiro. Kuo Minh voltou à sala no momento em que seu pai levantava a mão. — Não, meus amigos, ainda não está na hora. Não poderemos ficar parados até que o russo encontre um substituto para ele. — Vamos deixar então que ele nos roube ainda mais? — Não, ele não nos roubará, —disse calmamente o pai de Kuo Minh. — Logo que soubermos quanto ele nos quer pagar a menos pela papoula, dobraremos a diferença e acrescentaremos isso ao preço dos navios que ele deseja. — Ele ficou rico, — disse Christopoulos, irritado. — Em menos de um ano, juntou três milhões nos bancos suíços. Estamos sabendo agora que é o dono dos vinte navios que devia comprar para nós. E ainda tem a coragem de dizer que pode arrendar-nos os navios. — Que é que você quer que eu faça? — perguntou Sir Peter. — Esse dinheiro saiu de algum lugar. Desde que a escrita do cassino está em ordem, é de você que ele deve estar roubando. Sir Peter sorriu. — De mim, não. As contas dele são meticulosas e exatas. Recebeu para mim o preço exato em todas as transações. — Deve estar então cobrando demais aos seus fregueses. — Pouca sorte deles, — disse Sir Peter. — Os meus preços são suficientemente altos para me satisfazerem. Se eles querem pagar mais, não posso impedi-los. — Nada pode tentar então para fazê-lo parar? — Não tenho motivo para fazê-lo parar, — disse Sir Peter. — Só você tem e só você pode. — Como? — Não arrende os navios. Que é que ele vai fazer com vinte, navios sem carga? Em menos de um mês estará arruinado. — Então os japoneses retomarão os navios e nós estaremos na mesma situação anterior. — Pior para você, — disse Sir Peter e olhou para o relógio. — Tenho de ir-me embora. Está quase na hora de meu filho ir para a cama. Procuro estar em casa a essa hora sempre que posso. Na minha idade, não posso esperar fazer isso muitos anos mais. Levou o jogador até à porta e disse:


— Quer saber de uma coisa, Christopoulos? Você não devia ser tão ambicioso. Aprendi muito tempo a cingir-me ao meu negócio. Você deve limitar-se também ao que faz de melhor, que é dar cartas. Eli olhou para o tio quando ele entrou no carro. — Que foi que o velho disse? Christopoulos soltou uma praga. — Não vai fazer nada? — Não. Diz que os livros dele estão em ordem também. Tive a impressão de que estava rindo de mim. — Que é que vai fazer? — perguntou Eli. — Sei lá! Disse ao barão que não confiava nele. Se ele estivesse aqui, eu o mataria pessoalmente. — Para que se dar a esse trabalho? Em Macau há alguém que teria prazer em fazer isso pelo senhor. O tio o olhou e ele continuou: — Se ele não está roubando do senhor e não está roubando de Sir Peter, deve estar roubando de alguém e só pode ser dos chineses com quem está fazendo negócio. — Você os conhece? — Todo mundo em Macau os conhece. Bastaria uma carta minha. — Mas os chineses não podem ser cegos. Devem saber o que ele está fazendo sem ser preciso você dizer. Por que ainda não o mataram? — Os chineses não são como nós, meu tio. Há no Oriente uma coisa muito importante que se chama “face”. Enquanto somente Marcel e eles sabem, não tem importância. Estão conseguindo o que querem. Mas quando for do conhecimento geral que eles estão sendo roubados, perderiam a face se não o matassem. O rosto de Christopoulos se contraiu de raiva. — Dê-me um mês para os entendimentos com os japoneses. Depois, escreva a carta para seus amigos.

19

Marcel, sentado à sua mesa, estudava o americano. Era alto, corado e de firmes olhos azuis. Marcel olhou para o cartão de visita: John Hadley, Vice-Presidente Cia. Americana de Transportes Marítimos.


— Que deseja de mim, Sr. Hadley? Hadley entrou diretamente no assunto. — Vim até aqui à procura de navios. Estão todos na sua mão. — Ora, nem todos,disse Marcel. — De fato, nem todos. Só aqueles que ainda podem navegar. Estou autorizado a. oferecer-lhe um bom lucro, se quiser vendê-los. Marcel sorriu. — Isso é sempre bom de ouvir. Mas ainda não estou preparado para vender. — Que irá fazer com eles? Ainda não chegou a um acordo sobre o seu contrato de arrendamento. E com toda a certeza, não poderá comê-los. Marcel deixou de ser displicente. O americano estava bem informado. — Os navios vão ser arrendados. — Não foi o que eu soube. Posso dizer-lhe que foi feita uma proposta aos japoneses de compra dos navios depois da sua desistência forçada por falta de pagamento. Era essa então a razão pela qual estavam demorando tanto a dar uma resposta, pensou Marcel. — Mas não me farão desistir, — disse ele com mais confiança do que sentia. Encontrarei carga. — Como? — perguntou o americano. — Aqui em Macau? Tinha razão. O movimento do porto Asgrandes cargas iam para outros portos.

era

bem

pequeno.

— Tenho agentes em Hong-Kong. — Não tem ninguém, — disse categoricamente o americano. — Se não fechar contrato com os gregos, estará perdido. Os japoneses retomarão os navios dentro de dois meses. — Neste caso, por que não se entende com eles? — Porque queremos ter certeza de conseguir os navios. Preferiria fazer um mau negócio com o senhor a arriscar-me com os japoneses. — O senhor é muito franco. — É a única maneira que temos de fazer negócios. Meu chefe não tem paciência com assuntos enredados. Vai diretamente ao que deseja. Marcel sabia da reputação do proprietário da Companhia Americana de Transportes Marítimos. Era um irlandês pobre de Boston que viera de muito baixo e lutara muito até conseguir o


controle de muitas companhias e acumular uma fabulosa fortuna. Com a sua inflexível determinação, conseguira para os seus navios o monopólio virtual da carga entre os Estados Unidos e a América do Sul. Marcel procurou lembrar-se do que mais soubera a respeito de James Hadley. Naqueles últimos anos, dizia-se que ele se dedicava cada vez mais à política. Tornara-se uma figura importante no partido que acabara de eleger Roosevelt pela segunda vez e constava que o Presidente lhe oferecera uma embaixada. Já representara o seu país em várias importantes negociações diplomáticas, onde conseguira dar a impressão da mais completa vulgaridade. Tinha, porém, dois filhos de sua grande família em Harvard e diziam que ele se estava abrandando. Como todos os novos-ricos, havia começado a pensar em penetrar num mundo ao qual o dinheiro por si só não dava acesso, o mundo do prestígio. Marcel percebeu de repente que o homem com quem falava tinha o mesmo nome. Pegou o cartão e perguntou: — São parentes? — Primos-irmãos. — Ah, bem. Hadley esperou um continuava, perguntou:

momento

e,

vendo

que

Marcel

não

— Está resolvido então a não vender os navios? — De fato. — Neste caso, vou fazer-lhe outra sugestão. Temos cinquenta navios de bandeira americana. Gostaríamos de transferi-los para registro estrangeiro, a fim de livrar-nos dos pesados impostos. Proponho juntarmos esses navios aos seus, formando uma companhia comum e registrando todos os navios num país cuja neutralidade seja mantida em caso de guerra. Dessa maneira, estaria assegurada aos nossos navios a liberdade dos mares. — É impossível, Sr. Hadley. Todos ainda saberiam que os navios eram da sua companhia. — Não, se lhe vendêssemos os navios. Os nossos interesses seriam protegidos por um contrato de sociedade feito na Suíça. — Mas em que país registraríamos os navios? Na Suíça seria impossível. O senhor passou muitos anos como secretário do consulado do Corteguay em Paris. Marcel não pôde esconder a sua admiração. Os americanos eram muito mais espertos do que ele julgava.


