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John Lennon (Nova edição): A vida

Philip Norman

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Sumário

PARTE I: MENINO DO INTERIOR

1. Filho da guerra

2. A Confederação do Norte

3. Os Proscritos

4. O míope John Wimple Lennon

5. O campeão da Gallotone

6. Amigos

PARTE II: AO TOPO DO POP

7. Minha mãezinha morreu

8. Um cara ciumento

9 Sob o Jacaranda

10. Mach Schau

11. A fúria de cantar

12. Shadowlands

13. Estrelas da sorte

PARTE III: UM GÊNIO DA RALÉ

14. Amígdalas de couro em garganta de aço

15. Big Bang

16. O topo da montanha

17 Vida real em CinemaScope

18. Um sujeito muito religioso

PARTE IV: VAUDEVILLE ZEN

19. Respire

20. Magia, meditação e miséria

21.Isso é que é um guruzinho bom

22. De volta à virgindade

23. Confusão

24 Síndrome de abstinência

25. O crepúsculo dos Beatles

PARTE V: PIZZA E CONTOS DE FADAS

26. O Yippie Yippie Shake

27. O problema com Harry

28. Garoto bonito

29 Um cara bom de casa

30. Recomeçar a vida

P. S. Sean recorda

Caderno de imagens

Agradecimentos

Créditos das imagens

Sobre o autor

Créditos

Para Jessica

PARTE I: MENINO DO INTERIOR

I. Filho da guerra

Nunca me quiseram, na verdade.

John Lennon nasceu com um dom para a música e a comédia que o levariam muito mais longe de suas raízes do que poderia ter sonhado. Quando jovem, foi atraído para longe das ilhas Britânicas pelo glamour e a oportunidade aparentemente infinitos do outro lado do Atlântico. Alcançou o feito raro para um artista britânico de apresentar música americana para os americanos e tocála de modo tão convincente quanto um profissional nativo, ou ainda melhor.

Durante vários anos, seu grupo excursionou pelo país, deleitando platéias em cidade após cidade com seus ternos berrantes, cabelos engraçados e contagiantes sorrisos de felicidade.

Este, naturalmente, não era o Beatle John Lennon, mas o seu avô paterno homônimo, mais conhecido como Jack, nascido em 1855 Lennon é um sobrenome irlandês de O’Leannain ou O’Lonain e Jack costumava dizer que havia nascido em Dublin, embora existam indícios de que, algum tempo antes, sua família tivesse atravessado o mar da Irlanda para se tornar parte da extensa comunidade hibérnica de Liverpool. Ali ele começou a ganhar a vida como escriturário, mas na década de 1880 seguiu um impulso comum entre seus compatriotas e emigrou para Nova York. Enquanto a cidade transformava outros imigrantes irlandeses em operários ou policiais, Jack virou membro da trupe Coloured Operatic Kentucky Minstrels [Menestréis Operáticos de Cor do Kentucky], de Andrew Roberton.

Por mais breve ou informal que tenha sido seu envolvimento, isto fez dele parte da primeira leva transatlântica de música popular As trupes americanas de menestréis, em que brancos enegreciam o rosto, usavam colarinhos enormes e pantalonas listradas e entoavam refrões sentimentais sobre o Velho Sul, os “crioulos” e os “neguinhos”, eram imensamente populares no final do século

XIX, seja como intérpretes seja como criadores de canções de sucesso. Quando os Coloured Operatic Kentucky Minstrels excursionaram pela Irlanda em 1897, o Limerick Chronicle os chamou de “ os consagrados mestres mundiais da refinada arte dos menestréis”, enquanto o Dublin Chronicle os considerou o melhor desses grupos que por lá passara. Um almanaque da época registra que a trupe contava cerca de trinta integrantes, incluía artistas negros genuínos entre os fictícios e se distinguia pelo fato de desfilar pelas ruas de cada cidade onde se apresentava.

Para esse John Lennon, ao contrário do neto que ele jamais conheceria, a música não trouxe fama mundial, mas foi um mero interlúdio exótico, cujos detalhes, em sua maioria, jamais chegariam aos ouvidos de seus descendentes. Em torno da virada do século, ele largou para sempre a estrada, voltou para Liverpool e retomou a antiga vida como escriturário, desta vez na companhia de navegação Booth. Com ele veio sua filha, Mary, único fruto de um primeiro casamento que não sobrevivera ao seu mergulho temporário no mundo da maquiagem com rolha queimada, música de banjo e aplausos

Quando Mary o deixou para trabalhar como empregada doméstica, uma velhice solitária parecia estar reservada para Jack. Este, porém, escapou de tal destino ao casar com sua empregada, uma jovem irlandesa de Liverpool com o nome afortunadamente coincidente de Mary Maguire. Embora vinte anos mais moça e analfabeta, Mary mais conhecida como Polly se revelou uma perfeita esposa vitoriana, prática, trabalhadora e abnegada. Moravam em uma casa minúscula num conjunto de residências geminadas em Copperfield Street, em Toxteth, uma área da cidade apelidada de “Dickenslândia”, tão numerosas eram ali as ruas batizadas com nomes dos personagens do escritor. Um tanto como Micawber em David Copperfield, Jack às vezes falava em voltar à vida de menestrel e ganhar o suficiente para que sua jovem esposa pudesse, como ele dizia, “peidar na seda”. No entanto, dali em diante, sua atividade musical se restringiria aos pubs locais e ao seu próprio círculo familiar. O casamento de Jack com Polly proporcionou-lhe uma segunda família com oito filhos. Dois morreram ainda bebês, o que a supersticiosa Polly atribuiu ao fato de terem sido batizados como católicos. Os outros seis receberam batismos protestantes e todos sobreviveram: cinco meninos George, Herbert, Sydney, Alfred e Charles e uma menina, Edith Polly teve um trabalho heróico para alimentar a todos com o modesto salário de Jack. Mas sua dieta principalmente de pão, margarina, chá forte e lobscouse um ensopado de carne e biscoito que

faria com que os liverpudlianos ficassem conhecidos como scouses carecia cronicamente de nutrientes essenciais Isto afetou sobretudo o quarto menino, Alfred, nascido em 1912, que pouco depois de começar a andar contraiu raquitismo, o que prejudicou o desenvolvimento de suas pernas. O único tratamento conhecido pelos pediatras naqueles tempos era encaixar as pernas em suportes de ferro, na esperança de que o peso adicional promovesse o crescimento e o fortalecimento dos membros. Todavia, apesar dos anos que passou com o fardo dos suportes metálicos, as pernas de Alf permaneceram débeis e curtas, e ele não cresceu mais do que 1,62 metro. Ainda assim, era um rapaz bonito, com abundantes cabelos escuros, olhos alegres e o nariz característico da família Lennon, um bico fino virado para baixo com fendas acentuadas sobre as narinas.

O talento musical de Jack foi transmitido aos seus filhos em graus distintos George, Herbert, Sydney, Charles e Edith eram cantores passáveis, e os meninos tocavam gaitas-de-boca, o único instrumento acessível a jovens naquelas circunstâncias. Alf, porém, revelava habilidade de ordem bem mais elevada, aliada ao que seu irmão Charlie (nascido em 1918) chamava de uma “vontade de se mostrar”. Dava conta de todas as canções do teatro de variedades e das óperas ligeiras que freqüentavam a parada de sucessos da Primeira Guerra; sabia recitar baladas, contar anedotas e fazer imitações Sua especialidade era Charlie Chaplin, o pequeno vagabundo anárquico cujos filmes cômicos haviam criado o fenômeno sem precedentes de um artista famoso no mundo inteiro. Em reuniões de família, Alf sentava-se no colo do pai com suas pernas de ferro e os dois cantavam juntos “Ave Maria”, com lágrimas de emoção escorrendo pelo rosto.

