SALVE JORGE! OGUNHÊ

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EDITORA OLYMPIA

SALVE JORGE! OGUNHÊ

Capa:Pintura“SãoJorgeeodragão”deRafael Sanzio(1483-1520)comartedeRobertoPereira

F825 Franco, Carlos (organizador)

Editora Olympia, 2024, Uberlândia, MG

Pág.

ISBN 978-65-86241-16-7

1.1. Ficção brasileira — Contos I. Título

CDD B869.301

CDU 821.134.3 (81)

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“Euandareivestidoearmadocomasarmas deSãoJorgeparaquemeusinimigos, tendopésnãomealcancem, tendomãosnãomepeguem, tendoolhosnãomevejam, enemempensamentoselespossammefazer mal.

Armasdefogoomeucorponãoalcançarão, facaselançassequebremsemomeucorpo tocar, cordasecorrentessearrebentemsemomeu corpoamarrar. ”

Trecho da oração de São Jorge

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Sumário

Apresentação/Carlos Franco

Página 7

A fé que habita em mim/Thaís Moritz Cordeiro

Página 29

A grande peleja/William R.F. Ramires

Página 36

A medalha de São Jorge/Edmir Saint-Clair

Página 41

Guardião da lua/Matile Facó

Página 55

Ícaro e Ewa/Carlos Henrique dos Santos

Página 67

O Sancho Pança de São Jorge/Olivaldo Júnior

Página 75

ReEscrever/Cláudia Camilo

Página 84

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EDITORA OLYMPIA 6 Salve Jorge!/Carlos Monteiro Página 90 Salve Jorge! Ogunhê/Rui Ferrer Trindade Página 93 São Jorge/Christine Miranda Página 100 São Jorge, o guerreiro imortalizado/Bruna Esteves Página 102 Um Jorge para hoje/Jonas Matheus Sousa da Silva Página 112

Apresentação

LuadeSãoJorge,luadeslumbrante

Azulverdejante,caudadepavão LuadeSãoJorge,cheia,brancaeinteira

Oh,minhabandeirasoltanaamplidão

LuadeSãoJorge,luabrasileira

Luadomeucoração!”

Trechodacanção “LuadeSãoJorge”deCaetano

Veloso

CarlosFranco

Louvado nos templos católicos, nos terreiros de religiões de matriz africana, nos estádios de futebol, nas casas, nos bares, no comércio e nas quadras de escolas de samba, São Jorge está presente na vida de todos, inclusive por meio das lendas que o cercam, como o fato de ser o guardião da lua, de onde sua imagem é vista desde tempos imemoriais. Senhor dos exércitos e da turca Capadócia, patrono da Inglaterra, da Geórgia, da Lituânia, da Sérvia, de Montenegro e da Etiópia, é o protetor que, acredita-se, nos livra dos dragões da maldade que a todos cercam. Celebrado no Brasil em 23 de abril, São Jorge é patrono de inúmeras cavalarias ao redor do mundo por força de sua representação iconográfica, montado emum cavalo e derrotando

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com sua poderosa lança o dragão com a força e a mística do guerreiro.

Este santo também é padroeiro de cidades como Londres, Moscou, Barcelona, Génova, Régio da Calábria, Ferrara, Friburgo e Beirute. É tão especialmente celebrado no Rio de Janeiro que muitos se esquecem que o padroeiro da cidade maravilhosa de encantos mil é São Sebastião, celebrado em 20 de janeiro na cidade fundada oficialmente em 1º de março de 1565 pelo português Estácio de Sá (1520-1567).

Explica-se: na predominância do inconsciente coletivo todos nós queremos a proteção de um guerreiro, um auxiliar divino que nos ajude a quebrar os obstáculos que surjam pela frente, enquanto São Sebastião, símbolo da resiliência e da aceitação pacífica da crueldade do mundo, não teria como nos livrar das lanças com as quais os inimigos da sua fé o abateram.

Presente nos belos pontos, como são chamados os cânticos de umbanda, a única religião genuinamente brasileira, que surgiu do sincretismo entre o catolicismo e as religiões ancestrais de matriz africana, que antecedem o cristianismo, São Jorge também conquistou lugar de destaque na música popular brasileira.

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Compositores como Jorge Ben Jor, Caetano Veloso, Zeca Pagodinho, MC’s Racionais, Alceu

Valença, Djonga, intérpretes de primeira grandeza como Maria Bethânia e Alcione e uma legião de músicos de diferentes gêneros também o homenageiam e assinam canções que contribuem para tornar o santo guerreiro ainda mais presente na arte e na cultura brasileira.

É Maria Bethânia quem empresta a bela voz à emblemática música “Medalha de São Jorge” de Moacyr Luz:

MedalhadeSãoJorge

Ficaaomeulado,SãoJorgeGuerreiro

Comtuasarmas,teuperfilobstinado

Meguardaemti,meuSantoPadroeiro

Melevaaocéuemtuamontaria

Numavisitaaluacheia

QueéamedalhadaVirgemMaria

Dooutrolado,SãoJorgeGuerreiro

Põetuasarmasnamedalhaenluarada

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Teguardoemmim,meuSantoPadroeiro

Aquemrecorroemhorasdeagonia

Tenhoamedalhadaluacheia

VocêcasadocomaVirgemMaria

OmareanoitelembramaBahia

Orgulhoeforça,marcasdomeuguia

Contocontigocontraosperigos

Contraoquebrantodeumapaixão

Deusmeperdoeessaintimidade

Jorgemeguardenocoração

Que a malvadeza desse mundo é grande em extensão

Emuitaveztemardeanjo

Egarrasdedragão

Já Zeca Pagodinho assina e interpreta “Pra São Jorge” numa sensível mensagem de agradecimento ao seu santo protetor: “Vou acender velas para São Jorge/ A ele eu quero agradecer/ E vou plantar comigo ninguém pode/ Para que o mal não possa então vencer/ Olho

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grande em mim não pega/ Não pega não/ Não pega em quem tem fé/ No coração”.

Jorge Ben Jor ao homenagear o santo que é seu xará trouxe para a canção lançada em 1975 uma releitura da oração a que todos recorrem em momentos de aflição e que também foi entoada pelos Racionais MC’s na abertura do genial álbum “Sobrevivendo no inferno”:

JorgedaCapadócia

JorgeBenJor

JorgedeCapadócia

JorgedeCapadócia

JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)

JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)

JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)

JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)

Jorge

Jorgesentoupraçanacavalaria

Euestoufelizporque

Eutambémsoudasuacompanhia

Euestouvestidocomasroupaseasarmasde

Jorge

Paraquemeusinimigos

Tenhammãosenãometoquem

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Paraquemeusinimigos

Tenhampésenãomealcancem

Paraquemeusinimigos

Tenhamolhosenãomevejam

Enemmesmopensamento

Elespossamterparamefazeremmal

Armasdefogo,meucorponãoalcançará

Espadas,facaselançassequebrem

Semomeucorpotocar

Cordas,correntessearrebentem

Semomeucorpoamarrar

Poiseuestouvestidocomasroupaseasarmas deJorge

Sensacional!

JorgeédeCapadócia,maravilha(vivaJorge!)

JorgeédeCapadócia,sensacional(salve,Jorge!)

Perseverança,ganhoudosórdidofingimento

Edissotudo,nasceuoamor

Perseverança,ganhoudosórdidofingimento (Emcima,uou!)

Edissotudo,uh,nasceuoamor

JorgedeCapadócia

JorgedeCapadócia

JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)

JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)...

O pernambucano Alceu Valença, por sua vez e em “Chuvas de cajus”, recorre a São Jorge para

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pedir proteção no álbum “Ciranda Mourisca”, de 2013: “Pastores da noite/ Meu São Jorge amado/ Livrai-me do ódio/ Dos abandonados”.

Coube à maranhense Alcione, uma das mais destacadas sambistas brasileiras, responsável pelo projeto Mangueira de Amanhã da tradicional agremiação carioca, trazer o São Jorge dos terreiros para o cancioneiro popular numa das mais belas composições em homenagem ao guerreiro:

Quandovimpraessechão

Foiprasermenestrel

Deviola,brasãoeanel

Cruzeimaresertão

Comumaestreladocéu

Reluzindonomeuchapéu

Vimmostrarbeleza

Massóvitristeza

Eessaestrelaacesa

Virounanoite,umfogaréu

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SãoJorge

Pralutarcontraomal

Metorneicapitão

Parabeloepunhalnamão

Pusemcadaarraial

Umaestrelanochão

Comapontadomeufacão

Noscamposdeguerra

Luteipormeusirmãos

Poressaterra(Ogunhê)

Tombeinaserra(Ogum)

Masmeusonhonão

Aruandachamou

Euvireiorixá

CavaleirodeOxalá

Hojeeusoudefensor

Guardiãodoluar

SouSãoJorge,OgumBeira-Mar

Aruandachamou

Euvireiorixá

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CavaleirodeOxalá

Hojeeusoudefensor

Guardiãodoluar

SouSãoJorge,OgumBeira-Mar

Em 2007, Jorge Ben Jor se uniria a Jorge Aragão, Jorge Vercillo e Jorge Mautner para falar do guerreiro que lhes empresta os nomes, a identidade e a brasilidade em “Líder dos Templários” , canção que evoca a força protetora de Jorge, o Ogum dos terreiros do Brasil, o Oxóssi dos terreiros baianos.

Líderdostemplários

TemféqueJorgeédeajudar

AtodoBrasileiro,Brasileiroguerreiro

SãoJorgecavaleirodaflor, SãoJorgeprotetor,protetor,protetor

Oxóssidamata,OgumdoFerro

Salamâleico,âleicon,salamalan

EstóriasdeumSantolutador

Lidersoberanodostemplários

Nopovoasuaforçaseperpetuou

Ehojeviveemnossoimaginário,

Ehojeviveemnossoimaginário

Mastodoimagináriotemvalor

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Epodetransformaressecenário

Amentecriadoraéumdommaior

Naquelesquesãorevolucionários

Naquelesquesãorevolucionários

TemféqueJorgeédeajudar

AtodoBrasileiro,Brasileiroguerreiro

Eusoucavaleirodaflor,

SãoJorgeprotetor,protetor,protetor

SãoJorgeprotetor,protetor,protetor

Oterrenoambíguo

Porqueeleéumherói

Eletempulsaçõeshumanas

Eéporissoqueeleátãoquerido

Emtodososlugares,

Pelascrianças,pelapopulação

EstóriasdeumSantolutador

Lídersoberanodostemplários

Nopovoasuaforçaseperpetuou

Ehojeviveemnossoimaginário, Ehojeviveemnossoimaginário

Mastodoimagináriotemvalor

Epodetransformaressecenário

Amentecriadoraéumdommaior

Naquelesquesãorevolucionários

Naquelesquesãorevolucionários

TemféqueJorgeédeajudar

Atodobrasileiro,brasileiroguerreiro

Eusoucavaleirodaflor

SãoJorgeprotetor,protetor

Protetor

TemféqueJorgeédeajudar

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Atodobrasileiro,brasileiroguerreiro

Eusoucavaleirodaflor

SãoJorgeprotetor,protetor Protetor

SãoJorgeprotetor,protetor Protetor

SãoJorgeprotetor,protetor Protetor

DeCamõesaFernandoPessoa

Nóssomosresultado

Dessaperegrinaçãolongínqua

Decombatesedeglórias

Deafirmaçãodobemcontraomal, Emesmonaeracibernética, Nomundodigital,noholograma

AliestáSãoJorge

Triunfantelánafrentedetodosnós, Éapipocadapororocadaimaginação

TemféqueJorgeédeajudar

Atodobrasileiro,brasileiroguerreiro, Eusoucavaleirodaflor

SãoJorgeprotetor,protetor,protetor

TemféqueJorgeédeajudar

Atodobrasileiro,brasileiroguerreiro

SãoJorgecavaleirodaflor

SãoJorgeprotetor,protetor,protetor

SãoJorgeprotetor,protetor,protetor

SãoJorgeGuerreiro

Santosalvador

SARAVÁ,dorôfé,otumba

Vemnosajudar

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Vemcurarador

Vemnosajudar

Salamâleico,âleicon,salamalan

Shalonshalon

Amém

SantoSalvador

O carioca de Belfort Roxo Jorge Mário da Silva, o Seu Jorge, também fez sua homenagem ao santo em “Alma de guerreiro” que ganhou grande repercussão ao integrar a trilha sonora da novela “Salve Jorge!” da TV Globo:

Almadeguerreiro

JorgevemdeládaCapadócia

Montadoemseucavalo

Namãoasualança

Defendendoopovodoperigo

Dasmazelasdoinimigo

Vemtrazendoaesperança

Jorge,nossopovobrasileiro

Temalmadeguerreiro

Nãocansadelutar

Enfrentandoumdragãopordia

Nasuacompanhia

Agentechegalá

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EDITORA

Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)

Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorgenarua)

Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)

Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorge)

JorgevemdeládaCapadócia

Montadoemseucavalo

Namãoasualança

Defendendoopovodoperigo

Dasmazelasdoinimigo

Vemtrazendoaesperança

Jorge,nossopovobrasileiro

Temalmadeguerreiro

Nãocansadelutar

Enfrentandoumdragãopordia

Nasuacompanhia

Agentechegalá

Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)

Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorgenarua)

Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)

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Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorgenarua)

Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)

Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorgenarua)

Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)

Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorgenarua)

A novela Salve Jorge!, da TV Globo, exibida entre 22 de outubro de 2012 e 18 de maio de 2013, trouxe tema importante para a telinha dos televisores ao abordar o tráfico de escravas sexuais a partir do sonho de moradoras do Complexo do Alemão, uma das maiores populações faveladas da América Latina, em ganhar a vida no exterior. Escrita por Glória Perez, a trama enfatizou a força protetora de Jorge, neste caso de carne e osso, personificado por Théo, oficial da cavalaria do exército, devoto de São Jorge.

