A Vida é Traição

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Luiz Cezar de Araújo

A Vida é Traição 2ª edição

Livraria Danúbio Editora Santa Catarina - 2015

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© 2015, Livraria Danúbio Editora Prefácio © 2015, Jessé de Almeida Primo Edição Diogo Fontana Capa Matheus Bazzo Malgarise Sobre Leonardo da Vinci, A Última Ceia, 1495-8. Diagramação Eduardo Zomkowski

Araújo, Luiz Cezar de, 1981A vida é traição; prefácio de Jessé de Almeida Primo; - 2ª ed. - Balneário Camboriú: Livraria Danúbio Editora, 2015. 123 p. ISBN: 978-85-67801-05-6 1. Ficção 2. Contos brasileiros I. Título.

CDD – B869.3

Livraria Danúbio Editora Avenida Brasil, 1010 88330-045 Balneário Camboriú, SC. e-mail: contato@livrariadanubio.com sítio: www.livrariadanubioeditora.com.br Distribuição CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70 13084-060 Campinas, SP

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À minha esposa Christiane

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“Minha é a vingança, e a recompensa.” Deuteronômio, XXVII, 35

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sumário

Prefácio da segunda edição ....................................................... 11 Discórdia ............................................................................................ 19 I A profecia de São João Maria ......................................................... 19 II Joaquim Maria de Gusmão .......................................................... 20 III “J’accuse!” ................................................................................... 20 IV A Teoria das Chinelas Macias ..................................................... 22 V Ser ou não ser, eis a questão! ......................................................... 23 VI Uma unha, um nariz. Um olho? .................................................. 25 VII O gigante acordou ..................................................................... 27 VIII O povo na praça ....................................................................... 32 IX Um capítulo para a Câmara de Vereadores .................................. 36 X Cremação! ................................................................................... 37 XI Estaria enlouquecendo? .............................................................. 40 XII Os sonhos romanos .................................................................... 43 XIII Desilusão ................................................................................. 46 XIV Otium cum dignitate ................................................................ 47 XV A terapia ................................................................................... 48 XVI As fadinhas .............................................................................. 49 XVII Adeus, ó Esteves! Adeus, ó Padre Leopoldino! .......................... 53 XVIII Três mil luas de paz, justiça e liberdade .................................. 55 A vida é traição .................................................................................. 59 I Estudantes .................................................................................... 59 II Formados .................................................................................... 61 III Uma parceria ............................................................................. 66

IV Como se fazem os Robespierres ......................................................... 71 V Uma banca .................................................................................. 72 VI Marcela ...................................................................................... 75 VII Em que se descreve a participação da mãe de Marcela nesta história .............................................. 77

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10 VIII “Vou arrancar esta flor a este pântano” ..................................... 77 IX O tédio ........................................................................................ 80 X Vão para o diabo sem mim! .......................................................... 81 XI Detalhes contábeis da sociedade .................................................. 82 XII Uma fazenda e um navio ........................................................... 83

Um grande homem ........................................................................... 87 I Aspirações altas e nobres e lúcidas e quem sabe se realizáveis .......... 87 II O libertino, o melífluo .................................................................. 92 III O santo ....................................................................................... 94 IV O néscio ...................................................................................... 95 V O suicida ..................................................................................... 96 VI Algumas negativas, uma carta e uma missa ................................ 97 Os vermes ........................................................................................... 99 I A bomba, o Alves e a praça ............................................................ 99 II Vermes, todos eles ....................................................................... 101 III O delírio ................................................................................... 102 IV O dossiê .................................................................................... 104 V Mete fogo! .................................................................................. 107 Um dândi, um beletrista ................................................................. 113 I Um dândi, um beletrista .............................................................. 113 II O Céu ........................................................................................ 115 III O Segundo Céu ......................................................................... 119 IV Um mandamento ..................................................................... 119 V O Purgatório .............................................................................. 120 VI Um abraço ................................................................................ 122

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momento no café Jessé de Almeida Primo

Certa vez falei, numa tertúlia, sobre O fruto do vosso ventre, de Herberto Sales. Qual não foi meu espanto ao conhecer que esse é um romance distópico. Ou por outra, faz parte de uma literatura que defende “os valores espirituais contra a utopia da técnica”. Assim o descreve Otto Maria Carpeaux em História da literatura ocidental, quando trata de Aldous Huxley. O mesmo Carpeaux, apresentando o contexto em que se manifestou tal narrativa, ainda fala da euforia no imediato pós-guerra, por volta de 1920 e 1925: época do jazz e do abuso da psicanálise como “jogo de salão”, dos “bolchevistas de salão” e do capitalismo de Henry Ford, do turismo exótico e do debunking dos valores tradicionais, do antipuritanismo e de outras coisas menos confessáveis

