DE CAMUNDONGOS E HOMENS
OF MICEAND MEN
Traduzido por Daniel Ochi
Alguns quilômetros ao sul de Soledad, o rio Salinas desce próximo à margem da encosta e corre profundo e verde. Aágua também é tépida, pois desliza brilhando sobre as areias amarelas à luz do sol antes de chegar à estreita lagoa. De um lado do rio os declives dourados do sopé curvam-se para cima até as fortes e rochosas montanhas Gabilan, mas no lado do vale a água é margeada com árvores salgueiros frescos e verdes a cada primavera, carregando nas junções das folhas mais baixas os detritos das inundações do inverno; e sicômoros com troncos e ramos pintalgados, brancos e reclinados que se arqueiam sobre a lagoa. Na margem arenosa sob as árvores as folhas aglomeram-se profundas e tão quebradiças que um lagarto desliza facilmente se correr entre elas. Coelhos saem do mato para se sentarem na areia à noite, e as planícies úmidas são cobertas com os rastros noturnos dos guaxinins, e com as almofadinhas espaçadas dos cães vindos dos ranchos, e com os rastros de cunha dividida do cervo que vem beber na escuridão.
Há uma trilha através dos salgueiros e entre os sicômoros, uma trilha batida com força por garotos que descem dos ranchos para nadar na lagoa profunda, e batida com força por vagabundos que descem cansados da rodovia à noite para acamparem perto da água. Em frente ao baixo tronco horizontal de um sicômoro gigante há uma pilha de cinzas feita por muitas fogueiras; o tronco está gasto e polido por homens que se sentaram nele.
O anoitecer de um dia quente fez com que uma brisa começasse a mover por entre as folhas.Asombra escalou as colinas em direção ao topo. Nas margens de areia, os coelhos sentavam-se tão silenciosamente quanto pequenas pedras cinzentas esculpidas. E então da direção da rodovia estadual veio o som de passos em folhas quebradiças de sicômoros. Os coelhos correram silenciosamente para se cobrirem. Uma garça empertigada subiu com esforço no ar e mergulhou dentro do rio. Por um momento o local ficou sem vida, e então dois homens surgiram da trilha e entraram na clareira junto à lagoa verde.
Eles caminharam em fila indiana pela trilha abaixo, e mesmo no espaço aberto um permanecia atrás do outro.Ambos estavam vestidos com calças de brim e casacos de brim com botões de latão.Ambos usavam chapéus pretos disformes e ambos carregavam rolos de cobertores
apertados pendurados sobre seus ombros. O primeiro homem era pequeno e rápido, moreno de rosto, com olhos inquietos e feições bem marcantes e fortes. Cada parte dele era bem definida: mãos pequenas e fortes, braços delgados, nariz fino e ossudo.Atrás dele caminhava o seu oposto, um homem enorme, sem formas definidas no rosto, com olhos grandes e pálidos, e ombros largos, caídos; e ele caminhava pesadamente, arrastando um pouco os pés, como um urso arrasta suas patas. Seus braços não balançavam ao lado do corpo, mas pendiam frouxamente.
O primeiro homem parou repentinamente na clareira e o seguidor quase o atropelou. Tirou o seu chapéu, limpou a carneira1 com o dedo indicador e retirou a umidade. Seu enorme companheiro largou os cobertores e atirou-se ao chão e bebeu da superfície da lagoa verde; bebeu com longos goles, resfolegando na água como um cavalo. O homenzinho parou nervosamente ao lado dele.
“Lennie!” ele disse rispidamente. “Lennie, pelo amor de Deus, não beba tanto.” Lennie continuou a resfolegar na lagoa. O homenzinho se inclinou por cima dele e o sacudiu pelo ombro. “Lennie. Você vai ficar doente como ficou ontem à noite.”
Lennie mergulhou toda a cabeça dentro da água, com chapéu e tudo, e então ele sentou-se na margem e o seu chapéu pingou no casaco azul e escorreu pelas costas. “’Tá boa”, ele disse. “Beba um pouco, George. Dê um bom e grande gole.” Ele sorriu alegremente.
George soltou a alça da trouxa e a colocou gentilmente na margem. “Não tenho certeza se essa água é boa”, ele disse. “Parece meia espumosa”
Lennie chapinhou sua grande pata na água e agitou seus dedos para que a água subisse em pequenos salpicos; anéis alargaram-se através da lagoa para o outro lado e voltaram novamente. Lennie observou eles irem. “Olha, George. Olha o que eu fiz.”
George ajoelhou-se ao lado da lagoa e bebeu com a mão em forma de concha em porções rápidas. “O gosto não ‘tá ruim”, ele admitiu. “Mas não parece água corrente. Você nunca deve beber água quando não ‘tá correndo, Lennie” ele disse sem esperança. “Você beberia da sarjeta se ‘tivesse com sede.” Ele jogou uma concha de água no rosto e esfregou-a com a mão, debaixo do queixo e ao redor da nuca. Depois recolocou o chapéu, afastou-se do rio, dobrou os joelhos e os abraçou. Lennie, que estava observando, imitou George exatamente. Ele afastou-se, dobrou os joelhos, abraçou-os e deu uma olhada para George para ver se ele tinha
1 - No original sweat-band. É uma faixa de tecido que protege o chapéu de entrar em contato com o suor de quem o usa. Pode ser chamada de fita protetora de suor.
feito certo. Ele puxou o chapéu um pouco mais sobre os olhos, do jeito que estava o chapéu de George.
George fitou sombriamente para a água.As bordas de seus olhos estavam vermelhas com o brilho do sol. Ele disse com raiva, “Agente podia ter ido direto pro rancho se aquele maldito motorista de ônibus soubesse do que ‘tava falando. Céus, ‘um pouco mais pra baixo da estrada’, ele disse. Céus, ‘um pouco mais pra baixo’. Diabo, foram mais de seis quilômetros, isso sim que foi! Não queria parar no portão do rancho, isso sim. Preguiçoso demais pra parar. Imagino se ele não era bom demais também pra parar em Soledad. Expulsa a gente e diz ‘um pouco pra baixo da estrada’. Aposto que eram mais de seis quilômetros. Maldito dia quente.”
Lennie deu uma olhada timidamente para ele. “George?”
“Sim, o que você quer?”
“Aonde a gente ‘tá indo George?”
O homenzinho puxou para baixo a aba do chapéu e olhou carrancudo para Lennie. “Então você já esqueceu, não é mesmo? Eu vou ter que te contar de novo, não é? Deus do céu, você é um louco desgraçado!”
“Eu esqueci,” Lennie disse suavemente. “Eu tentei não esquecer. Juro por Deus que eu tentei, George.”
“’Tá bem – ‘Tá bem. Eu vou te contar novamente. Eu não tenho nada pra fazer. Posso muito bem passar todo tempo te contando as coisas pra então você esquecer, e eu ter que te contar novamente.”
“Eu tentei e tentei,” disse Lennie, “mas eu não faço nada bom. Eu me lembro sobre os coelhos, George.”