Mas o Corteguay já tem um acordo com os interesses de De Coyne. E o que foi que conseguiram com isso? Quatro navios aos pedaços quando vinte não bastariam! — Apesar disso, o acordo existe. Quanto tempo acha que esse acordo seria mantido se explicássemos ao presidente do Corteguay as vantagens de fazer negócio conosco? Os políticos são iguais no mundo inteiro. Pela primeira vez desde muito tempo, Marcel pensou no falecido cônsul. Jaime Xenos teria querido mais do que tudo no mundo um acordo como aquele para o seu país. Ainda assim, sentirse-ia decerto horrorizado com o que o americano lhe propunha. Mas este estava certo. Não havia muitos homens no mundo que tivessem a integridade do pai de Dax. — E como nos aproximaríamos do presidente do Corteguay? — perguntou Marcel. — Eu era simplesmente um empregado no consulado. Não teria prestígio suficiente... — Deixe isso conosco. Só desejo do senhor é um acordo em princípio. — Levantou-se. — Voltarei para Hong-Kong no vapor da tarde. Pense bem no assunto. Passarei alguns dias no Hotel Península à espera da sua decisão. — Vou pensar. Despediu-se e Marcel ficou sozinho no escritório pensando. Sabia que Hardley ia ficar em Hong-Kong, não apenas para esperar a sua resposta, mas também para iniciar entendimentos com os japoneses. Não poderia arriscar-se a perder o seu tempo, caso a decisão de Marcel fosse desfavorável. De repente, Marcel proferiu uma praga. Alguma coisa não tinha dado certo e ele nem sabia o que fora. Deu um soco na mesa. Gregos do inferno! Bem se dizia que não se podia confiar em ninguém. Já estavam tentando apunhalá-lo pelas costas. E se não fosse ele, nunca teriam qualquer oportunidade de conseguir os navios. A casa estava mergulhada num silêncio pouco habitual quando chegou naquela noite. A própria Lótus de Jade parecia deprimida quando lhe tirou os sapatos e calçou as sandálias. Depois, quando ela lhe levou um cálice de aperitivo, perguntou: — Está sentindo alguma coisa? Ela parecia pálida. Mas compreendeu que não devia insistir. Ela deixaria, de repente, de falar francês e desandaria num chinês rápido


de que ele não entenderia absolutamente nada. A verdade era que já gostava muito daquela serena e amável moça que havia comprado. Assim se lembrava do dia em que a levara para casa. As outras esposas já estavam alinhadas na porta, para recebê-la. Havia pensado que elas iriam ter inveja — da sua beleza, do fato de que ela vinha de melhor família. Mas teve a surpresa de ver que acontecera justamente o contrário. Tiveram exclamações de admiração pela sua beleza e se encantaram com as roupas finas que levara. Juntaram-se em torno dela, exclamando muito felizes naquelas vozes monótonas e estridentes: “Seja bem-vinda, irmã! Seja bem-vinda!” Naquela noite, quando ele entrara no quarto, havia flores frescas na jarra perto da janela e o incenso cheiroso ardia diante da estatueta sorridente de Buda. Havia até colchas novas de seda na cama. Começou a despir-se quando ouviu um rumor e voltou-se para ver-se cercado pelas outras três esposas. Rindo e tagarelando, acabaram de despi-lo e fizeram-no deitarse nu entre as cobertas. Fazendo-lhe sinal para que ficasse ali, saíram do quarto e um momento depois ele ouviu o som de uma lira suavemente tangida. A música se aproximava cada vez mais e afinal chegou diante da sua porta. A porta se abriu e Lótus de Jade entrou. Não podia tirar os olhos dela. Nunca vira ninguém mais bela. Os cabelos estavam caídos em torno do rosto e os olhos brilhavam pretos como azeviche. O diáfano vestido de seda se lhe colava à pele, revelando um corpo que parecia de marfim polido. Encaminhou-se lentamente para ele. Atrás dela entraram as outras esposas. Uma delas tocava uma pequena lira, outra levava um prato de doces e cascas de frutas cristalizadas e a terceira um jarro de vinho. Lótus de Jade parou em frente à cama, com os olhos modestamente baixos. Os doces e o vinho foram colocados na mesinha de cabeceira e, então, as outras esposas se voltaram para Lótus de Jade. Tiraram-lhe o vestido pela cabeça e ela ficou completamente nua. Voltaram-se depois para ele e levantaram a colcha. Mas ela se conservou ali de olhos baixos. — Venha, irmãzinha, — disse gentilmente uma delas. — Deite-se ao lado de seu marido. Sem olhá-lo, Lótus de Jade se sentou mansamente na beira da cama. Ele podia ver-lhe uma veia latejando no pescoço e o suave arrepio dos bicos róseos dos seios. Sentiu a excitação dominá-lo, mas ainda Lótus de Jade não voltara os olhos para ele. — Olhe, irmãzinha, — disse outra das esposas. — Veja como você agrada a seu marido!


Mas Lótus de Jade não olhava para ele. Impaciente, uma das outras mulheres tomou-lhe a mão e guiou-a. O toque suave e quente completou a excitação. Ele estendeu os braços para virar-lhe o rosto e, de repente, os dois ficaram sozinhos. Olharam-se por um momento e então ela disse: — Estou com medo de olhar, meu marido. Sempre ouvi dizer que os ocidentais são como gigantes. — Foi o que as outras lhe disseram? Não, elas são suas esposas e nunca lhe seriam desleais. Disseram-me foi que o seu tamanho lhes dava até mais alegria e prazer. Experimentou uma sensação agradável. Sentiu-se de repente forte e vigoroso. Nunca se julgara muito bem dotado, embora tivesse ouvido dizer que os orientais eram menores. — Olhe para mim. Ela fechou os olhos e disse: — Tenho medo. — Olhe para mim! Dessa vez, era uma ordem que ela não se atreveu a desobedecer. Abriu os olhos e baixou lentamente o rosto. De repente, os seus olhos pararam e ela teve uma exclamação de espanto. — Vou morrer! — exclamou ela. — Você entrará dentro de mim e me rasgará o coração! Ficou de repente zangado. — Se está com medo, pode ir-se embora e mande uma das outras. Viu a palidez que invadiu o rosto dela. Nunca poderia saber o medo que ela sentiu naquele momento. Seria uma desonra para ela e para a família se ele a repelisse. — Não, meu marido. Não estou mais com medo. Ele riu e se aproximou dela, mas ela o deteve com a mão. — Não, meu marido, não quero que se canse. Movendo-se rapidamente, ficou de repente por cima dele, comum joelho de cada lado dos seus quadris. Depois, lentamente, guiando-o com a mão, baixou o corpo. A penetração foi difícil. De vez em quando, ela se afastava ao sentir mais aguda a dor. Ele viu os olhos dela apertarem-se e as lágrimas rolarem-lhe pelo rosto. — Pare! — disse ele asperamente.


