PNLD 2026 EM - CAT 1 - COLEÇÃO 360 - FILOSOFIA

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JUVENAL SAVIAN

FILOSOFIA

MANUAL DO PROFESSOR

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JUVENAL SAVIAN FILHO

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).

Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).

Professor de Filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) desde 2006.

Membro da Sociedade Internacional para o Estudo da Filosofia Medieval (SIEPM).

Pesquisador-visitante do Centro de Pesquisa Interdisciplinar de Ciências Humanas e Sociais (CRISES) na Universidade de Montpellier, França.

Lecionou Filosofia no Ensino Médio da rede pública e em diferentes instituições de Ensino Superior.

FILOSOFIA

ÁREA DO CONHECIMENTO: CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS APLICADAS

VOLUME

Direção-geral Ricardo Tavares de Oliveira

Direção de conteúdo e negócios Cayube Galas

Direção editorial adjunta Luiz Tonolli

Gerência editorial Roberto Henrique Lopes da Silva e Nubia de Cassia de M. Andrade e Silva

Edição João Carlos Ribeiro Junior (coord.)

Adriana Carneiro Marinho, Renata Paiva Cesar, Bianca Balisa, Vanessa do Amaral

Preparação e revisão Maria Clara Paes (coord.)

Ana Carolina Rollemberg, Cintia R. M. Salles, Denise Morgado, Desirée Araújo, Eloise Melero, Kátia Cardoso, Márcia Pessoa, Maura Loria, Veridiana Maenaka, Yara Affonso

Produção de conteúdo digital João Paulo Bortoluci

Gerência de produção e arte Ricardo Borges

Design Andréa Dellamagna (coord.)

Sergio Cândido (criação), Ana Carolina Orsolin, Everson de Paula, Rafael Vianna

Projeto de capa Sergio Cândido

Imagem de capa ViDI Studio/Shutterstock.com

Arte e produção Vinicius Fernandes (coord.)

Juliana Signal, Jacqueline Nataly Ortolan (assist.)

Diagramação Bla design editorial

Coordenação de imagens e textos Elaine Bueno Koga

Licenciamento de textos Erica Brambila

Iconografia Jonathan Christian do Prado Santos, Leticia dos Santos Domingos (trat. imagens)

Ilustrações Mouses Sagiorato, Sonia Vaz

Cartografia Robson Rocha

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Savian Filho, Juvenal

360º filosofia : 1º ao 3º ano : ensino médio : volume único / Juvenal Savian Filho. -- 1. ed. -São Paulo : FTD, 2024.

Componente curricular: Filosofia.

Área do conhecimento: Ciências humanas e sociais aplicadas.

ISBN 978-85-96-04762-3 (livro do estudante)

ISBN 978-85-96-04763-0 (manual do professor)

ISBN 978-85-96-04764-7 (livro do estudante HTML5)

ISBN 978-85-96-04765-4 (manual do professor HTML5)

1. Filosofia (Ensino médio) I. Título.

24-229303

Índices para catálogo sistemático:

1. Filosofia : Ensino médio 107

CDD-107

Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

Reprodução proibida: Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Todos os direitos reservados à

EDITORA FTD

Rua Rui Barbosa, 156 – Bela Vista – São Paulo – SP CEP 01326-010 – Tel. 0800 772 2300

Caixa Postal 65149 – CEP da Caixa Postal 01390-970 www.ftd.com.br central.relacionamento@ftd.com.br

Em respeito ao meio ambiente, as folhas deste livro foram produzidas com fibras obtidas de árvores de florestas plantadas, com origem certificada.

Impresso no Parque Gráfico da Editora FTD CNPJ 61.186.490/0016-33

Avenida Antonio Bardella, 300 Guarulhos-SP – CEP 07220-020 Tel. (11) 3545-8600 e Fax (11) 2412-5375

APRESENTAÇÃO

Prezadas e prezados estudantes,

Sejam muito bem-vindos ao mundo da Filosofia!

Este nosso livro didático vai orientar-nos por caminhos bastante diferentes e estimulantes, mas todos começando e terminando no mesmo ponto: os seres humanos. Buscaremos conhecer-nos a nós mesmos como seres que têm afetos, sentimentos e, sobretudo, pensamentos. Levaremos nosso pensamento a refletir sobre si mesmo, em uma experiência rica e transformadora.

Nossos caminhos serão fundamentalmente quatro, correspondendo às quatro unidades de nosso livro: primeiro, estudaremos a nós mesmos como seres de pensamento; segundo, como seres de sentido; terceiro, como seres de ação; e quarto, como seres de transcendência, capazes de expandir nossos horizontes.