“Pro inferno com os coelhos. Tudo que você consegue se lembrar é dos coelhos. ‘Tá bem!Agora escute e desta vez você precisa se lembrar pra gente não arrumar nenhuma encrenca. Você se lembra de se sentar naquela sarjeta na Rua Howard e observar aquele quadro-negro?”
O rosto de Lennie abriu-se num sorriso satisfeito. “Ora claro, George. Eu me lembro disso..., mas... o que a gente fez depois disso? Eu me lembro que algumas garotas vieram e você disse...você disse…”
“Pro inferno com o que eu disse. Você se lembra da gente indo até o Murray e Ready’s2, e eles dando pra gente cartões de trabalho e passagens de ônibus?”
2 - Esta é uma alusão a uma agência de empregos apoiada pelo governo, Murray and Ready’s, que fazia parte do New Deal, uma série de programas criados pelo presidente Franklin D. Roosevelt durante a Grande Depressão.
“Oh, claro, George. Eu me lembro agora.” Suas mãos foram rapidamente para os bolsos laterais do casaco. Ele disse gentilmente, “George... Eu não tenho o meu. Eu devo ter perdido.” Ele abaixou os olhos para o chão em desespero.
“Você nunca o teve, seu louco desgraçado. Eu tenho os dois aqui comigo. Você acha que eu deixaria você carregar o seu próprio cartão de trabalho?”
Lennie sorriu mostrando os dentes de alívio. “Eu... eu achei que tinha posto no bolso lateral.” Sua mão foi para o bolso novamente.
George olhou rispidamente para ele. “O que você tirou desse bolso?”
“Não tem nada no meu bolso,” Lennie disse espertamente.
“Eu sei que não tem. Você tem na sua mão. O que você tem na sua mão – escondendo?”
“Eu não tenho nada, George. Sério.”
“Vamos lá, passe pra cá.”
Lennie afastou a mão fechada da direção de George. “É só um camundongo, George.”
“Um camundongo? Um camundongo vivo?”
“Uh-uh. Só um camundongo morto, George. Eu não o matei. Sério! Eu achei ele. Eu achei ele morto.”
“Passe pra cá!” disse George.
“Ah, deixa eu ficar com ele, George.”
“Passe pra cá”
Amão fechada de Lennie obedeceu lentamente. George pegou o camundongo e jogou-o através da lagoa para o outro lado, entre o mato. “O que você quer com um camundongo morto, afinal?”
“Eu poderia acariciar ele com o dedão enquanto caminhamos”, disse Lennie.
“Bom, você não vai acariciar nenhum camundongo enquanto caminha comigo. Você se lembra pra onde a gente ‘tá indo agora?”
Lennie olhou assustado e então, embaraçado, escondeu o rosto contra os joelhos. “Eu esqueci de novo.”
“Santo Deus”, disse George resignado. “Bom olha, a gente vai trabalhar num rancho tipo aquele que viemos do norte.”
“Do norte?”
“Em Weed.”
“Oh, claro. Eu me lembro. Em Weed.”
“O rancho pra onde vamos ‘tá lá embaixo a cerca de meio quilômetro.Agente vai entrar e ver o patrão.Agora, escute eu darei a ele os cartões de trabalho, mas você não vai dizer uma palavra. Você só fica lá e não diz nada. Se ele descobrir o louco desgraçado que você é, a gente não vai conseguir nenhum trabalho, mas se ele vir você trabalhar antes de ouvir você falar, a gente ‘tá feito. Você entendeu?”
“Claro, George. Claro, eu entendi.”
“‘Tá bem.Agora quando a gente for ver o patrão, o que você vai fazer?”
“Eu... eu...” Lennie pensou. Seu rosto ficou tenso com o pensamento. “Eu… não vou dizer nada. Só vou ficar lá parado.”
“Bom garoto. Muito bem. Você diz isso mais duas, três vezes pra garantir que não vai se esquecer.”
Lennie murmurou suavemente para si mesmo, “Eu não vou dizer nada… eu não vou dizer nada… eu não vou dizer nada.”
“Muito bem,” disse George. “E você também não vai fazer nada de ruim como você fez em Weed.”
Lennie olhou intrigado. “Como eu fiz em Weed?”
“Oh, então você esqueceu daquilo também, não é? Bom, eu não vou te lembrar, tenho medo de que você faça novamente.”
Uma luz de entendimento surgiu no rosto de Lennie. “Eles botaram a gente pra correr de Weed”, ele explodiu triunfante.
“Botaram pra correr uma ova,” disse George desgostoso. “Agente saiu correndo. Eles ‘tavam a nossa procura, mas não nos pegaram.”
Lennie deu uma risadinha alegre. “Eu não esqueci disso, pode apostar.”
George deitou-se na areia e cruzou as mãos sob a cabeça, e Lennie o imitou, levantando a cabeça para ver se ele estava fazendo certo. “Meu Deus, você só me dá problemas”, disse George. “Eu poderia progredir tão fácil e tão bem se não tivesse você no meu pé. Eu poderia viver tão fácil e talvez ter uma garota.”
Por um momento, Lennie ficou quieto e então disse esperançoso, “A gente vai trabalhar num rancho, George.”
“E isso aí. Isso você entendeu. Mas a gente vai dormir aqui porque eu tenho uma razão.”
O dia estava passando rápido agora. Somente os cumes das montanhas Gabilan ardiam com a luz do sol que saíra do vale. Uma cobra d'água deslizou sobre a lagoa, a cabeça erguida como um pequeno
periscópio. Os juncos sacudiram levemente na corrente. Longe na direção da estrada um homem gritou alguma coisa, e outro homem gritou de volta. Os galhos dos sicômoros farfalharam sob uma brisa que morreu imediatamente
“George – por que não vamos pro rancho e jantamos? Eles têm janta no rancho.”
George rolou para o lado. “Não vou dar nenhuma razão pra você. Eu gosto daqui. Amanhã vamos trabalhar. Vi máquinas de debulhar no caminho. Isso quer dizer que vamos ficar carregando saco de grãos, vamos dar o couro. Hoje à noite eu vou me deitar bem aqui e olhar pra cima. Eu gosto disso.”
Lennie ficou de joelhos e abaixou os olhos para George. “Agente não vai jantar?”
“Claro que sim, se você juntar alguns galhos de salgueiro mortos. Eu tenho três latas de feijão na minha trouxa. Você prepara a fogueira. Vou lhe dar um fósforo quando você juntar os galhos. Depois vamos aquecer o feijão e jantar.”
Lennie disse, “Eu gosto de feijões com ketchup.”
“Bom, a gente não tem nenhum ketchup. Você vai buscar a lenha. E não fique brincando por aí. Logo vai estar escuro.”
Lennie ficou de pé e desapareceu no mato. George ficou deitado onde estava e assobiou baixinho para si mesmo. Houve sons de chapinhar rio abaixo na direção que Lennie havia tomado. George parou de assobiar e ouviu. “Pobre desgraçado”, ele disse suavemente, e depois continuou assobiando novamente.