― e, por isso mesmo, “também é a época de advertências sérias: de oposição social, espiritual e religiosa contra aquela euforia perigosa”. Quando se fala em romances distópicos, pensa-se logo em 1984 ou Revolução dos bichos, de George Orwell ou Admirável mundo novo, do já citado Aldous Huxley. Pensa-se também em Laranja mecânica, de Anthony Burgess. Sem esquecer Chesterton, que era distópico tanto nos seus ensaios, poemas, bem como o era em seus contos ou romances, a exemplo do famoso O homem que era Quinta-feira. E todos ― ao menos boa parte ― surgiram também como resposta, ou sátira mesmo a algumas narrativas de ficção científica, de teor otimista, pelas quais se mostra a crença fanático-cientificista num futuro melhor, quando por meio da ciência a humanidade chegasse à perfeição. Isso aconteceria ou no nosso planeta, todo tecnologizado e completamente higienizado, com pessoas a voar ou a andar em

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12 esteiras quilométricas, sem em nenhum momento tocar os pés no chão; ou noutros planetas, e ambos tendo em comum um governo mundial e virtuoso, e não raro de cabeça grande. Esse teor otimista já estava presente na época das grandes navegações. E no século XVIII, em oposição a esse otimismo, foram publicadas ― certo entre outras ― duas narrativas fortíssimas, as quais, graças à força e corrosão satíricas podem ser tomadas indevidamente ― ou, concedo, exageradamente ― como distópicas. É o caso de Cândido ou O otimismo, de Voltaire, e as Viagens de Gulliver, de Swift. Por outro lado, a relação com a distopia encontra seu limite quando a descrença na humanidade e na cultura é substituída pela crença em uma humanidade perfeita, como se pode perceber no retrato que Voltaire faz dos habitantes de Eldorado. Ou na retidão dos animais em resposta à barbárie da cultura humana, numa crença algo rousseauniana, em Swift. Swift, porém, ainda chega bem próximo aos romances distópicos do século XX, quando, além de apresentar um retrato arrasador ― por meio de uma sátira tão gargalhante quanto cruel ― do otimismo que animava as viagens empreendidas pelo europeu ao Novo Mundo, aproxima-se mais ainda do século XX pelo relato de experiências laboratoriais algo estapafúrdias, que resultaram em verdadeiros desastres, em nome de um mundo melhor. Distopia há também nas Escrituras, com destaque às denúncias dos profetas, como bem nos lembra René Girard: “O judaísmo foi, desde o princípio, a recusa absoluta dessa máquina de criar deuses.” Essa máquina de que fala Girard é o costume dos sacrifícios humanos ou linchamentos que os grandes profetas acusaram nas culturas pagãs e, pondo a olhos vistos o que estava por trás dessa violência sacrificial, mostraram que no “judaísmo Deus nada tem a ver com nenhum ato de vitimar, e assim as vítimas deixam de ser divinas. É a isso que chamamos revelação.”1 O que é essa recusa da “máquina de criar deuses” senão uma advertência séria contra aquela euforia perigosa de que fala Otto Maria Carpeaux? Revelação, pois, é a palavra chave para caracterizar a distopia, e me afastando mais do emprego técnico de distópico ― termo esse relacionado a um tipo de narrativa muito específica ― me permito abranger outras formas de narrativas que, se por um lado, afastam-se tecnicamente do que implica o mesmo termo; por outra, participa René Girard et al., Evolução e conversão (trad. Pedro Sette-Câmara e Bluma Waddington Vilar, São Paulo, É Realizações, 2011), p. 217. 1