Ela abriu os olhos. O medo que havia naqueles olhos era intolerável para ele. Fê-la delicadamente deitar-se ao lado dele. Parecia pouco mais do que uma criança. — Quem lhe disse para fazer assim? Ela escondeu o rosto no travesseiro para que ele não pudesse ver a vergonha que sentia. — Minha mãe. Disse ela que é a maneira correta de receber os ocidentais. Ele lhe afagou os longos cabelos negros. — Não é verdade. Vou mostrar a você. Começou a beijá-la e acariciá-la e, quando afinal ficou dentro dela, até ele se surpreendeu com o acesso de paixão de Lótus de Jade.E, depois disso, ela havia sido sempre a sua favorita, pois nada havia que ela não fizesse para dar-lhe prazer no delírio que a possuía. Mas naquela noite estava silenciosa e pálida enquanto ele tomavaoseu aperitivo. — Vou jantar e depois voltarei para o cassino. Tenho muito o que fazer. Ela bateu com a cabeça e saiu da sala em silêncio. Um momento depois, ouviu choro na cozinha e um murmúrio de vozes zangadas. Já ia para a cozinha quando ela apareceu na porta. — Que é que há lá dentro? — perguntou ele. Ela não respondeu. — Bem, se você não quer dizer, eu mesmo vou saber. De repente, todas as suas esposas apareceram na sala em prantos. Lótus de Jade olhou para elas e não aguentou mais. Começou a chorar também. — Quem é que vai me dizer o que foi que houve? — perguntou Marcel. Todas as outras mulheres redobraram os soluços. Mas Lótus de Jade se ajoelhou diante dele. — Não vá ao cassino esta noite. Não saia de casa. — Mas por quê? — perguntou ele, irritado. — Que é que vocês têm com isso? — A Tong Minh está espalhando que você já é um homem morto. — O quê? Como é que sabe disso? — Chegou isto aqui.


Lótus de Jade levantou-se, abriu um armário e tirou uma grande caixa. Estava cheia de seda branca. — Que é isso? — Seda para fazer quatro vestidos de luto. É o costume das tongs para que uma esposa não fique despreparada para a sua viuvez. Quando recebeu isso? — Hoje à tarde. Um mensageiro de Kuo Minh deixou isto em nossa porta. Sentiu o frio do medo correr-lhe pelo corpo. — Tenho de sair daqui. Vou falar com a polícia. — Não vai adiantar nada, meu marido. Morrerá antes de chegar lá. A casa já está vigiada. — Não havia ninguém do lado de fora quando cheguei. — Eles se esconderam. Venha ver. Foi com ela até uma janela e olhou por um canto da cortina que ela levantou. Um homem estava num portal do outro lado da rua e outro estava mais adiante encostado a um poste de iluminação. Deixou cair a cortina. — Vou telefonar para a polícia. Sairei daqui sob a proteção da polícia. Mas o telefone não falava. Os fios tinham sido cortados. Marcel sentiu-se em pânico. Haviam pensado em tudo. Deve haver algum engano. Por que não me mataram quando vim para casa? Sem dar as suas esposas oportunidade de se despedirem de você? — perguntou Lótus de Jade, espantada. — Eles não são selvagens! Sentiu um medo terrível, mas controlou-se e murmurou: — Deve haver um jeito de sair daqui. Não houve resposta. Marcel foi até à sala de estar, abriu a gaveta da mesa e tirou o revólver que guardava ali para proteger-se dos ladrões. Mas isso não lhe dava segurança. Nunca em toda a sua vida dera um tiro em coisa alguma. As esposas apareceram na sala. Lótus de Jade disse alguma coisa às outras num chinês muito rápido. As outras concordaram com um sinal de cabeça. Depois, ela se voltou para ele e disse: — Há um meio. — Por que não me disse isso antes?


— Não queríamos ver você ser um assassino. Já basta a tong dizer que você é ladrão. — Por que é que está dizendo isso? — Chegou uma carta do homem que estava no cassino antes de você. Mandou dizer que você não dava aos seus fregueses todo o dinheiro que recebia pela papoula. Tudo se esclareceu para ele. Era por isso que os gregos tinham tanta certeza de conseguir os navios. Estes seriam retomados pelos japoneses por falta de pagamento depois da sua morte. — Como é que eu posso sair daqui? — perguntou quase humildemente. — Recebemos ordem para sair da casa antes das dez horas. Uma de nós ficará aqui. Você sairá vestindo as roupas dela. — Qual será? — Eu, — respondeu Lótus de Jade. — Sou a esposa número um e é esse o meu dever. Depois, sou a que tenho um tamanho mais parecido com o seu e até ando como você. — Mas será um perigo para você! Que é que eles vão fazer quando descobrirem que você tomou o meu lugar? — Não haverá perigo algum, — disse ela tranquilamente. Durante toda aquela noite, no pequeno barco de contrabandistas que o levou para Hong-Kong, Marcel não pensou mais nela nem na expressão do seu rosto pálido quando o vira sair com as outras esposas. Só na noite seguinte, depois do encontro com Hadley no hotel em Hong-Kong, foi que ele acordou no camarote sentindo o pulsar das máquinas. Estava a bordo de um cargueiro americano que rumava para o seu porto de registro nos Estados Unidos. — Lótus de Jade! — exclamou ele na escuridão. Viu-lhe de novo o rosto e a terrível certeza que havia nele. Deixando-a no lugar dele, ele a havia condenado à morte. Anos depois, quando ele era muito rico e muitasmulheres haviam passado pelasua vida, pensava nela apenas como a mais bonita das quatro mulheres que comprara em Macau. Mas naquelanoite chamou por ela em voz alta. Chorou pela covardia que o fizera fugir. E chorou por ela.

20


Gostaria de que Dax morasse conosco aqui em Boston até encontrar um lugar para ficar, — disse Robert quando a irmã desceu para o café da manhã. Caroline hesitou. — Mas, assim, o homem que está sempre com ele terá de ficar aqui também. — Gato Gordo? Caroline estremeceu. — Esse mesmo. Sinto arrepios só de olhar para ele. Robert riu. — Gato Gordo toma conta de Dax. Está com ele desde que Daxeragarotinho. O presidente deles fez do homem guarda pessoal de Dax desde o tempo em que estavam todos na selva. — Mas não estão mais Ha selva. O que é que ele aindafazjunto do rapaz? Ainda se fosse um criado ou alguma coisa assim... — Acho que já faz parte da família. E até, depois da morte do pai de Dax, é a única família que ele tem. Caroline tomou um gole de café e fez uma careta. — O café está horrível! Quando é que vamos achar uma cozinheira que saiba fazer café? — Você diz a mesma coisa todas as manhãs, — disse Robert, rindo de novo. — Não se esqueça de que estamos nos Estados Unidos. O café deles é diferente do nosso. — Vou escrever para Papá e pedir que nos mande um bomcozinheiro. Bon. — Houve um rumor à porta e Robert olhou. Levantou-se quando a convidada de Caroline entrou na sala. — Bom dia, Sue Ann. A bela moça loura sorriu. — Bom dia, Robert, — disse ela, com forte sotaque sulista. — Bom dia, querida Caroline. Robert continuou de pé depois que Sue Ann se sentou. — Concorda então que Dax fique conosco? Caroline encolheu os ombros. — Por que não? A casa é bemgrande. Dá para ele. — Ele chegará a Nova York amanhã. o avião para ir recebê-lo.

Estou com vontadedetomar

Sue Ann olhou com curiosidade para Caroline depois que Robert saiu.