O modo de percorrer esses caminhos será a reflexão sobre temas que nos tocam de perto, como a nossa maneira de pensar e tentar convencer, de perguntar se há um sentido para existir, de entender o que é agir e viver em Sociedade, possuir um governo que organiza a vida social e viver como seres da Natureza, sem deixar de perceber que ela mesma pode nos permitir olhar para além dela, mediante experiências como a cultura, a arte, a religião, a busca da felicidade etc.

O estudo dos temas serão atos filosóficos, e, pela repetição deles, desenvolveremos o hábito da Filosofia. Em maior ou menor medida – o que importa é encontrarmos a nossa própria –, seremos filósofos, dialogaremos com outras áreas do saber, pesquisaremos… enfim, prestaremos atenção no que significa ser um ser que pensa e que pode dar cores novas à sua vida.

Liberdade, criatividade, juventude, entusiasmo, curiosidade… essas palavras estão todas correlacionadas. Acrescentemos a Filosofia entre elas e percorreremos caminhos que nos marcarão para sempre.

Que uma forte amizade cresça entre nós!

O autor

CUIDADO LÓGICO

Enfoca de modo especial aspectos lógicos que esclarecem o tema estudado.

CONCEITOS ESTRATÉGICOS

Indica conceitos bastante empregados pelos filósofos em um sentido o mais geral possível.

#JOVENSEMAÇÃO

Fornece recursos para você analisar e propor a resolução de um problema presente em sua realidade.

OBjETOS EDUCACIONAIS DIGITAIS

Os ícones a seguir identificam os diferentes tipos de objetos educacionais digitais presentes neste volume. Esses materiais digitais apresentam assuntos complementares ao conteúdo trabalhado na obra, ampliando a aprendizagem.

DICA

Sugere livros, filmes, vídeos, sites, músicas etc. para que você possa ampliar seus conhecimentos sobre o assunto estudado.

DIALOGANDO

Convida você a se expressar oralmente a fim de emitir uma opinião, contar uma experiência ou responder objetivamente a uma pergunta sobre um tema.

e a transcendência como duas alternativas excludentes. O “mundo” seria explicável por si só e tornaria desnecessário apontar para alguma dimensão maior do que ele. É o caso da posição filosófica conhecida como materialismo a matéria de que são feitas todas as coisas é portadora de suas próprias possibilidades de desenvolvimento e é suficiente para explicar o “mundo”. Ela daria o seu sentido imanente tanto como finalidade (o desenvolvimento da matéria seu próprio objetivo) quanto como

BIOGRAFIA

Apresenta informações sobre a vida e a obra dos filósofos, com o objetivo de situá-los no tempo e no espaço.

Os sites indicados nesta obra podem apresentar imagens e eventuais textos publicitários junto ao conteúdo de referência, os quais não condizem com o objetivo didático da coleção. Não há controle sobre esses conteúdos, pois eles estão estritamente relacionados ao histórico de pesquisa de cada usuário e à dinâmica dos meios digitais.

SUMÁRIO

PORTAS PARA A FILOSOFIA

[LOS OBJETOS son la sustancia del mundo?]. 2013. Spray sobre chapa de aço. São Paulo (SP). Na imagem, de artista desconhecido, uma personagem grafita em uma banca de jornal a frase "Os objetos são a substância do mundo?", em tradução livre. O grafite foi feito na rua José Paulino, muito popular pelas lojas de vestuário.

O ser humano distingue-se de todos os outros seres porque é capaz de abrir-se: aos seus semelhantes, aos animais não racionais, ao reino vegetal, ao reino mineral, às partes, ao todo... Pode decidir ir ao encontro dos outros, aceitar que venham ao seu encontro, compor seu estilo de viver. Mas deve-se dizer também que essa abertura é válida para nós mesmos. Abrir-se a si mesmo(a), conhecer-se: eis um dos desafios mais estimulantes de nossa vida.

Diferentes portas dão acesso à Filosofia e permitem conhecer inúmeras pessoas que a cultivaram ou ainda a cultivam. Duas das principais dessas portas são a da existência e a dos saberes. Antes, portanto, de chegar propriamente à Filosofia, é recomendável conhecermos modos de abrir essas duas portas, a fim de atravessá-las e iniciar a prática de atos filosóficos, como ficará mais evidente à medida que avançarmos nos estudos.

Desconstruir e reconstruir a existência

A imagem de abertura deste capítulo é uma porta para mergulharmos em nossa existência. Se aceitarmos esse mergulho, começaremos a praticar a Filosofia.

A arte trata-se de um grafite em uma banca de jornal e, olhando com mais atenção, percebemos que a imagem não é uma simples inscrição no espaço público. Ao contrário, o(a) artista calculou a forma como escrever, usou letras em harmonia e acrescentou a imagem de uma pessoa que usa tinta spray para escrever no espaço, como se fosse um espelho da realidade do(a) artista. Podemos interpretar o grafite como um gesto de autoexpressão; um convite ao diálogo. Outro ponto que chama a atenção é que, na parte da banca onde estava escrita a frase “PROIBIDO COLAR CARTAZES”, o(a) artista riscou a palavra “PROIBIDO”, deixando apenas “COLAR CARTAZES”, fazendo explicitamente um convite à manifestação artística e à reflexão sobre a existência por meio da arte.