Num instante Lennie voltou ruidosamente pelo mato. Ele carregava um pequeno graveto de salgueiro na mão. George sentou-se. “Muito bem,” ele disse bruscamente. “Me dê esse camundongo”.
Mas Lennie fez uma elaborada pantomima de inocência. “Que camundongo, George? Eu não tenho nenhum camundongo.”
George estendeu a mão. “Vamos lá. Me dê isto. Você não vai me enrolar”
Lennie hesitou, recuou, olhou selvagemente para a linha da mata, como se ele contemplasse correr pela sua liberdade. George disse friamente, “Você vai me dar esse camundongo ou vou ter que te dar um soco?”
“Te dar o quê, George?”
“Você sabe muito bem o quê. Eu quero esse camundongo.”
Lennie, relutantemente, enfiou a mão no bolso. Sua voz quebrou um pouco. “Não sei por que não posso ficar com ele. Não é o camundongo de ninguém. Eu não o roubei. Eu o encontrei estirado bem ao lado da estrada.”
Amão de George permaneceu estendida imperiosamente. Lentamente, como um terrier que não quer levar uma bola ao seu mestre, Lennie aproximou-se, recuou, aproximou-se novamente. George estalou os dedos rispidamente e, ao som, Lennie colocou o camundongo na mão dele. “Eu não ‘tava fazendo nada de mal com ele, George. Só acariciando.”
George levantou-se e jogou o camundongo o mais longe que pôde na mata que escurecia; depois foi para a lagoa e lavou as mãos. “Seu tolo louco. Você acha que eu não pude ver que seus pés ‘tavam molhados por onde você atravessou o rio pra pegá-lo?” Ele ouviu o choro lamentoso de Lennie e virou-se. “Choramingando como um bebê! Santo Deus! Um homem grande como você.” O lábio de Lennie estremeceu e lágrimas brotaram em seus olhos. “Ah, Lennie!” George colocou a mão no ombro de Lennie. “Eu não joguei ele fora só por maldade.Aquele camundongo não ‘tava fresco, Lennie; e, além disso, você o estraçalhou acariciando-o. Arranje outro camundongo que esteja fresco e eu deixo você ficar um pouco com ele.”
Lennie sentou-se no chão e abaixou a cabeça desanimado. “Não sei onde tem outro camundongo. Me lembro que uma senhora costumava dar eles pra mim todos os que ela pegava. Mas essa senhora não ‘tá aqui.”
George zombou “Senhora, huh? Não se lembra nem quem era essa senhora. Ela era a sua própria tia Clara. E ela parou de dar pra você. Você sempre os matava.”
Lennie ergueu os olhos tristemente para ele. “Eles eram tão pequenos”, ele disse, se desculpando. “Eu acariciava eles, e logo eles mordiam meus dedos e eu apertava um pouco a cabeça deles e então eles ‘tavam mortos porque eles eram muito pequenos.”
“Eu gostaria de ter os coelhos logo, George. Eles não são tão pequenos.”
“Pro inferno com os coelhos. E não se pode confiar a você nenhum camundongo vivo. Sua tia Clara deu a você um camundongo de borracha e você não fez nada com ele.”
“Não era bom pra acariciar” disse Lennie.
Achama do ocaso ergueu-se do cume das montanhas e o crepúsculo entrou no vale; e a semiescuridão penetrou entre os salgueiros e sicômoros.
Uma grande carpa subiu à superfície da lagoa, engoliu ar e depois mergulhou misteriosamente na água escura novamente, deixando nela anéis que se alargavam. No alto as folhas sacudiram novamente e pequenos flocos de algodão dos salgueiros derrubaram-se com o vento e pousaram na superfície da lagoa.3
“Você vai pegar aquela lenha?” George indagou. “Tem bastante atrás daquele sicômoro. Madeira de enchente.Agora vá buscar.”
Lennie foi para trás da árvore e trouxe uma braçada de folhas secas e gravetos.Atirou-os no monte de velhas cinzas apilhadas e voltou para pegar mais e mais. Era quase noite agora. As asas de uma pomba sibilaram sobre a água. George caminhou até a pilha da fogueira e acendeu as folhas secas.Achama crepitou entre os gravetos e começou a trabalhar. George desfez a trouxa e tirou três latas de feijão. Ele as colocou ao redor do fogo, perto das chamas, mas sem que estas as tocassem.
“Têm feijões suficiente pra quatro pessoas,” George disse.
Lennie o observava por cima da fogueira. Ele disse pacientemente, “Eu gosto deles com ketchup.”
“Bom, a gente não tem nenhum,” George explodiu. “Qualquer coisa que não temos, é isso o que você quer. Santo Deus, se eu ‘tivesse sozinho minha vida seria tão fácil. Eu poderia arrumar um emprego e trabalhar, e não ter nenhum problema. Sem nenhuma confusão, e quando o fim do mês chegasse eu poderia pegar meus cinquenta dólares e ir pra cidade e fazer o que eu bem quisesse. Ora, eu poderia ficar num bordel a noite inteira. Eu poderia comer em qualquer lugar que eu quisesse, num hotel ou qualquer outro lugar, e pedir qualquer maldita coisa que eu pudesse pensar. E eu poderia fazer tudo isso em cada maldito mês. Pegar um galão de whisky ou ficar num salão de jogos e jogar cartas ou sinuca.” Lennie ajoelhou-se e deu uma olhada por cima da fogueira para o furioso George. E o rosto de Lennie estava tenso de terror. “E o que eu tenho” George continuou furioso. “Eu tenho você! Você não consegue ficar num emprego e me faz perder todo emprego que eu arrumo. Só fica me empurrando por todo o país o tempo todo. E isso não é o pior. Você arruma encrenca. Você faz coisas ruins e eu tenho que te livrar.” Sua voz ergueu-se próxima a um grito. “Seu louco filho da puta. Você me mantém em apuros o tempo todo.” Ele assumiu a maneira elaborada das menininhas quando elas querem imitar umas às outras. “Só queria sentir o vestido da garota – só
3 -As imagens naturais descritas ao longo da novela são uma alusão ao paraíso, conforme descrito no Livro do Gênesis, bem como no poema épico de John Milton, Paraíso Perdido.
queria acariciá-lo como se fosse um camundongo – Bom, como diabos ela poderia saber que você só queria sentir o vestido dela? Ela salta pra trás e você a segura como se fosse um camundongo. Ela grita e a gente precisa se esconder na valeta de irrigação o dia todo com os rapazes procurando pela gente, e a gente tem que sair às escondidas no escuro e deixar o campo.
Todo o tempo acontece algo assim – todo o tempo. Eu gostaria de poder te colocar numa jaula com cerca de um milhão de camundongos e deixar você se divertir.” Sua raiva o deixou subitamente. Ele olhou através da fogueira para o rosto aflito de Lennie, e então ele olhou envergonhado para as chamas.
