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A volta

truíram nela. O dono, como era um político muito rico, mandou que ele desse fim à vida deles. Pagou um preço alto por isso. Outro estava envolvido com roubos na cidade onde estávamos e corríamos o risco de encontrá-lo. Justino avisou que se isso acontecesse, teria que atrasar um pouco a viagem, pois faria o serviço de uma vez. Dois estariam próximos à minha terra. Eram fugitivos. Traíram, cada um a seu modo, o fazendeiro para quem trabalhavam. E saíram corridos de lá, porque senão o próprio dono das terras se vingaria deles. Era um homem bravo e depositava toda sua confiança em Justino, tanto que pagou ainda mais dinheiro que o primeiro. Em alguns lugares do mapa, Justino tinha capangas que lhe amparariam no básico. Esses mesmos homens ajudavam-no a procurar não só os quatro últimos, mas todos da lista. Ele trabalhava sozinho, mas tinha amigos. E o último era o homem que matou seu irmão.

Como a volta estava mais tranquila, paramos em um hotel de beira de estrada, alimentamos os cavalos e pedimos dois dormitórios. Numa das paredes da recepção tinha um cartaz anunciando um show no cabaré ali perto naquela noite. Decidimos ir. Arrumados, pontualmente estávamos lá. Os Strip-teases clareavam nossos olhos, alimentavam nossos corpos. Há tempos eu não ia a um lugar como aquele. Justino se ajuntou a uma das moças rapidamente. Eu demorei um pouco mais, mas também me virei. Precisava me distrair depois de toda a andança. E um jeito fácil era esse. Ir para lá, pagar, ter uma mulher e voltar para o hotel. E assim fizemos. Permanecemos no cabaré por algum tempo. Voltamos, dormimos, acordamos bem cedo e saímos em direção à vila.

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Passando por um lugarejo, Justino avistou um de seus comparsas e perguntou-o como estavam as coisas. O ho-

Marília Carreiro Fernandes

mem informou que o ladrão estava num boteco a alguns metros dali. Justino decidiu acabar com o salafrário ali mesmo. Perguntou quantos dariam suporte e o capanga respondeu que mais três, além dele. Pediu um revólver mais forte, que acertasse a longa distância e balas envenenadas. Não queria correr o risco de errar os tiros. Não tive coragem para ir. Uma hora depois, ouvi disparos e rapidamente Justino estava de volta com um sorriso no rosto, como se nada tivesse feito. Fiquei um pouco assustado, mas não demonstrei. Por fim, acabei me sentindo protegido por tê-lo comigo. Depois do assassinato, tivemos que dar uma grande volta na estrada e passar por muitos lugares, para não deixar vestígio. Encontramos mais comparsas e Justino avisou para riscar o ladrão.

O ladrão saiu do bar e montou seu cavalo. De longe, Justino o acompanhou e, na hora oportuna, disparou um tiro, derrubando-o da montaria. Chegando mais perto, viu que ele ainda respirava. Deu mais um tiro, esse na cabeça. O homem era bom de mira. Os capangas só precisariam dar fim ao corpo. Cavalgamos até outra vila que eu não conhecia. Era um atalho para voltar para casa. Decidimos dormir por lá, já que o céu nublado não nos favorecia naquela noite.

Não esperamos o amanhecer para partir. Com os atalhos, em mais um dia – ou até menos – estaríamos em casa. Fui contando para Justino como a terra era bonita e sobre Antônio, sua família e como o destino me ligou a eles. O caseiro, de certa forma, substituía meu pai, desde quando se mudou para a fazenda. Cuidava, com dona Ana, de tudo o que fosse preciso para o meu bem-estar. Os dois tinham quatro filhos. Três deles mesmo e um de

criação. Mas o de criação era a cara da dona Ana, nem parecia não ser nascido dela. Comentei, com admiração, a brincadeira que vi antes de viajar. As crianças admiravam muito a Antônio. Era um homem vivido, incansável, pronto para tudo. Disposto e bem humorado, cantava sem parar. Desafinado que só, chegava a ser engraçado. Justino parecia gostar das histórias que eu contava. Não demorou muito para pararmos. Estava quente e os cavalos precisavam de água, até mais que a gente. El Dorado aparentava cansaço. A viagem foi longa para ele. Apesar de bem treinado, andamos durante oito dias ou mais, não me lembro direito. A alimentação não foi a das melhores e os animais sentiam isso. Nós também, mas era melhor que eles comessem o restante da comida deles e nos levassem para casa.

Na bagagem ainda restava um pouco de feijão e carne seca. As cachaças que ganhamos do pai de santo já tinham acabado. Comemos o que restava na bagagem, já pensando nas maravilhosas refeições preparadas por dona Ana. Estávamos perto da fazenda. Descansamos embaixo da boleira e saímos às duas da tarde, andamos até o pôr-do-sol, quando avistamos a pedra em V de cabeça para baixo. Mais uma vez, procuramos alguns galhos e fizemos uma fogueira. Dormimos por lá.

Bem cedo acordamos e continuamos nosso trajeto. Por volta de onze horas da manhã, chegamos à fazenda. Dona Ana e Antônio estavam na varanda e logo nos viram. Ficaram alegres com nossa chegada e, após os cumprimentos e apresentações, os dois foram preparar o almoço, um verdadeiro banquete. Como estávamos esfomeados, Justino e eu não esperamos todos se sentarem à mesa para almoçar. Após o almoço, resolvi tirar uma sesta enquanto Antônio mostrava para Justino toda a terra e explicava para ele como estava e seria o trabalho na lavra.