Você talvez tenha notado que, no parágrafo anterior, empregamos propositalmente as palavras artista e arte, pois a inscrição do grafite não é banal. Ao contrário, é elaborada e revela a busca por uma expressão bela. A palavra grafite provém do termo italiano graffiti, plural de graffito, e, além de referir-se ao desenho na parede, pode também designar o mineral usado a fim de fabricar bastões para escrever ou desenhar. Aliás, a técnica de registrar nos espaços públicos expressões de beleza é tão remota quanto a humanidade. Há registros de pinturas rupestres muito antigas, como as do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, com cerca de 12 mil anos, ou as da cidade de Pompeia (Itália), incendiada em 79 d.C. por uma erupção do vulcão Vesúvio.

► Pinturas rupestres na Toca do Boqueirão da Pedra Furada. Parque Nacional Serra da Capivara (PI), 2023. As pinturas têm aproximadamente 12 mil anos.

► ZAGEMEISTER, Carolvs (ed.). Inscriptiones parietariae pompeianae [Inscrições murais de Pompeia]. Berlim: Georg Reimer, 1871. (Corpus Inscriptionum Latin arum, v. IV, p. XI). Grafite de autor desconhecido na cidade de Pompeia (Itália), há aproximadamente 2 mil anos. Na imagem, registra-se: “Admiro que tu, ó parede, ainda não tenhas desmoronado, mesmo suportando o tédio de tantos escritores”. Tradução nossa.

• Resenha sobre o documentário Caverna dos sonhos esquecidos, de Werner Herzog, sobre pinturas rupestres da Gruta de Chauvet (França).

CAVERNA dos sonhos esquecidos: imagens em movimento da história: Werner Herzog. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (7 min). Publicado pelo canal Matheus Benites. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=B_SpfmjHv3o. Acesso em: 7 jul. 2024.

DiCA

O s objetos são a substância do mundo?

Com o estudo feito até aqui, iniciamos um processo de desconstrução e reconstrução do tema estudado, a fim de melhor compreendê-lo. Desconstruir não é destruir, mas é decompor algo nas partes que o compõem, de modo que, estudando cada uma delas, podemos reassociá-las e reconstruir o conjunto unificado, com um conhecimento mais sólido sobre ele.

Continuemos a desconstruir e a reconstruir, até onde pudermos, a imagem que nos levou a prestar atenção em alguns aspectos de nossa existência. O grafite contém uma frase escrita em espanhol, que, em tradução livre, significa: "Os objetos são a substância do mundo?".

Nessa frase, duas palavras merecem reflexão inicialmente: objetos e substância.

O significado mais comum de substância é físico-químico: substância é aquilo de que algo é feito, como, por exemplo, a substância de um bolo (farinha, ovo...) ou a substância de um prédio (cimento, água, ferro, areia etc.).

O uso filosófico da palavra, no entanto, identifica outros significados, sendo dois deles os principais: substância é tudo o que existe por si (uma pedra, uma emoção, uma imagem, um pensamento, uma pessoa e assim por diante); e substância é tudo o que tem significado para nós

De acordo com o primeiro significado filosófico, podemos dizer, por exemplo: “Isto é uma substância porque é uma árvore”, “Minha alegria é uma substância” etc. As substâncias, assim, existem e convidam-nos a um ato de conhecimento. Já de acordo com o segundo significado filosófico, podemos dizer, por exemplo: “A substância dessa planta é o fato de ela pertencer ao reino vegetal” ou “A substância da minha alegria é o fato de ela ser uma emoção” etc. Passa-se, então, daquilo que as coisas são por si mesmas àquilo que elas são para nós, quer dizer, à significação resultante da nossa resposta ao convite por elas feito para serem conhecidas.

► CASTRO, Panmela. Siameses. 2015. 1 grafite.

O segundo significado filosófico abre um vasto campo de investigação e de reflexão sobre a existência.

No vocabulário filosófico, substância tem um sinônimo muito rico: essência, palavra que aponta para o que há de fundamental em tudo o que existe; aquilo sem o que algo deixa de ser o que é. Por exemplo, o que faz de uma planta uma árvore é o seu “ser árvore”, e não o “ser um ipê”, o “ser um jacarandá”, o “ser uma árvore grande” ou o “ser uma árvore pequena”, o estar aqui ou o estar ali… O seu “ser árvore” é tão fundamental que ele também é encontrado em todas as árvores existentes, imaginadas e imagináveis. Melhor dizendo, o “ser árvore” é praticado por todas as árvores.