Estava bem escuro agora, mas a fogueira iluminava os troncos das árvores e os ramos recurvados mais acima. Lennie arrastou-se lenta e cautelosamente ao redor da fogueira até chegar perto de George. Ele sentou-se sobre os seus calcanhares. George virou as latas de feijão a fim de que a outra face se voltasse para o fogo. Ele fingia não ter percebido que Lennie estava bem próximo ao seu lado.
“George,” bem suavemente. Nenhuma resposta. “George!”
“O que você quer?”
“Eu ‘tava só brincando, George. Eu não quero nenhum ketchup. Eu não comeria nenhum ketchup mesmo se tivesse um aqui do meu lado.”
“Se tivesse um aqui, você poderia pegar um pouco.”
“Mas eu não iria comer nada, George. Eu iria deixar tudo pra você. Você iria poder cobrir seu feijão com ketchup e eu não iria tocar em nada.”
George ainda fitava sombriamente para o fogo. “Quando penso no ótimo tempo que eu poderia ter sem você eu fico louco. Eu nunca tenho paz.”
Lennie ficou de joelhos. Ele olhou para fora em direção à escuridão do outro lado do rio. “George, você quer que eu vá embora e deixe você sozinho?”
“Pra onde diabos você poderia ir?”
“Bom, eu poderia. Eu poderia ir embora praquelas colinas.Algum lugar onde eu achasse uma caverna.”
“É? Como você faria pra comer? Você não tem capacidade pra achar nada pra comer.”
“Eu encontraria algumas coisas, George. Eu não preciso de nenhuma boa comida com ketchup. Eu iria me deitar no sol e ninguém iria me
machucar. E se eu achasse um camundongo eu poderia ficar com ele. Ninguém iria tirar ele de mim.”
George lançou um olhar rápido e penetrante para ele. “Eu fui mau, não fui?”
“Se você não me quiser eu posso ir embora pras colinas e achar uma caverna. Eu posso ir embora a qualquer hora.”
“Não Olha! Eu ‘tava só brincando, Lennie. Porque eu quero que você fique comigo. O problema com os camundongos é que você sempre os mata.” Ele fez uma pausa. “Vou te contar o que vou fazer, Lennie. Na primeira chance que tiver eu vou te dar um filhote de cachorro. Talvez você não o mate. Isso vai ser melhor do que camundongo. E você vai poder acariciar ele com mais força.”
Lennie evitou a isca. Ele havia percebido sua vantagem. “Se você não me quiser, você só precisa me dizer, e eu vou embora lá praquelas colinas – praquelas colinas lá em cima e viver sozinho. E eu não vou ter nenhum camundongo roubado de mim.”
George disse, “Eu quero que você fique comigo, Lennie. Santo Deus, alguém poderia atirar em você achando que é um coiote se você ‘tiver sozinho. Não, você vai ficar comigo. Sua tia Clara não iria gostar que você partisse apressadamente sozinho, mesmo que ela esteja morta.”
Lennie falou astuciosamente, “Me conte – como você fez antes.”
“Te contar o quê?”
“Sobre os coelhos.”
George vociferou, “Você não vai me tapear.”
Lennie implorou, “Vamos lá, George. Me conte. Por favor, George. Como você fez antes.”
“Você ficou louco com isso, não ficou? ‘Tá bem, eu vou te contar, e depois a gente vai jantar...”
Avoz de George ficou profunda. Ele repetiu suas palavras ritmicamente como se ele já as tivesse pronunciado muitas vezes antes. “Caras como a gente, que trabalham em ranchos, são os caras mais solitários do mundo. Eles não têm nenhuma família. Eles não pertencem a nenhum lugar. Eles vão pra um rancho e trabalham até ganhar uma grana e então eles vão pra cidade e torram todas suas granas, e a primeira coisa que você vai ver são eles colocando seus traseiros num outro rancho. Eles não têm nada pra aspirar.”
Lennie estava encantado. “É isso – é isso. Agora diga como vai ser com a gente.”
George continuou. “Com a gente não vai ser assim.Agente tem um futuro.Agente tem alguém com quem conversar e que se importa com a gente.Agente não tem que se sentar num bar e torrar toda nossa grana só porque a gente não tem nenhum outro lugar pra ir. Se os outros caras vão pra prisão eles podem apodrecer lá dentro e ninguém vai dar a mínima. Mas não com a gente.”
Lennie interrompeu. “Mas não com a gente! E por quê? Porque... porque eu tenho você pra cuidar de mim, e você tem a mim pra cuidar de você, e é por isso.” Ele riu encantado. “Agora continue, George!”
“Você sabe de cor. Você pode continuar sozinho.”
“Não, você. Eu esqueço de algumas coisas. Conte sobre como vai ser.”
“’Tá bem.Algum dia – a gente vai juntar nossa grana e vamos ter uma casinha e alguns acres e uma vaca e alguns porcos e ”
“E viver da riqueza da terra,” Lennie gritou. “E ter coelhos. Continue, George! Conte sobre o que a gente vai ter no jardim e sobre os coelhos nas jaulas e sobre a chuva no inverno e o fogão a lenha, e do quão grossa vai ser a nata do leite que mal se vai poder cortá-la. Conte sobre isso, George.”
“Por que você mesmo não conta? Você já sabe de tudo.”
“Não... você conta. Não é o mesmo se eu contar. Continue... George. Conte como eu vou cuidar dos coelhos.”
“Bom,” disse George, “a gente vai ter um grande canteiro com vegetais e uma cabaninha pros coelhos e galinhas. E quando chover no inverno, a gente só vai dizer pro inferno em ir trabalhar, e vamos fazer fogo no fogão a lenha e vamos nos sentar ao redor e ouvir a chuva cair pelo telhado – Que loucura!” Ele pegou seu canivete do bolso. “Não tenho tempo pra mais.” Ele conduziu sua faca através do topo de uma das latas de feijão, serrou fora a tampa e passou a lata para Lennie. Depois ele abriu uma segunda lata. Do bolso lateral ele trouxe duas colheres e passou uma delas para Lennie.
Eles sentaram-se perto da fogueira e encheram suas bocas com feijões e mastigaram fortemente.Alguns feijões escorreram para fora da boca de Lennie. George fez um gesto com a sua colher. “O que você vai dizer amanhã quando o patrão te fizer perguntas?”
Lennie parou de mastigar e engoliu. Sua face estava concentrada. “Eu.... eu não vou... dizer nenhuma palavra.”
“Bom garoto! Muito bem, Lennie! Talvez você esteja ficando melhor. Quando a gente tiver alguns acres eu vou poder deixar você cuidar dos coelhos sem problemas. Especialmente se você continuar lembrando tão bem quanto agora.”
Lennie engasgou-se de orgulho. “Eu consigo lembrar,” ele disse.
George gesticulou com sua colher novamente. “Olha, Lennie. Eu quero que você olhe aqui ao redor. Você consegue se lembrar deste lugar, não consegue? O rancho está cerca de meio quilômetro acima por esta direção. Apenas siga o rio?”
“Claro,” disse Lennie. “Eu consigo me lembrar disso. Eu não me lembrei sobre não dizer uma palavra?”