Jack morreu de doença do fígado, provavelmente causada pelo alcoolismo, em 1921. Incapaz de sobreviver com a pensão de viúva proporcionada pelo Estado, de cinco xelins semanais por filho, Polly não teve outra saída senão lavar roupa para fora. Esse era um trabalho de quebrar as costas e escaldar as mãos: desde as quatro da manhã até o anoitecer, ela esfregava a roupa suja de cama e mesa de estranhos numa tábua de lavar e depois espremia os rolos de pano ensopado em uma pesada calandra de ferro. Ainda assim, lembra sua neta Joyce Lennon, a casa pequena e apertada estava sempre imaculada com “assoalhos nos quais dava para comer ” , o fogão e o forno religiosamente engrafitados toda segunda de manhã, a soleira na porta de entrada brunida até ficar quase branca e

depois delineada em vermelho com uma lasca de arenito. Polly comandava seus cinco filhos como a sra Joe em Grandes esperanças, não hesitando em castigá-los com uma correia de couro mesmo quando eram quase homens feitos. Como muitos liverpudlianos mais simples, ela tinha seu lado místico, acreditando ser médium, capaz de ler o futuro em cartas de baralho ou nos desenhos formados pelas folhas de chá no fundo de uma xícara.

Todavia, por mais que Polly trabalhasse duro, a tarefa de sustentar a prole de seis estava além de suas forças. Felizmente, encontrou-se um jeito de tirar Alf e Edith de suas mãos sem desagregar a família ou magoar seu feroz amor-próprio. Foram oferecidas a ambos vagas em regime de internato no Bluecoat Hospital, uma escola de caridade fundada em 1714 na Church Road, em Wavertree, nas proximidades de uma então obscura via pública chamada Penny Lane. Os alunos do Bluecoat ainda envergavam o uniforme adotado no século XVIII, de casaca azul com botões dourados, calções amarrados nos joelhos, meias e plastrão O nível educacional era alto, a disciplina não era inclemente e qualquer criança ali admitida era considerada afortunada. A despeito disso, foi traumático para Alf e Edith deixar o lar confortável e limpo em Copperfield Street e a mãe adorada. Dos dois, o jovial Alf ajustou-se melhor à vida da instituição: saía-se bem nas lições, tornou-se o mascote do time de futebol e divertia os companheiros de dormitório com os mesmos esquetes de canto e dança e de Charlie Chaplin que costumava fazer para a família e os vizinhos.

Desde a mais tenra infância, seu desejo era seguir o pai na vida artística. Certa noite, já com catorze anos, isso quase se tornou realidade quando o irmão

Sydney o levou ao Teatro Empire em Lime Street para ver uma trupe juvenil de canto e dança chamada Will Murray’s Gang. Terminado o espetáculo, Alf, na base da conversa, entrou nos bastidores e fez uma apresentação improvisada para Will Murray, o diretor da trupe, que imediatamente lhe ofereceu um emprego. Quando seus irmãos Herbert e George, agora in loco parentis, se recusaram a aceitar a idéia, Alf fugiu do Bluecoat Hospital e juntou-se à Gang, que estava a caminho de Glasgow para a apresentação seguinte. Mas um professor do Bluecoat foi atrás dele, levou-o de volta e o submeteu a um ritual de humilhação diante de todos os colegas reunidos.

Um ano depois, o Bluecoat o jogou no mundo, equipado com uma boa formação, assim como dois ternos de calças compridas para confirmar seu ingresso no mundo adulto. Ele passou algumas semanas infelizes como

contínuo antes de se dar conta de que uma carreira muito melhor algo, na verdade, quase comparável a subir no palco estava debaixo do seu nariz Pois aquela era a época dourada dos transatlânticos de carreira, quando Liverpool competia com Southampton como o porto de passageiros mais movimentado da Grã-Bretanha. Enormes vapores com várias chaminés diariamente entravam pelo rio Mersey ao encontro de trens de luxo vindos de Londres, repletos de gente abastada, que chegava com casacos de pele e baús de viagem. Em Ranelagh Place, o esplêndido Hotel Adelphi acabara de ser construído para assegurar uma transição indolor entre a terra firme e o navio, com seu pátio de palmeiras com dimensões titânicas, seus quartos parecidos com apartamentos de luxo, suas fundas piscinas com trampolins, suas cabeleireiras e massagistas. Assim, Alf se fez ao mar como mensageiro no S.S. Montrose. Era, como cedo descobriu, uma vida à qual parecia ter sido destinado Sua natureza amistosa e jovial o tornou popular entre os passageiros e os oficiais superiores, e o manteve no lado certo da máfia homossexual que dirigia os departamentos de comidas e bebidas do navio. “Lennie” assim era conhecido a bordo logo foi promovido a garçom de restaurante nos navios de cruzeiro que faziam a rota entre Liverpool e o Mediterrâneo. Nas horas de folga, divertia os colegas com canções e imitações nas apertadas e fétidas cabines comunais ou no bar da tripulação, conhecido em cada navio como “ o Porco e o Apito” Sua especialidade (que seu pai Jack sem dúvida teria apreciado) era enegrecer o rosto com graxa de sapato e “fazer” Al Jolson, o genial menestrel cujas versões piegas de “Mammy” e “Dixie” vendiam milhões de discos na década de 1920 e no início da seguinte

De certa forma, ele podia considerar que sempre estava sob os refletores, tanto ao servir pratos requintados para os grã-finos com reluzente jaqueta e luvas de garçom, como ao cantarolar “Sonny Boy”, de Al Jolson, apoiado num joelho, com as palmas das mãos juntas, para deleite dos colegas de bordo impregnados de cerveja, ou voltando para casa em Copperfield Street carregado das iguarias contrabandeadas do navio que são a dádiva divina de todo garçom de bordo Entre viagens, também, num ou noutro bar junto às docas, sempre podia encontrar uma audiência ansiosa para se regalar com histórias sobre os lugares e povos exóticos que ele tinha visto e a picante vida a bordo de um jovem garçom solteiro.

Apesar de todas as suas histórias de aventuras a bordo e animadas folgas em terra, parece que só existiu uma mulher para Alf Lennon A certa altura de 1928, não muito depois de ter deixado o Bluecoat Hospital, ele passeava por Sefton Park, resplandecente num dos seus dois ternos novos, envergando um imenso chapéu-coco e fumando um barato Wild Woodbine elegantemente preso na ponta de uma piteira Sentada sozinha num banco ao lado do lago ornamental estava uma garota com cabelos ruivos fofos e a estrutura facial óssea de uma jovem Marlene Dietrich. Quando Alf se aproximou para puxar conversa com ela, foi recebido com rajadas de risos zombeteiros. Percebendo que seu exagerado chapéu-coco era a causa, ele o arrancou da cabeça e o mandou chapinhando para dentro do lago. Assim começou seu longo e conturbado relacionamento com Julia Stanley.

Em Julia conhecida alternadamente como “Juliet”, “Judy” ou “Ju” o destino emparelhou Alf com uma personagem que, em seu desejo de glamour e ânsia de divertir, quase se igualava a ele. Também Julia possuía uma voz de cantora acima da média e, ao contrário de Alf, tinha prática como instrumentista Seu avô, outro escriturário de Liverpool tomado pelo vírus do palco, lhe ensinara a tocar banjo; além disso, ela sabia se safar no acordeão e no uquelele.