No tocante a seres imaginários, como um unicórnio, por exemplo, eles também têm o ser que lhes dá o que eles são. No caso do unicórnio, ele tem o “ser unicórnio”, embora não tenha o “ser por si no mundo”, mas apenas o “ser na imaginação”.

Na História da Filosofia, reserva-se, em geral, a palavra essência para designar o ser de cada existente e substância para designar os próprios existentes. Ligado a esse vocabulário filosófico, há também outro sentido para o termo essência, uma variação do primeiro significado. Trata-se da possibilidade de chamar de essência aquilo que nós identificamos como o que há de mais importante em algo. É o sentido que nós damos a cada existente ou o que cada existente significa para nós. É o caso de quando alguém diz: “A essência da minha vida é o amor”. Esse uso do termo essência dá ao existente o significado de finalidade (“Minha vida existe para o amor”).

Representação de cavalos comumente utilizada para exemplificar o conceito de essência na filosofia de Platão.

► MONDRIAN, Piet. Victory Boogie-Woogie. 1944. Óleo e papel sobre tela, 126 cm x 126 cm. Museu Municipal de Haia, Haia (Países Baixos).

A imagem dos cavalos é comumente utilizada para representar o pensamento de Platão (c. 427 a.C.-347 a.C.) sobre as essências, pois ele foi um dos primeiros pensadores a explorar o tema. Segundo essa representação, a essência de cavalo (o “ser cavalo”) é separada do mundo dos cavalos singulares. Essa representação é inadequada, pois faz da essência algo separado do que existe, quando, na realidade, em vez de separada, ela é apenas independente (as coisas passam, a essência continua).

MUSEUMUNICIPALDEHAIA

Um modo mais adequado de representar o pensamento platônico sobre a essência é o quadro de Piet Mondrian (1872-1944): se as essências dão as regras do “ser” e do “ser algo”, elas operam no mundo, mas são visíveis apenas para o pensamento que as entende. Não podemos, portanto, desenhá-las, mas podemos representar seu dinamismo. Observando, por exemplo, o quadro de Mondrian, percebemos que não nos detemos em nenhuma cor, mas circulamos por todas elas. Ao mesmo tempo, é impossível notar uma forma sem perceber as outras ao seu redor. Assim, uma cor só se deixa perceber quando é contraposta a outras. É até possível referir-se à cor e à “não cor”, pois uma “não cor” não é uma cor que não existe, mas é apenas outra cor, “um outro de uma cor”. Assim agem as essências no mundo. Elas estão em tudo e vão além de tudo; algumas mesclam-se, outras, não; mas todas só são percebidas por contraposição e ganham novo sentido quando consideradas no todo.

Com esse vocabulário em mente, podemos entender a frase do grafite do início do capítulo de três maneiras.

a) Os objetos são tudo o que há no mundo?

b) Os objetos são aquilo que dão o ser do mundo?

c) Os objetos são a finalidade do mundo?

Em todas elas, o termo objeto também requer compreensão, pois, assim como substância, ele possui diferentes significados.

O mais comum deles é o de coisas físicas (cadeiras, árvores, livros etc.). Mas, em Filosofia, objeto pode significar também tudo aquilo em que pensamos. Dessa perspectiva, objeto pode ser uma cadeira, mas uma cadeira percebida e/ou pensada; minha alegria e minha dor podem ser objetos, mas minha alegria e minha dor percebidas e/ou pensadas.

Não temos dados suficientes para, apenas observando o grafite, saber qual significado seu(sua) autor(a) tinha em mente. É possível, porém, ir além da simples frase e recolher elementos de seu contexto histórico, a fim de melhor compreendê-la. Na compreensão e interpretação de um texto, seja ele breve ou longo, visual ou verbal, nem sempre é legítimo recorrer ao seu contexto histórico para explicá-lo. No máximo, podemos conhecer fatores que compunham o momento em que ele foi escrito, sem a garantia de ser verdadeira a conclusão de que o conteúdo do texto foi pautado no que seu(sua) autor(a) vivia.

C onsumo e mercadoria

No caso do grafite em questão, é perfeitamente legítimo recorrer ao contexto, porque foi feito na época do Natal de 2013, precisamente na primeira semana de dezembro, em uma banca de jornal na Rua José Paulino, em São Paulo (SP). Nesse local, concentram-se muitas lojas, principalmente de roupas, com preços acessíveis. Durante o ano todo, há muito movimento na região. A União dos Lojistas da Rua 25 de Março e Adjacências (Univinco) costuma fazer a seguinte comparação: cerca de 400 mil pessoas circulam aos sábados pela região da Rua José Paulino durante o ano todo; já na época de Natal, a cada sábado recebe 1 milhão e 200 mil pessoas (pouco menos da metade da população de Brasília (DF); quase o dobro da população de Cuiabá, no Mato Grosso).