“Claro que sim. Bom, escuta. Lennie – se acontecer de você arrumar encrenca como sempre aconteceu antes, quero que você venha pra cá e se esconda no mato.”
“Me esconder no mato,” disse Lennie devagar.
“Se esconda no mato até que eu venha até você. Consegue se lembrar disso?”
“Claro que eu consigo, George. Me esconder no mato até você vir.”
“Mas você não vai arrumar encrenca, porque se você arrumar, eu não vou deixar você cuidar dos coelhos.” Ele jogou fora sua lata vazia de feijão no meio do mato.
“Eu não vou arrumar encrenca, George. Eu não vou dizer nenhuma palavra.”
“Muito bem. Traga sua trouxa pra cá perto do fogo. Vai ser bom dormir aqui. Olhando pra cima, e as folhas. Não jogue mais lenha na fogueira. Vamos deixar o fogo morrer agora.”
Fizeram as camas sobre a areia e, quando a chama da fogueira diminuiu, fez-se menor a esfera de luz; os ramos recurvados desapareceram e apenas uma tênue luz fraca mostrou onde estavam os troncos das árvores. Da escuridão Lennie chamou, “George – você ‘tá dormindo?”
“Não. O que você quer?”
“Vamos ter coelhos de diferentes cores, George.”
“Claro que sim,” George disse sonolento. “Coelhos vermelhos, azuis e verdes, Lennie. Milhões deles.”
“Peludos, George, como os que eu vi na feira em Sacramento.”
“Claro, peludos.”
“Porque eu posso muito bem ir embora, George, e viver numa caverna.”
“Você pode muito bem ir pro inferno,” disse George. “Cale a boca agora.”
Aluz vermelha enfraqueceu-se nas brasas. Na colina acima do rio um lobo uivou, e um cão respondeu do outro lado do riacho. As folhas dos sicômoros farfalharam na leve brisa da noite.
O dormitório era uma construção comprida e retangular. Dentro, as paredes eram caiadas e o chão não tinha pintura. Em três paredes havia janelas quadradas pequenas e, na quarta, uma porta bem sólida com uma tranca de madeira. Encostados na parede havia oito catres, cinco deles arrumados com cobertores e os outros três exibindo o forro de aniagem do colchão. Sobre cada catre havia um caixote de frutas pregado com a abertura para a frente, de modo que formava duas prateleiras para os pertences do ocupante do catre. E as prateleiras estavam cheias de pequenos objetos, sabonete e talco, lâminas de barbear e aquelas revistas de faroeste que os homens dos ranchos amam ler e zombar delas e que secretamente acreditam. E haviam remédios nas prateleiras, e pequenos frascos, pentes; e penduradas nos pregos da lateral dos caixotes, algumas gravatas. Perto de uma parede havia um fogão de ferro fundido preto, com uma chaminé que atravessava o teto. No meio do dormitório ficava uma mesa quadrada grande, coberta de cartas de baralho, e em volta dela havia caixotes reforçados para os jogadores se sentarem.
Por volta das dez da manhã o sol jogou uma brilhante coluna carregada de poeira através de uma das janelas laterais, e dentro e fora do feixe de luz moscas moviam-se rapidamente como estrelas cadentes.
Atranca de madeira se ergueu.Aporta se abriu e um homem alto, velho, de ombros curvados entrou. Usava calça jeans e carregava uma vassoura grande na mão esquerda. Atrás dele vinha George e, atrás de George, Lennie.
“O patrão ‘tava esperando vocês ontem à noite,” o velho disse. “Ele ficou irritado à beça quando vocês não ‘tavam aqui pra sair nesta manhã.” Ele apontou com o braço direito e, da manga, saiu um pulso redondo em forma de bastão, mas sem mão. “Vocês podem ficar com essas duas camas aqui,” ele disse, indicando dois catres próximos do fogão.
George aproximou-se e jogou os cobertores no saco de aniagem cheio de palha que era um colchão. Ele olhou para a prateleira da caixa e então pegou uma pequena lata amarela dela. “Diga. Que diabos é isso?”
“Eu não sei,” disse o velho.
“Diz ‘mata com eficácia piolhos, baratas e outras pragas.’Mas que diabo de cama vocês ‘tão dando pra gente, afinal.Agente não quer nenhuma praga.”
O velho servente mudou a vassoura de posição e ficou segurando o cabo entre o cotovelo e a lateral do corpo enquanto estendia a mão para pegar a lata. Estudou o rótulo com cuidado. “Te digo uma coisa ” ele disse finalmente, “o último sujeito que ficou com essa cama era um ferreiro – um sujeito bem legal e tão limpo quanto você gostaria que fosse. Costumava lavar as mãos mesmo depois de comer.”
“Então como ele pegou piolho?” Dentro de George ia se formando uma raiva vagarosa. Lennie colocou sua trouxa no catre ao lado e se sentou. Ele observava George com a boca aberta.
“Te digo uma coisa,” disse o velho servente. “Este ferreiro que falo chamado Whitey – era o tipo de cara que colocaria essas coisas aí ainda que não houvesse nenhum inseto – só pra garantir, sabe? Te digo o que ele costumava fazer – Nas refeições ele descascava suas batatas cozidas, e tirava mesmo a menor manchinha, não importa o que fosse, antes de comer. E se tivesse uma mancha vermelha no ovo, ele a raspava fora. No fim desistiu por causa da comida. Este é o tipo de cara que ele era limpo. Costumava se arrumar nos domingos mesmo quando não ia pra nenhum lugar, até colocava uma gravata, e então se sentava no dormitório.”
“Não tenho tanta certeza”, disse George, cético. “Por que você disse que ele desistiu?”
O velho colocou a lata amarela no bolso, e esfregou as espinhosas suíças brancas com os nós dos dedos. “Porque... ele... ele simplesmente desistiu, do jeito que um cara faz. Disse que era pela comida. Só queria seguir em frente. Não deu outra razão a não ser a comida. Só disse ‘quero acertar minhas contas’numa noite, do jeito que qualquer cara faria.”
George levantou o forro do colchão e olhou por baixo. Debruçou-se por cima e inspecionou o enchimento barato com muita atenção. Lennie se levantou imediatamente e fez a mesma coisa com a cama dele. Finalmente George pareceu satisfeito. Desenrolou sua trouxa e colocou seus pertences na prateleira, a lâmina de barbear e uma barra de sabonete, o pente e um frasco de pílulas, o unguento e a munhequeira de couro. Então ele arrumou sua cama cuidadosamente com cobertores. O velho disse, “Acho que o patrão vai ‘tá aqui num minuto. Ele ficou mesmo furioso quando vocês não apareceram nesta manhã. Veio bem na hora em que ‘távamos tomando o
café da manhã e disse, ‘Onde diabos estão os rapazes novos?’E deu também uma bronca no estribeiro.”
George arrumou um pedaço de tecido enrugado da cama com um tapinha e sentou-se. “Deu uma bronca no estribeiro?” ele perguntou.
“Claro. Sabe, o estribeiro é negro.”
“Negro, huh?”