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de algum modo de sua natureza a partir do momento em que se propõe a desmascarar algo aparente, a destruir determinadas ilusões graças ao seu caráter apocalíptico, ou seja, revelatório, o que pode ser percebido em alguns romances da escola realista, com destaque aos romances de Machado de Assis, autor, por sinal, tão presente, em companhia de Bandeira, nos contos do livro que daqui a pouco apresentarei. E lendo o livro de Herberto Sales, é que me dei conta de já haver lido outros de igual natureza, da lavra nacional, ou que de um modo ou de outro emula a narrativa distópica ou a reflete ou com ela se aparenta. A primeira delas é O convidado, de Murilo Rubião, que, mais próximo ao gênero horror ou fantástico, não é bem uma distopia, mas participa de algum modo de algumas de suas características, a saber, algo como a narração de uma opressão externa, sem contorno definido, porém de eficácia concreta. Além de A hora dos ruminantes, de José J. Veiga, em que uns forasteiros causam fascínio numa população de certa cidade e, por fim, exercem-lhes um controle irritantemente inexplicável. Todas têm em comum um clima de opressão que adquire forças na medida em que se acredita na possibilidade de um paraíso terrestre ou no surgimento de uma sociedade perfeita, por meio da técnica, pela lisonja das multidões ou por outros meios. Na de Herberto Sales, por exemplo e como alguns diálogos sugerem, um regime de força surge como resultado das reivindicações de liberdade sexual, da dissolução da família como um meio para se adquirir tal liberdade ou, o que é o assunto central, o temor de que a superpopulação acabe qualquer possibilidade de sobrevivência numa ilha, assunto esse cada vez mais em voga, havendo ― pasmem! ― quem de fato proponha a extinção de toda humanidade pelo bem da mãe terra. Essa euforia surge também com mais força num ambiente em que os futuros governantes envaidecem o povo ou a sua parte mais ruidosa, o que é tão bem apresentado no conto de abertura, Discórdia, que com mais quatro outros compõem A vida é traição, de Luiz Cezar Araújo. Esse é o que de fato se encaixa sem dificuldade no gênero distópico, além de ter familiaridade com o realismo fantástico latino-americano. Nele percebe-se também certa dicção bíblica e de escritos quinhentistas, e sem contar o recurso à forma machadiana, seja na sobriedade no trato com a língua, seja no jogo de cumplicidade que Machado fazia com seus leitores ― numa brincadeira

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14 com os romances escritos para moças ―, seja principalmente, o que torna suas narrativas a um só tempo tão gargalhantes quanto desoladoras, a graciosa neutralidade irônica com que conta os fatos mais estarrecedores. É de se perguntar o porquê de um único conto ter motivado tantos parágrafos introdutórios, como se o restante lhe seguisse o modelo. Pra começar, o conto tem 55 páginas, uma quantia significante se considerarmos os contos minúsculos contemporâneos. Mas uma quantia média se comparada aos contos de Alexandre Herculano, Machado de Assis e a maior parte dos contos de Jorge Luis Borges. Além de certa extensão, o conto intitulado Discórdia tem 13 capítulos, ou seja, 13 maneiras de se tornar memorável e 13 maneiras de mergulhar o leitor em situações inusitadas, a princípio divertidas, para depois jogá-lo, como se joga um seduzido numa armadilha ou como é jogada uma população inteira retratada no conto, num doloroso pesadelo, num barbarismo tão estarrecedor que, por vezes, pode causar engulhos. Tudo começa com uma misteriosa profecia cujas advertências lembram a proferida em Fátima: “Ou arrependem, se convertem [...] ou este local espalhará seus erros pelo mundo” (o itálico é meu). Em tempo, Fátima foi uma das maiores distopias da história e a maior do século XX. Segue um acidente de trabalho cuja conseqüência será uma manifestação popular com ampla divulgação nas redes sociais, com a posterior e animada adesão de políticos oportunistas e artistas volúveis e deslumbrados com a própria imagem: “Como passassem os manifestantes em frente a um circo, e porque não fosse aquele dia de espetáculo, as almas sensíveis dos palhaços Gaetano e Gil foram arrebatadas por tão belas reivindicações.” Sucede, como era de se esperar, um verdadeiro quebra-quebra, um festival de vandalismo, reproduzindo, dessa maneira, a violência dos famigerados Black Blocs, até que, com a passagem do tempo, e por uma revolução, um bando de zés-ninguém é alçado ao poder e a cidade onde se dão os acontecimentos torna-se uma terra de todos e de ninguém, um verdadeiro paraíso antropológico. Se a distopia no Fruto de vosso ventre é narrada por meio de uma linguagem que mimetiza a forma de expressão da burocracia, a que é usada vaidosamente pelos tecnocratas que se querem passar por inteligentes, porque obscuros; linguagem essa que também se reproduz em outros romances do gênero ― mas geralmente limitada à fala das