As pessoas se agitam, debatem, pechincham e trocam mercadorias, todas movidas pelo desejo de encontrar o melhor preço. O importante é consumir, adquirir, comprar!

Foi nesse contexto que o(a) artista exprimiu seu pensamento no grafite. Por isso, é bastante razoável pensar que os objetos aos quais ele(a) se refere são coisas materiais, ou, para dizer com mais precisão, são mercadorias.

O fato de ter escrito em espanhol também não é casual. Já é bem sabido que, na capital paulista, há trabalhadores estrangeiros, principalmente bolivianos e paraguaios, alguns deles contratados por ateliês de costura clandestinos. Muitos desses trabalhadores vivem em condições precárias: jornadas maiores do que 10 horas por dia, salários baixos, moradia no próprio local de trabalho e nenhuma assistência médica. Esses estrangeiros saíram de seus países porque quiseram ou para poder “viver melhor”, como se diz?

Leia o que o pesquisador Paulo Correa comenta a respeito dessa cadeia produtiva:

[...] "O sistema é insustentável, inclusive materialmente. [...] A moda fluida e rápida gera o descarte e antecipa a obsolescência dos materiais no setor. Isso é insustentável e as relações laborais também se inserem nessa lógica." [...]

MENEZES, Adriana Vilar de. Mão de obra paraguaia na indústria têxtil paulista. Jornal da Unicamp, Campinas, ed. 707, p. 2-3, 10-23 jun. 2024. p. 2.

O(a) artista do grafite, então, pode ser um(a) estrangeiro(a) ou mesmo um(a) brasileiro(a) que escreveu em espanhol para denunciar as condições de trabalho análogo à escravidão verificadas em oficinas da região. Diante da ansiedade do consumo e das pessoas que acreditam na compra como meio de obter a felicidade, entendemos melhor o grafite. O grito do(a) artista pode denunciar o horror de uma vida que despreza multidões e só ajuda poucos. Esse processo é saudável? É bom? As mercadorias são a substância do mundo? É humano que, para o consumo de alguns, outros sejam explorados? O que é ser humano no mundo atual?

1. Em dupla. Conversem sobre as prováveis razões que levam as pessoas a mudar de país.

2. Reflitam se alguma vez já pensaram que nossas roupas podem ter ligação com exploração de pessoas, tráfico e movimentos migratórios de exploração econômica. Vocês acham isso possível ou impossível?

► Galeria de lojas no Brás. São Paulo (SP), 2019.
ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL
DiAlOGANDO

O fetiche da mercadoria e as relações humanas

Até aqui levantamos diversas questões, o que significa que adotamos uma postura filosófica, pois percebemos como é problemático falar do sentido do mundo e contribuímos com nossa reflexão para mostrar o que está contido em uma frase aparentemente simples de um grafite. Pudemos ao menos evocar o que significa socialmente buscar a felicidade no consumo, depositar expectativas em coisas, bem como as consequências do capitalismo, perpassando pela exploração do trabalho humano. Tudo motivado pelo grafite inicial.

Podemos ampliar essa reflexão se observarmos que a mentalidade do consumo contagia outras áreas da vida humana. Quer dizer, mesmo em experiências nas quais não há compra e venda, comportamo-nos como se estivéssemos diante de mercadorias. Por exemplo, muitas pessoas têm grandes dificuldades para encontrar amigos ou mesmo entrar em relações amorosas, pois só querem aproximar-se de pessoas com características predefinidas de corpo e de personalidade. Nesse contexto, essas pessoas podem ser consideradas “objetos”, disponíveis para produzir e alimentar o consumo.

Nosso olhar pode estar condicionado a perceber a realidade apenas como um conjunto de coisas a serem consumidas. Somos levados(as) a crer que, para sermos felizes, temos sempre que adquirir bons produtos, e deixamos de prestar atenção no nosso próprio modo de apreciar as pessoas e as coisas. Acostumados a comprar, acabamos por acreditar que o valor das coisas depende só delas (de seu bom funcionamento, de sua sofisticação etc.). Não percebemos que o que realmente estabelece o valor das mercadorias é a quantidade de esforço humano empregado para produzi-las. Nesse disfarce, as mercadorias “seduzem-nos” com a aparência de meios para satisfazer todos os nossos desejos. Elas nos distraem a ponto de tornar difícil pensar no que significa buscar satisfação, fazendo-nos depositar nossa esperança de realização em coisas consumíveis.

A psicanalista Vera Iaconelli (1965-) analisou a relação entre as crianças e as mercadorias. Leia o trecho a seguir do depoimento de Iaconelli sobre o assunto.