“É. Um sujeito legal também. Ficou com as costas tortas no local onde um cavalo o pateou. O patrão dá uma bronca no estribeiro quando ‘tá bravo. Mas o estribeiro não dá a mínima pra isso. Ele lê bastante. Tem livros no quarto dele.”
“Que tipo de sujeito é o patrão?” George perguntou.
“Bom, ele é um sujeito bem legal. Fica bem bravo as vezes, mas ele é bem legal. Te digo uma coisa sabe o que ele fez no Natal? Trouxe um galão de whisky bem aqui e disse, ‘Bebam pra valer, rapazes. Natal só chega uma vez ao ano.’”
“Pro inferno que ele fez! Um galão inteiro?”
“Sim senhor. Céus, a gente se divertiu. Eles deixaram o negro entrar naquela noite. O pequeno esfolador chamado Smitty implicou com o negro. ‘Tava também bem bêbado. Os rapazes não deixaram ele usar o pé, daí o negro acabou com ele. Se ele pudesse usar seu pé, Smitty disse que teria matado o negro. Os rapazes disseram que por conta do negro ter as costas tortas, Smitty não poderia usar seu pé.” Ele fez uma pausa, saboreando a memória. “Depois disso os rapazes foram pra Soledad e fizeram a farra. Eu não fui lá. Não tenho mais ânimo pra isso.”
Lennie estava terminando de arrumar a cama.Atranca de madeira se ergueu novamente e a porta se abriu. Um homenzinho corpulento parou na soleira da porta. Usava calça jeans, camisa de flanela, colete preto desabotoado e um paletó preto. Os polegares estavam enfiados no cinto, cada um de um lado da fivela quadrada de aço. Na cabeça trazia um chapéu de vaqueiro marrom surrado, e usava botas de salto com esporas para provar que não era um trabalhador braçal.
O velho servente olhou para ele rapidamente, e então se arrastou até a porta esfregando as suíças com os nós dos dedos enquanto falava. “Esses caras acabaram de chegar,” ele disse, e passou arrastando-se pelo patrão e saiu pela porta.
O patrão entrou no dormitório com os passos curtos e rápidos de um homem de pernas roliças. “Escrevi pra Murray e Ready que eu queria dois homens pra esta manhã. Vocês têm seus passes de trabalho?” George
enfiou a mão no bolso, tirou os passes e entregou para o patrão. “Não foi culpa de Murray e Ready. Diz bem aqui no passe que vocês deveriam estar aqui nesta manhã pra trabalhar.”
George abaixou os olhos para seus pés. “O motorista do ônibus nos sacaneou,” ele disse. “Agente teve que caminhar dezesseis quilômetros. Disse que a gente ‘tava aqui quando na verdade não ‘távamos.Agente não arrumou nenhuma carona pela manhã.”
O patrão semicerrou os olhos. “Bom, eu tive que enviar às equipes de grão faltando dois carregadores. Não vai adiantar nada sair agora até o jantar.” Ele puxou a agenda do bolso e abriu-a onde um lápis estava preso entre as folhas. George fez uma carranca de modo significativo para Lennie, e Lennie assentiu com a cabeça para mostrar que havia entendido. O patrão lambeu seu lápis. “Qual é o seu nome?”
“George Milton.”
“E qual é o seu?”
George disse, “Seu nome é Lennie Small.”
Os nomes foram registrados no livro. “Vejamos, hoje é vinte, meiodia do dia vinte.” Ele fechou o livro. “Onde vocês rapazes andaram trabalhando?”
“Acima perto de Weed,” disse George.
“Você também?” para Lennie.
“Sim, ele também,” disse George.
O patrão apontou um dedo brincalhão para Lennie. “Ele não é muito de falar, não é?”
“Não, ele não é, mas certamente é um tremendo de um bom trabalhador. Forte como um touro.”
Lennie sorriu para ele mesmo. “Forte como um touro,” ele repetiu.
George olhou carrancudo para ele, e Lennie abaixou sua cabeça envergonhado de ter esquecido.
O patrão disse repentinamente, “Escute, Small!” Lennie levantou a cabeça. “O que você sabe fazer?”
Em pânico, Lennie olhou para George buscando ajuda. “Ele pode fazer qualquer coisa que você mandar,” disse George. “Ele é um bom esfolador. Pode carregar sacos de grãos, dirigir um cultivador. Pode fazer qualquer coisa.Apenas dê a ele uma chance.”
O patrão se virou para George. “Então por que você não deixa ele responder? O que você ‘tá escondendo?”
George interrompeu em voz alta, “Oh! Eu não tô dizendo que ele é inteligente. Ele não é. Mas é um tremendo de um bom trabalhador. É capaz de levantar um fardo de cento e oitenta quilos.”
O patrão deliberadamente colocou o livrinho no bolso. Ele enganchou seus polegares no cinto e semicerrou um olho quase até fechálo. “Me diga – que vantagem você ‘tá tirando?”
“Huh?”
“Eu disse que dinheiro você ganha desse cara? Você ‘tá tirando o pagamento dele?”
“Não, é claro que não. Por que você acha que eu tô tirando vantagem dele?”
“Bom, eu nunca vi um cara arrumar tanto problema por causa de outro cara. Eu só gostaria de saber qual é o seu interesse nisto.”
George disse, “Ele é meu... primo. Eu disse à sua velha mãe que eu tomaria conta dele. Ele levou um coice na cabeça de um cavalo quando ele era uma criança. Ele não é ruim. Só não é inteligente. Mas ele pode fazer qualquer coisa que você mandar.”
O patrão virou-se um pouco. “Bom, Deus sabe que ele não precisa de nenhum cérebro pra carregar sacos de cevada. Mas não tente me tapear, Milton. Eu vou ficar de olho em você. Por que você foi embora de Weed?”
“O trabalho havia terminado,” disse George prontamente.
“Que tipo de trabalho?”
“Agente... a gente ‘tava cavando uma fossa.”
“’Tá bem. Mas não tente me tapear, porque você não vai se safar de nada. Eu já vi homens espertos antes. Vá pra fora com as equipes de grãos depois da janta. Eles ‘tão colhendo cevada na máquina de debulhar. Saia com a equipe de Slim.”
“Slim?”
“Isso. Um esfolador alto e grande. Você vai ver ele na janta.” Ele se virou bruscamente e foi até a porta, mas antes de sair, virou-se e olhou por um longo momento para os dois homens.
Quando o som de seus passos desapareceu, George virou-se para Lennie. “Então você não vai dizer nenhuma palavra. Você vai deixar sua grande matraca fechada e deixar eu falar. Merda, quase que a gente perde o emprego.”
Lennie fitou desesperançoso suas mãos. “Eu esqueci, George.”
“É, você esqueceu. Você sempre esquece, e eu tenho que ficar te convencendo pra não fazer.” Ele sentou-se pesadamente no catre. “Agora ele ‘tá de olho na gente.Agora a gente vai ter que ser cuidadoso e não cometer nenhum deslize. Fique com sua matraca fechada depois disto.” Ele caiu num silêncio sombrio.