Mas é na poética “Lua de São Jorge” , do baiano Caetano Veloso que o santo guerreiro brilha no céu com todo o seu resplendor:

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LuadeSãoJorge

Luadeslumbrante

Azulverdejante

Caldadepavão

LuadeSãoJorge

Cheia,branca,inteira

Óminhabandeira

Soltanaamplidão

LuadeSãoJorge

Luabrasileira

Luadomeucoração

LuadeSãoJorge

Luadeslumbrante

Azulverdejante

Caldadepavão

LuadeSãoJorge

Cheia,branca,inteira

Óminhabandeira

Soltanaamplidão

LuadeSãoJorge

Luabrasileira

Luadomeucoração

LuadeSãoJorge

Luamaravilha

LuadeSãoJorge

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Mãe,irmãefilha

Detodoesplendor

LuadeSãoJorge

Brilhanosaltares

Brilhanoslugares

Ondeestouevou

LuadeSãoJorge

Brilhasobreosmares

Brilhasobreomeuamor

LuadeSãoJorge

Luasoberana

Nobreporcelana

Sobreasedaazul

LuadeSãoJorge

Luadaalegria

Nãosevêumdia

Clarocomotu

LuadeSãoJorge

Serásminhaguia

NoBrasildenorteasul

LuadeSãoJorge

Luadeslumbrante

Azulverdejante

Caldadepavão

LuadeSãoJorge

Cheia,branca,inteira

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Óminhabandeira

Soltanaamplidão

LuadeSãoJorge

Luabrasileira

Luadomeucoração

LuadeSãoJorge

Luamaravilha

Mãe,irmãefilha

Detodoesplendor

LuadeSãoJorge

Brilhanosaltares

Brilhanoslugares

Ondeestouevou

LuadeSãoJorge

Brilhasobreosmares

Brilhasobreomeuamor

LuadeSãoJorge

Luasoberana

Nobreporcelana

Sobreasedaazul

LuadeSãoJorge

Luadaalegria

Nãosevêumdia

Clarocomotu

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LuadeSãoJorge

Serásminhaguia

NoBrasildenorteasul

E foi, por meio da união de Zeca Pagodinho e Maria Bethânia no álbum “De Santo Amaro a Xerém” que, surgiu uma louvação que sintetiza a força do guerreiro na cultura popular:

Ogum/OraçãoaSãoJorge

EusoudescendenteZulu

SouumsoldadodeOgum

DevotonessaimensalegiãodeJorge

Eu,sincretizadonafé

Soucarregadodeaxé

Eprotegidoporumcavaleironobre

Sim,vounaigrejafestejarmeuprotetor

Eagradecerporeusermaisumvencedor

Naslutas,nasbatalhas

Sim,vounoterreiroprabateromeutambor

Batocabeçaefirmoponto,simsenhor

EucantopraOgum

umguerreirovalente

Quecuidadagentequesofredemais (Ogum)elevemdaLuanda

Elevencedemandadegentequefaz (Ogum)cavaleirodocéu

Escudeirofiel,mensageirodapaz (Ogum)

elenuncabalança

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Elepeganalança,elemataodragão (Ogum)équemdáconfiança

Praumacriançavirarumleão (Ogum)éummardeesperança

Quetrazabonançapromeucoração (Ogum)

EusoudescendenteZulu

SouumsoldadodeOgum

DevotonessaimensalegiãodeJorge

Eu,sincretizadonafé

Soucarregadodeaxé

Eprotegidoporumcavaleironobre

Sim,vounaigrejafestejarmeuprotetor

Eagradecerporeusermaisumvencedor

Naslutas,nasbatalhas

Sim,vounoterreiroprabateromeutambor

Batocabeçaefirmoponto,simsenhor

EucantopraOgum

umguerreirovalente

Quecuidadagentequesofredemais (Ogum)elevemdaLuanda

Elevencedemandadegentequefaz (Ogum)cavaleirodocéu

Escudeirofiel,mensageirodapaz (Ogum)

elenuncabalança

Elepeganalança,elemataodragão (Ogum)équemdáconfiança

Praumacriançavirarumleão (Ogum)éummardeesperança

Quetrazabonançapromeucoração

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Ogum

Jesusadiantepazeguia(Ogum)

Encomendo-meaDeuseavirgemMaria

Dozeapóstolosmeusirmãos

Euandareivestido,armado,cercado(Ogum)

ComasarmasdeSãoJorge

SãoJorgesentoupraçanacavalaria(Ogum)

Eeuestoufeliz

Porqueeutambémsoudasuacompanhia

Euestouvestido(Ogum)

ComasroupaseasarmasdeJorge paraquemeusinimigos,tendopés

Nãomealcancem

Tendomãosenãomepeguem(Ogum)

Tendoolhosnãomevejam

Enemempensamento

Elespossamterparamefazeremmal(Ogum)

Armasdefogoomeucorponãoalcançarão

(Ogum)facaselançassequebrem

Seemmeucorpotocar

(Ogum)cordasecorrentes

Searrebentemsemeucorpoamarrar

Poiseuestouvestido

ComasroupaseasarmasdeJorge(Ogum)

SalveJorge!

SalveSãoJorge!(Ogum)

JorgeédaCapadócia!

Ogum

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E se o santo, originalmente católico, é envolto em contradições quanto ao tempo em que viveu e as lendas que o circundam, é senso comum que tenha nascido na turca Capadócia e falecido na cidade palestina de Lida, no território que, a partir da criação de Israel em 1947, ganhou o nome de Lod. É nesta cidade que fica a igreja tantas vezes destruída e reerguida no local onde o soldado guerreiro, defensor do cristianismo, teria sido sepultado após decapitado por ordem do imperador romano Diocleciano provavelmente em 23 de abril de 303. Enfatizamos aqui o provavelmente porque nada a que se refere ao santo guerreiro é preciso a não ser a fé que todos têm nele e que o tornou santo pelas igrejas católica, ortodoxa e anglicana.

Adotado no Brasil pelos belos e singelos cultos de matriz africana como Ogum, São Jorge tornou-se, assim, orixá guerreiro e protetor que vive e reina na lua e também no coração dos homens.

Salve Jorge! Ogunhê que é saudação de origem africana a este guerreiro com a qual intitulamos esta obra realça a sua brasilidade e atemporalidade, os laços laicos de nossas origens portuguesas, africanas e ameríndias.

Por fim, como organizador desta antologia, me cabe ressaltar que a Editora Olympia tem muito

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orgulho em reunir novos e premiados talentos que, com seus textos, brindam os leitores com novas imagens e novas visões de mundo.

Saravá!

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EDITORA

A fé que habita em mim

Thaís Moritz Cordeiro

Em uma pequena aldeia, entre verdejantes colinas e campos dourados semeados com trigo, vivia um jovem chamado William. Desde tenra idade, William era fascinado pelas histórias de grandes guerreiros, que enfrentavam com honra ecoragem os desafios que lhe eram impostos, apreciava especialmente as histórias sobre São Jorge, cuja lenda era reverenciada por todos de sua aldeia, que sempre lembravam delas com riqueza de detalhes. Nos dias ensolarados, William passava horas nos arredores dos campos de treinamento dos guerreiros, imaginando ser um deles, observando com total admiração os movimentos habilidosos e a coragem nos olhos daqueles homens que eram preparados para defender o reino.

No entanto, mesmo com desejo ardente em seu peito de seguir os passos dos heróis que tanto admirava, William enfrentava uma barreira interna que parecia insuperável: a falta de confiança em si mesmo. A coragem que ele contemplava nos outros homens, parecia um dom inatingível, um tesouro guardado em uma fortaleza repleta de obstáculos e dragões horrendos. Ele sempre se viu como mero

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espectador, incapaz de se erguer e se juntar aos guerreiros que ele tanto idolatrava e poder, quem sabe, se igualar a bravura daquele que ele tinha tanta fé!

Com um velho cavalo, William andava pelos campos imaginando a ação ao seu redor, batalhas e lutas que ele jamais poderia vencer. Porém, neste mesmo dia, quando o sol estava se pondo, uma sombra sinistra começou a se espalhar sobre a aldeia como uma névoa negra. Os campos dourados, começaram a ficar brancos e turvos, ecoando murmúrios ansiosos e olhares temerosos dos aldeões. Rumores então começaram a circular sobre uma criatura monstruosa que vagueava pelas redondezas, uma ameaça que pairava sobre aquele lugar. Parecia que finalmente os guerreiros saberiam o porquê de tanto treinamento.

Os homens daquela aldeia foram convocados às pressas para enfrentar a ameaça, que até o momento, estava oculta em meio à escuridão. William, apesar de sentir um chamado profundo para agir, permaneceu imóvel, preso em sua própria hesitação. Ele se sentia impotente diante da magnitude da tarefa que se apresentava, mas em seu íntimo ele sabia que seria capaz de encontrar um pouco de coragem necessária. De cima de seu cavalo, William sussurrava para si mesmo:

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Não vamos temer! São Jorge estará conosco! Ele não nos abandonará agora! Eu sei disso.

Enquanto a aldeia mergulhava cada vez mais na sombra do medo, William lutava contra seus próprios demônios internos no meio daquele campo. Ele sabia que não poderia continuar sendo apenas um mero observador enquanto sua comunidade enfrentava um grande perigo, mas o peso de sua insegurança parecia ainda esmagadora.

Foi então que um vendaval devastador destruiu tudo em seu caminho. William assistia de longe o que acontecia, ainda paralisado e rezando baixinho. Um rugido estrondoso ecoou pelos céus, um grande barulho de asas batendo, surgindo então um dragão colossal, com escamas negras como a noite, lançando fogo e destruição por onde passava. Vultos negros pairavam por detrás das árvores como uma maré negra que engolia tudo em seu caminho. Casas começaram a ser reduzidas a cinzas, os campos começaram a pegar fogo e os guerreiros que tentavam defender a aldeia foram derrubados como grãos de areia diante de uma tempestade. Enquanto o caos se desenrolava ao seu redor, William tremia em cima de seu cavalo, tudo estava desmoronando diante de seus olhos, e ele se viu incapaz de fazer qualquer coisa para detê-lo. Mas então, em meio

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à escuridão e desespero, uma luz de esperança surgiu.

Uma chama de determinação começou a queimar no peito de William, alimentada pelo exemplo de coragem de quem ele tinha tanta fé. Era como se uma voz interior estivesse sussurrando-lhe de volta palavras de encorajamento, incitando-o a agir, a se erguer e enfrentar seus medos, mostrando-lhe do que era capaz. E assim, William tomou uma decisão. Sabia que não podia ficar ali parado e assistir tudo o que conhecia ser destruído. Pegou uma lança derrubada por um guerreiro e cavalgou em direção à aldeia gritando com fé de que era capaz de lutar e de vencer. Ele não estava sozinho!

E foi nesse momento, no calor da batalha, que William começou a entender a verdadeira natureza da coragem. Não era apenas uma questão de força física ou bravura audaciosa, mas sim de uma jornada contra si próprio, contra todos os medos e dúvidas que ele próprio lhe permitia assombrar.

Enquanto a batalha se intensificava e a aldeia tremia sobre a sombra da ameaça iminente de destruição, William lançou com toda força que podia a lança contra a criatura, que por sorte a atingira no peito. O dragão rugiu de dor, mas não se deu por derrotado, virou-se então para o jovem, pronto para retaliar o dano que ele lhe causara. Neste momento, William voltou a si e sentiu o

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desespero se apoderar dele... Mas algo extraordinário aconteceu!

Uma presença familiar, uma aura de coragem e proteção envolveu William como um manto celestial. O jovem olhou ao redor, incrédulo e viu a figura majestosa emergindo das sombras por de trás dele, trajando uma armadura resplandecente e brandindo uma espada de prata reluzente.

Era São Jorge! Seu protetor! Que nunca o abandonara!

O santo guerreiro, cujas façanhas lendárias haviam inspirado William desde a infância estava ali diante dele, irradiando poder e determinação. Por um instante, todas as suas dúvidas e medos se dissiparam. Ele sentiu uma nova força, uma coragem renovava pulsando através de suas veias, como nunca havia sentido antes.

Com a fé inabalável em São Jorge e em sua própria capacidade de enfrentar o mal, William ergueu-se, com os olhos fixos no dragão que se aproximava ferozmente. Ele se viu revestido de uma determinação que não sabia que possuía, pronto para enfrentar a ameaça que estava ali diante dele. Enquanto o dragão avançava, São Jorge lutava ao lado de William, sua presença dava-lhe a coragem que precisava. Em movimentos espelhados, os dois lutaram contra o dragão que rugia de dor a cada golpe. E, cada

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golpe desferido contra a criatura nada mais era que uma declaração de fé, de uma demonstração de que, juntos, eles eram mais fortes do que qualquer adversário que enfrentassem, bastava-lhe a fé.

As pessoas que observavam a batalha, mal podiam acreditar no que viam. Alguns juravam ter visto a imagem de São Jorge irradiando da própria forma de William, como se o santo guerreiro estivesse presente dentro dele, se tornando um só. E assim, William não estava mais sozinho, estava junto com São Jorge. E, quando a batalha chegou ao fim, o dragão foi derrotado, e William sabia que nunca mais seria o mesmo.

A fé que tinha em São Jorge juntamente com sua presença, o fortalecera trazendo à tona tudo o que ele jamais imaginaria ser. Ele, com um sorriso iluminado desceu de seu cavalo, abraçando o pescoço do animal e depois o resto da população que agora estava em volta dele em festa. Todos da aldeia que não acreditavam em William, o jovem franzino e covarde, neste momento puderam testemunhar que ele tinha salvado toda a aldeia com sua coragem e sua fé.

Muito tempo se passou, mas ainda dizem os mais velhos, que William nunca esteve sozinho, que São Jorge sempre o acompanhara desde sua infância e sempre ouviu suas preces, súplicas e orações, guiando-o e protegendo-o em sua

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jornada. A sua fé em São Jorge e em si mesmo, o salvou e salvou também toda sua aldeia, que nunca mais ousaram ter dúvidas de que este Santo faz milagres!

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A grande peleja

Quando criança, Otávio foi criado em uma família católica. Não que isso significasse muita coisa, porque ali ninguém era praticante de verdade, seguiam alguns preceitos e se davam por satisfeitos.

Sua avó tinha duas imagens de santos que fascinavam a criança. Uma delas era São Sebastião. No tal pôster do santo, o sujeito estava com três ou quatro flechas fincadas em seu corpo, o pequeno ficava fascinado com aquilo. Como aquele moço sobreviveu àquelas flechadas? O desenho era fantástico, quase mágico. Aquele homem da imagem tinha um olhar sereno, mirava meio de lado, mas não demonstrava dor ou desespero e o sangue escorria dos ferimentos das flechas.

Passava horas olhando para aquilo, sem entender como aquele sujeito tomou tantas flechadas e tinha se tornado santo. Sua avó falava que era um mártir, alguém que pregava a palavra do senhor e por isso foi atacado e humilhado pelos romanos, mas mesmo assim não renunciou à sua fé.

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Otávio quando pequeno achava que o sofrimento fazia parte da religião, afinal, havia um homem flechado, e, todos rezavam para um crucificado pregado em uma cruz, um instrumento de tortura e dor. Sentia calafrios só de imaginar aqueles grandes pregos enferrujados, penetrando as mãos e pés do infeliz, só via dor e sofrimento naquilo.

A outra imagem que sua avó tinha era mais fascinante, era um homem montado num grande e bonito cavalo, segurando uma enorme lança que estava furando um gigante dragão. O cavalo pisava no réptil alado que cuspia fogo, o cavaleiro tinha um semblante calmo e passivo enfiando a ponta de sua lança na garganta do maldoso. O dragão parecia sucumbir. A imagem deveria ter uma sequência, era o que a criança pensava, o pequeno queria saber que fim levou o cavaleiro e o dragão. Aquela luta ainda prometia reviravoltas, não deveria ser fácil matar um invencível dragão daquela maneira.

Ele dormia pensando nas imagens, aquilo não saia de sua cabeça. Às vezes sonhava com o flechado, outras vezes com a gloriosa luta do cavaleiro com o dragão.

Certa vez, sua avó contoua história, sobre a grande peleja do cavaleiro com o dragão, e de que forma foi que tudo aconteceu.

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São Jorge saiu pelo mundo e passou a caminhar por terras e mares, pregando a palavra do senhor essa era a versão da avó, que adorava fantasiar suas histórias, o pequeno Otávio perguntava:

— Mas como ele andava pelos mares? A pé?

— Claro que não menino, com seu cavalo que era mágico e não afundava!

A avó não se abalava com as curiosas perguntas do jovem.

Um dia chegou à Lua.

O cavalo de São Jorge voava?

Se caminhava sobre a água, claro que voava!

O pequeno se encantava com aquela história de cavaleiro que caminhava sobre as águas e podia chegar na Lua, era uma verdadeira saga medieval, mesmo São Jorge tendo vivido no período romano.

— Na Lua, ele viu uma bela moça que seria levada para um sacrifício. O dragão exigia jovens donzelas para não matar todos que ali moravam.

Morava muita gente na Lua?

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Oxé, a Lua estava entupida de gente naquela época. a avó falava e não escondia os risos de prazer.

— Continuando, o cavaleiro parou em frente à procissão e foi contra aquele sacrifício, então, decidiu matar o dragão. Tentaram convencer ele para não fazer aquilo, afinal o dragão tinha uma armadura impenetrável, mas São Jorge não se abalou.