[…] A criança absorve o mundo como uma esponja. Ela percebe o valor dos objetos nas relações sociais, mas o faz sem capacidade crítica. Quando ela vê uma publicidade de um brinquedo que voa, é incapaz de entender que não é bem assim. Portanto, a publicidade abusa da credulidade infantil e seduz sem escrúpulos. São os pais que devem fazer a escolha do que oferecer aos filhos em qualquer âmbito: comida, roupa, brinquedos. Dentro dessa seleção prévia, desse filtro parental, a criança terá uma margem de escolha […].

► Fotografia de Vera Iaconelli, em São Paulo (SP), 2024.

QUAL é a relação entre consumismo e depressão na infância? São Paulo: Lunetas, 1 jun. 2021. Disponível em: https://lunetas. com.br/consumismo-depressao-infancia/. Acesso em: 7 jul. 2024.

Com o tempo, muitos seres humanos se condicionam a buscar satisfação apenas nas mercadorias, ao ponto de começar a tratar situações e pessoas como se fossem produtos, sem perceber o que elas realmente são. Um filósofo de grande influência refletiu exatamente sobre o poder de sedução das mercadorias e procurou entender esse mecanismo. Trata-se de Karl Marx (1818-1883), que formulou a chamada teoria do fetiche da mercadoria.

O fetiche da mercadoria

É evidente que o homem por meio de sua atividade modifica as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma mesa. Não obstante, a mesa continua sendo madeira, uma coisa ordinária física. Mas, logo que ela aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica. Além de se pôr com os pés no chão, ela se põe sobre a cabeça perante todas as outras mercadorias e desenvolve de sua cabeça de madeira cismas muito mais estranhas do que se ela começasse a dançar por sua própria iniciativa.

O caráter místico da mercadoria não provém, portanto, de seu valor de uso. Ele não provém, tampouco, do conteúdo das determinações de valor. Pois, primeiro, por mais que se diferenciem os trabalhos úteis ou atividades produtivas, é uma verdade fisiológica que eles são funções do organismo humano e que cada uma dessas funções, qualquer que seja seu conteúdo ou forma, é essencialmente dispêndio de cérebro, nervos, músculos, sentidos etc. Segundo, quanto ao que serve de base à determinação da grandeza de valor, a duração daquele dispêndio físico ou quantidade do trabalho, a quantidade é distinguível até pelos sentidos da qualidade do trabalho. Sob todas as condições, o tempo de trabalho, que custa a produção dos meios de subsistência, havia de interessar ao ser humano, embora não igualmente nos diferentes estágios de desenvolvimento. Finalmente, tão logo os humanos trabalham uns para os outros de alguma maneira, seu trabalho adquire também uma forma social.

De onde provém, então, o caráter enigmático do produto do trabalho, tão logo ele assume a forma da mercadoria? Evidentemente, dessa forma mesmo. A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material de igual objetividade de valor dos produtos de trabalho; a medida do dispêndio de força de trabalho do homem, por meio da sua duração, assume a forma da grandeza de valor dos produtos de trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, em que aquelas características sociais de seus trabalhos são ativadas, assumem a forma de uma relação social entre os produtos de trabalho.

O [caráter] misterioso da forma da mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas; e, por isso, também reflete uma relação existente fora deles, entre objetos. [...]

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Tradução: Regis Barbosa, Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os economistas, v. 1, t. 1, p. 197-198).

► Fotografia de manequim, 2021. O rosto impessoal do manequim faz pensar sobre o que tem mais valor na sociedade organizada em torno do consumo de mercadorias.

Fetiche: algo a que se atribui um valor mágico. Não obstante: apesar disso.

Ordinário: corriqueiro; comum.

Metafísico: algo que tem um significado perceptível apenas por meio da inteligência, permanecendo inacessível aos simples sentidos físicos.

Cisma: desconfiança; teimosia; ruptura.

Místico: misterioso; algo sagrado.

Dispêndio: uso; gasto. Subsistência: produção do próprio sustento.

Enigmático: algo que contém um enigma a ser decifrado.

Observe que o fragmento do texto de Karl Marx inicia a reflexão tomando por base algo que parece aceitável por todos, ou pelo menos algo cujo contrário mostra-se absurdo (uma evidência, como se costuma dizer): trata-se do fato de o uso humano das coisas ser uma verdade fisiológica, isto é, algo verdadeiro em relação ao funcionamento do corpo humano.

Linha de produção industrial de detergente. A fascinação do fetiche da mercadoria dificulta perceber o trabalho humano (o uso do corpo e do tempo dos trabalhadores) implicado em cada produto.

O filósofo nota também que, quando alguém realiza um trabalho tendo em vista uma utilidade (produção), usa e gasta seu corpo, sobretudo o cérebro, os nervos, os músculos. Esse ponto de partida não aparece logo no início do texto. É só no segundo parágrafo da citação que Marx o explicita para mostrar que a observação do mundo contradiz o caráter místico e metafísico da mercadoria, tal como fora indicado no primeiro e no início do segundo parágrafo da citação.