— Esse nome, Dax, não é desconhecido. Parece que já o ouvi em algum lugar. — Dax é amigo de meu irmão. Foram colegas de escola na França. Sue Ann provou o café. — Este café está uma delícia, — disse ela, distraidamente. — Espere aí! Não é o jogador de pólo, que passou a ser embaixador quando o pai morreu? — Ele mesmo, mas não foi embaixador, Sue Ann. Foi apenas cônsul. — Que diferença faz? Dizem que ele é fantástico! — Fantástico! — exclamou Caroline, olhando para a amiga. Havia ocasiões em que não a compreendia de modo algum. Por que todo o homem que ela falava era sempre “fantástico”? Ouvira aquela palavra pelo menos uma vez por dia desde que conhecia Sue Ann. Quando Dax chegou à casa com Robert, Caroline pensou que ele estava mudado. Teve um sentimento de surpresa. Estava crescido e não se podia pensar mais nele como um rapaz. Era um homem. Ela nunca havia sabido que um ano pudesse fazer tanta diferença.A última vez que o vira fora poucos meses antes da morte do pai. Ela tinha ido para os Estados Unidos alguns meses antes do irmão. Dax sorriu ao vê-la. Ela se aproximou e virou o rosto para ser beijada por ele, à moda francesa. — Que prazer em tornar a vê-la, Caroline. A voz era maisprofunda também, pensou Caroline, e Robert parecia ainda um garoto ao lado dele. — O prazer é meu em estar aqui para recebê-lo, Dax. Como se foi de viagem? — Muito bem, mas só até desembarcar. Aí os repórteres não me deram mais descanso. — Está vendo? Estamos com uma celebridade dentro de casa! Dax sorriu modestamente. — Os repórteres são os mesmos em toda a parte. Quando não têm notícias, inventam e qualquer coisa serve. Até eu. Caroline se sentiu estranhamente perturbada. Aquele não era o rapaz a quem ela tratara daquela maneira cruel no vestiário da piscina. Tinha certeza de que já não teria coragem de proceder assim. Ele virou a cabeça e olhou para a1 escada. Sem precisar olhar, Caroline compreendeu que Sue Ann vinha descendo. Uma ponta de ciúme a agitou. A coquette havia passado a manhã toda diante do espelho, enfeitando-se.


Caroline virou-se quando Sue Ann se aproximou, com os seus cabelos de mel e a pele queimada. Que diabo! pensou Caroline. Por que é que todas as americanas têm de ser tão altas? Virou-se para Dax. — Quero apresentar-lhe a minha amiga, Sue Ann Daley. Sue Ann, este é Dax Xenos. — Enchanté, — disse Dax, beijando-lhe a mão. Sue Ann ficou corada e disse: — Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Xenos. — Caroline nunca vira Sue Ann falar com um sotaque sulista mais carregado. — Tenho ouvido falar muito no senhor. Dax voltou-se para Caroline e, no mesmo instante, percebeu o que ela estava pensando. Sorriu intimamente. Bem feito, pensou ele, as coisas já têm corrido demais a contento dela. — Por que não me escreveu para me dizer que havia mulheres tão bonitas nos Estados Unidos, Caroline? Se eu soubesse, não teria demorado tanto a vir. “Mulheres” fora a palavra que ele empregara e não “moças”. Caroline notou isso imediatamente. Ele havia crescido, sim. Pareceu por um momento fora do seu alcance e isso a aborreceu. — Eu poderia ter escrito, — disse ela, escondendo os pensamentos com um sorriso. — Mas pensei que estivesse muito ocupado. — Pois se eu tivesse sabido, — murmurou Dax, olhando para Sue Ann, — nunca teria ficado tão ocupado assim. Gato Gordo entrou no quarto quando Dax estava-se vestindo para o jantar. Sentou-se pesadamente numa cadeira. — Este país não é como eu pensava. Dax sorriu. — Nem índios, nem gangsters, não é? — É mesmo, não vi nada disso. Mas que calor! A gente parece que vai se derreter dentro das roupas. — Você está sempre se queixando. Na França, era a umidade e o frio. Aqui, é o calor. Não se preocupe. No inverno, você vai ficar enterrado na neve até às orelhas. — Quanto tempo vamos ficar nesta casa, Dax? — Por quê? — Porque sinto que a francesa, a irmã de seu amigo, não gosta de mim.


Dax não procurou contestá-lo. Sabia que não podia discutir com os instintos de Gato Gordo. — Só ficaremos até encontrar um lugar que nos sirva. — Quanto mais cedo encontrarmos esse lugar, melhor, — disse Gato Gordo, muito carrancudo. Dax virou-se para o espelho, acabou de dar o laço na gravata e perguntou: — Por que está dizendo isso? — A loura olha para você como se você já estivesse com ela. A francesa tem uma cara de quem está disposta a matar você no momento em que isso acontecer. — Acha que está com ciúmes? — É mais do que ciúmes, Dax. Ela está habituada a ter todas as suas vontades feitas e compreende que não pode fazer mais com você o que fez na França. Cuidado! Dax desceu e encontrou Robert na biblioteca. — Onde estão as moças? — Ora, onde é que podem estar, Dax? Estão-se vestindo. Preparei um aperitivo para você. — Merci, — disse Dax e provou a bebida. — Pastis! Ah! Cestbon! — Sabia que você ia gostar. Dax sentou-se ao lado dele. — Agora, fale-me dos Estados Unidos. É muito diferente, Dax. Não quero dizer apenas que seja diferente da França, mas é muito diferente também do que nós pensávamos. — Foi o que senti. Gato Gordo é que está decepcionado. Não viu nem índios, nem gangsters. — Vou-lhe contar um segredo, — disse Robert, sorrindo. — Senti a mesma decepção logo que cheguei. — Quando pararam de rir, ele continuou: — Mas quero referir-me especialmente ao povo americano. Aqui, em Harvard, encontramos gente como nós, que tem conhecimento do mundo e do papel que nele lhes cabe. Mas, fora da Universidade, nas ruas, é tudo muito diferente. Pouco se interessam pelo que acontece no resto do mundo. Parece que estão isolados pelos oceanos de tudo mais. — De algum modo, estão certos, os dois oceanos são muito grandes, o Atlântico e o Pacífico. — Mas nem sempre será assim!... — E a escola? É difícil?


— As aulas? Muito não. Quase a mesma coisa que na França. A outra parte da vida escolar é que eu acho dificuldade em compreender. Os esportes que praticam — beisebol, futebol americano, basquetebol. O estudante que se distingue neles tem mais prestígio do que qualquer bom estudante. — Em minha terra é o mesmo com o futebol. E a mesma coisa me acontece com o pólo. Por falar nisso, há uma equipe de pólo? — Acho que não. Mas recebi um convite de uns amigos para ir assistir aos jogos de pólo em Meadowbrook. — Meadowbrook? Não é o time em que Hitchcock joga? — Acho que sim, — disse Robert. — Pois eu gostaria de ir ver ao menos um jogo. Nunca vi Hitchcock jogar. — É em Long Island. Teremos de tomar o trem para Nova York ou ir de avião. Seria um bom fim-de-semana. Esses amigos nos convidaram para a casa deles. — Mas eles nem me conhecem, Robert. — Mas é assim que os americanos são. Não têm a menor hesitação em convidar para a casa deles uma pessoa estranha. Para o jantar, para um fim-de-semana, até para passar um mês. E parece que não se importam absolutamente com isso. — É uma gente estranha. — E não foi só esse convite. Já recebi uns vinte telefonemas desde que você chegou. Creio que eu não sabia bem a celebridade que você é. — Desculpe, Robert. Não quero perturbar assim a sua vida. Se você quiser, terei prazer em mudar-me para um hotel. — Nada disso! Esta é a primeira vez desde que saí da França que tenho com quem conversar. É como nos velhos tempos. Só quem está faltando é aquele russo grandalhão. — Sergei! — exclamou Dax, sorrindo. — Por onde andará ele? Procurei-o antes de vir para cá, mas ele havia mudado sem deixar o novo endereço. Julguei que tivesse ido ficar com o pai na Alemanha. — Não, está na Suíça. Caroline recebeu uma carta de uma amiga que o viu por lá. Parece estar com dinheiro. Tem uma grande Mercedes vermelha e parece estar sempre em companhia de mulheres ricas. — Acho que ele estava falando mais a sério do que nós pensávamos quando dizia que iria casar-se com uma milionária americana!