A avó contava a fábula, sem tirar seus olhos do tricô que manipulava com extrema habilidade, a criança ficava impaciente.

Mas como foi que ele matou o dragão? Era tão feroz e protegido.

— Calma, rapaz, tá querendo atropelar as minhas palavras. Tenha paciência. Você já olhou para a Lua?

— Sim.

— Percebeu que ela está cheia de buracos?

— Sim.

Então, foi a terrível luta do cavaleiro com o dragão. Aquilo, sim, foi uma verdadeira batalha, foi uma poeira lunar se levantando de todos os

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lugares e grandes buracos a cada peleja. Mas, enfim, o cavaleiro conseguiu com o seu cavalo pisar no temível dragão e percebeu que sua boca não tinha proteção, assim enfiou sua lança na garganta da fera, antes deste lhe chamuscar todo. Como naquela imagem pendurada.

— Entendi.

A criança cresceu, e como o tempo percebeu que sua avó aumentava um pouco a história, mas aquela lenda nunca o deixou de encantar. E para perpetuar seu fascínio pelo santo guerreiro começou a torcer pelo Corinthians, cujo padroeiro maior é o grande São Jorge, o matador de dragão. Salve Jorge! Viva o santo guerreiro, viva o Timão!

Hoje o homem, Otávio, é sempre visto nos estádios, vestindo a camisa com o santo guerreiro subjugando o dragão, com o distintivo do alvinegro no peito e sua inseparável bandeira do São Jorge usado a camiseta do Corinthians.

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A medalha de São Jorge

Edmir Saint-Clair

A ansiedade era grande. Não via o filho há tempo demais. Saudade apertada, mais ainda quando faltam poucas horas para revê-lo. Diego não quis que Felipe fosse pegá-lo no aeroporto por conta da falta de previsão de tempo nas esperas entre conexões. Estava vindo de Beijing, depois de cinco anos na China.

Felipe resolveu descansar um pouco, a ansiedade desses últimos dias havia sido desgastante. Deitouse no sofá da sala e adormeceu. Passara a noite acordado, ansioso, pensando na volta do filho. Agora, cedia ao cansaço.

A campainha toca insistentemente. Ele levanta assustado e, ato reflexo, corre para a porta. O antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, marca 8h e 06m da manhã. Abre a porta.

Diego... Dá cá um abraço filhão!

Diego abraça o pai com força e saudade iguais e intensas. Um abraço longo, aconchegante e

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familiar. Pai e filho que se querem tão bem quanto é possível. Surfistas, rubro-negros e cariocas. Um extenso rol de afinidades. Amor.

Felipe pega uma das malas enquanto o filho às outras. Pelo volume da bagagem, veio de vez. Tomara, pensou. Voos internacionais sempre chegam cedo pela manhã. A tempo de aproveitarem e brincar um pouco nas ondas do final do Leblon. Felipe mostra a Diego a prancha que mandou fazer de presente para o filho.

Diego fica emocionado com a recepção e o carinho do pai, e lhe dá mais um daquele demorado e saudoso abraço. Tem orgulho do pai.

A felicidade dos dois é transbordante. Aqueles momentos em que o sorriso não sai do rosto e parece que nunca vai sair. Olhar para o outro alimenta ambos os sorrisos. E o silêncio completa.

Ele é meu filho. Pensou.

Ele é meu pai. Pensou o filho no mesmo exato milésimo daquele silêncio sagrado. Certas emoções são grandes demais, não cabem em palavras.

A felicidade acontecia explicitamente naquele momento, pai e filho desfrutando a plenitude da

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presença do outro. Combinaram que Diego ia dormir um pouco, viajara mais de 30 horas. Estava exausto. Felipe deu um beijo na testa do filho e saiu do quarto.

Diego não acordaria antes das 14h, ele tinha 6 horas pela frente. Seria bom almoçarem em casa para que Diego pudesse acordar com calma e sem pressa. Lembrou-se da feijoada de sábado do Degrau que sempre comeram desde que o filho era pequeno e ainda não gostava. Depois da separação, a feijoada tinha se tornado programa obrigatório dos dois. É a pedida perfeita para hoje. Ele volta até a porta do quarto do filho. Mas não a abre. É só a alegria que não está cabendo.

Uma feijoada e depois uma boa remada no mar de final de tarde de outono. A luz mais bonita do Rio de Janeiro. Seria perfeito se tivéssemos um baseado para fumar antes do surf. Há anos não fumava. Fumar um baseado com o filho tem um significado especial. Não é um consumo de drogas doentio. É um ritual. O preconceito é uma lente mal construída que torna tudo mais feio. Uma lente de enfeiar o mundo.

Havia algum tempo que Felipe não comprava maconha, e tinha perdido o contato com os

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eventuais fornecedores do bairro. Nessa altura do fim de semana, se quisesse fumar um baseado antes da praia com o filho, teria que recorrer à Cruzada. Tudo bem, ali é tranquilo, pensou. Riu sozinho, a última vez que foi na Cruzada comprar um baseado deve ter sido há, pelo menos, uns 25 anos atrás.

Diego voltou três dias antes de completar 30 anos. Um adulto, profissional com formação altamente especializada. Apesar de sempre ter tido um quarto na casa do pai, não importa com quem o pai estivesse casado, só haviam morado juntos nos primeiros dois anos da vida dele. Época da qual, obviamente, o filho não se lembrava. Depois, eram fins de semana, férias e feriados, como todo pai separado. Pouco antes de viajar para a China, passaram onze meses juntos. O maior tempo que passaram até então. Os melhores também.

Felipe mora na Selva de Pedra. A Cruzada fica a um quarteirão. Antes, resolve passar no Degrau e deixar a feijoada reservada para viagem, e garantir que nada saísse errado. A feijoada de sábado do Degrau é concorrida no bairro e costuma acabar cedo. A ideia é, em vez de saírem para comê-la no restaurante, ele a servirá em casa, para que Diego

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acorde com toda calma e a coma na maior preguiça que conseguir.

• * * *

Diego não conseguia parar de se mexer na cama, inquieto. Acordou incomodado, achou que fosse o frio do ar condicionado e se cobriu mais. Olhou a hora no celular, 11 horas da manhã. Dormira apenas 3 horas... isso não costumava acontecer. Geralmente, dormia 6 horas ininterruptas de um sono calmo. Sempre agradecia mentalmente o pai tê-lo introduzido na prática da meditação desde cedo. Atribuía a isso sua calma e equilíbrio. Mas, não naquele momento. Ainda cansado e sem conseguir adormecer novamente, sentia uma sensação estranha, ansiedade. Rolou na cama até o cansaço vencer. Adormeceu. Mas, o sono não seria repousante.

• * * *

Diego acorda sobressaltado de um sono rápido e agitado. Olha o celular, meio-dia. É certo que não conseguiria mais dormir, e ficar na cama seria pior. Atribuiu a angústia à excitação da chegada, ao fuso horário e a tudo junto, pensou. Não estava acostumado a sentir aquela inquietação interna remexendo seu estômago. Não estava acostumado

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a sentir a sensação de ansiedade, sem motivo, sem sentido. Detestava se sentir confuso. Havia algo diferente e errado.

• * * *

Felipe atravessou a rua e seguiu na direção da Cruzada. Quando parou no cruzamento com a Av. Afrânio de Melo Franco, notou que a porta da Delegacia estava movimentada. O sinal abriu e ele atravessou. Chegando esquina oposta, viu Adilson acenando e saindo da Igreja Santos Anjos, ele acenou de volta. São amigos desde pequenos, jogaram juntos no time de futebol de praia e muitas peladas no Condomínio dos Jornalistas. Distanciaram-se quando chegaram à vida adulta.

Hoje, Felipe é arquiteto e Adilson motorista numa empresa estatal. Tem estabilidade no emprego e continua a morar na Cruzada, no apartamento que herdara dos pais. Apesar de ter tido amigos ali, Felipe entrara poucas vezes naquela comunidade.

No Leblon, geralmente, algum desses amigos que moravam lá, pegavam os baseados para os outros que não moravam. Faziam “um voo para os amigos”. Sempre foi assim. A certa altura de uma conversa formal, Felipe pergunta se Adilson poderia pegar uma Doleta. A reação foi

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inesperada. Adilson mostrou-se visivelmente contrariado. Por certo momento, ofendido.

Felipe, sempre achei você um cara legal. Gosto de você... temos mais de 50 anos, nunca mais me peça isso. Nossas vidas são muito diferentes. Vamos guardar as boas lembranças. O tempo passou. Não tenho nada a ver com drogas, nem quero ter.

O constrangimento mútuo foi bastante incomodo. Os dois se conheciam desde pequenos. Naquele instante, uma distância nunca antes percebida deulhes um tapa na cara. A distância que sempre fingimos que não existia, como todos no Leblon, se escancarou ali na esquina da Igreja Santos Anjos.

Deram-se um aperto de mão e Adilson pôs-se a caminhar na direção de sua casa, a Cruzada.

Felipe demorou alguns minutos tentando compreender o que ocorrera. Ficou parado, na esquina, olhando Adilson que já ia vários metros à frente. Sentiu-se envergonhado. Mas, não sabia ao certo por que.

Recuperou-se quando lembrou que Diego o estava esperando. Teria que entrar na Cruzada

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para comprar. Voltou a caminhar, cuidando para não ir nem rápido, nem devagar demais. Normal. Não estava acostumado. Estava se sentindo agoniado, lamentava ter ofendido o amigo, mesmo que involuntariamente.

Em seguida, ouviu dois ou três tiros que ele não soube precisar de que direção vinham. Não sabia que lado deveria proteger. Ouviu sirenes e barulho de carros vindos da direção da delegacia, os tiros aumentaram de intensidade. Percebeu que estava no meio do fogo cruzado. Imediatamente, sentiu algo rasgando e queimando sua barriga, uma dor profunda e o sangue quente jorrando e molhando-lhe os órgãos genitais e as pernas. Caiu com as mãos na barriga e a dor arrancou-lhe um gemido alto. Como se uma flecha de aço em brasa o tivesse penetrado fundo. Arrastou-se até um pilotis mais próximo. Era tudo que podia fazer naquele momento. Era surreal. Choro de crianças e gritos vindos de todas as direções. Os tiros continuavam, era desesperador sentir o sangue escorrer e nenhuma possibilidade de socorro. Pensou no filho e doeu-lhe a alma. Não podia morrer ali. Não hoje. Os tiros continuavam.

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• * * *

Diego adorava os requintes aos quais o pai se dedicava. Um bom café é um deles. Uma cafeteira de Expresso Italiano sempre com dezenas de opções e variedades de grãos de café que ele moía na hora. O café estava excelente, mas a ansiedade aumentara. Virou a xícara impaciente, sem degustar. Arrumou-se e resolveu descer. Diego salta do elevador e da portaria já ouve o barulho de algumas sirenes passando. A sensação de quem tem algo errado é cada vez mais intensa.

Felipe tenta manter a respiração sob controle enquanto pressiona o ferimento que continua sangrando, empoçando na laje da rua. Felipe sente que está enfraquecendo, sente medo. Tenta manter a clareza. Pensar. Os tiros parecem que pararam. Adilson é o primeiro a aparecer na sua frente.

Puta que pariu! Que merda meu véio!, gritou Adilson assustado, enquanto digitava o celular chamando o SAMU. Ali na Cruzada todos tem o número desse telefone. Após a ligação, Adilson agacha-se ao lado de Felipe que já está bastante pálido. O tiro era de grosso calibre e atingira o

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• * * *

lado direito do abdômen. A hemorragia era grande.

Felipe falou com a voz enfraquecida: Adilson, por favor, avisa meu filho.

Você ainda mora no mesmo endereço?

Felipe confirmou com um movimento de cabeça. Percebeu que Adilson estava chorando. Isso não era um bom sinal. Adilson arrancou um pingente do pescoço e partiu a medalha em dois:

Fica com isso na mão e pede pela sua vida. Do jeito que você souber rezar. Pra São Jorge de Ogum. Vou dar a outra metade para o Diego.

Apenas percebeu quando os enfermeiros abriram espaço e o colocaram na maca. Tudo parecia nebuloso e distante. Os sons e vozes tinham eco. Os paramédicos fizeram alguns procedimentos ali mesmo. Ainda deu tempo de reforçar o pedido a Adilson. Felipe apertou a metade da medalha nas mãos e começou a rezar do jeito que ainda se lembrava. Ossolavancos da maca sendo encaixada na ambulância fazem com que a dor volte intensa, mas ele solta apenas um leve gemido. Ele percebe que os paramédicos estão sérios e concentrados.

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Apesar do tubo de oxigênio, sua respiração está acelerada e irregular. Ele tenta ficar acordado, mas as vozes e os ruídos se tornam cada vez mais distantes. Aperta a metade da medalha e faz força para coordenar os pensamentos tentando rezar. Não consegue mais manter a consciência. Sente literalmente a vida se esvaindo até desfalecer.

• * * *

Em poucos minutos vários moradores já estavam na rua, é sempre assim quando acontece alguma coisa extraordinária nessa parte do Leblon. A Selva de Pedra tem um jeito próprio de ser. Diego continuava cada vez mais ansioso e angustiado. Tentando entender algo daquela agitação, recebe uma explicação do porteiro do seu prédio. Troca de tiros na Cruzada com um baleado grave.

Diego sentiu um calafrio percorrer sua coluna como um bisturi gelado cortando suas costas. Percebeu um homem caminhando a passos rápidos vindo da praça na direção de sua portaria e o reconhece. É Adilson, amigo do pai que jogou futebol de praia com ele e morava na... Cruzada São Sebastião!

Sentiu as pernas se curvarem sem forças. Não podia ser., mas, quanto mais Adilson chegava

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perto, mais seu olhar deixava claro quem era o baleado. Mas, não fazia sentido!

Adilson conhecera Diego desde que este nascera. Chegou perto e o tirou da presença de outras pessoas.

Diego, seu pai foi baleado. Está indo para o Hospital Miguel Couto e pediu para você ir para lá. Eu vou com você. Mas, antes ele pediu para você pegar os documentos dele que estão na mesinha de cabeceira.

É grave? Perguntou Diego.

Estava sangrando muito, os paramédicos não falaram nada.

Adilson toca o ombro de Diego antes que ele saísse em direção à portaria para pegar os documentos. Tira a outra metade da medalha de São Jorge de Ogum e a entrega a Diego.

Fica com isso na mão e pede pela vida do seu pai. Reza do jeito que você souber rezar. Para São Jorge de Ogum. A outra metade está com o Felipe. Agora vai, começa a rezar desde agora.

Diego está em estado de choque e procede como um robô, agindo mecanicamente. Ele não sabe

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rezar. Nunca aprendeu, nunca o ensinaram. Mas, ele pede a São Jorge de Ogum, com todas as forças e com a fé que nunca soubera ter. O elevador chega. Ele entra, toca o número de seu andar e volta para sua reza improvisada, mas cheia de fé.

Fecha os olhos e imagina o pai sorrindo como há algumas horas atrás. Consegue sentir literalmente o abraço que se deram. Sua alma se acalmou, estranhamente, se acalmou. Quando abriu os olhos, ainda estava no segundo de dez andares. Parecia haver passado muito mais tempo. Abriu a mão e a metade da medalha havia marcado sua palma, tamanha a força com a qual a apertara.

O elevador chegou ao andar e ele abriu a porta. Quando saiu da cabine e olhou para a porta do apartamento de seu pai tomou um sustou que quase o derrubou. Suas malas estavam na porta.