O talento musical, a personalidade e a graça encantadora de Julia faziam dela uma óbvia candidata ao palco profissional. Mas a dura caminhada exigida por uma carreira sobre as tábuas não era para ela. Quando deixou a escola aos quinze anos, foi meramente para assumir um emprego tedioso numa gráfica. Rapidamente o largou e se tornou lanterninha no cinema mais luxuoso de Liverpool, o Trocadero, em Camden Street. Tal como o trabalho de Alf no mar, era uma vida de glamour por procuração, circulando entre tapetes espessos e luzes mortiças, vestida num atraente uniforme com jaqueta de botões trespassados e chapéu pequeno quadrado

Sua bela estampa atraiu muitos admiradores, e até o gerente do Trocadero, um personagem magnífico que usava traje a rigor o dia inteiro, também fizera várias tentativas para cortejar sua lanterninha favorita, deixando meias ou chocolates de presente no armário dela. Para uma sereia dessas, Alf Lennon, com seu chapéu e suas pernas curtas de Chico Marx não parecia uma grande presa. Mas a índole despreocupada e o senso de humor brincalhão de ambos estavam em sintonia Também compartilhavam uma paixão pela dança que naquela época significava a “cadência estrita” das danças de salão. Valsando ou

bailando em ritmo acelerado nos braços um do outro, eles se imaginavam como o mais famoso casal de bailarinos da tela, a ruiva Julia tornando-se Ginger Rogers enquanto Alf se metamorfoseava em Fred Astaire.

À primeira vista, Alf e Julia pareciam ter vindo basicamente de meios sociais semelhantes. Ambos pertenciam a grandes famílias as irmãs dela eram tantas quanto os irmãos dele e ambos tinham pais na marinha mercante Como qualquer outro setor da vida britânica, porém, o mundo da navegação marítima naqueles dias era governado por rígidas distinções de classe. E acontecia que o pai de Julia, George Stanley, conhecido na família como “Pop”, estava vários graus acima de Alf na rígida hierarquia mercante. Ele fora treinado como fabricante de velas nos dias não tão distantes em que muitos navios que aportavam em Liverpool ainda dependiam do velame como suplemento do vapor Depois de muitos anos no mar com a linha White Star, ingressou na London, Liverpool and Glasgow Tug Salvage Company, ajudando a recuperar os destroços de naufrágios que as tempestades ou erros humanos freqüentemente causavam nas profundezas traiçoeiras entre o estuário do Mersey e a distante costa setentrional do País de Gales

Pop Stanley, portanto, relacionava-se em termos de igualdade com capitães e pilotos de navio, os sangues-azuis do mar. Suas outras quatro filhas, embora espirituosas e voluntariosas, se comportavam todas à altura de tal eminência social, convivendo com jovens que pretendiam se tornar navegadores ou engenheiros navais. Somente Julia havia rebaixado a família ao sair com “ um mero garçom de bordo” como Alf Lennon. Em seu desagrado, Pop encontrou o mais forte apoio na filha mais velha, Mary, conhecida como Mimi “Por que ela o escolheu [Alf] nunca vou saber”, lamentaria Mimi até o fim de sua vida. “Não pude acreditar que ela ficou com um marinheiro. Ele era um inútil... o tipo que devia ter uma em cada porto. Irresponsável era como eu o chamava.”

Infelizmente, o próprio Alf possuía o mesmo humor ferino e franqueza demolidora que estariam entre as características mais evidentes do seu futuro filho. Misturando-se com verdadeiros “figurões” todo dia de sua vida náutica, a atitude de Stanley lhe parecia ridícula e não hesitava em deixar isso claro. Toda vez que Julia tentava introduzi-lo em seu coeso círculo familiar, invariavelmente ocorria algum incidente se não com Pop, então com Mimi que terminava com Alf deixando a casa ou sendo tocado para fora. Se tivessem deixado o par sozinho, Julia provavelmente teria se cansado de Alf e encontrado alguém que

sua família considerasse mais digno dela. Mas, fiel à sua natureza, quanto mais contrariada e criticada, maior se tornava sua determinação de se agarrar a ele Assim o namoro dos dois serpenteou ao longo da década de 1930, guardando seu frescor quando poderia ter mofado com as longas e periódicas ausências de Alf no mar. Ele ficou moderadamente amigo das outras irmãs de Julia, Elizabeth, Anne e Harriet, e gostava da mãe dela, Annie (Millward, de solteira), uma mulher tão meiga e bondosa que às vezes comprava sapatos para crianças que via correndo descalças pelas ruas. Mas Pop (que até Mimi descrevia como “ um brigão”) permaneceu sempre ouriçado e hostil. Como a maioria dos jovens casais de namorados da época, sem ter onde se encontrar a não ser em pubs, salas de visita familiares ou bancos de praça, Alf e Julia chegaram ao início da casa dos vinte anos sem terem experimentado nenhuma intimidade física além de beijos e carícias Apesar das tenebrosas suspeitas de Mimi quanto a “ uma em cada porto”, Alf sempre jurou que permanecia fiel a Julia em suas viagens e escrevia para ela em cada oportunidade. Ela não respondia suas cartas ou era o que ele dizia nem se dava ao trabalho de esperá-lo no cais quando ele voltava

Os Stanleys acusavam Alf de ser avesso ao trabalho “engolindo a âncora”, no jargão náutico e preferindo ficar em terra. No entanto, ele parece ter ficado empregado por mais tempo do que muitos outros em Liverpool durante aquela era de terrível depressão econômica. Seu registro oficial de emprego como marujo na Junta do Comércio avalia o seu nível de trabalho e conduta pessoal, viagem após viagem, com um sólido “MB” [Muito Bom] A certa altura, a família de Julia ensaiou uma tentativa muito velhaca de “ajudá-lo”, encontrando-lhe uma vaga a bordo de um navio baleeiro, o que teria o efeito abençoado de mantê-lo longe por cerca de dois anos. Quando Alf se recusou a pensar na idéia, Pop Stanley o mandou para fora de sua casa uma vez mais. Alf e Julia afinal se casaram em dezembro de 1938, quando ele estava com 26 anos e ela com 24. Poucas semanas antes, o primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, tinha voltado de Munique, acenando com o pedaço de papel que “garantia” a paz com a Alemanha de Hitler em troca de abandonar a Tchecoslováquia para a invasão e o genocídio. Enquanto durou, a atmosfera de euforia nacional provocou acentuado aumento no índice de casamentos, à medida que muitos jovens sentiam seu futuro mais seguro Como sempre, porém, Alf e Julia deram o seu mergulho tardio sem maiores preocupações com

o futuro. Segundo Alf, ela o desafiou a fazê-lo uma noite no pub e ele nunca foi de recuar diante de um desafio

Nenhuma das famílias foi previamente avisada do que haviam decidido fazer. No dia 3 de dezembro, Julia saiu de casa como se fosse mais uma jornada normal de trabalho e ao meio-dia se encontrou com Alf no cartório de Bolton Street, atrás do Hotel Adelphi As únicas testemunhas foram o irmão de Alf, Sydney, a quem ele contara o segredo no último minuto, e uma das colegas lanterninhas de Julia. Depois, Sydney pagou para os novos senhor e senhora Lennon alguns drinques e uma refeição de frango assado num pub do outro lado da rua chamado Big House; eles passaram o fim da tarde no cinema, assistindo a um filme com Mickey Rooney (sobre um orfanato) e depois se separaram para passar a noite de lua-de-mel em suas respectivas casas. Mimi nunca esqueceria o momento dilacerante em que Julia entrou em casa, jogou a certidão de casamento em cima da mesa e disse: “Agora está feito! Casei com ele”.