Tempo das vacas gordas

Marília Carreiro Fernandes

Enquanto não construíamos um barraco para Justino, o jagunço passou a morar em minha casa. Emprestei o meu quarto a ele e fiz do quarto do meu pai um bom lugar para descansar. Ainda com o espírito de turista recém-chegado, Justino pediu para conhecer o centro da vila. Era um pouco afastado da fazenda, mas tínhamos outros cavalos – os nossos estavam descansando da viagem – que nos levariam até lá. Nessa época, a vila tinha aproximadamente mil habitantes. Era um lugar novo, as pessoas conheciam-na somente pelo garimpo e, por isso, atraía muitos trabalhadores. Os moradores, geralmente homens, dedicavam-se à procura das pedras preciosas.

Quando me mudei para cá, não tinha a rede elétrica que hoje é distribuída em todo o lugar. A energia funcionava em determinados períodos e tinha hora certa para desligar. Antes das nove horas da noite, quem não tinha um gerador em casa, começava a preparar seus castiçais. A vila apagava. Somente algumas casas continuavam acesas.

Por volta de 1960, a vila foi emancipada. O ano coincidiu com a fundação de Brasília. Impressionou a todos a forma como o governo criou uma nova capital para o país, com todas aquelas promessas de evolução de 50 anos em 5. Desde muito tempo tinha-se a ideia da criação de um novo lugar para a capital, no interior do país, longe do litoral e dos ataques inimigos. O presidente atribuiu ao terreno solitário o dever de ser o lugar das decisões políticas. E assim o fez.

Por influência desse marco, o dono da casa das luzes coloridas e ainda sem nome resolveu batizá-la, talvez para prestar homenagem ou simplesmente porque achou bonito, com o mesmo nome. Tínhamos uma Brasília, a capital dos prazeres, na vila. E fomos para lá. As mulheres que lá trabalhavam eram muito bem arrumadas. Com suas roupas impecáveis, andavam, durante o dia, pelas ruas de terra batida – não havia calçamento – sempre com um cachorrinho preso a uma corrente. Eram maquiladas e se portavam muito bem com um salto alto. Os cabelos então, nem ouso dizer: o laquê dava inúmeras formas a eles. Além de tudo isso, sabiam se portar, não eram abusadas e não chamavam a atenção, a não ser pela beleza.

Era difícil um final de semana que não tivesse festa. Como era sábado, todos os garimpeiros da vila e dos territórios vizinhos estavam lá para gastar o dinheiro que ganharam com as pequenas pedras tiradas durante a semana. Sentamos numa mesa e esperamos as moças nos servirem. Imediatamente, duas sentaram conosco e começamos a conversar.

Alzira fazia jus ao nome que tinha. Era bonita, carismática. Por alguns instantes esqueci-me do meu real intuito indo ao Brasília. Aquela mulher não tinha nascido para ser dama. Poderia ter estudado ou até mesmo esperado por alguém, mas talvez as condições não favoreceram para tal. Não que eu condenasse as damas, longe de mim. Mas ela era diferente. Perguntei a ela se poderia somente conversar comigo, por enquanto. E antes que ela respondesse, continuei dizendo que, se fosse preciso, eu pagaria também por esse tempo.

Acabei por saber um pouco de sua vida. A moça veio do interior de Minas Gerais, em busca de uma vida melhor. Ficou sabendo por uma prima que também trabalhava na casa – e mais antiga de profissão – que lá

Marília Carreiro Fernandes

precisavam de mais uma mulher. O lucro era certeiro, porque a vila era rodeada de garimpeiros. Somente não podia revelar à família o que fariam por essas bandas. A história que contariam era qualquer uma, menos a real. E, devido às justificativas financeiras apontadas pela prima, a moça decidiu viajar e fixar trabalho na vila. Não era exclusiva de ninguém. Duas vezes ao ano ia até Minas Gerais para visitar sua mãe e dois irmãos. Como o pai era falecido e a mãe já de idade (Alzira era a caçula), a filha sempre levava algum dinheiro para a família. Era louvável a sua atitude de ter se mudado para outro lugar porque teve uma proposta de emprego como secretária. A música era uma mistura de tango e bolero, ritmos propícios para o local. Chamei a dama para dançar e depois me dirigi para o quarto. Justino já tinha ido há tempo. Amanhecemos no prostíbulo. De lá, saímos para a única padaria, famintos. Enquanto tomávamos o nosso café, começamos a conversar sobre os trabalhos que ainda não tinham sido feitos por Justino e sobre seu ofício. Matar, para um pistoleiro, é como tomar um café na padaria. Você toma o seu café e continua o seu dia, fazendo o que lhe é de direito, enquanto alguém limpa o que você deixou sujo. Lava, tirando suas digitais. E seca. E guarda. Quem está perto de você vê que você foi à padaria, mas isso já é tão corriqueiro que ninguém mais se importa. Ou não quer se importar. Ou tem medo. Às vezes a sede é grande e o matador toma mais de um café por dia, dependendo da vontade. Às vezes o vício é tamanho que dá vontade de tomar a garrafa de café inteira, num só gole, e queimar a garganta e tudo o que há por dentro. Só que existe uma receita para ser seguida, senão passa da linha. E passar da linha nesse caso é excesso de cafeína. O pistoleiro segue à risca a receita. Toma seus cafés. Todo mundo sabe quem faz o café, quem o serve,