Marx continua, ainda no segundo parágrafo do trecho, a buscar o que pode dar concretamente a medida de valor das mercadorias. Tal medida está relacionada, como se verá na sequência do texto, com a experiência denominada trabalho, que inclui o uso do corpo e o emprego do tempo. Alguns trabalhos terão certamente mais qualidades do que outros e maior valor, mas, dizendo sem mistérios nem divinização dos produtos, o valor deles pode ser medido objetivamente pelo uso do corpo dos trabalhadores que os produzem e pelo emprego do tempo dos trabalhadores, associando-se a esses dois elementos o modo como os produtos são feitos. Para medir esse modo, o tempo empregado na produção passa a ser essencial (partindo-se do princípio de que o tempo corresponderá a um modo honesto de trabalhar).

Ocorre, porém, que o modo de produção e as relações sociais capitalistas criam em torno do produto uma aparência diferente da de um mero resultado de uma ação fisiológica. O produto como valor de troca ou, de maneira mais exata, na forma da mercadoria (terceiro parágrafo da citação), sobreposta à forma de produto fisiológico, é o que faz, então, que ele receba novos valores, por causa das crenças e práticas sociais centradas na obtenção e acumulação de riquezas com base no uso de mão de obra considerada “barata” (assim considerada sempre de acordo com os critérios de obter o maior lucro possível para si mesmo, e não para o grupo social).

A forma da mercadoria faz acontecer, ainda, uma inversão extremamente significativa: os seres humanos não prestam atenção no fato de que são as relações humanas de produção que dão valor às coisas e acabam achando que as próprias coisas têm valor por si mesmas. Em outras palavras, quando alguém vê uma mercadoria, não identifica o processo de trabalho que a produziu (a mesma atividade fisiológica de todo

Preparador de charque no Rio Grande do Sul (RS), 2019.

trabalho), pois se deixa seduzir pelo modo como a coisa é socialmente valorizada, e não presta atenção no processo social que cria o valor.

As trabalhadoras e os trabalhadores passam a encarar a si mesmas e a si mesmos com base na forma da mercadoria e, então, avaliam-se uns aos outros tomando por critério o valor dado às mercadorias.

Observe como chegamos longe em nossa reflexão iniciada com a leitura do grafite de um(a) artista anônimo(a)! Desconstruímos a frase e a reconstruímos com ajuda de elementos sociológicos e históricos, bem como com a interpretação dada por Karl Marx às relações de produção.

É por isso que insistimos nos dois procedimentos elementares com os quais começamos a filosofar: a desconstrução e a reconstrução do sentido da existência. Nosso caminho mostra ainda que o papel da filosofia não é apenas fazer perguntas, mas também oferecer respostas.

A centopeia confusa

Fábula anônima da China antiga

Uma centopeia vivia tranquila, despreocupada e feliz, até que certo dia um sapo, que vivia nas redondezas, fez-lhe uma pergunta bem desconcertante:

– Quando você anda, em que ordem você mexe suas patas?

A centopeia ficou tão perturbada pela questão do sapo, que entrou imediatamente em seu buraco para refletir. Porém, mesmo esquentando seu cérebro, não encontrava nenhuma resposta.

Depois de muito questionar, a centopeia não conseguiu mais pôr suas patas em movimento. Não se movendo, ficou presa em seu buraco e morreu de fome.

► A CENTOPEIA e o sapo. Direção: Anna Khmelevskaya; Fabrice Luang-Vija. França: Fargo, 2013. Streaming (10 min). Frame da animação.

1. Resuma o modo como Karl Marx explicou a relação dos seres humanos com as mercadorias e argumente se você considera essa explicação adequada para exprimir a sua experiência de vida.

2. Por que não faz sentido comparar a Filosofia com a centopeia confusa?

Consultar orientações no Manual do Professor.

EXERCICIO Não escreva no livro. A
PIQUEMAL, Michel. Les philo-fables [As filo-fábulas]. Ilustrações: Philippe Lagautrière. Paris: Albin Michel, 2003. p. 38. Tradução nossa.

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

Não escreva no livro.

Algumas pensadoras, ao estudar o pensamento de Marx em seu conjunto, levantaram questões típicas de nossa época, nas quais talvez Marx não tenha tido ocasião de pensar em função dos conhecimentos construídos até sua época. Elas identificaram, sobretudo, lacunas nas análises sociofilosóficas de Marx, como a ausência do estudo do trabalho doméstico feminino entendido como natural e não merecedor de salário, entre outras. Leia com um(a) colega o trecho a seguir escrito pela filósofa Silvia Federici (1942-). Sobre dois aspectos [do pensamento de Marx], todavia, não há dúvida

► Silvia Federici (1942-), São Paulo (SP), 2019.