“George.”
“O que você quer agora?”
“Eu não levei um coice na cabeça de nenhum cavalo, levei George?”
“Seria uma maldita coisa boa se você tivesse levado,” George disse cruelmente. “Salvaria todo mundo de um monte de malditos problemas.”
“Você disse que eu era seu primo, George.”
“Bom, isso foi uma mentira. E eu tô bem feliz que tenha sido. Se eu fosse seu parente eu daria um tiro em mim mesmo.” Ele parou repentinamente, foi até a porta aberta da frente e espreitou para fora.
“Diga, o que diabos você ‘tá ouvindo?”
O velho entrou no dormitório bem devagar. Estava com a vassoura na mão. E em seu encalço vinha um cão pastor arrastando as patas, com o focinho grisalho e olhos claros, cegos e velhos. O cão foi tropeçando até o canto do dormitório e deitou-se, grunhindo baixinho para si mesmo e lambendo a pelagem grisalha e cheia de falhas. O servente ficou observando até ele se acomodar. “Eu não ‘tava ouvindo. ‘Tava só parado na sombra um minuto coçando meu cachorro. Eu acabei de limpar a casa de banho.”
“Você ‘tava metendo seus grandes ouvidos nos nossos negócios”, disse George. “Eu não gosto de ninguém se intrometendo.”
O velho olhou inquieto de George para Lennie e depois de volta. “Acabei de chegar de lá”, ele disse. “Eu não ouvi nada do que vocês ‘tavam falando. Não tô interessado em nada do que vocês ‘tavam falando. Um cara num rancho nunca ouve nem faz nenhuma pergunta.”
“Pode apostar que não,” disse George, um pouco apaziguado, “não se ele quiser ficar trabalhando por um bom tempo.” Mas ele foi tranquilizado pela defesa do servente. “Entre e sente-se um minuto,” ele disse. “Este cachorro é velho à beça.”
“Sim. Eu o tenho desde que era um filhote. Deus, ele era um bom cão pastor quando era mais jovem.” Ele apoiou a vassoura contra a parede e esfregou a bochecha de espinhosos fios brancos com os nós dos dedos. “O que você achou do patrão?” ele perguntou.
“Gostei bastante. Não parece ser ruim.”
“Ele é um sujeito legal,” o servente concordou. “Você tem que saber como lidar com ele.”
Naquele momento um jovem entrou no dormitório; um jovem magro com rosto moreno, com olhos castanhos e uma cabeça de cabelo bem encaracolado. Usava uma luva de trabalho na mão esquerda e, assim como o patrão, usava botas de salto. “Viram o meu velho?” ele perguntou.
O servente disse, “Ele ‘tava aqui há um minuto atrás, Curley. Foi em direção a casa da cozinha, eu acho.”
“Vou tentar alcançar ele,” disse Curley. Seus olhos passaram em direção aos novos trabalhadores e ele parou. Deu uma olhada para George com frieza e depois para Lennie. Seus braços foram se curvando gradualmente e suas mãos se fecharam em punhos. Ele ficou rígido e agachou-se levemente. Seu rápido olhar era ao mesmo tempo calculado e pugnaz. Lennie contorceu-se sob o olhar e mexeu os pés nervosamente. Curley aproximou-se cautelosamente dele. “Vocês são os novos rapazes que o velho ‘tava esperando?”
“Agente acabou de chegar,” disse George.
“Deixe o grandalhão falar.”
Lennie contorceu-se embaraçado.
George disse, “Suponha que ele não queira falar?”
Curley fez um trejeito com o corpo. “Meu Deus, ele tem que falar quando alguém se dirige a ele. Pra que diabos você fica se metendo nisto?”
“Agente viaja junto,” disse George friamente.
“Oh, então é deste jeito.”
George estava tenso e imóvel. “Sim, é deste jeito.”
Lennie estava olhando impotente para George em busca de instruções.
“E você não deixa o grandalhão falar, é isso?”
“Ele pode falar se ele quiser te contar alguma coisa.” Ele assentiu levemente para Lennie.
“Agente acabou de chegar,” disse Lennie suavemente.
Curley olhou para ele com firmeza. “Bom, da próxima vez você responda quando se dirigirem a você.” Virou-se para a porta e foi embora, com os cotovelos ainda um pouco dobrados.
George observou-o ir, e então ele se virou para o servente. “Me diga, qual é o problema dele? Lennie não fez nada pra ele.”
O velho olhou cautelosamente para a porta para garantir que ninguém estivesse ouvindo. “Aquele é o filho do patrão,” ele disse baixinho. “Curley é bem habilidoso. Ele já lutou boxe no ringue. Ele é peso-leve, e ele é habilidoso.”
“Bom, deixe ele ser habilidoso,” disse George. “Ele não precisa ficar pegando no pé do Lennie. Lennie não fez nada pra ele. O que ele tem contra Lennie?”
O servente refletiu... “Bom... te digo uma coisa. Curley gosta bastante de caras pequenos. Ele odeia caras grandes. Ele fica o tempo todo provocando com os caras grandes. Meio como se ele ficasse bravo com eles por ele não ser um cara grande. Você viu caras pequenos como ele, não viu? Sempre provocando?”
“Claro,” disse George. “Eu já vi vários carinhas durões. Mas é melhor este Curley não cometer nenhum erro com Lennie. Lennie não é habilidoso, mas este podre do Curley vai se machucar se ele mexer com Lennie.”
“Bom, Curley é bem habilidoso,” o servente disse ceticamente. “Nunca me pareceu certo. Imagine que Curley salte em cima de um grandalhão e dê uma surra nele. Todo mundo diz que cara valente o Curley é. E imagine que salte em cima de um grandalhão e tome uma surra. Então todo mundo diz que o grandalhão deveria escolher alguém do tamanho dele, e talvez se juntem contra o grandalhão. Nunca me pareceu certo.
Parece que Curley não ‘tá dando a ninguém uma chance.”
George estava observando a porta. Ele disse ameaçadoramente, “Bom, é melhor ele ter cuidado com Lennie. Lennie não é de brigar, mas o Lennie é forte e rápido e Lennie não conhece nenhuma regra.” Ele caminhou até a mesa quadrada e se sentou numa das caixas. Ele juntou alguma das cartas e as embaralhou.
O velho sentou-se em outra caixa. “Não conte a Curley que eu disse nada disto Ele iria me descartar na hora Ele não dá a mínima. Nunca vai ser despedido porque o seu velho é o patrão.”
George cortou as cartas e começou a virá-las para cima, olhando para cada uma e as arremessando numa pilha. Ele disse, “Este sujeito Curley me parece um filho da puta. Eu não gosto de carinhas maus.”
“Me parece que ele ‘tá pior ultimamente,” disse o servente “Ele se casou algumas semanas atrás.Aesposa mora lá em cima na casa do patrão. Me parece que Curley ‘tá mais brigão desde que se casou.”
George grunhiu, “Talvez ele esteja se exibindo pra sua esposa.”