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personagens ―, a do conto Discórdia ora emula a linguagem das crônicas de antanho: “As crônicas de Discórdia dizem que em tempos remotos por lá passou catequizando um tal São João Maria, um místico, ou santo, ou profeta, cuja figura mudou conforme o tempo e as gentes da cidade.”; ora a linguagem típica das redes sociais que se pretende conscientizada e é capaz de fingir a própria indignação: “É uma barbaridade, é um desrespeito, onde já se viu?! As telha que comprei pro canil do Beiçola (era esse o nome do cachorro) vierão com um pedaço do seu Carlinhos! Vejão ali na foto!!!! (...) Vou exigir meus direito de consumidora!!! Vou no Ministério do trabalho se for preciso. EU É QUE NÃO QUERO MAIS ESSAS TELHA MALDITA!!!!”; ora a linguagem charmosamente cumpliciadora de Machado de Assis, como se estivesse a conversar: “Leitor, um mestre já disse que as explicações desperdiçam tempo e papel, retardam a ação e acabam aborrecendo; o melhor é ler com atenção”. Os contos seguintes, por outro lado, vão por caminho narrativo diverso, distinguindo-se do primeiro pela descrição de um cotidiano que se não mistura com o inusitado ou com o fantástico ou os absurdos tão presentes nos contos de Murilo Rubião e, por que não, nos filmes de Woody Allen, com exceção de Os vermes, que reproduz com bom humor o clima conspiratório e alucinante das tramas de filmes norte-americanos, enlatados ou não. E tematicamente, são mais unidos entre si, apresentam mais uniformidade e mais corres-pondência com o título da obra, girando em torno da temática “traição”, com maior ou menor intensidade. Destacam-se, pois, nessa temática os contos A vida é traição e Um dândi, um beletrista. O primeiro dá ao ciúme um tratamento que o aproxima de Dom Casmurro, pelo desconforto paranóico característico: Richard teve vontade de chorar, dilacerado de ciúmes. Imóvel, em frente ao monitor, começou a bater qualquer coisa no teclado ― letras aleatórias, para fingir que estava trabalhando. Rolava as páginas e, apoiando o cotovelo na mesa e a cabeça entre as mãos, chegava mais perto do monitor, como se estivesse lendo. Não via nada, entretanto. Estava zonzo.

Trata também de uma relação de inveja mútua, de mal-entendidos que reproduzem uma situação que René Girard chamaria de rivalidade mimética, que resulta num desfecho surpreendente, como

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16 também acontece em Um dândi, um beletrista, mas em trama de outra natureza e que, de algum modo, o relaciona com Discórdia, quando fala das conseqüências nefastas do fascínio sócio-antropológico, do rousseaunismo de botequim ― como se o original já o não fosse ― e o relaciona também com Gente boa da roça, de Flannery O’Connor, o qual assim como outros dois contos já citados mostra que a crença na retidão necessária das pessoas “simples” é puro idealismo, que em nada se fundamenta, e é necessário muito esnobismo ou uma visão puramente estética da realidade para se sustentar tal insanidade. Machadiano que é machadiano não poderia deixar de escrever o impagável Um grande homem. Poder-se-ia dizer “Um homem célebre” escrito com auxílio de Nelson Rodrigues, que por sinal é citado no conto. É fascinante constatar a capacidade de se mostrarem as sucessivas mudanças de personalidade do pretenso grande homem sem que o leitor, em nenhum instante, deixe de perceber a personalidade real que sofre essas metamorfoses psiquiátricas, o que confere à narrativa maior hilaridade. Ademais, a obsessão da personagem principal pela glória literária parece fazer parte da vida romanesca do século XIX, com destaque ao próprio Machado e Lima Barreto. Em narrativas contemporâneas podemos encontrar também esse desejo de glória, o que foi tratado em As almas que se quebram no chão e no inédito O advento, ambos de Karleno Bocarro; em Consagro-vos a minha língua, de Carlos Zamboni, e na peça Os amadores, de Pedro Sette-Câmara. Enfim, as tramas surpreendentes que tanto marcam os contos deste livro são também escritas com uma engenhosidade e graciosidade que chamam atenção por mostrar que ― pouco importa, se proibido ou não estimulado pela moda do dia ― ainda é possível se ler narrativas que não bastando ser bem elaboradas, com personagens marcantes e de contorno bem definido, são também escritas com arte, com a mesma dedicação e esmero com que se dedicaram os grandes mestres da nossa língua, entre os quais Machado de Assis. Se a comparação espanta ou parece exagerada, me limito a dizer que o que se lerá nas páginas seguintes não faria feio aos mestres que as inspiraram. Pelo contrário, honra-os porque a dignidade com que trataram a arte da escrita ainda encontra eco, tem continuidade em cada página de cada um desses contos e essa dignidade se mostra mais evidente porque não se limita à qualidade do meio de expressão, mas se estende à pertinência cultural tão presente nestas páginas, que sem nenhum favor devem ser lidas e relidas, e muito tem para dizer

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dos nossos dias e das doenças eternas que são responsáveis pelos nossos males. Para mim, pessoalmente, foi uma alegria a leitura e releituras desta presente obra e não tenho razões para duvidar de que o será também para ti, felizardo leitor.