A reação inicial de Pop Stanley foi também de horror e desgosto. Todavia, sob a influência mais gentil de sua mulher, aceitou que nada havia a ser feito ou melhor, que, como um pai consciencioso, cabia-lhe fazer o possível para facilitar o começo de vida dos recém-casados. Engolindo seus sentimentos, Pop se dispôs a deixar o apartamento familiar em Berkeley Street e a alugar uma acomodação mais espaçosa para que Julia e Alf pudessem ir morar com ele e com Annie. A propriedade escolhida foi o número 9 de Newcastle Road, uma casa num bloco de sobrados com janelas salientes a poucos minutos a pé de Penny Lane e da velha escola de Alf, o Bluecoat Hospital

Os quatro coexistiram em relativa harmonia ao longo de 1939, à medida que a guerra com a Alemanha se aproximava e a Grã-Bretanha sucumbia a uma febre de distribuição de máscaras contra gases, de evacuação de crianças e de precauções contra ataques aéreos Para Pop Stanley foi uma época agitada Em junho, um submarino novo em folha da Marinha Real, o Thetis, afundou durante seus testes na baía de Liverpool. Pop juntou-se à operação maciça para recuperar a embarcação, cuja popa era no início visível erguendo-se verticalmente da água. A tripulação não se considerava em grande perigo, batucando joviais mensagens em código Morse no casco de aço para seus salvadores enquanto os cabos eram passados por baixo do submarino a fim de

trazê-lo à tona. No momento crucial, contudo, os cabos se romperam e o submarino desapareceu para sempre, levando 71 homens consigo

Alf tinha ido ao mar de novo, no S.S. Duchess of York, mas voltou para casa a tempo de pegar o primeiro Natal da Segunda Guerra Mundial. Seu único filho com Julia foi concebido no número 9 da Newcastle Road, num dia de janeiro de 1940. Encontrando-se inusitadamente sozinhos na casa por algumas horas, fizeram amor no chão da cozinha. Não vinham tentando ter um bebê e a gravidez imediata de Julia foi igualmente desalentadora para ambos. “Noventa por centro das pessoas [da minha geração] nasceram de uma garrafa de uísque numa noite de sábado, e não havia nenhuma intenção de se ter um filho”, o bebê observaria um dia com amargura. “Nunca me quiseram, na verdade.”

A gravidez de Julia coincidiu com um dos meses mais sinistros na história da Europa, com os exércitos mecanizados de Hitler invadindo de roldão a Bélgica e a França, os restos destroçados da Força Expedicionária Britânica sendo evacuados de Dunquerque, enquanto os caças da RAF rodopiavam como mosquitos furiosos em torno dos enxames de bombardeiros pesados da Luftwaffe. Sozinho e tenso à espera da invasão, o país muitas vezes parecia nada mais ter a sustentá-lo além da voz do novo primeiro-ministro, Winston Churchill, cuja cara de buldogue e talento oratório de esquentar o sangue fizeram os momentos mais desesperados parecerem de certa forma gloriosos.

Em agosto, Alf zarpou de novo, agora no S.S. Empress of Canada. Com Londres debaixo de bombardeios toda noite e a Grã-Bretanha parecendo indefesa, a RAF fez um rápido ataque de surpresa a Berlim um acontecimento que o comandante da Luftwaffe, Hermann Goering, havia se gabado de que jamais poderia acontecer. Um Hitler furioso prometeu retaliar arrasando todas as outras cidades importantes da Grã-Bretanha. Como porto crucial para os comboios navais carregados de alimentos vitais para a nação, Liverpool preparou-se para o pior.

A irmã de Julia, Mimi, relataria com freqüência como a chegada do bebê em 9 de outubro foi marcada por um ataque noturno alemão especialmente feroz. Segundo ela, quando teve notícias de que Julia havia dado à luz um menino de três quilos e quatrocentas gramas, as sirenes antiaéreas estavam uivando e todo transporte público, como de costume, fora interrompido. Sua excitação era

tamanha que ela correu os mais de três quilômetros desde a casa dos pais até o hospital-maternidade de Oxford Street, ignorando os bombardeiros e as minas terrestres lançadas por pára-quedas. O pior que Hitler podia fazer parecia trivial em comparação com esse acontecimento glorioso.

A semana em questão foi certamente ruim para Liverpool. De acordo com os registros do Comitê de Vigilância, na noite de 7 para 8 de outubro, bombas de alto teor explosivo caíram em Stanley Road e Great Mersey Street, no centro da cidade, e em Lichfield Road e Grantley Road, em Wavertree, causando danos a casas e demolindo a Capela Galesa. Na noite seguinte vieram mais dois ataques distintos, atingindo Everton Valley, Knotty Ash, Mossley Hill e Mill Street no primeiro, e a área de Anfield no segundo. Na noite de 11 para 12 de outubro, dois novos ataques lançaram toneladas de explosivos na City e nas docas do Norte, primeiro, depois nas docas Alexandra e Langton, causando sérios danos à casa do comandante da zona portuária, aos galpões, às linhas ferroviárias, aos armazéns do Almirantado e a quatro navios.

Todavia, na noite de 9 para 10 de outubro, os aviões da Luftwaffe inexplicavelmente não retornaram Enquanto se apressava na direção de Oxford Street, Mimi teria sem dúvida visto os resultados dos bombardeios anteriores: escombros, vidros despedaçados e guardas de capacete branco da ARP (Air-Raid Precautions, “Prevenção contra Ataques Aéreos”). Em visitas posteriores a Julia, a situação poderia ter sido como a que lembrava daquela primeira noite, com uma mina terrestre caindo perto do hospital e o recém-nascido sendo embrulhado num cobertor áspero e colocado debaixo da cama da mãe por medida de segurança. O que vinha em primeiro lugar nos pensamentos de Mimi em 9 de outubro era a preocupação com a irmã, mesclada à alegria de ver um menino entrar na família Stanley, predominantemente feminina. É possível que a intensidade de sua própria emoção ao segurar pela primeira vez nos braços o sobrinho tenha conferido à cena a qualidade apocalíptica que acabou ficando gravada em sua mente.

E M Forster certa vez escreveu que “ uma batalha é travada por todo bebê”

A batalha por este específico bebê de Liverpool seria mais feroz do que a maioria revelando, ao contrário do que ele próprio acharia mais tarde, “ que não o queriam”, que pessoas demais o queriam demais. Nem ficaria claro, por algum tempo, quem havia ganhado a batalha

Com relação ao nome, pelo menos, não houve conflito. Julia decidiu chamálo John, o que agradou a Alf como um tributo ao avô paterno, o antigo menestrel do Kentucky, mas um nome também clássico da classe média inglesa, sugerindo todas as qualidades tão admiradas pelos Stanley simplicidade, retidão, constância, previsibilidade, ausência de complicações. E, partilhando o ardente patriotismo do tempo de guerra, nenhuma das duas famílias podia objetar quando sua mãe lhe deu o nome do meio de Winston, em homenagem ao primeiro-ministro Winston Churchill.