— Pois ele faria melhor se viesse para cá. Por exemplo, a amiga de Caroline... — Sue Ann? — Ela mesma. Herdou no mínimo cinquenta milhões de dólares, só do avô. Foi ele quem abriu os primeiros armazéns Penny Savers em Atlanta. Herdará muito mais quando os pais morrerem. — Ah! Os Penny Savers Daley! Lembro-me deles na Inglaterra. Mas ainda não havia feito a ligação com ela. — Pois aqui há um desses armazéns em cada cidade, — disse Robert e riu. —. Já pensou o que Sergei faria com uma pequena assim? — Iria ficar púrpura real de verdade! As suas risadas foram interrompidas por Sue Ann e Caroline que desciam para o jantar.

21

A voz dela era macia e lânguida. — É verdade, sim, meu bem. Ninguém me amou ainda como você. Dax virou-se e olhou para Sue Ann. Os olhos estavam quase fechados e à boca entreaberta. Os longos cabelos louros espalhavamse pelo travesseiro e os seios fartos, com os bicos rosados estranhamente pequenos se levantavam gentilmente ao embalo da sua respiração. — Não acredito. Os olhos azuis abriram-se e fitaram-no com feroz intensidade. — É verdade, Dax. Os outros nem pareciam que me estavam amando e, sim, que me estavam fazendo um favor. Ele riu, acendendo um cigarro. — Eram então uns idiotas! Ela suspirou profundamente e fechou os olhos. — Quando você está comigo, sinto-me tão viva que tenho até vontade de morrer! Ele riu e virou-a de costas, puxando-a para ele. Sentiu-a estremecer quando a penetrou. — Oh! — exclamou ela. — Você não vai parar mais! — Só quando você achar que chega!


— Para mim nunca chega! — Um tremor lhe percorreu o corpo. — Vou vibrar de novo! — gritou ela alucinadamente, tentando fugir dele. Ele prendeu-a, agarrando-a com força pelos ombros. Um momento depois, o frenesi dela cessou, mas ela continuou a se contorcer. — Não pare! Quero vibrar mil vezes! — Não vou parar! A cabeça dela descambou sobre o ombro e ela olhou para ele. Fechou de novo os olhos e disse em voz bem baixa: — Não admira que não queiram que se ande com negros! Dax já estava nos Estados Unidos havia tempo suficiente para saber o que ela queria dizer. Esteve quase para bater-lhe e murmurou entre os dentes: — Descarada! Ela se aconchegou ainda mais a ele. — Tudo certo, meu bem! Machuque-me, xingue-me nomes feios e me ame, me ame! É só o que quero! Mais tarde, ela tirou o cigarro doslábios deleecolocou-onaboca. — Fiquei muito satisfeita de você ter conseguido apartamento. Caroline nunca nos deixou um instante sozinhos!

este

Ele pegou outro cigarro e acendeu-o sem responder. — Caroline é boa, Dax? — Por que não vai saber pessoalmente disso? — Não quer dizer? — Você gostaria de que eu falasse de você? — Que é que tem? Eu falo de você. Ele riu. — Você é uma maluca. — Dizem que as francesas são boas. — E são. — Tão boas quanto eu? — Ninguém é melhor do que você! Ela sorriu. — Gosto de amar. Não posso pensar noutra coisa. Quando era garotinha, vivia ansiosa, sem poder esperar. Ficava toda excitada só de pensar. — Pois olhe que não mudou muito. Ela pegou nele e disse:


— Você é homem de verdade! — Uma sombra lhe passou pelos olhos. — Vou sentir muita falta de você. — Falta de mim? Por quê? — Mamãe resolveu que devo ir estudar na Suíça. Papai diz que vai haver guerra e Mamãe acha que eu devo ir logo para poder concluir o curso e voltar antes que a guerra comece. — Quando é que vai viajar? — Amanhã. — Mas já? Por que não me disse? — Teria feito alguma diferença? Não, mas... Ela olhou para o relógio e depois para ele e disse: — Ainda temos algum tempo. Apagou o cigarro no cinzeiro junto da cama. Mais tarde, ela o olhou pelo espelho, enquanto passava o batom nos lábios. — E você? Sentirá a minha falta? — Claro que sim. Não há muitas como você! Ela se levantou e beijou-o. — Foi grande, não foi? Ele bateu com a cabeça e perguntou: — Para onde foi que você disse que ia? Para a Suíça? — Sim. — Tenho um grande amigo lá, Sergei Nikovitch. Procure ver se o encontra. Conde Nikovitch. — Ele é conde mesmo? — perguntou Sue Ann, arregalando os olhos. — É, sim. É um russo branco. Os comunistas botaram a família dele de lá para fora. — Eu poderia conhecê-lo, — murmurou ela, mas logo hesitou: — Tem boa aparência? — É um homem muito bonito. E ainda maior do que eu. O pai dele era oficial de cossacos. Depois que ela saiu, ele se estirou na cama. Sue Ann não era mulher para ficar muito tempo sozinha. Se alguém ia tirar algum proveito dela, podia muito bem ser Sergei. O telefone ao lado da cama começou a tocar. Pouco depois, ouviu Gato Gordo atender na extensão na outra sala. Estava acendendo outro cigarro quando Gato Gordo abriu a porta. — Sempre que a loura vem aqui, a francesa telefona.


— Caroline? — Há outra francesa por aqui? Você está bem? Estou contente de que a loura vá-se embora. Ela estava esgotando você. — Você andou escutando à porta. — Que é mais que a gente pode fazer aqui para se divertir? Como é? Vai falar com ela? OK, — disse Dax, pegando o telefone. — Caroline? Já lhe telefonei três vezes nestas últimas duas horas, — disse ela, com voz irritada, — mas esse seu horrível homem disse que você estava na cama. — Estava e estou. — A estas horas da tarde? — Você sabe como nós, sul-americanos, somos. Gostamos de uma sesta bem comprida. Além disso, não tenho muito mais o que fazer. Robert teve aulas o dia inteiro. Ele me pediu que lhe perguntasse se você ainda pretende passar o fim-de-semana com os Hadleys, em nossa companhia? — Claro que sim. — Então nós passaremos por aí amanhã às nove horas para pegá-lo. Dax não pôde resistir à tentação de aborrecê-la. — Sue Ann vai também? — Não, — respondeu ela secamente. Depois, a voz se abrandou e houve até nela um toque de felicidade. — Não sabe que ela vai-se embora? — Vai-se embora? Não diga? Para onde? — Para a Suíça. Os pais dela chegaram à conclusão de que ela não tem educação suficiente. Dax ainda estava sorrindo quando desligou o telefone. — Dax, Dax! Ouviu chamarem-no e começou a nadar descansadamente para a praia. Uma lancha cheia de rapazes partia para o mar quando ele chegou ao pequeno cais, fazendo-o com a onda perder a borda para a qual levantara a mão. Alguém pegou-o e puxou-o até em cima. Era James Jr., o mais velho dos irmãos Hadley. — Obrigado, — disse ele, olhando em seguida para a lancha. — Seu irmão parece que se está divertindo à grande. — Está sim, — disse Jim. — Foi a primeira vez que papai o deixou sair sozinho com a lancha. Afinal de contas, tem apenas