Ele se olhou e estava com a mesma roupa de quando chegara pela manhã. O que era aquilo?

A única coisa que ainda estava ali era a metade da medalha, em sua mão marcada. Mas, não tinha tempo a perder, depois pensaria naquilo. Seu pai estava morrendo no hospital e precisava dele.

Buscou a chave do apartamento no bolso e não a encontrou. As suas malas ali na porta eram desconcertantes. Por impulso, tocou a campainha

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e ouviu movimentos vindos do outro lado da porta. Tocou de novo. Ouviu o barulho da fechadura sendo aberta e, nesses infinitos milésimos de segundos, desejou o impossível. A porta se abriu e Felipe aparece com a cara mais assustada que ele já havia visto. Os dois se abraçam e choram. Cada um com a sua metade da medalha de São Jorge de Ogum na mão.

O antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, marca 8h e 06m daquela manhã, pela segunda vez no mesmo dia.

Apenas abriram as mãos, ambos, e mostraram para o outro a sua metade da medalha. Não falaram nada. Nunca mais tocaram no assunto. Tinham medo. Nunca mais encontraram ou souberam notícias do Adilson.

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Matile Facó

Guardião da Lua

Nas vielas estreitas de uma cidade de contrastes, onde os sinos das igrejas entoam cânticos ao lado dos atabaques dos terreiros, São Jorge mantinha sua presença firme e inabalável. Era o guardião da lua, a quem atribuíam a visão das estrelas mais distantes e o conhecimento dos segredos noturnos.

Numa noite de abril, quando as ruas exalavam o perfume das flores oferecidas em homenagem ao santo, uma senhora de longos cabelos brancos e olhos cintilantes caminhava em direção à igreja.

Dona Maria, a matriarca da comunidade, carregava nas mãos a fé que iluminava seu caminho, como uma vela acesa na escuridão.

São Jorge, imponente em sua estátua que adornava a entrada do templo, parecia sorrir para Dona Maria, reconhecendo-a como uma devota de coração sincero. Enquanto a cidade dormia, ele era o guardião silencioso das almas, o protetor que velava pelos sonhos e anseios de cada habitante.

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Ao adentrar a igreja, Dona Maria acendeu uma vela em homenagem a São Jorge, cuja imagem refletia a luz dançante das chamas. A senhora, com sua voz suave e preces memorizadas, compartilhava suas histórias com o santo, como se ele fosse um confidente que entendia os segredos mais profundos do seu coração.

A celebração do santo guerreiro extrapolava os limites dos templos religiosos e se estendia pelos recantos mais inusitados da cidade. Nos terreiros, os atabaques ecoavam em harmonia com os cânticos, reverenciando São Jorge como um guardião dos rituais que conectavam o espiritual ao terreno.

Enquanto Dona Maria orava, nos estádios de futebol, os torcedores entoavam cânticos em homenagem ao seu santo padroeiro, buscando sua bênção para as partidas e vitórias. O sincretismo religioso se manifestava nas ruas, nas casas, nos barese nas quadras de escolas de samba, onde São Jorge era um elo que unia diferentes crenças e tradições.

A lua, alta no céu, testemunhava a devoção que transcendia as fronteiras do espaço e do tempo. São Jorge, venerado no Brasil em 23 de abril, era mais que um santo popular; era um símbolo de proteção que permeava a vida cotidiana, como

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uma sombra benevolente que afastava os dragões da maldade.

Enquanto Dona Maria terminava suas preces, a estátua de São Jorge parecia ganhar vida, como se os olhos do santo, esculpidos em pedra, agradecessem a dedicação daquela devota fiel. Era o início de uma noite onde o guardião da lua velaria pelos sonhos da cidade, protegendo-a com a lâmina da fé contra as adversidades que o amanhecer poderia trazer.

Na manhã seguinte, o sol despontava no horizonte, lançando seus raios dourados sobre a cidade que despertava lentamente. Nas ruas, o murmúrio das preces noturnas ainda pairava no ar, como uma melodia suave entrelaçada com o canto dos pássaros que anunciavam o novo dia.

Dona Maria, envelhecida pela sabedoria e pela devoção, retornava à igreja para agradecer a São Jorge pelo amparo noturno. A vela que ela acendera na noite anterior agora era substituída por uma nova, simbolizando a continuidade da fé e da proteção que o santo proporcionava.

Ao redor da estátua de São Jorge, outras pessoas se reuniam, cada uma com sua história e suas súplicas. O guardião da lua era o confidente

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silencioso para muitos, um símbolo de força e coragem diante dos desafios cotidianos.

Naquele dia, a cidade se vestia de festa em honra a São Jorge. Nos terreiros, as danças ganhavam ritmo, reverenciando o santo que, segundo a crença popular, protegia contra malefícios e conspirações. O sincretismo religioso manifestavase em cores vibrantes e cânticos que ecoavam pelos becos e vielas.

Nos estádios de futebol, os torcedores entoavam seus hinos com fervor renovado, invocando a bênção de São Jorge para os desafios que se apresentavam em campo. Ele era o patrono que, além de guardar a lua, era invocado para abençoar as disputas esportivas, criando uma ponte entre a espiritualidade e a paixão terrena.

Enquanto isso, nas quadras de escolas de samba, os ritmistas marcavam o compasso da devoção, entrelaçando-se com os passos graciosos dos dançarinos. São Jorge era o fio condutor que unia os movimentos, transformando a apresentação numa celebração vibrante e cheia de significado.

Em meio à diversidade de manifestações, São Jorge permanecia como o guardião que abraçava todas as vertentes da vida naquela cidade. A lua,

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refletindo a luz do sol, era testemunha silenciosa de cada gesto de devoção e gratidão.

Dona Maria, após mais um dia de fervorosas preces e agradecimentos, sentiu-se envolvida por uma sensação de paz. O guardião da lua, cuja imagem pairava sobre o altar da igreja, era para ela um farol de esperança que iluminava os caminhos escuros da existência.

E assim, São Jorge seguia sendo o elo invisível que conectava cada aspecto da vida naquela cidade diversa. Na quietude da noite, sua imagem esculpida olhava para o horizonte, como se a lua fosse um portal mágico que transcendia as fronteiras do divino e do terreno. A cidade, sob sua proteção, dormia em paz, aguardando o retorno da lua e o ciclo renovado de devoção ao seu guardião.

No terceiro dia de celebração a São Jorge, acidade despertou envolta na aura de devoção. O sol, em sua jornada pelo céu, projetava uma luz dourada sobre a estátua do santo, que permanecia como um guardião impassível. As ruas, agora repletas de fiéis, ecoavam com cânticos e murmúrios de preces.

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Dona Maria, guiada por uma devoção incansável, retornou à igreja com uma oferenda especial. Nas mãos, ela carregava uma espada de madeira, símbolo da bravura que atribuíam a São Jorge. A vela acesa lançava sombras dançantes sobre a estátua, criando uma atmosfera que oscilava entre o sagrado e o misterioso.

Ao entardecer, nos terreiros, a dança tornava-se uma expressão viva da conexão entre o divino e o humano. Os atabaques, como pulsos ritmados, reverenciavam São Jorge, enquanto os dançarinos moviam-se em harmonia, honrando o guardião da lua com seus passos marcados.

Nos estádios de futebol, os torcedores vestiam-se com as cores simbólicas do santo. Bandeiras e estandartes exibiam a imagem de São Jorge montado em seu cavalo branco, como um guerreiro que liderava as batalhas em nome da fé e da coragem.

Nas quadras de escolas de samba, os ensaios tomavam um ritmo mais intenso. Os passistas, em trajes deslumbrantes, moviam-se ao som dos tambores, entrelaçando a mitologia de São Jorge com a riqueza cultural do carnaval. Era uma homenagem que transcendia fronteiras, fundindo tradições numa dança que narrava a força do guardião da lua.

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Enquanto a noite avançava, a cidade transformavase num palco iluminado pela devoção. O sincretismo religioso mostrava sua face mais resplandecente, pois São Jorge era o elo que conectava os diferentes credos e práticas, formando uma tapeçaria rica e diversa.

Dona Maria, no silêncio da igreja, depositou a espada de madeira aos pés da estátua de São Jorge. Era um gesto simbólico, uma forma de agradecimento pelo amparo e proteção que o santo oferecia à cidade. O reflexo da vela tremulava nos olhos de Dona Maria, misturandose com a luz da lua que espiava pelas frestas das janelas.

O terceiro dia de celebração chegava ao fim, mas a devoção a São Jorge continuava a ecoar nas mentes e corações da cidade. Era como se o guardião da lua, embora imóvel em sua imagem esculpida, pulsasse em cada respiração, lembrando a todos que a fé e a coragem eram armas poderosas contra os dragões da vida.

E assim, sob a tutela da lua e a proteção de São Jorge, a cidade seguia sua jornada, envolta na luz da devoção que, como um fio de prata, ligava cada um de seus habitantes ao guardião que velava na noite estrelada.

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No quarto dia de celebração, acidade pulsava com uma energia renovada. O sol, radiante no céu, parecia se unir à reverência a São Jorge, lançando sua luz sobre os fiéis que inundavam as ruas. Nas igrejas, o aroma de incenso misturava-se com o cântico dos devotos, criando uma atmosfera sacra.

Dona Maria, firme em sua devoção, liderava uma procissão pelas ruas estreitas. A espada de madeira, símbolo da coragem do santo guerreiro, era erguida como uma bandeira de fé. Os fiéis acompanhavam, entoando hinos em louvor a São Jorge, cuja imagem era carregada com reverência no centro da procissão.

Nos terreiros, a celebração ganhava contornos vibrantes. Os atabaques ecoavam em ritmos crescentes, como batidas do coração que reverenciavam o guardião da lua. Os dançarinos, em transe, moviam-se ao som dos tambores, conectando-se espiritualmente com a divindade que protegia as noites da cidade.

Enquanto isso, nos estádios de futebol, a paixão pelo santo se manifestava de maneira intensa. Torcedores exibiam bandeiras e adereços com a imagem de São Jorge, buscando sua proteção para as partidas que se desenrolavam nos gramados. A devoção, agora expressa em gritos e cantos, era

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uma manifestação do sincretismo que permeava a vida na cidade.

Nas quadras de escolas de samba, os ensaios alcançavam seu ápice. Os passistas, com suas coreografias elaboradas, prestavam homenagem a São Jorge, incorporando a figura do guerreiro celestial em seus movimentos graciosos. A fusão da mitologia com a celebração carnavalesca criava uma atmosfera única e envolvente.

Ao entardecer, Dona Maria conduziu a procissão de volta à igreja. A estátua de São Jorge, agora adornada com flores e fitas coloridas, emanava uma presença majestosa. A lua, no horizonte, começava sua ascensão, como se testemunhasse a festividade que se desenrolava em honra ao seu guardião.

Na quietude da igreja, as preces se misturavam ao crepitar das velas. Dona Maria, ao lado da imagem de São Jorge, agradecia pela proteção concedida e renovava seus votos de devoção. A espada de madeira, depositada aos pés do santo, agora era um símbolo de confiança nas batalhas que a vida poderia trazer.

O quarto dia de celebração chegava ao fim, mas a cidade permanecia envolta na magia de São Jorge. A lua, agora no auge de sua luminosidade, parecia

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sorrir sobre a comunidade que, unida pela devoção, encontrava forças para enfrentar os desafios cotidianos.

E assim, sob a guarda da lua e a proteção de São Jorge, a cidade seguia sua jornada. A celebração continuava a tecer os fios invisíveis que conectavam cada canto da urbe ao guardião que velava durante as noites estreladas. O quarto dia, marcado pela intensidade das manifestações, cedia espaço à quietude noturna, onde as preces e a devoção eram sussurradas nos cantos mais recônditos da cidade.

No quinto e último dia da festividade em honra a São Jorge, a cidade vibrava com uma intensidade singular. O sol, em seu ocaso, pintava o céu com tons de laranja e rosa, como se testemunhasse a grandiosidade da celebração que se despediria sob sua luz derradeira.

Dona Maria, acompanhada pelos fiéis que nutriam a mesma devoção, retornou à igreja para a cerimônia final. A estátua de São Jorge, agora adornada com as oferendas dos devotos, emanava uma presença que transcendia o espaço sagrado. As velas acesas criavam uma atmosfera de solenidade e gratidão.

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Na última procissão pelas ruas, a espada de madeira erguida por Dona Maria parecia cortar o ar, simbolizando a coragem e a fé que os habitantes depositavam no santo guerreiro. Os cânticos ecoavam como um coro uníssono, celebrando a conexão entre o divino e o humano, entre a cidade e seu guardião.

Nos terreiros, a energia pulsante dos atabaques e das danças alcançava seu ápice. São Jorge era reverenciado como o guardião da lua, aquele que velava pelas noites e afastava os dragões da escuridão. Cada passo, cada batida de tambor, era uma prece que ecoava na vastidão da noite.

Nos estádios de futebol, os torcedores exibiam seus últimos votos de devoção ao santo protetor. Bandeiras tremulavam como estandartes de fé, e os gritos entusiasmados reverberavam nas arquibancadas. A partida, além de uma competição esportiva, tornara-se um tributo à coragem e à perseverança.

Nas quadras de escolas de samba, o desfile final ganhava contornos épicos. Os passistas, agora mais enérgicos do que nunca, representavam a união da cidade em torno de São Jorge. O som dos tambores ecoava como o coração pulsante da metrópole, imbuído pela magia da celebração.

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Ao final da procissão, Dona Maria, com lágrimas de gratidão nos olhos, depositou a espada de madeira aos pés da estátua de São Jorge. Era o gesto simbólico de encerramento, um ato que marcava o término da festividade e o início de um novo ciclo sob a proteção do guardião da lua.

A cidade, agora iluminada pela luz da lua cheia, despediu-se da celebração com um silêncio reverente. A estátua de São Jorge, com sua espada erguida e o olhar fixo no horizonte, parecia abençoar cada rua e cada morador. O sincretismo religioso, tão presente na vida cotidiana, revelavase como a essência que unia as diferentes faces da cidade.

E assim, sob a luminosidade da lua e a proteção de São Jorge, a metrópole adormecia em paz. O quinto dia, repleto de devoção e celebração, transformara-se numa memória que ecoaria pelos anos vindouros. A cidade, agora guardiã da lua, continuaria sua jornada sob o olhar benevolente de São Jorge, que, montado em seu cavalo branco, permanecia como o símbolo imortal da coragem que iluminava as noites estreladas.

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Ícaro e Ewá

Carlos Henrique dos Santos

Invariavelmente, ao longo de alguns anos, era ao acordar que ela mais sentia a tristeza tomando conta de seu corpo e seus pensamentos. Abrir os olhos e ser golpeada pela luz forte que entrava pela janela trazia à sua memória a iluminação da sala de parto. Ali deitada, o que mais a incomodava não era a dor e sim a forte claridade que incidia sobre ela, quase cegando-a com tanta luz artificial. Não conseguia manter os olhos abertos por mais que alguns instantes e via-se obrigada a piscar insistentemente.

No decorrer dos últimos anos, ela acreditou que esse foi um dos motivos, se não o principal, que a fez esquecer, ou encobrir, as dores do parto em si. Mais do que contrações tendo origem em seu útero, passando por abdômen e percorrendo suas costas, quadril e coxas como um novelo de linha sendo desenrolado lentamente, foi nas luzes que ela se concentrou.

Sem querer, sem saber o porquê, sem entender a razão, desconhecendo os motivos e apenas olhando para o teto foi que ela de maneira inconsciente desviou a atenção do que acontecia com seu corpo e a concentrou em sua mente. Seus

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pensamentos então a guiaram em direção a um passado bastante recente.