As longas ausências de casa de Alf o estigmatizariam depois aos olhos do filho como fraco, egoísta e pouco amoroso, mas caberia lembrar que, como marinheiro mercante, ele estava exercendo um dos trabalhos mais vitais e perigosos no esforço de guerra britânico. Milhares de outros homens de Liverpool estavam naquela situação, encarando os mesmos perigos diante dos submarinos alemães naufragando em mares gelados ou transformando-se em tochas humanas empapadas em petróleo enquanto, em casa, filhos que mal conheciam eram criados por grupos de mulheres. Sem dúvida, apesar de todos os perigos, o mar oferecia um escape da rotina monótona e da responsabilidade, onde Alf podia se transformar em “Lennie” e botar para fora suas fantasias como artista (agora acrescentando um esquete sobre as tropas de choque de Hitler ao seu repertório de Jolson e Eddie Cantor). Outro impedimento para manter um emprego mais seguro em terra era que ele estava subindo degraus na sua profissão. Em setembro de 1942, foi promovido a garçom de salão, o equivalente náutico de maître.

Nessa altura, aparentemente, até mesmo os mais hostis dentre os parentes de sua mulher nada mais tinham a criticar em sua vocação, sobretudo porque ele sempre voltava para casa carregado de despojos das despensas dos navios: carne, manteigas e frutas frescas, itens impossíveis de conseguir sob o racionamento do tempo de guerra, e que ele compartilhava generosamente com todos. Enquanto estava embarcado, ele mandava programas dos concertos do navio que incluíam o seu nome para que Julia mostrasse a John, que durante anos depois associaria o nome do pai a um número misterioso chamado “Begin the Beguine”

Alf esteve no mar como garçom de salão do S.S. Moreton Bay de 26 de setembro de 1942 a 2 de fevereiro de 1943. Embora os ataques aéreos a Liverpool tivessem diminuído desde a horrenda “blitz de maio” de 1941, o centro da cidade ainda era considerado uma área de perigo Para providenciar

um ambiente mais seguro e mais limpo para John, Mimi persuadiu Julia a mudar-se de 9 Newcastle Road para Woolton, onde ela recentemente se instalara com o marido, George Smith. Durante vários meses, mãe e filho ocuparam uma pequena casa em Allerton Road chamada “O Chalé”, a poucos passos da casa de Mimi. Foi ali que John formou suas primeiras impressões de Julia enquanto ela cantava para fazê-lo dormir à noite “Ela costumava cantar esta melodia... do filme de Disney”, lembraria ele. “ ‘Quer saber um segredo?

Prometa não contar. Você está junto ao poço dos desejos...’ ”

A mudança causaria o primeiro desentendimento sério num casamento que nunca fora exatamente fundado na maturidade ou na confiança. Depois de receber os salários do Moreton Bay, Alf passou uma temporada em terra longa o suficiente para se inscrever como bombeiro voluntário nas docas de Liverpool. Esperando que Woolton viesse a ser um refúgio tranqüilo para Julia, descobriu que, ao contrário, ela criara o hábito de visitar os pubs locais, embriagando-se e flertando com homens disponíveis, enquanto Mimi e uma vizinha chamada

Dolly Hipshaw cuidavam de John. Um dia, Alf abriu a porta para um ruidoso grupo de novos amigos de Julia que, claramente, não tinham a menor idéia de que ela fosse casada. Uma briga furiosa se seguiu, na qual Julia derramou uma xícara de chá quente na cabeça de Alf. Ele revidou e acertou um tapa no rosto dela, fazendo seu nariz sangrar Mimi teve de ser chamada para usar sua experiência de enfermeira e cuidar do caso.

A avó materna de John, a dócil Annie Stanley, havia falecido no começo de 1943, antes que pudesse deixar mais do que uma impressão vaga no espírito do menino Relutante em ficar sozinho em 9 Newcastle Road, Pop Stanley decidiu então transferir a casa para Julia e Alf, e foi morar com parentes. Durante algum tempo, pelo menos, o aluguel foi pago pelo irmão mais velho de Alf, Sydney. A casinha anônima com janela saliente, reproduzida mil vezes nas ruas vizinhas, tornou-se “ o primeiro lugar de que me lembro... tijolos vermelhos... sala da frente nunca usada, sempre de cortinas fechadas... na parede, o quadro de um cavalo e uma carruagem. Só havia três quartos no andar de cima, um dando para a rua, outro nos fundos e um quartinho minúsculo no meio ” Ele já era um observador aguçado, como Alf notara no Natal anterior, quando toda loja de departamentos no centro de Liverpool ostentava sua própria gruta de Papai Noel. “Quantos Papais Noéis existem?”, John perguntou.

Em julho de 1943, Alf viajou a Nova York para trabalhar nos Liberty Ships, os navios de carga pré-fabricados que os Estados Unidos produziam em massa para reequipar os comboios britânicos que cruzavam o Atlântico sob fogo alemão. Ele se ausentaria durante dezesseis meses numa viagem bizarra que o levou a meio mundo, mostrou-lhe o interior de duas prisões, viu uma fatídica emenda

na sua ficha profissional de “MB” para “SC” (Sem Comentário) e acelerou o colapso do seu casamento. Nenhuma bebedeira interminável que seu filho experimentaria em anos futuros chegaria sequer perto disso

Mais tarde, Alf descreveria a si mesmo como a vítima inocente das circunstâncias, dos maus conselhos de superiores e de sua própria natureza crédula e, certamente, a histeria e a condição maligna da própria guerra teriam sido tão responsáveis quanto qualquer delito ou erro da sua parte Em Nova York, ele teve de esperar tanto por uma vaga num navio que encontrou um emprego provisório na loja de departamentos Macy’s, tirou uma carteira da seguridade social, e bebeu e cantou por quase todos os bares mais conhecidos da Broadway. Por fim, ao ser mandado apresentar-se num Liberty Ship em Baltimore, descobriu que havia sido rebaixado para a função de ajudante de garçom. Sua única esperança de conservar um “nível” adequado, aconselhou um colega, era ficar no navio até o porto seguinte, Nova York, saltar em terra e levar o problema ao cônsul britânico. Alf ingenuamente adotou essa estratégia, foi prontamente detido por deserção e trancafiado durante duas semanas em Ellis Island.

Ao ser solto, recebeu ordens de aceitar o posto de ajudante de garçom num navio chamado Sammex, com destino ao Extremo Oriente. Quando o Sammex aportou em Bone, na Argélia, Alf foi preso por “apropriação fraudulenta” de uma garrafa de uísque e, segundo o próprio relato, aceitou a acusação em vez de delatar o amigo que havia cometido o delito. Passou nove dias numa horrenda prisão militar onde era forçado a lavar latrinas e ameaçado de morte se por acaso falasse um dia sobre as condições que havia testemunhado. Libertado e solto no perigoso centro velho da cidade, ali encontrou um misterioso holandês, conhecido apenas como “Hans”, que não só o salvou de ser roubado e possivelmente até assassinado, mas também o ajudou a surrar o oficial britânico que ele considerava em parte responsável por seu encarceramento.

Por fim, em outubro de 1944, exausto e quase morto de fome, com apenas alguns dólares e sua carteira da seguridade social americana, ele conseguiu uma

passagem de volta como DBS (Distressed British Seaman, “marujo britânico em apuros”) no transporte de tropas Monarch of Bermuda. Em Liverpool, enquanto isso, a companhia de navegação deixara de pagar seus salários a Julia, que não tinha a menor idéia se ele estava vivo ou morto Quando chegou em casa, ela o informou de que estava grávida de outro homem. Não fora deliberadamente infiel, disse, mas havia sido estuprada. Deu até a Alf o nome do homem que considerava responsável, um soldado estacionado na península de Wirral. Hoje, a polícia seria acionada de imediato; na época, a conduta apropriada era Alf confrontar-se com o suposto estuprador e exigir satisfações. Felizmente, o irmão de Alf, Charlie, a essa altura servindo na Real Artilharia, estava à mão para dar apoio moral. Charlie lembraria depois o episódio mais ou menos em termos de um depoimento numa corte marcial: “[Alf ] contou-me que tinha voltado para casa e encontrado [ Julia] grávida de seis semanas, mas sem aparentar. Ela alegou que havia sido estuprada por um soldado. Deu-lhe um nome Fomos até Wirral onde o soldado se achava estacionado Alfred não era um homem violento. De pavio curto, mas não violento. ‘Acredito que você andou saindo com minha mulher e ela o acusa de tê-la estuprado.’ ‘Nada disso’, diz o soldado. ‘Não foi estupro ela consentiu.’ ” .