dezessete anos e está na idade de entusiasmar-se com essas coisas. Vamos tomar uma cerveja? — Boa ideia. Ficaram na sombra, bebendo a cerveja na garrafa. — Gosta disto aqui? — perguntou Jim. — Acho muito bom. Agradecido por ter-me convidado. — Não estou falando de Hyannis Port, — disse Jim. — Mas de modo geral. Os Estados Unidos. Boston. Harvard. — Não sei ainda, — respondeu Dax com sinceridade. — Não tenho ainda tempo suficiente para chegar a um juízo definido. Só estou aqui há seis semanas, sabe? — Sei. Eu sei também que conheceu Sue Ann Daley, — disse o americano com um sorriso. — Isso não lhe deve ter dado muito tempo para qualquer outra coisa. Foi uma surpresa para Dax. Não tinha ideia de que isso fosse do conhecimento geral. — Conhece Sue Ann? — Conheço, sim. Tivemos um caso quando ela esteve aqui no ano passado. Durou cerca de um mês. Não aguentei com ela. Ambos riram e o gelo se quebrou. Depois, o rosto de Jim ficou sério de novo. — Ouvimos muita coisa a seu respeito. — Também ouvi muita coisa sobre você. — Sobre mim, sobre meu pai, — disse Jim, que continuou ante o silêncio de Dax: — Meu pai tinha muita curiosidade a seu respeito. Achou que você foi formidável preenchendo o lugar depois da morte de seu pai. — Não fiz nada, Jim. Limitei-me a fazer ato de presença até encontrarem outra pessoa para o lugar. — Meu pai diz que qualquer pessoa capaz de ocupar um lugar assim durante seis meses sem fazer nada de errado é notável. — Agradeça a seu pai por mim, mas é fácil deixar de errar quando há muito pouco para fazer. E com apenas quatro navios entre o Corteguay e o resto do mundo, não havia muita atividade comercial. — Acha que meu pai cometeu um erro quando cancelou as viagens dos seus navios para a sua terra? — perguntou Jim. — Você já citou seu pai, Jim. Agora, vou citar o meu. O boicote do Corteguay não foi apenas um ato de represália econômica. Foi um ato de crueldade. Condenou à fome um pequeno país.


Jim Hadley ficou em silêncio durante algum tempo e perguntou: — Você não gosta muito de meu pai, não é? Dax olhou para ele. Naquilo, os americanos eram todos iguais. Torciam todas as coisas até dar-lhes um cunho pessoal. Se a gente aprovava o que faziam, presumiam automaticamente que se gostava deles. Quando não se aprovava, a presunção contrária era também automática. A resposta que lhe posso dar é a mesma que dei à sua primeira pergunta: não sei. Ainda não conheço seu pai. — Você é muito franco! — Vou citar de novo meu pai: nunca diga uma mentira quando a verdade faz o mesmo efeito. Jim sorriu. — Será que posso convidá-lo para tomar outra cerveja? Experimente e veja.

22

Robert estava à espera deles quando saíram da aula. Tinha um jornal na mão e parecia carrancudo. — Já souberam? Jim sacudiu a cabeça. Robert mostrou-lhes a manchete do jornal: “Começou o Cerco de Madri”. — Oh! — disse Jim. — Não demorou muito. Robert começou a ler em voz alta: “O General Mola, que comanda as forças atacantes, diz que o fim da guerra está próximo. Além das quatro colunas que atacam a cidade, afirma que tem uma quinta coluna que está dentro de Madri trabalhando pela libertação”. — Uma quinta coluna, — murmurou Jim. — É uma nova designação para espiões e traidores. — Jim! Todos se voltaram para Jeremy Hadley, que corria para eles. — Que é que há, Jeremy? — Pode-me emprestar seu carro esta noite? Tenho um encontro com uma pequena que é um verdadeiro estouro!


— Está bem, — disse Jim, tirando a chave do bolso e entregando-a ao irmão. — Mas cuidado para não dar nenhuma batida. Papai me fez trabalhar o ano inteiro por ele. — Obrigado! — Querem ir tomar uma cerveja em minha casa? Jeremy olhou para Dax. — Eu também? — Você também, — disse Dax, rindo. — Não temos objeções pessoais contra calouros. Jeremy olhou indeciso para o irmão mais velho e este disse: — OK. Você já tem dezoito anos. Creio que Papai não se aborrecerá. Atravessaram o pátio em silêncio. É uma família muito unida, pensou Dax, olhando os dois irmãos que caminhavam lado a lado. Não havia dúvida que o pai os governava com mãode ferro e, apesar disso, era adorado pelos filhos. Tudo fora planejado em relação a eles. James, o mais velho, iria para a escola de Direito depois da universidade e, depois, se dedicaria à política. Vinha depois uma filha, seguida de Jeremy. Este seguiria o mesmo caminho do irmão com a diferença de que iria ser advogado em vez de político. Mais duas moças e outro homem, Thomas, que tinha apenas doze anos, mas já estava destinado à Escola de Administração de Harvard. O pai decidira que a ele caberia tratar dos interesses comerciais da família. Mais uma menina e, por fim, o caçula da família, Kevin. Tinha dois anos mas todos já o tratavam de “Doutor”. Do futuro das moças é que o pai parecia não ter cuidado. Dax não sabia se acontecia o mesmo em todas as famílias irlandesas. — Que apartamento — exclamou Jeremy entusiasticamente, jogando-se numa poltrona com uma garrafa de cerveja na mão. — Gostaria de morar num apartamento assim. Por que você não fala com Papai, Jim? Não teríamos de voltar para casa todos os dias depois das aulas. Você bem poderia convencê-lo. Ele faz tudo o que você quer. — Eu não, que não digo nada, — disse Jim, rindo. — Trate das suas sujeiras sozinho. — Não tenho coragem, — confessou Jeremy, que se voltou para Dax. — Eu não seria capaz de abrir um livro se morasse aqui. Como é que você consegue?


— Não é fácil, — disse Robert. — Você devia ver algumas das pequenas que vêm aqui. Teria a impressão de estar assistindo a um desfile de beleza. — Não é tanto assim, — murmurou Dax. Jeremy olhou-o, cheio de admiração. — Agora, eu já sei por que você tem tanto prestígio com as pequenas. Tem um lugar destes para trazê-las. O banco de trás do carro de Jim não é lá um lugar muito romântico. — Papai é que ficará muito romântico se as suas notas não forem boas! — disse, rindo, Jim. — Está bem, está bem, — murmurou Jeremy. — Mas por que vocês estavam de cara tão zangada quando eu cheguei? Robert mostrou-lhe o jornal. — Muito bem, — disse Jeremy. — E daí? — Daí que isso pode significar a guerra na Europa, — disse Robert. — A Alemanha e a Itália estão abertamente ajudando os falangistas. Você acha que nós aqui podemos ficar fora do brinquedo? — É verdade, — disse Jeremy, muito sério. — Eu não havia pensado nisso. Que é que você acha que vai acontecer? — Não sei. Mas Papai pensa que não vai haver guerra... agora. — Ouvi uns camaradas falando que iam alistar-se numa tal brigada internacional que estão formando. E o pessoal da minha classe está todo querendo entrar para o CPOR para pegar bons postos quando a guerra começar. Eu acho... — Você se meteu em alguma coisa? — perguntou Jim. — Não. Claro que não! — Então, não se meta. Deixe quem quiser falar à vontade. Há tempo de sobra para morrermos nas nossas guerras e não temos de nos meter nas brigas dos outros. O telefone tocou e Dax atendeu. — Alô, meu bem. — Lá está ele de novo! — Não, querida, — disse Dax, — não há nenhuma pequena aqui. Só alguns colegas. — Cobriu o fone com a mão. — Querem fazer um pouco de silêncio? — Lá se vai o fim-de-semana, — murmurou Robert. — Não deve ser uma pequena muito boa. — Isso para mim não teria importância nenhuma, — disse Jeremy. — Gostaria de que ela estivesse telefonando para mim!