Sua lembrança das aulas de português, com o professor lendo uma história que falava de um jovem que podia voar. Enquanto lia o professor fazia comentários empolgados, dizia que as asas de cera e penas feitas pelo pai do jovem eram uma metáfora para o poder da liberdade. Um poder tênue e fugaz (palavras difíceis e que o professor rabiscava no quadro enquanto explicava seus sentidos, algo que pode ser fraco – o primeiro - ou passageiro – o segundo - como a vida, ele arrematava e sorria).

Então prosseguia dizendo que assim também era com a juventude, algo que passa, e passa rápido e de maneira intensa, sendo também fugaz. Comentava que a mocidade é marcada muitas vezespela ingenuidade e por isso o jovem se sentiu um tipo de deus, não obedeceu aos conselhos dados pelo pai e, ao voar perto demais do sol com suas asas de cera, teve um castigo e que esse era um tipo de lição, pois é preciso sabermos lidar com as liberdades, com os poderes que temos.

Deitada na sala de parto era nisso que ela pensava ao lembrar do pai do seu filho, sentiu que a luz que aos poucos embaçava sua visão era também fugaz, que entre o dia e a noite, a vida e a morte, há algo de tênue. Então teve medo, receou que a

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criança nascesse morta, pensou em chorar mas sentiu uma pontada forte, algo como um chute, o último dado por ele em sua barriga, então a sala foi invadida por um som agudo, forte, estridente, era seu filho, ele que chorava, que dizia “oi” ao mundo em sua língua ainda incompreensível, ele que, a seu modo, dizia “oi” para sua mãe, era ele nos braços da médica, próximo da luz e que chegava aos seus braços, sujo de sangue, gritando, a espernear, entre a luz do teto e seus olhos ela o viu, ainda sombra, ainda vulto, ainda informe, ainda som, ainda um ente sem nome e foi assim, próximo da luz a se debater feito Ícaro ao redor do sol, que enfim ela o enxergou integralmente ele, seu filho, seu bebê, seu Ícaro, seu pequeno deus tênue e fugaz.

Tinha apenas dezesseis anos quando se tornou mãe. No princípio tudo era muito difícil, não sabia ao certo como agir, pensava que fosse possível ser guiada por algo como um instinto, o famoso instinto materno, só que isso não funcionava com ela. Pedia ajuda constantemente para a própria mãe, mas o problema é que esta era ocupada, saía de segunda a sábado para trabalhar e o máximo que podia era auxiliá-la à noite.

Passava então os dias sozinha com o filho e isso, de início, a sufocava, lentamente as horas iam depositando sobre ela um peso atroz, sentia um esgotamento como nunca antes sentira. Pensava

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que não conseguiria aguentar por muito mais tempo antes de surtar, mas aguantou. Aos poucos foi descobrindo em si mesma formas de lidar com o filho, com a rotina, com a sobrevivência (sua e dele).

Decidiu retomar as visitas ao candomblé, que costumava frequentar com a mãe na infância, e de onde vinha se afastando desde o início da adolescência. Sentia-se em falta consigo mesma e procurou reparar esse desvio com mais compromisso. Ouvia atentamente os conselhos de sua mãe de santo e, procurando novamente se conectar com sua orixá, Ewá, listou três potencialidades que possuía e que buscava expandir, por isso manteve os estudos de casa no decorrer da licença maternidade, entregando pontualmente as avaliações na escola.

Aproveitou o curto tempo livre entre um sono e outro do bebê e fez um curso online, aprendendo técnicas de fotografia, algo que era um desejo antigo e que no entanto era sempre jogado para depois, como se houvesse sempre mais e mais tempo disponível, afinal, ela era jovem e a vida longa. Decidiu também que não permitiria que seu filho tivesse o mesmo destino de tantos jovens do bairro e que por ele lutaria vigorosamente. Pedia forças e proteção a São Jorge e contava sempre com a ajuda do santo no enfrentamento dos constantes desafios que a vida lhe oferecia.

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A chegada do pequeno Ícaro acarretou algumas transformações em seu íntimo e, a partir de então, sua forma de olhar e, principalmente, de ver o mundo foi sendo alterada. O que antes era prioridade agora pouco lhe interessava, acreditava que era preciso mudar, pois sendo mãe havia a partir de agora um outro ser que dependia dela e, ao contrário do que pensava antes, ela era a principal responsável pelo próprio destino e cada vez mais tinha certeza de que tomar as decisões sobre a própria vida se tornaria uma constante e isso lhe parecia irreversível.

Ícaro foi crescendo saudável, um menino um pouco impaciente, mas bastante carinhoso e que dificilmente ficava doente. Ela acreditava que a falta de uma referência masculina na vida do menino poderia ser a causa da sua irritabilidade, já que mãe e avó, talvez por medo de frustrar ainda mais a criança, de tirar dela o pouco que possuía, acabavam se deixando levar por um sentimento de condescendência e, dessa forma, permitiam que ele exercesse, algumas vezes, sua vontade sobre a delas. O problema surgia quando essas vontades lhe eram negadas, ocasionando assim pirraças intensas, que por vezes surtiam efeitos imprevisíveis, como uma tv quebrada por um tênis arremessado e o vidro trincado de uma janela.

Essas ações um tanto destemperadas e até mesmo violentas do menino ligavam um sinal de alerta na

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mãe, já que traziam à sua memória lembranças do pai do jovem que ela tentava manter soterradas.

Ícaro não conheceu o pai e às vezes demonstrava certa curiosidade sobre isso, fazendo perguntas, querendo saber mais sobre suas origens. Porém a mãe não abria espaço para esse tipo de diálogo, dizia apenas que o pai dele havia morrido e botava um ponto final na conversa. O que ela não contava era a causa da morte e muito menos a forma como essa se deu.

O pai de Ícaro, um rapaz trabalhador, que frequentava a igreja e não tinha vícios, mas que, após o falecimento da mãe, resolveu mudar radicalmente de vida e entrar para o tráfico. Foi um pouco antes dessa guinada que ela engravidou.

Depois da mudança que o acometeu. ela ainda tentou convencê-lo a voltar à antiga vida, sem sucesso. Ele se dizia frustrado e enraivecido com tudo que vinha acontecendo, culpava-se por não ter sido capaz de ajudar a mãe, se sentia explorado mas não vítima e queria viver de forma diferente agora, pois seguir o caminho justo e reto pregado pelos pastores não foi capaz de ajudá-lo a manter sua mãe viva:

De que adiantou trabalhar tanto desde os doze anos se nem consegui comprar os remédios que ela tanto precisava?

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Ele indagava num misto de raiva e melancolia que doía fundo nela. Concordava em parte com os argumentos, mas sabia que a escolha dele não era a melhor e, ao saber-se grávida, teve ainda mais medo de onde todo aquele rancor o levaria.

Separaram-se alguns meses após a descoberta da gravidez e poucas semanas depois, num confronto com a polícia, ele foi morto. Ela estava com sete meses. Mesmo tomada por tristeza e indignação decidiu que seu filho não teria uma vida igual a sua, marcada por privações, mágoas e frustrações. Nessas horas ela voltava a se apegar a seu santo protetor e pedia discernimento para poder cuidar do filho que carregava no ventre.

Decidiu que finalizaria o curso de fotografia e assim o fez. Quando Ícaro, aos sete anos, pediu para treinar futebol num clube do bairro ela não só o matriculou como se tornou sua primeira e principal incentivadora. Anos depois, numa das primeiras entrevistas dadas por ele já como atleta profissional, foi a ela que dedicou o título conquistado:

Esse título é para a minha mãe, minha Ewá, aquela que sempre esteve ao meu lado e que, mesmo nos piores momentos, parecia enxergar meu futuro, não me deixando desistir e me fazendo acreditar que coisas boas estavam esperando por mim. Mãe, eu te amo, é nosso!!

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Então erguia o troféu, que era iluminado pela luz do sol, e sorria feliz para a câmera.

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O Sancho Pança de São Jorge

Olivaldo Júnior

GloriosoSãoJorge,emnomedeDeus, estendeivossoescudoevossaspoderosasarmas, defendendo-mecomvossaforçaegrandeza

(TrechodaOraçãodeSãoJorge)

Parte I: Lua de São Jorge

Eu ainda era menino, mas já gostava da lua. Sim, da lua, onde, você sabe, só moram mesmo São Jorge e o famoso dragão,numa eterna e revigorada luta entre o santo católico e o dragão da maldade. Bem, foi assim que eu aprendi. Gosto de Jorge, das músicas que falam dele, ou nele, enfim, de toda sua simbologia. Não sabia muita coisa quando, menino, pensava que a lua era mesmo feita de queijo, como aquelas representações que os desenhos animados à moda de Walt Disney e Cia. adoram fazer. Não, eu nem sabia de Dom Quixote, também cavaleiro, e de Sancho Pança, seu fiel escudeiro, mas, se soubesse, ia querer ser o Sancho. Sou, não sei se você sabe disso, gorducho igual ao Sancho, com uma pancinha que

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foi gerada ainda quando eu estava lá no dentro, no ventre da mãe. Água mole, em vida dura, tanto bate até que fura! E, lá nos primórdios, furei a fila, fui gerado e, branquinho, de olhos e cabelos pretos, nasci, vim a essa luz.

Filho único até os seis anos de idade, mais ou menos, apesar de ter os primos perto de mim, brincava muito sozinho também. E, nessas invencionices, longe de ser um Lucas Silva e Silva, da famosa série da TV Cultura, sucesso do início da década de 1990, também ficava pensando em como seria se a gente morasse mesmo na lua. “Lua de São Jorge”, querida canção de Caetano, já era também querida por mim, que, acostumado pela mãe a ouvir rádio, sempre que a ouvia, ficava deslumbrado com o que eu nem sabia direito o que era. Poesia. Pois é, só mesmo Caetano para expor naquela letra as comparações e metáforas, simples e, ao mesmo tempo, cheias de um encanto que, um dia, eu viria mesmo a vislumbrar. Vislumbre. Talvez fosse mesmo isso o que eu sentia pela lua, por São Jorge e até mesmo pelo dragão, que, vilão da história, não era muito bem considerado. Hoje, dizem, ele entrou para o DA (Dragões Anônimos).

O caso é que, numa de minhas ideias, eu inventava um foguete, coisa mais clássica, e, numa noite em que o céu inspirava o que eu viria a fazer no futuro (mais uma vez, poesia), falei para a mãe que,

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mesmo não sendo Neil Armstrong, eu chegaria à lua. Sim, ao satélite natural da Terra, cheia de poetas que, como bem disse Bilac, ouvem estrelas, mas, além delas, também, é claro, a lua. Lua, que chega a ser responsável por muitos voos da cegonha ao redor da Terra, deixando bebês desejados ou não, mas, muitas vezes, inspirados por ela, para mães que ainda querem ter seu filho, se possível, com nome de santo.

Jorge, lá de cima, me vendo fazer meu vão foguete de caixa vazia de papelão, garrafas e papéis, laminados, ou não, deve ter pensado que eu era louco. E eu era mesmo. Louco para ser companheiro do santo que ficou mais popular na Idade Média, quando soldados cristãos rumaram a Jerusalém com o intuito de conquistar a chamada Terra Santa. Eu vi num site, pode crer. Nascido em Capadócia, na Turquia, decapitado por se negar a perseguir e a matar cristãos, virou o mártir que conhecemos a partir do século 8, na Espanha, com as cruzadas, sendo que, na Espanha, também surgiram Sancho e Dom Quixote.

Cervantes não sabia, mas eu seria um apaixonado por Sancho Pança, antes mesmo de eu saber que ele tinha surgido no famoso romance do enfrentador de moinhos de vento como se fossem gigantes. Ou dragões, pouco importa, vilões.

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Parte II: A ida do poeta à lua

Animado com a construção do meu singelo foguete, nem vi o tempo passar naquela tarde acalorada de sábado. A mãe, só de soslaio, olhando o filho absorto em suas criações. Ele nem sabia que seria poeta, mas, no fundo, ele já era. Ninguém se transforma em poeta, nem em cavaleiro, embora se possa desejar estudar para tal e se aprimorar para cumprir essas funções. Porém, em certa medida, acredito que se nasça com essas estrelas, de trovadores a cavaleiros.

Mãe, vem ver o meu foguete! — e a mãe, largando um pouco as panelas, foi ver a obraprima que o filho tinha feito no quintal.

Ficou lindo, meu filho! Uma obra de arte! Muito bonito! e eu, do alto de minha pequenez, fiquei orgulhoso de mim. Até a noite parecia saber de meu intento, estava estrelada, com a lua bem cheia, no alto do céu. Plena.

— Hoje ele vai voar, mãe! A senhora vai ver! — e a mãe, já voltando ao fogão, fez que sim com a cabeça, pensando, talvez, que seu filho era louco, e era louco mesmo. — Um foguete!...

Então, com a consciência dos grandes astronautas, sentei-me ao volante da nave, que, num golpe de fogo, como nos vídeos da NASA, chegou ao azul!... Ah, como era linda, essa Terra vista de cima! Realmente, era azul, e São Jorge, glorioso,

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sabia o que era ter essa vista, todo dia, da lua! Da lua, que, embora não fosse de queijo, guardava o dragão e o seu cavaleiro, o nosso São Jorge, cultivado no peito de quem é carioca, de quem é do Corinthians e de todo esse povo!

Pousando, avistei as crateras que, da Terra, eram mínimas, mas, na lua, eram todas enormes, imensas demais. Saltei, mas não senti os efeitos da falta de gravidade. Talvez, porque não fosse possível alguém chegar mesmo à lua num foguete daqueles, ou, quem sabe, porque a tal ausência de peso fosse mesmo ficção, algo feito para espantar a curiosidade de outros que, como eu, engenhosos demais, poderiam também construir um foguete e ir àquela que tanto querem por perto os navegantes e loucos, poetas e amantes, lavradores e todos que a lua eleva.

Parte III: O ajudante de Jorge

Quem vem lá, que não conheço? e eu, ainda meio confuso pela chegada, olhei para cima e dei de cara com o famoso santo da Capadócia.

— Sou, sou, sou eu, São Jorge, seu filho, quer dizer, seu criado — e o santo, desconfiado daquilo, sem receber quase nunca, olhou pra mim e, com jeito de quem não quer destratar, me convidou a

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sentar-me, apeando e, em seguida, sentando-se junto a mim, ao meu lado.

— Olha, menino, como é mesmo seu nome?

— Me chamo Junior, São Jorge, e quero ser seu ajudante. Caçar o dragão com o senhor e fazer de mim seu criado. Seu Sancho Pança, São Jorge! — e o pobre São Jorge se riu.

Pretensioso, o rapaz!

— Não sou, não sou, meu santinho, é que eu queria ser Sancho, o que acompanha o Quixote, o senhor deve saber como é que é essa história — ante um São Jorge sem crer no que eu estava dizendo, que ele não tinha noção de como eu tinha chegado lá. Essa gente!...

Pois bem, menino, pois bem, a gente pode acertar uma coisinha já, já. Preciso mesmo ir atrás do tal dragão de que fala. Soube que anda metido com um pessoal de Saturno, ou de lá de Vênus, não sei, um pessoal que planeja tomar a lua pra si e eu, bem feliz, olhando pra ele, já me preparava pra ganhar meu elmo e já sair em viagem!

— Tome aqui, vista o elmo, deve ser do tamanho de uma cabeça inventiva como a que ainda tem. Que não perca a cabeça, quando ficar maior!