Com seu coração mole, Alf acabou simpatizando com o soldado, um jovem galês chamado Williams, ouvindo com paciência como ele amava Julia e queria se casar com ela e criar o bebê na fazenda da sua família (embora John não parecesse figurar de modo algum em seu plano). Alf decidiu que não tinha outra opção senão sair do caminho uma decisão que possivelmente não foi dura demais, dado o comportamento recente de Julia. Convenceu William a acompanhá-lo de volta a 9 Newcastle Road onde, diante de um conciliatório bule de chá, disse a Julia que estava disposto a deixá-la ir embora Não podia ter havido leitura mais incorreta da situação. “Eu não quero nada com você, seu idiota”, disse ela com desdém ao antigo amante, recomendando-lhe que terminasse o chá e “caísse fora”.

Para o crédito de Alf, ele se mostrou disposto a aceitar Julia de volta e a criar o bebê como se fosse seu. Mas Pop Stanley, receando a inevitável desgraça pública, insistiu que o bebê fosse dado para adoção. Em 19 de junho de 1945, cinco semanas após o fim da guerra, Julia deu à luz uma menina em Elmswood, uma maternidade do Exército da Salvação em North Mossley Hill Road. Victoria Elizabeth, como Julia a chamou, foi adotada por um casal norueguês

chamado Pederson, que a rebatizou Ingrid Maria e a levou embora para a Noruega, saindo da vida de sua mãe real para sempre Nesse período de crise e confusão na família Stanley, John, de quatro anos, pela primeira e única vez ficou entregue aos cuidados de seus parentes Lennon. Durante a gravidez e o resguardo de Julia, eles o colocaram para morar com o irmão de Alf, Sydney, um homem cuja respeitabilidade e empenho para melhorar de vida até a própria Mimi chegou a reconhecer. Sydney, sua mulher Madge e sua filha de oito anos, Joyce, acolheram John na sua casa em Maghull, um vilarejo entre Liverpool e Southport. Ele ficou com Sydney e Madge por cerca de oito meses. A vida que lhe propiciaram era estável e amorosa e, à medida que o tempo passava, acharam que teriam permissão de adotá-lo oficialmente. Confiavam tanto nessa possibilidade que inscreveram o nome dele para que começasse a freqüentar a escola primária local no outono seguinte Mas aí Alf apareceu uma noite sem avisar e anunciou que ia levar John embora. Apesar dos protestos de Sydney sobre o adiantado da hora, ele insistiu que tinham de partir imediatamente. Toda a família, mas sobretudo Madge, ficou desolada por perder John Logo depois adotaram um menino de seis semanas para preencher o vazio que ele havia deixado.

Se Alf achava que sua exibição de magnanimidade em relação a Victoria Elizabeth salvaria seu casamento, acabou desapontado. Em 1946, ao voltar de outra temporada no mar, encontrou Julia abertamente envolvida com um garçom de hotel de cabelos lustrosos chamado John apelidado de Bobby Dykins. Desta vez, porém, o marido traído não estava disposto a deixar por isso mesmo Uma furiosa discussão noturna teve lugar em 9 Newcastle Road entre Alf, Julia, seu novo amigo e Pop Stanley depois que Julia anunciou que ia morar com Dykins e levar John embora. Acordado pelas vozes iradas, John veio ao topo da escada a tempo de ver a mãe gritando histericamente enquanto Alf empurrava Dykins pela porta da rua afora Quando Alf acordou na manhã seguinte, John fora levado por Pop Stanley e Julia estava tirando a sua mobília, ajudada por uma vizinha. Alf pôs-se a ajudá-las, dizendo a Julia com o ostensivo pieguismo de uma balada de country-and-western que lhe deixasse apenas “ uma cadeira quebrada” onde se sentar.

O mar, seu velho consolador, acenou mais sedutor do que nunca, e em abril de 1946 ele encontrou uma vaga como garçom de noite na capitânia da companhia Cunard, o Queen Mary, que fazia o trajeto entre Southampton e

Nova York. Faltava uma hora para o navio zarpar quando recebeu um telefonema de sua cunhada, Mimi Smith, insistindo para que voltasse imediatamente a Liverpool.

Não foi um telefonema fácil para Mimi e sem dúvida proporcionou a Alf, que não era nada vingativo, uma dose de silenciosa satisfação. Pois a hostilidade da família Stanley para com o novo amigo de Julia, Bobby Dykins, era mais virulenta do que tudo o que ele próprio havia sofrido. Segundo Mimi, Julia e John tinham se mudado de volta para 9 Newcastle Road e Dykins também estabeleceu residência lá, confrontando John com o espetáculo diário de sua mãe “vivendo em pecado”, segundo a expressão consagrada. A preocupação mais imediata era que John parecia não gostar do seu “ novo papai” e tinha aparecido na porta de Mimi em Woolton, tendo caminhado sozinho os quase quatro quilômetros de Newcastle Road até lá Apesar de toda a sua hostilidade para com Alf, ela fora forçada a admitir que o menino sentia falta e necessidade do pai verdadeiro. Alf então falou com John, que lhe perguntou excitadamente quando ia voltar para casa. Ele respondeu que não podia “ romper o Regulamento”, desertando do seu navio, mas prometeu vir assim que o Queen Mary voltasse para Southampton, dali a duas semanas. Ele fez como prometera, chegando à casa de Mimi tarde da noite depois que John estava na cama e dormindo Ao marujo que voltava à terra não foi oferecida uma refeição, apenas uma xícara de chá, que Mimi serviu acompanhada de novo recital raivoso da conduta imprópria de Julia com Bobby Dykins. Ela também apresentou a Alf uma conta de várias coisas necessárias que, alegou, tivera de comprar para John desde a sua chegada Felizmente, graças a proveitosos negócios de mercado negro com meias de náilon e outros contrabandos, Alf carregava bastante dinheiro vivo no bolso. Deu vinte libras a Mimi e naquele momento era o que depois alegaria decidiu que não tinha outra alternativa senão raptar o filho no dia seguinte. Como escreveria depois, “ por fim decidi que o [ John] levaria comigo para Blackpool, dando alguma desculpa de que ia levá-lo para fazer compras ou visitar a avó”.

Alf passou a noite na casa de Mimi e, na manhã seguinte, despertou com um exuberante John pulando sobre seu peito. Sua sugestão de que os dois saíssem para passar o dia juntos foi recebida com vibrante excitação. Mimi não fez nenhum reparo, acreditando que o propósito da saída era comprar roupas novas para o menino Pai e filho tomaram então um bonde para Liverpool, onde Alf

confidenciou seu plano ao irmão mais velho Sydney, pedindo que jurasse segredo Sydney reiterou sua própria disposição de adotar John, embora Alf depois afirmasse nunca ter pensado seriamente nessa opção.