“Procure fazer amigos”, tinha dito o Presidente numa das suas cartas. “Trate de conhecer todas as pessoas que for possível. Algum dia, os gringos vão querer voltar ao Corteguay e você terá feito os contatos que facilitarão o caminho para eles. Isso é muito importante, meu amigo, mais ainda do que os seus estudos. Dessa maneira, estará ajudando muito o nosso amado Corteguay.” Dax se lembrou dessa carta quando se dirigia para o almoço com o velho Hadley. Tinha atendido aos desejos do Presidente, até porque teria dificuldade em agir de outro modo. Desde que chegara, era procurado pelos americanos. Era para eles uma nova espécie de celebridade. As suas maneiras européias e o fato de haver nascido numa terra de violência, onde não se dava muito valor à vida humana, pareciam emprestar uma estranha atração ao seu encanto pessoal. Para as pequenas americanas, principalmente. Depois de algum tempo, ele quase sabia que cada novo convite significava alguma pequena que estava ansiosa por descobrir se ele era mesmo tão selvagem assim na cama. Havia ocasiões em que ele estranhava essa curiosa coação ao desafio sexual. De muitos modos, esses entreveros — era assim realmente que acabara por julgá-los — transformavam a cama num campo de batalha e num lugar romântico. Parecia que o que se exigia principalmente dele era provar a sua superioridade masculina. Mas, quando isso acontecia, havia sempre um refluxo de ressentimento. Na maioria das vezes, nunca mais via a pequena. Enquanto isso, aumentava com cada nova conquista a sua reputação de Casanova. Às vezes, pensava nisso com uma ironia que o ajudava a absorver as pilhérias e as zombarias dos amigos. O conceito que fazia de si mesmo era muito diferente do que faziam dos outros. Se os americanos o julgavam um Casanova, que iriam dizer de alguém como Sergei, cujo único propósito na vida parecia ser andar com todas as mulheres que conhecia? Era claro que isso lhe prejudicava os estudos. As suas notas mal davam para passar e se a sua presença em Harvard não tivesse certa expressão diplomática, a universidade tê-lo-ia excluído da matrícula. Não que ele fosse um mau estudante. Apenas não lhe sobrava tempo para estudar. Naquele último verão, o segundo que passava nos Estados Unidos, jogara pólo pelo time de Meadowbrook e, ao fim da temporada, o grande Tommy Hitchcock resolvera afinal fazer-lhe um elogio. Mas tivera conhecimento também da reputação de Dax.


Quando estavam juntos no banheiro depois do último jogo, havia dito: — Você poderia ser um dos maiores jogadores de pólo do mundo se não fizesse todo o seu treinamento na cama. Dax se limitara a rir. Apesar de haver jogado toda a temporada com ele, ainda se sentia tímido demais na presença de Hitchcock, para protestar. A neve começou a cair quando o táxi atravessou Boylston Street. — Aí está a primeira tempestade de verdade do inverno, — disse o motorista, virando-se para ele. Dax deu um resmungo em resposta. Agora, Gato Gordo só sairia de casa em situação de extremo perigo. Aquele homem que enfrentara a morte tantas vezes e sobrevivera a tantos perigos, tinha verdadeiro horror da neve. Chamava-lhe o lençol branco do inferno. Dax puxou a gola do sobretudo em torno do pescoço enquanto pagava ao chofer. Também ele não tinha grande entusiasmo pela neve. Olhou para o edifício onde ia almoçar com James Hadley. Os americanos eram um povo muito curioso. Tratavam de negócios na hora do almoço, quando o indicado seria apenas apreciar tranquilamente a comida, longe dos problemas. — Papai há muito tempo que quer conhecê-lo, — dissera Jim pelo telefone. — Acha uma boa ideia você ir almoçar amanhã com ele no Clube, se puder. Dax não precisava perguntar qual era o clube. Só havia um para as pessoas importantes de Boston e almoçar em qualquer outro lugar seria um sacrilégio. Um homem de uniforme cinzento recebeu-o à porta e tomoulhe o sobretudo. — Sr. Xenos? — Sim. — O Sr. Hadley já está sentado à mesa. Tenha a bondade de acompanhar-me. Passou com Dax pelo bar, já cheio de pessoas que tomavam um drinque antes do almoço, e chegou ao grande salão de refeições. Atravessando a sala repleta, Dax reconheceu muitas figuras importantes. Jim Curley, ex-governador do Estado e mais uma vez prefeito da cidade, estava sentado a uma mesa bem no centro do salão, onde sempre se podia chegar para trocar uma palavra com ele. Como sempre, havia um padre à mesa. Não podia deixar de ser um bispo ou um cardeal, pensou Dax. Em outra mesa, reconheceu outro


político, James “Honey Fitz” Fitzgerald, junto com um dos maiores homens de negócios de Boston, Joseph Kennedy. Chegou afinal à mesa e Jim levantou-se. — Dax, quero apresentar-lhe Papai. — Prazer, — disse Dax, estendendo automaticamente a mão. Mas não era para o pai de Jim que estava olhando. O outro homem presente à mesa era Marcel Campion.

23

— Bem, tenho de voltar para o escritório, — disse James Hadley, levantando-se. — Não, por favor, não se levantem. Não tenha pressa, Dax. Tenho certeza de que tem muitas coisas para conversar com o Sr. Campion além dos negócios de que tratamos. O jovem Jim também se levantou: — Tenho uma aula e também vou andando. O silêncio caiu entre eles depois que os outros saíram. Dax olhou para Marcel. Ele tinha mudado. Não parecia mais o pequeno funcionário comum de quem Dax se lembrava. Havia nele algo de mais positivo e seguro. Talvez fosse o apurado terno de corte inglês, talvez, como era mais provável, fosse alguma coisa nos olhos de Marcel. Espelhavam o olhar confiante de um homem que sabia o que queria e sabia como ia consegui-lo. Marcel foi quem primeiro falou. — Há quanto tempo, Dax! Quase dois anos. — É verdade. — Que é que acha dele? — perguntou, referindo-se evidentemente ao homem que os convidara para o almoço. —•Ele é tudo o que me disseram que era e mais ainda, — respondeu Dax com toda a franqueza. Marcel passou automaticamente.

a

falar

em

francês

e

Dax

acompanhou-o

— Sabe o que foi que ele me disse? — murmurou Marcel, curvando-se para falar confidencialmente. — Que o prefeito Curley poderia ser presidente dos Estados Unidos, se tivesse nascido trinta anos mais tarde. Acha que algum dia haverá um presidente católico. — Não posso acreditar nisso. En vérité, — continuou Marcel, — creio que ele espera que esse presidente seja seu filho mais velho.