O servente animou-se com a sua fofoca. “Você viu a luva na sua mão esquerda?”
“Sim. Eu vi.”
“Bom, aquela luva está cheia de vaselina.”
“Vaselina? Por que diabos?”
“Bom, te digo uma coisa Curley disse que ‘tá mantendo aquela mão macia pra sua esposa.”
George estudou as cartas absorto. “Esta é uma coisa nojenta pra se dizer por aí,” ele disse.
O velho estava tranquilo. Ele havia obtido uma declaração depreciativa de George. Ele se sentiu seguro agora, e ele falou com mais confiança “Espere até ver a esposa de Curley.”
George cortou as cartas de novo e separou uma fileira de jogo de paciência, lenta e deliberadamente. “Bonitinha?” ele perguntou casualmente.
“Sim. Bonitinha... mas ”
George estudou as cartas. “Mas o quê?”
“Bom – ela gosta de ficar olhando pros caras.”
“É? Casada há duas semanas e gosta de ficar olhando pros caras? Talvez seja por isso que as calças de Curley ‘tão cheias de formigas.”
“Eu vi ela olhando pro Slim. Slim é um carroceiro de mulas. Um sujeito bem legal. Slim não precisa usar nenhuma bota de salto alto na equipe de grãos. Eu vi ela olhando pro Slim. Curley nunca viu. E eu vi ela olhando pro Carlson.
George fingiu estar um pouco interessado. “Parece que a gente vai se divertir.”
O servente se levantou de sua caixa. “Sabe o que eu acho?” George não respondeu. “Bom, eu acho que Curley se casou com... uma vadia.”
“Ele não foi o primeiro,” disse George. “Vários já fizeram isto.”
O velho se moveu na direção da porta, e seu cão ancião levantou sua cabeça e espreitou ao redor, e então ficou dolorosamente sobre suas patas para o seguir. “Eu tenho que arrumar o lavatório pro pessoal.As equipes vão chegar logo. Vocês vão carregar cevada?”
“Sim.”
“Você não vai contar pro Curley nada do que eu disse?”
“Claro que não.”
“Bom, você dê uma olhada nela, senhor. Veja se ela não é uma puta.” Ele saiu pela porta em direção à luz brilhante do sol.
George abaixou suas cartas pensativamente, virou suas pilhas de três. Ele colocou quatro paus na sua pilha de ás. O quadrado de sol estava no chão agora, e as moscas passavam rapidamente através da luz como faíscas. Um som de arreios tilintantes e o barulho de eixos bem carregados vieram de fora. Da distância veio uma clara chamada. “Neguinho4 ooh, ne guinho!” E então, “Onde diabos ‘tá aquele maldito negro?”
George encarou sua fila de cartas do jogo, e então arremessou suas cartas juntas e virou-se para Lennie. Lennie estava deitado no catre observando-o.
“Olha, Lennie! Isto aqui não é brincadeira. Eu tô assustado. Você vai ter problemas com aquele tal de Curley. Eu já vi o tipo antes. Ele ‘tava meio que vendo qual é a tua. Ele percebeu que ele botou medo em você e ele vai te dar um soco na primeira chance que tiver.”
Os olhos de Lennie estavam apavorados. “Eu não quero nenhum problema,” ele disse lamurioso. “Não deixe ele me dar um soco, George.”
George levantou-se e foi em direção ao catre de Lennie e sentou-se nele. “Eu odeio estes malditos tipos,” ele disse. “Eu vi vários destes tipos. Como o velho disse, Curley não dá nenhuma chance. Ele sempre ganha.” Ele pensou por um momento. “Se ele se meter contigo Lennie, a gente vai ser despedido. Não cometa nenhum erro em relação a isso. Ele é o filho do patrão. Olha, Lennie. Tente manter distância dele, ‘tá bem? Nunca fale com ele. Se ele entrar aqui mova pro outro lado do cômodo. Você vai fazer isso, Lennie?”
“Eu não quero nenhum problema,” Lennie falou com uma tristeza maior. “Eu nunca fiz nada pra ele.”
“Bom, isto não vai adiantar de nada se Curley quiser mostrar que é bom de briga. Só não se meta com ele. Você vai se lembrar?”
“Claro, George. Eu não vou dizer nenhuma palavra.”
O som das equipes de grãos estava mais forte, baque de grandes cascos em solo duro, arrastar de freios e o tilintar de correntes. Homens estavam chamando aqui e ali de suas equipes. George, sentado no catre ao lado de Lennie, franziu o rosto enquanto pensava. Lennie perguntou timidamente, “Você não ‘tá bravo, George?”
4 - No original stable buck. Um nome depreciativo para um homem afro-americano que trabalha nos estábulos.
“Eu não tô bravo contigo. Tô bravo com aquele maldito Curley. Esperava que a gente fosse juntar uma graninha juntos – talvez cem dólares.” Seu tom tornou-se decisivo. “Fique longe do Curley, Lennie.”
“Claro que vou ficar, George. Eu não vou dizer nenhuma palavra.”
“Não deixe ele te provocar – mas – se aquele filho da puta te der um soco – dê nele.”
“Dê nele o quê, George?”
“Deixa pra lá, deixa pra lá. Eu te direi quando. Odeio aquele tipo de cara. Olha, Lennie, se você arrumar qualquer tipo de encrenca, você se lembra do que eu te disse pra fazer?”
Lennie ergue-se em seu cotovelo. Seu rosto se contorceu em pensamento. Então seus olhos se moveram tristemente para o rosto de George. “Se eu arrumar encrenca, você não vai me deixar cuidar dos coelhos.”
“Não foi o que eu quis dizer. Você se lembra da onde a gente dormiu noite passada? Lá pra baixo perto do rio?”
“Sim. Eu me lembro. Oh, claro que eu me lembro! Eu vou pra lá e me escondo no mato.”
“Se esconda até eu ir até você. Não deixe que ninguém te veja. Se esconda no mato perto do rio. Diga isso novamente.”
“Me esconder no mato perto do rio, pra baixo no mato perto do rio.”
“Se você arrumar encrenca.”
“Se eu arrumar encrenca.”
Um freio guinchou do lado de fora. Uma chamada veio, “Neguinho. Oh! Ne guinho.”
George disse, “Diga isso novamente pra você mesmo, Lennie, assim você não vai se esquecer.”
Ambos os homens deram uma olhada para cima, pois o retângulo de luz do sol na porta estava cortado. Uma garota estava parada lá olhando para dentro. Ela tinha lábios carnudos com batom vermelho e olhos bem separados, fortemente maquiados. Suas unhas eram vermelhas. Seu cabelo caía em pequenos cachos enrolados, como salsichas. Ela usava um vestido caseiro de algodão e sapatilhas vermelhas, cujas palmilhas havia pequenos buquês de penas vermelhas de avestruz “Tô procurando o Curley,” ela disse. Sua voz tinha uma qualidade nasalada e quebradiça.
George desviou o olhar dela e depois voltou. “Ele ‘tava aqui há um minuto atrás, mas foi embora.”