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E, vestindo meu elmo, veio vindo até mim um cavalo menor, tipo pônei, eu acho, no qual Jorge me ajudou a montar. E, uma vez já montado, pusme enfim a ir ao lado de um cavaleiro imponente, meu Dom Quixote da lua, que, para mim, é solar!

Não, não havia sol, mas sei que andamos muito, e São Jorge, nocaminho, foi me contando do tempo em que os astronautas da América do Norte estiveram lá. “Muitos não acreditam nisso ainda”, dizia Jorge para mim, e se ria, feliz. Eu, por minha vez, me ria também.

O tal dragão procurado, por fim, o encontramos de caso com uma senhora dragoa, à beira de um córrego de poeira de estrelas, nada romântico, mas, para a lua, era o que havia. Sem jeito, o dragão tratou de empinar-se, endireitando as costelas, nada de fogo nas ventas, que ele não era mais disso. Tratou logo de explicar em dragonês para São Jorge a questão de ele estar envolvido com o pessoal de Saturno, que ele falou ser de Vênus, coisas que a lua tem de suas.

Cospe um foguinho qualquer, Dom Juan, para o menino gostar! e o dragão, cujo nome, pasme, era esse mesmo, puxou de um ar que não tinha e cuspiu fogo das ventas, só pra me ver feliz. E eu fiquei, eu fiquei bem feliz com as fagulhas. Obrigado, meu caro! Volte lá para a Anita, essa dragoa que veio para lhe fazer companhia.

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E Jorge e eu, nos cavalos, voltamos para o ponto onde estava meu foguete sem nexo, mas cheio de arte, numa esquina qualquer sem esquinas da tal paisagem lunar. O escuro breu. Parte IV: A lua que me deram

Não sei como voltei, mas acordei ao lado de meu foguete, os primeiros raios de sol sobre a cara, a mãe me perguntando o que é que tinha ocorrido.

Já em pé, na cozinha, bebi água, olhei o céu, e a lua, mesmo já de dia, parecia me olhar, como se enfim me conhecesse não como um qualquer.

“Eu tinha mesmo estado lá?”, era a pergunta que eu me fazia.

Hoje, poeta, recordo-me dessa passagem com carinho e afeto, saudoso do tempo em que São Jorge e eu tínhamos estado com o dragão, que nem era mais mau, mas um bom namorador.

Posso, sem falsa modéstia, dizer que me senti Sancho Pança um pouquinho. Alguém que, se não lutou com o dragão, o viu de pertinho, com sua fêmea querida.

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Lua bonita, lua, lua, lua, lua

A lua e o mar são a lua e flor

De quem, tendo a lua, na rua

A vive varrendo, só por amor…

Tá vendo aquela lua? É a lua

A lua de São Jorge, do dragão

Lua de poeta, a que eu te dei

A que me deram, tão soberana

Lua e estrela, que me faz rei

De nada, com todo o coração!

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Cláudia Camilo

O homem de estatura mediana caminhava seguro de si pelo campo, carregando um menino que aparentava ter uns 6 anos no ombro. Os dois conversavam e davam risadas animadas à vontade.

Pronto garotão. Vamos parar aqui um pouquinho, falou, colocando o menino no chão. Depois, se deitou calmamente sobre a grama e fitou o céu com admiração.

—É reconfortante ficar assim, observando criação.

Não vai dormir agora não é pai? o menino brincou, mexendo na barba dele carinhosamente; e logo também se deitou junto dele.

—Não. Vamos apenas apreciar este belo céu estrelado e está lua espetacular.

O vovô é que gostava de ficar olhando a lua. Agora acho que ele fica sentado lá o tempo todo, olhando aqui pra baixo.

É sim filho. E sabia que ele me deu este nome porque gostava demais da lua.

O menino riu e o encarou surpreso. — Tem certeza pai?

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Claro filho.

Mas pai, seu nome não tem nada a ver com a lua e com o céu.

—Ó sim. — ele riu. — Mas então vou te contar uma linda história que meu pai me contava quando eu era criança. E ai você vai entender tudo. Certo?

Certo. Gosto muito de histórias.

—Bom, era uma vez, a muitos, muitos, muitos anos atrás...

Nossa! Muito tempo mesmo pai.

—É sim Elias. Bem, era uma vez um jovem guerreiro muito valente, um soldado, capitão do exército romano. Era um servo dedicado e leal ao imperador e por isso cumpria mesmo as ordens mais duras e tristes de se fazer. Ele foi ficando muito conhecido entre os romanos porque ele era especial. E sabe porque ele era tão especial filho?

—Porque pai?

Porque ele era soldado, mas também era cristão, e isso não era normal entre eles. Na verdade, não gostavam nada disso. Ai, um dia aquele bravo soldado fez uma coisa incrível, inacreditável, magnifica...

—O que ele fez pai? Fala logo.

Ele para salvar uma jovem e linda moça...

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Uma princesa, pai?

Isso mesmo filho. Uma princesa. Um dia a princesa estava em apuros, e ele, sem medo, montou em seu cavalo, e foi a galope, muito veloz e a salvou das garras de um terrível dragão, acertando o danado com uma lança.

—Nossa!

Pois é filho. Ele era mesmo muito especial, por isso, com apenas 23 anos se tornou conde, uma honraria pra ele. E sabe mais, ele recebeu uma fortuna de herança e doou tudo aos pobres.

—Ele era bom mesmo, não pai?

Era muito bom filho. Por isso não é fácil escrever novamente a história dele, porque são tantas obras realizadas continuamente que é até difícil registrar, para ir atualizando tudo que este nosso guerreiro faz.

E o que aconteceu com ele pai? Estou curioso.

Bom, ele foi trabalhando com lealdade até que um dia, um dia muito triste, aquele nobre guerreiro viu o que o imperador que ele servia fazia com as pessoas, as crueldades e perseguições. Mas, como ele era um cristão, temente a Deus, ele não se calou diante daquela situação difícil, e então, falou que aquilo era absurdo, e que os romanos deveriam se tornar cristãos também.

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É coragem, pai?

Sim filho. Muita coragem. Mas, ele pagou um preço alto porque o imperador mandou prender todos os soldados cristãos, e como o jovem guerreiro continuou com sua fé, e não aceitou negar Jesus, foi torturado longamente e depois morto.

— Coitado. pai.

É sim filho, mas não acabou por ai não. Porque depois, um outro imperador mandou construir uma capela para ele e as pessoas começaram ater muita devoção por ele, e cada dia eram mais devotos pelos milagres que acontecem quando as pessoas pedem a ajuda dele. Até hoje ele é venerado, e patrono de países, cidades e comunidades cristãs.

—Que coisa bonita, pai. Ele continua sendo um guerreiro, não é?

Sim, um grande guerreiro sempre pronto para auxiliar os necessitados.

—Que história bonita, o menino falou, encarando o pai.

Mas o que tem seu nome e a lua com isso, pai?

—Ó..., sim filho. Bem, segundo algumas lendas que surgiram com o tempo, a imagem deste jovem guerreiro, com sua lança na mão pode ser vista na

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lua. Por isso papai gostava de ficar olhando a lua nas suas diferentes fases para identificar a imagem do jovem São Jorge guerreiro com sua espada, e sua força, bravura e lealdade de fé junto com a luz da lua.

—São Jorge! Que legal, pai. O vovô fez muito bem, pai. Este guerreiro precisa mesmo ser sempre lembrado por ser tão forte e leal.

—Foi sim. E eu também quando dei o seu nome, mas, essa história eu conto outro dia, disse se levantando: —Sua mãe nos espera.

Meu nome também é de um guerreiro, pai? o menino se levantou eufórico.

—Por hora só digo que era um grande profeta, forte e leal como o jovem Jorge, são Jorge.

Mas não demora, pai. E eu vou contar essa história para todos os meus amigos.

—Isso mesmo filho. Esta é uma forte história de amor. E cada vez que a partilhamos com alguém nós atualizamos e reescrevemos os antigos e novos feitos de nosso amado Jorge, porque ele inspirou pessoas com suas obras e assim, suas realizações permanecem vivas na memória dos cristãos para sempre; não só por ele alcançar a plena graça diante de Deus, mas porque as atitudes dele mudam e transformam vidas. São Jorge guerreiro foi isso, uma fonte vibrante de inspiração,

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otimismo e bom ânimo, um defensor da humanidade e do direito à vida e a manifestação da fé e a devoção, que toca, fortalece e que reanima o povo caminhante

—Pena que ele morreu, não é pai?

—É sim Elias, mas, o importante é saber que a morte não destruiu a vida dele. Ela lhe deu uma nova vida. Um dia você vai compreender bem o que é isso. A morte do soldado elevou o santo. E somos muito felizes por tê-lo como nosso intercessor. Eu sei que hoje posso dizer que a força mais poderosa dele é a Palavra de Deus, e a maior e mais poderosa espada que ele usou foi o nome do Filho de Deus, Jesus Cristo.

Ele fez tudo com beleza, não foi pai? perguntou enquanto caminhava de mãos dadas com o pai sob aquele céu repleto de estrelas e a lua grandiosa, com o jovem guerreiro e sua lança como guardiãs.

—Sim. Ele fez tudo com beleza filho. Por isso se fez digno de tanta devoção. Hoje e sempre. Porque é um eterno guerreiro.

O guerreiro da lua o menino brincou e eles seguiram adiante, enchendo o campo com o som feliz de suas risadas.

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Salve Jorge!

Carlos Monteiro

O Rio é uma Cidade Maravilhosa, abençoada pela beleza, natureza e pela santidade. Não à toa, Monteiro Lobato, que era paulista, a considerou o Almoxarifado de Deus, de onde o Criador retirou ‘insumos’ para concepção do Universo, deixando por cá as ‘peças de reposição’ permanentes.

Em sua santimônia, a mais bela cidade do planeta tem dois padroeiros: um oficial, São Sebastião, sincretizado como Oxóssi na Umbanda e no Candomblé, e outro do coração eleito pelos cariocas: São Jorge ou Ogum nas religiões de matriz africana.

Todo 23 de abril é dia de Jorge. Salve Jorge, o Santo Guerreiro! Tem toque de alvorada, em clarim, saudando seu dia, tem fogos anunciando sua chegada, tem missa campal, tem bênção, tem bandeirada, tem cavalgada e procissão. Tem festa em um misto pagão e divino com feijoada e samba em sua homenagem.

Os terreiros e barracões ficam em festa. Tem oferenda e pontos entoados em seu louvor, pelas demandas vencidas nos campos de Humaitá. Tem espada-de-são-jorge cruzada para proteção.

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Igrejas, ricamente enfeitadas para a data, rendem cultos a cada hora em seu louvor. Tem quermesse, tem venda de medida para colocar no pulso e no portão, na grade da capela e na carteira, para proteção. Tem medalhinha, imagem benta e patuá.

Jorge em Aruanda, o Santo Guerreiro que lutou contra o dragão da maldade. Lua de São Jorge, princesa Lucina, deslumbrante, cheia, branca e inteira, bandeira solta na amplidão, Lua de São Jorge, Lua brasileira, coração! Seu ginete, corcel branco, Ascalon, venábulo e azagaia. Jorge e Diocleciano, Jorge inegável fé. Mártir cristão. Santo protetor.

Os cariocas vestem branco, vermelho e azul em sua homenagem. São as roupas de Jorge. Todos andam vestidos e armados com as roupas e as armas de São Jorge, para que os inimigos, tendo pés não nos alcancem, tendo mãos não nos peguem, tendo olhos não nos vejam, e nem em pensamentos eles possam nos fazer algum mal. Para que armas de fogo os nossos corpos não possam alcançar. As facas e lanças se quebrem sem o nosso corpo tocar e cordas e correntes se arrebentem sem o nosso corpo amarrar. Todos vestidos com as roupas de Jorge.

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Jorge é conde da Capadócia, sentou praça na cavalaria, Tribuno Militar, Salve Jorge, o Santo Guerreiro! General de Umbanda do Humaitá. Ogunhê!

Salve Jorge!

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EDITORA

Salve Jorge! Ogunhê

Rui Ferrer Trindade

Era uma vez um homem jovem, chamado Jorge, que vivia numa pequena vila, um lugar conhecido por Paraguaçá, no interior do Brasil, onde existia uma comunidade, que vivia das plantações e pastorícia, onde reinava a paz e a tranquilidade, tendo ainda os seus guerreiros, que defendiam a povoação, de possíveis inimigos, ou de povoações vizinhas invasoras. No entanto, já há diversos anos, existia essa paz e fraternidade entre todos, sem guerras ou escaramuças, ou brigas internas.

Este jovem era conhecido por todos, como um dos guerreiros mais destemidos e corajosos, devido às suas conhecidas façanhas e episódios anteriores, onde defrontou perigos enormes.

Na pequena vila, era muito respeitado pela sua valentia e pela sua bondade, justo e um bom conselheiro, um apoiante incondicional da pura consciência humana.

Jorge era um dos maiores devotos de São Jorge, o seu santo guerreiro, com o qual tinha um inteiro compromisso, pois fazia sempre as suas orações, diárias, na sua honra, num pequeno templo, erigido ao mesmo.

SALVE JORGE! OGUNHÊ 93

Um dia, sem nada que se pudesse prever, aquela pequena povoação foi ameaçada, por um grande grupo de forasteiros, mercenários, autênticos bandidos, que vinham de povoados distantes e, queriam dominar completamente toda aquela região.

Eram cruéis e impiedosos, assassinos sem alma ou compaixão, que já vinham a aterrorizar outras povoações, por onde passaram, violando e saqueando os seus moradores, destruindo tudo o que encontravam pela frente.

Chegaram, a sua presença, caraterizava-os como selvagens, empunhando catanas, facas e machados, algo que se tornava anormal, de uma agressividade extrema, que não seria ponderável ou aceitável.

Algo tinha que se fazer, já estavam junto da entrada da própria paliçada defensiva, que circundava aquele lugar. Apesar de os guerreiros estarem atentos e os seus habitantes, relutantes e temerosos pela sua afronta, eles eram bastantes, demais para uma afronta destemida e direta ou indireta.

Os mercenários, dominavam aquele espaço, espalhavam-se por todo o seu comprimento, envolviam a própria paliçada, conseguiram destruir parte das paredes da paliçada, bem como

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atingiram as suas sentinelas, que caíam das suas torres.

O portão principal cedia perante a força musculada, dos bandidos, as defesas enfraqueciam, os guerreiros sucumbiam, ou recuavam perante o seu avanço e depressa conseguiriam dominar a povoação por completo.

Naquele momento, o pavor alastrava e incendiava as mentes de todos, tomava os seus corpos, com os seus próprios receios, medos ou angústias.

A situação era desesperante e tornava-se insuportável, o seu ataque era infalível, vinham de todas as direções, muitos dos habitantes defendiam-se com enxadas, foices, machados e outros instrumentos agrícolas, que nesta altura serviam de armas, muitos deles sucumbiam aos golpes das catanas que os despedaçavam sem dó ou misericórdia.

Jorge, enquanto lutava ao lado do seu povo, ao notar que o desespero aumentava, que acabava por eivar sem limitação e, vendo o sacrifício daquela gente, a sua comunidade e as suas defesas no limite, fez com que decidisse ser a hora de agir, de outra forma, evitando mais baixas.

Ia tomar uma posição imediata de defesa, aconselhando o recuo de todas as forças, deixando a seu cargo a defesa total da povoação, que para

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muitos parecia irreal, ou incompleta de qualquer vitória.

A própria paliçada já não existia, eram juncos tombados, ou destruídos, as paredes caíram, deixando a descoberto a visão sobre toda a povoação.

Os guerreiros tombaram, sobre as suas catanas cortantes e aguçadas, eram poucos, os que se mantinham em pé e resistentes ao embate dos mercenários infernais.