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discórdia

I A PROFECIA DE SÃO JOÃO MARIA

As crônicas de Discórdia dizem que em tempos remotos por lá passou catequizando um tal São João Maria, um místico, ou santo, ou profeta, cuja figura mudou conforme o tempo e as gentes da cidade. Uns dizem que era um jesuíta espanhol de pele morena e cerca de 50 anos de idade, rijo, magro, de barbas brancas. Outros afirmam que era velho, de mais de 80 anos, tinha o cabelo e as barbas nos ombros, falava grego, que fora um bandido e, convertido, saiu a pregar. Outros ainda (em menor número, esta a descrição que prevalece nas colônias italianas de Discórdia) defendem que era italiano, que se chamava Lorenzo, tinha olhos azuis e a cara raspada, e que era franciscano. Todos concordam que São João Maria teria lançado uma maldição, ou feito uma profecia, que seja, qualquer coisa quanto ao futuro. “Ou se arrependem, se convertem, e pedem perdão dos seus muitos pecados, ou este local espalhará seus erros pelo mundo. Daqui não nascerá senão a discórdia.” Foi o que anotou o pároco na época, no verso do esboço de um retrato de São João Maria. Conta-se que depois de percorrer as fazendas com sua pregação ao arrependimento, o profeta teria entrado na vila, ido à paróquia e repetido do altar: “Ou se arrependem...” Os discordianos mais velhos gostam de contar que ainda meninos viram pessoalmente São João Maria, e que correram atrás do jesuíta (ou do grego, ou do franciscano italiano) dando-lhe piparotes, lançando-lhe palavrões, atiçando-lhe os cachorros, amarrando barbantes nas borlas de suas vestes. Eis, portanto, que nasce de uma profecia o nome da nossa cidadezinha. Dela diremos apenas que era calma, que não era bela nem feia, e ficava no sudoeste do Paraná, na divisa entre General Leocádio e Nova Esperança.

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20 II

JOAQUIM MARIA DE GUSMÃO

O herói de nossa história é outro Maria, Joaquim Maria. Nasceu em Alijó, um vilarejo no norte de Portugal, em 1959, e imigrou com os pais para o Brasil em 1974, fugindo da Revolução dos Cravos. De Santos a família seguiu para Curitiba ao encontro de uns parentes; lá montaram uma padaria, na Rua Paula Gomes, lá viveram e morreram os parentes e os pais de Joaquim Maria. Não falaremos dos amores da juventude e nem da impressão que teve o jovem Joaquim Maria ao passear pela primeira vez no calçadão da XV de Novembro. Imagine o leitor. Saiba apenas que o rapazola vivera até então num vilarejo (como, aliás, já foi dito), não era feio, e tinha pendores de poeta. A mãe costurava e o pai assava pães. Joaquim Maria, filho único, ajudava ambos, e à noite estudava Direito. Formado, associou-se a um colega de turma e mudaram-se em 1982 para o interior. Foram para Discórdia. O colega casou-se, saiu da sociedade, da cidade e da nossa história. O Doutor Joaquim Maria de Gusmão ficou em Discórdia. E lá estava no ano de 2013, ano em que se passaram os fatos que se vão narrar. III “J’ACCUSE!”

O escritório era ainda o mesmo de há trinta anos. No centro da cidade, em frente à Praça Celestial, ao lado da paróquia. Uma casa de madeira antiga, com grandes janelas verdes cujas vidraças se abrem com contrapeso. No fundo da velha casa havia um pequeno quintal e uma edícula. Em frente, um murinho de pedra, cinco degraus em ardósia por meio dos quais se alcança da calçada a porta do escritório, e um pedaço de grama descuidada onde está instalada a placa em neon: “Doutor Joaquim Maria de Gusmão ― OAB/PR 1.325’’. Depois de se desfazer da casa onde morava (no outro lado da praça) para poder comprar uma vaca e três alqueires de terra na divisa entre Discórdia e Nova Esperança, era num quartinho improvisado nos fundos do escritório que o doutor Gusmão pernoitava às terças-feiras. Os demais dias da semana passava agora em sua chácara, que chamava sua “vila”. Neste único dia na cidade o

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