Blackpool foi o destino escolhido por Alf não só por ser um balneário do noroeste famoso por suas atrações infantis, mas também por ser a cidade natal de seu companheiro de bordo e colega de mercado negro Billy Hall Por cerca de três semanas, ele ficou com John por lá, hospedado na casa dos pais de Billy e gastando sua abundante reserva de dinheiro em todo brinquedo de parque de diversões e guloseima grudenta pelos quais o menino manifestasse interesse. Os bondosos Hall se viram acrescidos à lista dos candidatos a guardiães de John. A idéia inicial de Alf era que, quando o dinheiro acabasse e ele voltasse ao mar, John ficaria com os Hall em Blackpool. Quando soube que pretendiam vender a casa e emigrar para a Nova Zelândia, um novo esquema tomou forma Os pais de Billy Hall levariam John consigo, posando como seus avós; um pouco depois, Alf, Billy e o irmão deste seguiriam de graça para a Nova Zelândia, engajando-se em algum navio de carreira destinado à Austrália, saltando da embarcação quando chegassem a Wellington

O plano não teve oportunidade de amadurecer mais. A essa altura, Julia havia descoberto a pista de Alf e num dia ensolarado de junho apareceu na casa dos Hall, acompanhada de Bobby Dykins, para levar John de volta. Inicialmente, sua exigência não se apoiava em nenhuma força real. Quando Alf mencionou o esquema da Nova Zelândia, ela concordou que poderia ser o início de uma vida maravilhosa para John e se mostrou disposta a deixá-lo partir, pedindo apenas para vê-lo uma última vez Quando John foi trazido à sala, sua primeira reação, depois dos dias de divertimento e intimidade, foi pular no colo de Alf. Mas quando Julia reconheceu a derrota e virou-se para ir embora, ele desceu do colo do pai e correu atrás dela, enterrando o rosto na sua saia e pedindo aos soluços que não fosse Para romper o impasse, Alf implorou a ela que desse ao casamento deles outra oportunidade, mas Julia não quis saber daquilo.

Alf então disse a John que ele devia escolher entre ir com mamãe ou ficar com papai. Se alguém quisesse rachar uma criança pequena ao meio, não havia melhor maneira. John aproximou-se de Alf e tomou sua mão; então, quando Julia se virou de novo, ele entrou em pânico e correu atrás dela, gritando para que esperasse e gritando ao pai para que viesse também. Mas, paralisado uma vez mais por sua autocomiseração fatalista, Alf ficou grudado na cadeira Julia e John deixaram a casa e desapareceram entre a multidão em férias.

Naquela noite, os bondosos pais de Billy Hall tentaram animar Alf levando-o ao pub The Cherry Tree e persuadindo-o a fazer seu número de imitação de Al Jolson para os freqüentadores do bar. A canção muitíssimo adequada que ele escolheu foi “Little Pal”, um tributo a um angélico filhinho, aconchegado num quarto de criança fofo e seguro, enquanto seu pai fiel o observava com adoração Em vez de “Little Pal”, em cada verso Alf cantava “Little John” Lágrimas escorriam por seu rosto, mas sempre profissional cantou a canção até o fim, em meio a uma avalanche de palmas e assobios. Ao contrário do “amiguinho” de quem havia desistido, Alf Lennon nunca consideraria as multidões opressivas, nem o aplauso exaustivo.

2. A Confederação do Norte

Posso chamá-lo de Pater, também?

A Grã-Bretanha emergiu da Segunda Guerra parecendo muito mais uma nação derrotada do que vitoriosa. Arruinado financeiramente e destroçado pelos bombardeios, o país permaneceu em estado de crise e privação muito tempo depois de as luzes começarem a se reacender no resto da Europa até mesmo na Alemanha Carne, manteiga e açúcar continuavam a ser distribuídos em quantidades miseráveis definidas pelos pardacentos cupons de racionamento. As roupas eram grosseiras, sem cor e sem forma, tão desprovidas de individualidade como os uniformes que haviam substituído. Cada dia parecia trazer nova escassez ou restrição, ou apelo do novo governo socialista de cara fechada em prol do auto-sacrifício e da parcimônia. Nessa atmosfera generalizada de miséria, incomodidade, frieiras e névoa esverdeada de poluição, jovens e velhos eram quase indistinguíveis. A juventude tinha sido permanentemente cancelada, era o que parecia, assim como todo tipo de frivolidade, espontaneidade ou alegria.

No entanto, apesar da garra glacial dessa chamada Era de Austeridade, o modo de vida britânico manteve-se quase intacto O sistema de classes ainda operava tão feudalmente como sempre, a Família Real ainda era sagrada, a aristocracia continuava a ser venerada. A autoridade merecia inquestionável confiança e respeito sob qualquer forma que se manifestasse: políticos, médicos, advogados, o clero, as forças armadas ou a polícia. Os jornais voluntariamente suprimiam tudo o que pudesse perturbar o status quo. Ao mesmo tempo que rapidamente desmantelavam seu império colonial, os britânicos continuavam a se considerar os donos do mundo, desprezando todos os estrangeiros, tratando como inferiores naturais todas as raças com pele mais escura e usando termos como “crioulo” e carcamano (para não mencionar “judeuzinho”) sem o menor

escrúpulo. O esnobismo de classe endêmico vinha tanto de baixo como de cima. Quase todas as pessoas, até mesmo nas camadas sociais mais baixas, aspiravam falar um pouco “melhor” do que de fato conseguiam, tomando por modelo a empostação cadenciada da realeza, dos primeiros-ministros, de atores shakespearianos e de locutores da BBC.

Como todas as grandes cidades do norte da Inglaterra, Liverpool ficou em ruínas por tanto tempo que o capim cresceu sobre os buracos das bombas e flores silvestres brotaram ao redor dos abrigos abandonados Um filme dos Ealing Studios chamado The Magnet, filmado em locação e lançado em 1950, mostra como, cinco anos após a vitória na Europa, bairros inteiros ao redor das docas ainda não passavam de crateras e montes de entulho, estes usados pelas crianças como improvisados parques de diversões.

As cidades portuárias, por sua própria natureza, tendem a ser lugares individualistas onde a vida é conduzida de maneira mais dura, mais livre e mais excêntrica do que no interior não-mercantil Mesmo no contexto da acirrada rivalidade dos portos britânicos, Liverpool sempre se destacou. Seu caráter singular data do século XVIII e do início do XIX, quando os mercadores de Liverpool eram os dissidentes do mundo marítimo, ganhando fortunas com o infame “Triângulo” que transportava escravos negros da África para as Américas, depois trazia para casa os lucros na forma de algodão, açúcar e tabaco Na Guerra Civil americana, enquanto o resto da Grã-Bretanha mantinha uma constrangida neutralidade, Liverpool se aliava firmemente ao Sul escravocrata, dava-lhe espaço para abrir uma embaixada (nunca oficialmente fechada) e construía seu mais famoso navio de guerra, o Alabama. Na verdade, o episódio final do conflito não teve lugar na América, mas nesse distante porto seguro para rebeldes e secessionistas. Quando a derrota dos sulistas se tornou inevitável, outro navio de guerra confederado, o Shenandoah, apareceu no rio Mersey Em vez de se render aos ianques vitoriosos, seu capitão havia cruzado o Atlântico a fim de se entregar ao prefeito de Liverpool.