— Jim? — Sim, o homem faz projetos com muitos anos de antecedência. Desde já, está procurando conseguir posições reforçadas no Partido Democrático. Por isso é que ele insiste tanto para que o rapaz se dedique à política. Dax olhou pensativamente para Marcel. Depois das coisas que tinha ouvido naquele almoço, estava pronto a acreditar em quase tudo. — Como foi que chegou a conhecê-lo? — Muito simples. Ele tinha navios para vender e eu queria navios. — Mas como é que foi interessar-se por navios? Pensei que tivesse ido para Macau administrar o cassino. — E fui. Mas dentro em pouco soube que havia navios que podiam ser comprados. — Como pôde conseguir os navios se os De Coyne não puderam? — De Coyne é um tolo, — afirmou categoricamente Marcel.Entrega tudo àquele primo inglês e este parece que só tem como objetivo impedir o crescimento de qualquer linha que ameace a dele. Penso até que ele só entrou no negócio para melhor sabotá-lo. Marcel se aproximou mais de Dax e baixou a voz, dizendo: — Quando soube disso, lembrei-me da necessidade de navios de que seu pai sempre falou. Consegui dinheiro emprestado a alguns amigos chineses e comprei vinte. Depois, procurei mais e soube que Hadley tinha cinquenta para vender. Fui naturalmente procurá-lo. Mas ele é muito vivo e percebeu imediatamente as minhas intenções. A minha impressão é de que ele já estava arrependido de haver-se juntado aos ingleses no boicote do seu país. — Quer dizer que ele se arrependeu de ter perdido tanto dinheiro? — No fim, é tudo a mesma coisa. De qualquer modo, mostrou-se disposto a vender os navios, contanto que a companhia dele continuasse como agente de cargas dos mesmos no mundo inteiro. Antes de assumir esse compromisso, acho que devo ter um entendimento firme com o Corteguay. De outro modo, eu não poderia utilizar os navios. — Não sei como o Presidente se sentirá de fazer negócios com um americano, — disse Dax. — O seu presidente é um homem prático, — disse Marcel. — Ele já deve estar sentindo que não pode esperar muito de De Coyne.


— Mas há ainda os cinco milhões de dólares que foram pagos pelo privilégio. E este é válido pelo prazo de vinte anos. Marcel tirou um charuto do bolso e acendeu-o. — Não cometa o mesmo erro que seu pai cometeu, Dax. O Presidente não é um homem íntegro como foi seu pai. Sabe o que aconteceu com esses cinco milhões de dólares? Acha que foram mesmo para o tesouro do seu país? Dax nada disse. — Pois eu posso dizer a você o destino que tiveram. Estão num banco da Suíça numa conta com o nome do Presidente. Dax ficou atônito. Se Marcel sabia, seu pai não podia deixar deter sabido. — E meu pai... — Sim, seu pai sabia. — Então por quê Marcel não o deixou concluir a pergunta. — Que poderia ter ele feito? Pedir demissão? Isso não serviria de nada ao Corteguay, ao passo que conseguir os navios, serviria. Por isso, ficou calado, mas a tanto custo que creio que isso foi uma das coisas que lhe apressaram a morte. Dax sacudiu a cabeça. Sentia um aperto na garganta. Seu pobre pai. Sé ao menos ele soubesse! Mas que poderia ter feito? Nada. Marcel se aproveitou do seusilêncio. — Por que acha você que estamos dispostos a pagar mais cinco milhões de dólares pelo privilégio? Porque temos certeza de que o Presidente aceitará. Dax, é tempo de você acabar de crescer e ser realista. Se a transação for fechada, você ficará muito bem. Deve começar a pensar em si mesmo. Salvo se pretende ficar na miséria pagando as dívidas dos ladrões. — Não sei, — disse Dax, hesitando. — É difícil para mim acreditar... — Que é que acha difícil de acreditar? Não pode ver para que foi exatamente que o seu presidente o mandou para cá? Foi justamente para uma coisa como essa, para facilitar a volta dos Estados Unidos ao Corteguay. Julga que ele não sabe que já recebeu da Europa o máximo de ajuda que era possível? Dax ficou calado. — Se eu não fosse tão positivo, acha que iria naturalizar-me cidadão do Corteguay? Dax olhou para Marcel.


— Está pensando mesmo em ir viver no Corteguay e abandonar a sua nacionalidade francesa? Marcel riu. — Quem falou em ir viver no Corteguay? Disse apenas que ia naturalizar-me. Gosto dos Estados Unidos, especialmente de Nova York. É onde se fazem os negócios e é onde eu pretendo viver. Quando mais tarde, naquela noite, Dax falou com o Presidente pelo telefone internacional, ficou sabendo que não importava que Marcel houvesse dito a verdade ou não. A única objeção que o Presidente fez à proposta foi achar que a quantia a ser paga, na realidade uma indenização pelos prejuízos causados pelo boicote, devia ser de dez milhões em vez de cinco. E quando ele finalmente desligou o telefone, Dax compreendeu que a sua missão ali estava terminada. Era tempo de regressar. Dax olhou à volta da mesa. Robert e Caroline. Jim e Jeremy Hadley e duas das irmãs deles. Tinha sido muito gentil da parte deles oferecer-lhe aquele pequeno jantar no Ritz Carlton na sua última noite nos Estados Unidos. Tinha nos lábios um sorriso de ironia. Que diriam, pensava ele, se soubessem que ele, Dax Xenos, o Casanova moderno, estava sozinho e sem par no jantar da sua despedida. Na hora do café, Jim pigarreou e olhou para os outros. Todos fizeram sinal de assentimento e ele se levantou. Houve silêncio na mesa. — Dax, — disse ele numa voz fácil em que quase não havia traço do seu sotaque bostoniano, — nós, seus amigos, lamentamos a sua partida mas respeitamos a sua convicção de que pode servir melhor o seu país voltando para lá. “Mas não queremos que volte sem alguma pequena lembrança nossa, alguma coisa que o faça lembrar-se, onde quer que esteja, de que ainda está conosco, ainda é um dos nossos. Assim, certos de que quem estudou em Harvard é sempre um homem de Harvard, resolvemos dar-lhe essa lembrança, sinal da nossa amizade de penhor da nossa intenção”. Com os dedos inesperadamente canhestros, Dax abriu o estojo de couro. O anel de ouro e a pedra carmesim foram imediatamente identificados por Dax. Era o seu anel de formatura, da turma de 1939. Olhou-os ciente do esforço que deviam ter tido para conseguilo. Em geral, esses anéis só podiam ser feitos depois de terminado o curso. E ainda faltavam mais de dois anos.


Colocou prontamente o anel no dedo. Estava perfeitamente na medida. Olhou para eles, comovido. — Muito obrigado, — disse simplesmente. — Sempre o usarei. E sempre me lembrarei. Caroline se aproximou então dele e quando ele se levantou para beijar-lhe o rosto, viu com surpresa que ela estava chorando. Estava à amurada com Gato Gordo quando as montanhas de Corteguay, atrás da cidade de Curatu, surgiram por entre as névoas da manhã. — Veja, Dax! — exclamou Gato Gordo, exultante. — Estamos em nossa terra. As montanhas foram crescendo à medida que o navio se aproximava e eles viram o verde, o belo verde-escuro do inverno que era realmente verão no Corteguay. Dax ouviu nesse momento a voz do pai como se estivesse ao lado dele, a dizer-lhe, como, alguns anos antes, no momento da partida, que quando ele voltasse não seria mais um menino e, sim, um homem. — É verdade, Papai, — murmurou ele, sentindo as lágrimas subirem-lhe aos olhos. Mas o que nenhum deles tinha sabido anos antes era que a passagem da condição de menino para a de adulto fosse um processo tão doloroso e solitário.


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