Jorge, com a sua espada, em punho e a fé em São Jorge no seu coração, agora enfrentava com um único fervor inabalável, impulsionado por uma força, que parecia sobrenatural, ou mesmo divina, que ultrapassava os limites da própria consciência humana.

Ele era o único, enfrentava-os sozinho, tinha uma coragem devastadora e infalível, detinha o poder de desafiar todos aqueles homens maus, cruéis e, todos naquela vila, estavam a apoiá-lo na sua contenda, para alcançar a sua indominável vitória.

Lutava com bravura e determinação, que com a sua fé, São Jorge, havia-lhe concedido, sem troca ou condição.

Era uma luta feroz, mas determinante, em que os mercenários tombavam, despejados de vida, imperava o seu destino, de derrota perante os seus

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movimentos enérgicos e as suas velozes estocadas, da sua espada de ouro flamejante, parecendo deixar sair sons de trovão e raios de relâmpagos.

Artifícios majestosos de uma energia positiva, gloriosa, que o fazia ascender entre os presentes naquele conflito, era uma bênção imaculada, do seu santo padroeiro, que lhe concedia o dom da justiça.

Para surpresa de todos, tinha conseguiu derrotar inúmeros guerreiros e afugentar os mesmos, daquela povoação, uma derrota bem sentida, da parte dos bandidos, que conseguia assim libertar a vila do medo, da violência e da opressão.

Desde então, Jorge passou a ser conhecido como o herói daquela povoação, um devoto seguidor da sua devoção ao santo padroeiro.

Todos o saudavam com um forte "Salve Jorge! Ogunhê", em homenagem ao santo guerreiro, que ele tanto admirava e a quem pediu nas suas orações, a tranquilidade, a paz e que lhe desse a coragem para salvaguardar aquela comunidade, que tanto amava.

Naquele dia, foi preenchido pela celebração, como sendo um verdadeiro símbolo de coragem e justiça, e a sua estória iria ser contada de geração em geração, de pais para filhos.

Mas a sua batalha ainda não terminou, muito estava para vir.

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Outros desafios foram surgindo, esteve sempre pronto para proteger o seu povo e a sua terra natal.

A sua coragem e a sua devoção a São Jorge, tornavam-no como um exemplo para todos, e o seu legado seria eternizado para memória futura, de todos aqueles que o admiravam.

Mesmo quando enfrentava as adversidades da vida, comuns aos seres humanos, nunca deixou ou perdeu a fé em si, nem, contudo a sua esperança.

Sabia que São Jorge, estava sempre ao seu lado, guiava-o e protegia-o, nas mais difíceis batalhas.

E, assim, Jorge continuou a lutar pelas causas justas e a defender os mais fracos, sempre com a convicção de que a justiça iria sempre prevalecer.

Ao longo dos anos, o nome de Jorge, tornou-se sinónimo de coragem e de honra, a sua estória foi contada em todo o mundo.

Ficou na própria história de um país imenso, como o Brasil, recheado de mil e uma estórias fascinantes e divinas, um elogio a um povo que prestigiou o nome de Jorge, como seu herói, bafejado pela bênção do seu santo, São Jorge.

Tornou-se uma lenda viva, um exemplo de bravura e de determinação, de estímulo, para todos aqueles que ouviam falar dele.

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E, mesmo depois da sua morte, o seu espírito continua a inspirar, todos aqueles que procuram forças para enfrentar os maiores e difíceis desafios da vida.

Assim, a memória de Jorge viverá para sempre, na mente humana, será lembrada e reconhecida pela sua honra, em cada aclamação de, "Salve Jorge Ogunhê!", proferida por todos aqueles que reconhecem a sua grande importância, na vida de todos nós.

O seu legado permanecerá vivo, como uma luz que iluminará o caminho para lutar por um mundo melhor, sempre com coragem e fé.

O seu alento, transforma a esperança numa realidade, que transparece a fé naquilo em que acreditamos, levando avante através da nossa força de vontade, aquilo que pretendemos realizar.

Acreditar em São Jorge, fez com que a sua devoção, o levasse a acreditar que conseguia defrontar qualquer tipo de desafio.

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São Jorge

Olhando São Jorge pelo alto, o rio libertou-se do casal mais novo da cidade. Os horizontes escondidos do querer apareceram onde não se pode olhar por olhar, mas só mais à frente ver. Queria, ou não? Ver a diferença de não se ser?

Mas eu vago, menos inteira fico. Vejo o simples continuar, o orgulho e a cultura desempregada nas paredes permitindo a origem do quando. E de ser feliz um dia. É São Jorge que cresce como a chuva da paz.

A paz mesmo é triste, e mal entendo as refeições. Mas vivíamos nesta casa, e perseguia-nos anos atrás a circulação do mau tempo pelos barcos encostados. Os pescadores esperavam São Jorge, dono da lua, mas não iam ao lugar sem consultar o dono da oficina de barcos mais próxima.

Carlos, marido de Dona Santana, tinha cinco filhos, o mais velho de nome Jorge, marido de Corina. A fábrica dos pais de Jorge havia fechado por falta de peças, mas as fábricas de eletricidade por lá vieram com a nova geração de filhos, sem Corina se preocupar com nada além das crianças. Até que recuperasse um tempo para sair de casa e rumar ao rio tortuoso.

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Na verdade, a tentativa de liberdade tardava em São Jorge. Mas a bênção veio em dobro. Ao perceber que as estradas explodiram para criar as florestas, eles viram milhares de árvores e lá, São Jorge, basta subir e ver. E ele foi com ela. Quando chegaram no topo da montanha, avistaram o grande céu azul de muitas gerações passadas.

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São Jorge, o guerreiro imortalizado

Bruna Esteves

Jorge nasceu numa favela de Salvador. A mãe é empregada doméstica e o pai funcionário de uma pequena oficina de carros. Com muito esforço, dedicação e sacrifícios, os pais deram a melhor educação que puderam dar ao filho. Ele era o quarto e, também, o caçula da família que morava num casebre ou cafofo como ouvia o pai dizer. Jorge não tinha sido planejado como o primeiro filho e muito menos desejado como o segundo. A esta altura da vida, ele foi um descuido, um erro que aconteceu. Após este imprevisto, a mãe decidiu ligar as trompas para não correr o risco de ter mais um filho indesejado. Antes disso, pensou seriamente em abortar, mas a fé em Deus foi muito maior do que o próprio desespero.

Para a sorte de Dona Silvânia, Jorge era um menino bom. Apesar de brincar bastante na rua com os amigos, não dava muito trabalho e, diferentemente dos dois irmãos mais velhos, gostava de ir à escola e de estudar. A irmã, Janaína, só estudou até o ensino fundamental e tornou-se funcionária de supermercado. Matias Junior, o terceiro irmão, o ajudava com as tarefas escolares,

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pois a mãe não sabia ler ou escrever. Juninho, como era conhecido no bairro, estava estudando para passar no vestibular para se tornar um excelente advogado. O pai, que apenas concluiu o ensino médio, já não se lembrava de muita coisa que aprendeu. O irmão mais velho, Jonathan, foi o único que seguiu o caminho do tráfico.

O pequeno Jorge, desde criança, adorava contar histórias. De tanto ler diversos livros, gibis e revistas em quadrinhos da biblioteca da escola, tinha uma imaginação fértil e, sabia narrar histórias e inventar outras tantas interessantíssimas para quem quisesse ouvir. A mãe era uma das pessoas que adorava ouvi-lo contar todo entusiasmado. Diziam que ele vivia no mundo da lua pela capacidade de criar e imaginar coisas extraordinárias, de outro mundo. Além de muito criativo, era um sonhador. Ele sonhava com um futuro melhor, não só para ele, mas para toda a sua família. Queria, um dia, poder retribuir tudo o que os pais fizeram por ele e pelos seus irmãos.

Entretanto, algumas pessoas diziam que era apenas uma questão de tempo até ele e Matias se envolverem com o tráfico de drogas. Afinal, era o destino de muitas crianças e jovens da favela que iniciavam cedo como fogueteiros, vigiando as entradas principais da favela ou como aviãozinhos, entregando as drogas aos usuários. A maior escalada de muitos ao topo do poder era

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tornarem-se traficantes. Elas não sabiam que estavam equivocadas com relação aos meninos de Dona Silvânia. Ambos fariam a diferença na sociedade, assim ela acreditava.

Por incrível que pareça, os dois filhos indesejados foram os que mais deram orgulho e felicidade aos pais. Juninho passou no vestibular e ingressou na Universidade Federal da Bahia, enquanto Jorge estava ingressando na quinta série, quase finalizando o ginásio. Ele era elogiado pelas professoras que viam nele um potencial enorme e um futuro brilhante pela frente. Quem sabe, não se tornasse um bom professor ou um advogado que nem o irmão seria um dia? Apesar de não ser muito bom em matemática, Jorge gostava muito de português, história e geografia e tinha facilidade em aprender estas matérias. Ele também se destacava pela sua facilidade em liderar os colegas nos trabalhos, em sala de aula, e por ser uma pessoa bem comunicativa.

Aos doze anos de idade aprendeu a lutar capoeira com um grupo que se reunia todas as terças e quintas-feiras no Pelourinho. Encantou-se com o gingado da dança, mas também queria aprender a se defender, principalmente por ser irmão de um traficante que vivia se metendo em confusões, não só com a polícia, mas com todo mundo. Jorge aprendeu com os melhores e, com os passar do tempo, se tornou um grande lutador de capoeira.

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Seu apelido era Guerreiro, afinal, era muito bom nas artes marciais e vencia todas as lutas que participava. Já com dezoito anos de idade, era um jovem esbelto, porém, ágil e muito habilidoso.

Quando finalmente decidiu que também seguiria os passos de Juninho e faria vestibular para Direito, na Federal, um trágico evento mudou completamente os seus planos. O irmão que tanto admirava foi assassinado a sangue-frio por um traficante. Jonathan devia muito dinheiro ao cara por conta de um negócio feito entre os dois, mas que ele não cumprira com a parte dele. Como forma de retaliação pela falta de palavra e deslealdade, este traficante, que vive no Bairro da Paz, mandou matar Matias que recebeu quatro balas de um revólver calibre 38, perfurando as regiões do tórax e do abdómen.

O pobre rapaz foi levado às pressas ao Hospital Roberto Santos pela ambulância do Samu, mas morreu em poucos dias devido a uma embolia pulmonar. Um dos projetis da arma de fogo ficou alojado em uma região próxima ao coração, trazendo complicações à condição do paciente. Foram realizadas duas tentativas de extração da bala, mas todas sem sucesso. Matias deu seus últimos suspiros dentro de uma UTI e não teve tempo de se despedir de ninguém. Se pudesse, teria dito que amava muito a sua família e que era

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um homem sortudo por fazer parte daquela, em especial.

No funeral, Jorge chorou como nunca havia chorado antes na vida e prometeu que honraria a morte de Matias ao tornar-se policial civil. Culpou Jonathan pela morte dele e decidiu que o outro irmão também tinha morrido. Uma morte simbólica, porém, definitiva. O primogênito da família não passava de um bandido e nada mais. Jorge só conseguia sentir raiva e desprezo por ele naquele momento. Na verdade, nunca tinham sido muito próximos e este fato, só os mantivera distantes um do outro. E por ironia do acaso, o destino fez com que os dois tomassem caminhos totalmente opostos.

Aos vinte e um anos, Jorge passou no concurso público da polícia civil. De fato, ele cumprira a promessa que fizera ao falecido irmão. Desta vez, estava mais encorpado e forte devido aos treinos que fazia na academia. O menino Jorge tinha se transformado num homem. Os pais e a irmã sentiam muito orgulho pela sua determinação e foco, mas Dona Silvânia tentava esconder o medo que sentia pelo futuro do filho. Trabalhar como policial significa estar constantemente exposto aos perigos e à violência dos guetos da cidade. Coração de mãe nunca se engana e também não tem descanso. Já tinha perdido um filho, podendo outro ser morto a qualquer momento. Não queria

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perder o filho caçula da família. A dor pela perda do primeiro já tinha sido o bastante para ela.

O destemido Jorge se dedicou ao trabalho e cada dia enfrentava um dragão diferente. Ele lutava contra a criminalidade, a violência e o tráfico de drogas com todas as suas forças. Salve Jorge! Os colegas de trabalho o saudavam no departamento de polícia. Muitos o admiravam por ser um dos melhores e muitos o invejavam também. O Guerreiro trabalhava com ética, eficiência, astúcia e profissionalismo. Contudo, alguns torciam para que ele fracassasse ou sucumbisse ao sistema totalmente corrupto, imoral e nefasto. Tentaram, mas nunca conseguiram. A alma dele e o senso de justiça que carregava dentro de si eram incorruptíveis.

Pensaram que Jorge se tornaria um policial cruel e prepotente pelo o que aconteceu ao querido irmão, porém, apesar da sua natureza combativa, ele lutava pelo o que era certo. Defendia os inocentes da ira dos bandidos, mas deixava a justiça fazer a parte dela. Não quer dizer que nunca matou delinquentes e infratores da lei, mas o fez sob circunstancias protegidas pelo manto frio da lei. Em razão disso, se indignava quando a justiça soltava criminosos, especialmente aqueles em que a polícia tivera grandes dificuldades para prender. Com o tempo, oGuerreiro já sabia como

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era o sistema penal brasileiro, mas tinha a consciência limpa. Fazia sempre a parte dele.

Aos trinta anos de idade, casou-se com uma linda mulher e com ela teve dois filhos. Já tinha uma vida financeiramente estabilizada e maturidade para construir uma família. Não ganhava muito, mas era o suficiente para ter uma vida confortável. Sentia-se pronto para viver uma nova jornada em sua vida. Desejou muito ser pai. Se fosse menino, daria o mesmo nome de seu amado irmão. Deus acatou o seu pedido. Jorge era muito grato por isso. E mesmo tendo a sua própria família, nunca deixou de ajudar os pais e dar toda a assistência de que precisavam.

Quando não estava com a família, Jorge trabalhava a todo vapor. O Guerreiro usava o manto da lei sobre suas costas e armas de fogo para combater a maldade e as mazelas que existiam na sociedade. E mesmo sendo filho do gueto, não se tornou vítima das circunstâncias ou produto do meio. Na verdade, ele contrariou todas as expectativas negativas que tinham sobre ele. Salve Jorge! Homem de fé, honesto e trabalhador. Sabia de seu valor e do quanto Deus abençoava o seu caminho para que pudesse ajudar tantas vítimas e pessoas inocentes possíveis.

Numa certa missão, sabia que o irmão estava sendo procurado pela polícia. Jonathan tinha se tornado um poderoso e influente traficante na

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cidade. E muito impiedoso também. Jorge esperou paciente pelo momento em que finalmente colocaria o maldito bandido na cadeia, o lugar que merecia estar. Uma emboscada preparada pelas autoridades policiais ansiava pelo flagrante, quando uma tonelada de cocaína seria apreendida, numa fábrica abandonada, em Camaçari.

Jonathan e mais dez capangas estavam no local colocando os tabletes de droga, quando os policiais adentraram o recinto, rendendo os bandidos. No entanto, eles reagiram de imediato atirando contra os agentes que também iniciaram os disparos. O embate entre a polícia e os criminosos durou em torno de quinze minutos. As autoridades estavam em maior quantidade e, por isso, conseguiram conter a situação. O confronto entre os dois irmãos se deu no momento em que Jonathan tentou evadir-se dali. Jorge correu para alcançá-lo e acabaram tendo uma briga corporal no chão. Após muitos anos, os irmãos estavam cara a cara novamente.