Essa era a atitude que Liverpool manteria no século XX suas costas voltadas para o resto da Inglaterra, seu olhar fixado com admiração, com ânsia e acima de tudo com conhecimento, para os Estados Unidos. Estes vinham e iam todo dia em transatlânticos de luxo como o Queen Mary e o Mauretania, e no savoir-faire das tripulações liverpudlianas cuja familiaridade fácil com as distantes

e fabulosas cidades lhes valeu o apelido de “ianques da Cunard”. Até mesmo a silhueta da cidade que saudava os navios ao subirem o Mersey tinha algo de Nova York. Era composta de ampla piazza fronteira ao rio chamada de Pier Head e uma acrópole com três edifícios gigantescos de pedra gris conhecidos como as Três Graças, respectivamente as sedes da Junta das Docas e do Porto, da organização Cunard e da Royal Liver (pronunciada “li-ver”) Insurance Company. Esta era embelezada na frente e na parte de trás por um par de cúpulas em tons harmônicos de verde, e sobre cada uma delas um “Liver Bird” de pedra batia suas asas desafiadoramente para as gaivotas que voavam ao redor.

Apesar de toda essa irremediável predileção pelo Novo Mundo, Liverpool era também a quintessência da cidade setentrional, sintetizando seu orgulho cívico vitoriano no agrupamento central de edifícios públicos em estilo ateniense dominados pelo St. George’s Hall (considerado por John Betjeman “ o mais belo prédio secular na Inglaterra”) e as estátuas eqüestres da “rainha-imperatriz” e de Albert, o seu príncipe consorte. À parte as crateras de bombas, tudo ainda parecia como no famoso quadro da zona portuária pintado por John Atkinson Grimshaw na década de 1890 os bondes majestosos conhecidos como Green Goddesses [Deusas Verdes], os hotéis com suas torres, os teatros e as salas de variedades, as farmácias douradas com globos gigantes de líquido azul nas vitrinas, as mercearias exibindo placas de esmalte anunciando caldo de carne Bovril ou chá Mazawattee.

Para as pessoas do Sul, era um lugar vagamente esquálido e ameaçador, cuja famosa Lime Street era um local de ronda da prostituta da balada folclórica Maggie May e cuja mistura poliglota de galeses, irlandeses, chineses e antilhanos sugeria os perigos e vícios inomináveis de uma terra de bárbaros setentrional.

Quase a mesma má fama vinha de sua reputação como um celeiro de sindicalistas e militantes de extrema-esquerda, não só nas docas, mas nas fábricas e montadoras de carros que faziam parte da região industrial de Merseyside.

Durante muitos anos, sua personalidade mais destacada foi a trabalhista Bessie Braddock, deputada pelo distrito da Bolsa de Liverpool, um encouraçado de uma mulher cuja retórica abrasiva parecia refletir toda a rigidez de sua cidade natal, assim como o zelo do seu governo em tornar a todos tão desconfortáveis e deprimidos quanto possível.

No entanto, havia outra Liverpool, muito diferente, bem distante do mundo de cais e armazéns e pubs cheios e barulhentos O setor de navegação mercante também empregava uma vasta classe de executivos de colarinho branco, gerentes e funcionários de escritório, tão ávida em suas aspirações sociais como qualquer outro segmento da burguesia britânica. Fora do encardido centro da cidade, do outro lado do Mersey, em Cheshire, espraiavam-se subúrbios limpos e decentes onde mal se notava o sotaque scouse; comunidades autônomas de classe média, mantidas em ordem por autoridades locais benignas e bem supridas de lojas de “alta classe”, parques luxuriantes, campos de golfe e escolas de primeira qualidade.

The Magnet, o filme da Ealing antes mencionado, conta as aventuras de um menino bem falante de um desses subúrbios que se mete com garotos de rua turbulentos no duro centro de Liverpool Visto retrospectivamente, parece profético.

A história tantas vezes repetida de como Mimi acabou assumindo sozinha a responsabilidade de criar o sobrinho de seis anos, John Lennon, não podia ser mais simples nem mais animadora. Mimi era do tipo que os ingleses de gerações passadas chamavam de “boa praça ” ou “batuta”; uma Betsey Trotwood dos dias modernos cuja rudeza exterior camuflava um coração do mais puro ouro. Quando o pai e a mãe verdadeiros de John se mostraram deficientes, ela tomou para si o papel de substituir os dois, encarregando-se de dar a ele, em suas próprias palavras, “ o que toda criança tem o direito de possuir uma vida familiar segura e feliz”.

Esta foi a versão dos acontecimentos em que John sempre acreditou piamente. “Meus pais não podiam cuidar de mim”, diria ele a inúmeros entrevistadores nessas palavras ou em palavras semelhantes, “então me mandaram morar com a titia ” Não se pode fazer nenhum reparo ao cuidado e à abnegação de Mimi nos anos que se seguiram. Mas as circunstâncias ao fundo eram bem mais complicadas do que qualquer um deles lembrava, ou queria lembrar.

Nascida em 1906, Mimi era uma daquelas pessoas, muito parecida com Betsey Trotwood e outras vigorosas mulheres de Dickens, que nunca parecera em sua juventude ter conhecido paixão ou atitude inconveniente. Era uma pessoa de inteligência excepcional, extremamente articulada e leitora voraz, que

deveria ter freqüentado a universidade e poderia ter se saído igualmente bem como advogada, médica ou professora Em vez disso, sempre esperaram dela que atuasse como pai adicional para as quatro irmãs mais moças e considerasse os valores do lar e da família como soberanos. Na juventude, seu lado vivo e prático parecia mais promissor do que o lado intelectual. Aos dezenove anos, matriculou-se como estudante de enfermagem no Woolton Convalescent Hospital, lá permanecendo depois de se formar e chegando depois a chefe de enfermaria. No início da década de 1930, ficou noiva de um jovem médico de Warrington que conhecera no trabalho, mas antes que os planos de casamento pudessem ser feitos o noivo morreu de um vírus que lhe fora transmitido por um dos pacientes.

Sua vida de jovem não foi desprovida de seus momentos incomuns. Na enfermaria para convalescentes, seus pacientes incluíam alguns ex-empregados do abastado industrial Lynton Vickers, que se mostrou conscienciosamente preocupado com o bem-estar de seus antigos funcionários e ia visitá-los regularmente. Entre o plutocrata atencioso e a desgraciosa jovem que cuidava da enfermaria surgiu um respeito e um afeto mútuos A convite de Vickers, Mimi licenciou-se temporariamente do hospital para se tornar sua secretária, passando a morar na mansão gótica dele em Bettwys-y-Coed, no norte de Gales.

Tais digressões chegaram ao fim em 1939, ao casar com George Smith, na idade madura de 33 anos. A família Smith era produtora de laticínios em Woolton, um lugar que naquela época, com seus campos abertos e alamedas arborizadas, mais parecia um vilarejo do interior do que um subúrbio de cidade grande George ficou conhecendo Mimi porque o hospital onde ela trabalhava fazia parte do seu circuito matutino de entrega de leite. Os pensamentos do fornecedor de leite logo se voltaram para o casamento, mas Mimi se mostrou cautelosa, recusando-se a ser “amarrada a um fogão a gás ou a um tanque de lavar” e encarando George como não mais do que alguém confiável “toda vez que eu estava com fome ou presa na cidade”. Mesmo para aquela época e local rígidos, a relação dos dois carecia singularmente de romance. Quando Mimi afinal concordou em ficar noiva, o enlace foi selado com um aperto de mão em vez de um beijo. “George era diferente de mim... como a água do vinho, na verdade”, lembraria ela mais tarde. “Enquanto eu era agitada e aventureira, ele era bem pacato. Meio resistente a mudanças, mas um homem bondoso.” Ela recordaria também como a natureza dócil de George o tornava facilmente controlável, sem que ela tivesse de apelar para manobras mais fortes. “Eu lhe

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