O Guerreiro levantou-se de forma ligeira e com um chute, jogou a arma do irmão para bem longe. Olhou nos olhos do traficante e desejou que não tivessem o mesmo sangue. Jonathan estava rendido quando por um lapso de segundo, se soltou dos braços de Jorge e se posicionou na frente do irmão. Um capanga, até então,

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escondido, estava com uma AR-15 apontada para o policial. Assim que viu o sujeito, não pensou duas vezes em proteger o irmão caçula. Levou vários tiros pelas costas, morrendo na hora. Aquela cena surpreendeu Jorge que teve o seu manto da lei manchado de vermelho com o sangue daquele a quem jurou ódio eterno. Contudo, naquele dia, o Guerreiro perdoou Jonathan pela morte de Matias e o agradeceu por ter salvado a sua vida.

Dona Silvânia e Seu Matias enterraram mais um filho que mesmo entregue ao submundo do tráfico, não se esqueceu da família. Talvez, fosse o peso na consciência, afinal, tudo indica que Jonathan sentia-se responsável pela morte de Juninho e salvar a vida de Jorge fosse a sua redenção. Infelizmente, Jorge foi o único filho homem sobrevivente, mas não por muito tempo. Ele morreu em combate alguns anos depois, sendo sepultado com condecorações, vestido com a farda da polícia civil e com uma corda branca de capoeira na cintura.

Finalmente, encontrou paz na graça de Deus e na companhia dos irmãos que o receberam de braços abertos numa outra dimensão. Após a sua morte, a comunidade do bairro em que morou o transformou em santo. O Guerreiro foi considerado uma autoridade máxima na luta, seja

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na capoeira ou nas ruas da cidade, combatendo o crime. Salve Jorge!

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Um Jorge para hoje

Em Belém, a cidade das mangueiras, do Ver-oPeso, do açaí e do rio Guamá, a história recente foi marcada pela atuação social e pelo desaparecimento dramático de um jovem sacerdote chamado Jorge.

Sua jornada começou em Siqueira Campos, uma cidade marcada pela tradição católica, onde o calor do nordeste paraense se mistura com a devoção dos descendentes dos colonos cearenses, que para aquele recanto emigraram nas secas do início do século XX e fundaram a então vila onde

São Jorge se tornou o patrono da igreja local; este foi o nome que seu Lourenço e dona Antonieta escolheram para batizarem o seu primeiro filho.

Jorge presenciou com alegria e estupor a chegada de dois irmãozinhos, no correr dos seus anos infantis: o José e a Jasmine, com os quais foi crescendo, brincando, brigando, reconciliando-se, vivendo a vida sob o calor da família nutrida e educada por seus pais; estudou na escola Maria Amélia, jogava bola aos sábados com os colegas no campo de areia do seu bairro e, também, videogame com os primos - na casa dos avós; e frequentemente tomava algum livro emprestado

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da biblioteca municipal; frequentou a catequese, fez a primeira comunhão e a crisma, e participou ativamente da Pastoral da Juventude da sua paróquia.

O cenário que envolveu a juventude de Jorge era como uma pintura viva. A praça Magalhães Barata, com seus canteiros de flores coloridas e chafarizes cantantes, era o palco dos encontros com Rebeca. Sob as sombras generosas das figueiras-benjamins, eles compartilhavam pipoca e sorvete, enquanto o clima quente dava um toque de doçura às suas histórias. Estavam sempre por ali, circundados ou não por pequenos grupos de amigos, no entardecer dos dias, após mais uma jornada de lições na escola, sita numa das bordas da mesma praça.

Jorge há alguns meses estava se dedicando às leituras das biografias e legendas sobre o seu patrono São Jorge e sobre os santos Francisco de Assis e Tomás de Aquino, além dos sermões do Padre Antônio Vieira; por vezes, ele imergia em pensamentos e reflexões e buscava na praça um refúgio para suas inquietações. Era ali que ele discutia com Rebeca sobre suas aspirações e temores, tornando a paisagem não apenas um cenário, mas uma testemunha silenciosa do florescer da sua vocação. As flores de bougainvillea, com suas cores vibrantes, pareciam

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ecoar as emoções que preenchiam o ânimo de Jorge.

Num final de tarde quente, sob o céu que tingia as nuvens com o salmão do crepúsculo, Jorge e Rebeca dialogavam enquanto caminhavam pelas passarelas de paralelepípedos da praça.

- Rebeca, estive pensando sobre meu chamado para o sacerdócio. Sinto que há algo maior, algo que devo fazer para servir à humanidade, uma missão me esperando, um outro caminho que devo seguir.

Confessou Jorge, enquanto seus olhos refletiam aquela luz suave do entardecer.

Rebeca, que já estava a intuir semelhante situação, tocada pela sinceridade de suas palavras, mas com dois discretos fios de lágrimas a escorrer de seus olhos castanhos, seguro-lhe com firmeza a mão e respondeu-lhe:

- Jorge, siga o que seu coração lhe diz! Estarei ao seu lado, independentemente do caminho que escolheres.

Ao que Jorge lhe secou a face umedecida e lhe consolou com a ternura de um beijo; gesto que lhes assinalou a transmutação de um amor romântico, capaz de abreviar-se generosamente, dando espaço à uma amizade alvissareira e aberta ao bem da alteridade.

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Com o passar dos anos, os cenários das suas vidas mudaram. O seminário da Arquidiocese de Belém, com seus corredores silenciosos e capela pacífica, bem como a frequência às lições de Filosofia e Teologia e o trabalho pastoral na Paróquia de Fátima, tornaram-se os novos palcos do cotidiano de Jorge. Mas a cada visita mensal ou no mês de férias anual em Siqueira Campos, o calor da família, o encontro com vizinhos e amigos, e a paisagem rural lhe dava um sentido de pertencimento, ancorando-o em suas raízes; porém, sem a presença física de Rebeca, com quem se comunicava apenas por cartas ou telefonemas, desde que ela se mudara para Marabá, devido ao seu curso de Engenharia Florestal.

Após oito anos de seminário, chegou o dia da ordenação sacerdotal de Jorge. Essa foi celebrada solenemente na catedral de Belém, com a solene liturgia conduzida pelo Arcebispo dom Zico, pastor com um coração trasbordante de humanidade para com todos. Essa acorrida celebração marcou a transição para uma nova fase na vida de Jorge: o bairro Guamá, com suas ruas movimentadas e suas necessidades de saneamento e cuidado às questões sociais, tornou-se o novo cenário de sua missão, agora como pároco. Enquanto as águas do rio e da baía do Guajará circundavam Belém, Padre Jorge sentia uma correnteza de propósito o impulsionando.

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Certo domingo, sob a chuva da tarde que caía na cidade, Jorge e um grupo de fiéis reuniram-se na igreja.

- A chuva é como as bênçãos do céu, renovando a terra e nossos corações; e Cristo, nos interpela hoje, agora, mediante o sofrimento de todo o homem e mulher do nosso povo, dos pobres relegados à marginalização pela incúria e injustiça de políticos corruptos e corruptores! Nós somos a Igreja de Cristo, e como Cristo devemos anunciar o evangelho e apontar as injustiças para mudar a situação do povo de nosso bairro, tão castigado com a pobreza e o esquecimento dos nossos governantes. Já dizia o grande profeta, Hélder Câmara: “O amor é o perfume das almas, mas a fome dos outros condena a civilização dos que não têm fome. Mais que o comum dos dias, olhei o mais que pude os rostos dos pobres, gastos pela fome, esmagados pelas humilhações, e neles descobri o rosto de Cristo ressuscitado. Sempre que se procura defender os sem voz, a Igreja é acusada de fazer política, porém Deus não nos ensinou a aceitar facilidades, mas a encontrar a Vida na dureza da cruz; tenhamos mil razões para viver, levando o peso dos pobres no coração e nas nossas ações, pois um dos nossos anseios de chegar ao infinito é a esperança de que, ao menos lá, as paralelas se encontrem em Deus que é Amor”. Portanto, meus irmãos, minhas irmãs, lutemos com nossas armas pacíficas, no púlpito,

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nas escolas e universidades, nas rádios e nos nossos artigos nos jornais contra a corrupção política e a injustiça social. Em nome de Cristo, façamos política cristã e fatiguemos pela libertação e salvação dos pobres, injustiçados e oprimidos!

Assim discursava o Padre, enquanto seus olhos brilhavam com uma mistura de devoção e gratidão, enquanto a chuva, como um véu suave, envolvia o templo, criando uma atmosfera de comunhão entre céu e terra e de assentimento divino às inflamadas palavras de Jorge.

Por meses o espírito do Padre Jorge e de seus paroquianos ecoou em Belém e no Pará inteiro através das suas ações com os seus fiéis nas universidades e nos meios de comunicação. Imediatamente, o Padre granjeou a inimizade de alguns políticos e empresários influentes, sobretudo quando iniciou a campanha contra o desvio da merenda escolar das escolas públicas. Foram, mesmo, o estopim, as suas palavras quando pregando o tradicional Sermão das sete palavras da sexta-feira santa, na capela do colégio Santo Antônio, afirmou enfaticamente, que não importa o quanto doem como patrocínio para os festejos das paróquias da cidade ou o quanto sejam assíduos no frequentar a missa dominical e comungarem a hóstia consagrada, todo o político e empresário que promove a corrupção e a injustiça social está em pecado mortal e ao receber

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a hóstia santa, toma sobre si a própria condenação porque zomba de Deus ao comungar do corpo de Cristo, que foi pobre e trabalhador de carpintaria, seguido por rudes pescadores e crucificado pelos políticos do seu povo.

Na basílica de Nazaré, em treze de maio de dois mil e quinze, Jorge, com um sentimento profundo de predestinação, rezava o rosário pela manhã, numa hora na qual ainda não haviam tantos devotos naquele santuário mariano.

- Senhor, guie-me na minha missão de servir o teu povo! Nossa Senhora de Nazaré, abençoai os vossos filhos e filhas! Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco...

Murmurava ele; e o aroma das velas a se queimarem, fundia-se com o perfume do incenso, ao passo que uma chuva insistente, agora mais intensa, batia nos vitrais das janelas como presságio da natureza.

Seus últimos momentos na basílica foram marcados por uma atmosfera solene e contemplativa. Jorge, alheio ao clima que se intensificava do lado de fora, estava imerso em orações. O som da chuva, como um pano de fundo sutil, dava uma sensação de pureza e renovação; quando, subitamente, dois homens incógnitos adentraram o santuário, interrompendo o sagrado silêncio com tiros que

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ecoaram como trovões. O ambiente se tornou pesado e invadido pelo medo. Com os disparos, os atônitos fiéis se lançaram por terra.

O clima, ora aliado, tornou-se testemunha impotente diante da tragédia. O cheiro da pólvora se misturava ao aroma do incenso, criando uma atmosfera de tristeza e desespero. A chuva, agora intensa martelava no teto da basílica, como se o próprio céu chorasse a perda iminente. Os gritos ecoaram no interior do santuário enquanto a luz das velas tremulava, refletindo a agonia daquele momento; a Virgem de Nazaré, do alto do seu nicho marmóreo, contemplava compadecida o martírio do seu devoto filho. O clima, antes sereno, transformou-se em um turbilhão de emoções.

— Pai, em tuas mãos entrego meu espírito!...Perdoa-lhes, Pai!

Balbuciou o agonizante sacerdote, ao passo que exalava seu último suspiro.

O funeral do Padre Jorge, realizado sob o céu nublado de Belém, foi marcado por lágrimas misturadas a chuva incessante. O clima refletia a tristeza da cidade que perdeu seu guerreiro, enquanto a paisagem, agora envolta em umidade e mormaço, parecia ecoar a saudade que ficou. Os fiéis se reuniram, guardando silêncio enquanto a

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chuva batia nos guarda-chuvas, criando uma sinfonia melancólica de despedida.

No dia seguinte, Belém acordou sob um céu carregado de nuvens escuras. A cidade das mangueiras, geralmente iluminada pelo sol tropical, agora refletia a sombra da tragédia que se abateu sobre ela. O rio, a baía, antes calmos, pareciam agitados, como se a natureza também lamentasse a perda.

A doutora Rebeca, mesmo distante, ao tomar conhecimento da perda do amigo, sentiu o peso da tristeza que pairava sobre Belém a lhe plantar uma infinita saudade no fundo do coração e a lhe germinar novamente os dois fios de lágrimas a descender de seus luminosos olhos. A partir daquele dia, ao visitar a praça Magalhães Barata, agora desprovida da alegria que um dia compartilhara com Jorge, a sensação de vazio se tornava avassaladora. As flores, outrora vibrantes, pareciam murchar diante da ausência do amigo sobre a face da terra.

Após as cerimônias fúnebres serem realizadas na catedral belenense, o corpo de Jorge foi transladado para Siqueira Campos, onde diante da comoção da multidão e da última encomendação do arcebispo metropolitano, foi sepultado em uma capela lateral da igreja de São Jorge.

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O rio Guamá, sempre presente nas reflexões de Jorge, parecia mais calmo, como se a batalha tivesse sido vencida. A correnteza, antes impetuosa, agora fluía suavemente, refletindo a serenidade que o sacerdote buscava para o seu povo. Os moradores, ao olharem para suas margens, viam não apenas a água que fluía, mas também a coragem e o sacrifício de um jovem que, em nome de Cristo, dedicou sua vida aos outros.

Em Siqueira Campos, a paisagem rural continua a contar a história de Jorge. O calor persistente se entrelaça com a memória do jovem sacerdote, que um dia sonhou em mudar o mundo. A cada visita, os campos, a cidade e a igreja paroquial são testemunhas silenciosas do legado moral deixado pelo audaz sacerdote.

A tumba do Padre Jorge logo se tornou um refúgio espiritual para os que buscam audácia e profetismo. O calor da devoção dos fiéis, mesmo diante da histórica tragédia, é como um sol que continua a brilhar na escuridão. As preces ecoam pelos corredores, misturando-se com a suave luz que entra pelas janelas.

Todos os anos, no dia treze de maio, os católicos de Belém se reúnem para homenagear Jorge na basílica de Nazaré, e a igreja matriz de Siqueira Campos se torna um local especial de peregrinação. A chuva que venha a cair nessa data sobre essas cidades, é vista como uma bênção

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especial de Jorge que, mesmo ausente, continua a abençoar as comunidades que tanto amou e a encorajar os cristãos na luta contra as injustiças.

Os dragões modernos, representados pelas injustiças e corrupção, ainda pairam sobre as cidades, mas a memória de Jorge inspirava uma nova geração a continuar a luta. Movimentos sociais, agora impulsionados pelo espírito do sacerdote dos pobres, ganham força, como se a presença dele ainda guiasse a busca por um mundo mais justo.

No coração da cidade de Siqueira Campos, a igreja de São Jorge permanece como um farol de esperança, recordando a todos que a luta contra os dragões modernos é um empenho coletivo, incentivado pela memória do sacerdote que um dia acreditou que poderia fazer a diferença e, a exemplo de Jesus, deu, com convicção e amor, a própria vida até a efusão do seu sangue, pela causa do Reino de Deus e a consolidação da sua justiça.

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SALVE JORGE! OGUNHÊ 123 EDITORA OLYMPIA Avenida Rondon Pacheco, 2300/77 Griff Shopping Uberlândia—MG—CEP 38408-404 E-mail: editoraolympia@editoraolympia.com.br

Louvado nos templos católicos, nos terreiros de religiões de matriz africana, nos estádios de futebol, nas casas, nos bares, no comércio e nas quadras de escolas de samba, São Jorge está presente na vida de todos, inclusive por meio das lendas que o cercam, como o

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