A língua política que Marx legou-nos é ainda necessária para pensar um mundo para além do capitalismo. Sua análise da mais-valia, do capital e da forma da mercadoria [...], recusando separar o que é econômico do que é político, permanecem indispensáveis, mas não são suficientes para compreender o capitalismo contemporâneo. Não surpreende que o agravamento da crise econômica mundial tenha provocado um reganho de interesse por Marx, o que muitos não teriam podido prever nos anos 1990, quando a interpretação dominante declarou caduca a teoria de Marx. Em vez disso, entre os escombros do socialismo histórico, amplos debates surgiram sobre as questões da acumulação primitiva, [entre outros]. Mesclada com os princípios eministas, anarquistas, antirracistas e queer, a teoria de Marx continua a influenciar os insubmissos da Europa, das Américas e muito além. Um feminismo anticapitalista não pode, portanto, ignorar Marx. Com efeito, como sustentou Stevi Jackson, “no início dos anos 1980, as perspectivas dominantes da teoria feminista eram geralmente informadas pelo marxismo ou formuladas em diálogo com ele”. No entanto, não resta dúvida de que as categorias de Marx devem receber novos fundamentos e que devemos ir “além de Marx” (como diz Antonio Negri, “Marx além de Marx”). Isso não se deve apenas às transformações socioeconômicas que ocorreram desde a época de Marx, mas também por causa dos limites de sua compreensão das relações capitalistas – limites, aliás, cuja significação política foi trazida à tona pelos movimentos sociais da segunda metade do último século, os quais introduziram na cena mundial temas sociais que a teoria de Marx ignorava ou marginalizava.

FEDERICI, Silvia. Re-enchanting the world: feminism and politics of the commons [Reencantar o mundo: feminismo e política dos bens comuns]. Oakland: PM Press, 2019. p. 152. Tradução nossa.

1. O texto contribuiu para alguma mudança em sua forma de considerar a experiência feminina específica na busca de compreender o mundo?

2. A sociedade ainda vê certos trabalhos como “naturais” para as mulheres? Como isso pode afetar a percepção e a valorização desses trabalhos?

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Mais-valia: diferença entre a quantidade de valor acrescentada à mercadoria e o valor da força de trabalho necessária para produzir tal mercadoria.

Capital: soma de investimentos empregada para deles tirar lucro; estoque de bens ou riquezas necessárias a uma produção.

Anarquista: designa grupos filosóficos, políticos, científicos, artísticos, religiosos etc. que defendem a formação de uma sociedade na qual a autoridade não é exercida por alguns, mas realmente por todos, mediante a participação direta na democracia e a valorização incondicional da liberdade individual.

Queer: referência geral a todos os movimentos de reflexão e ação em torno das questões da condição sexual, com a consequente luta pelo respeito absoluto à singularidade de cada indivíduo, com seus direitos e deveres.

InTEGranDO COm...

Sociologia

Apropriação cultural, consumo e racismo

Não escreva no livro.

Leia os trechos a seguir e reflita sobre como apropriação cultural e racismo mantêm uma ligação estreita.

Apropriação

cultural

Apropriação cultural é um mecanismo de opressão por meio do qual um grupo dominante se apodera de uma cultura inferiorizada, esvaziando de significados suas produções, costumes, tradições e demais elementos. [...]

WILLIAM, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Pólen, 2019. p. 28-29.

Questione a cultura que você consome

[...] o debate sobre apropriação cultural não deve ser reduzido a poder ou não usar turbante. A discussão pertinente é aquela que denuncia o quanto culturas negras e indígenas foram expropriadas e apropriadas historicamente. Nos processos de colonização, a visão de cultura do colonizador foi imposta, enquanto bens culturais eram saqueados. Um exemplo disso são as coleções dos principais museus da Europa, onde hoje se encontram objetos de diferentes países africanos, asiáticos e americanos – peças que, com certeza, devem significar muito para essas culturas. A questão crucial desse debate é que o interesse pela cultura de certos povos não caminha lado a lado com o desejo de restituir a humanidade de grupos oprimidos. Assim, muitas pessoas que consomem cultura negra não se preocupam com as mazelas que a população negra vive no país. [...]

Outro ponto importante é perceber em que medida um elemento cultural foi esvaziado de sentido. Portanto, é fundamental debater o papel do capitalismo na perpetuação do racismo. Por exemplo, uma marca de luxo pode fazer uma coleção de moda inspirada em elementos da cultura negra, porém só contratar modelos brancas para o desfile – essas peças chegam ao consumidor já destituídas de sentido. O debate, dessa forma, precisa ser estrutural, não individual. É importante que se tenha uma preocupação real em não desrespeitar os símbolos de outras culturas. Para isso, deve-se nutrir empatia pelos diversos grupos existentes na sociedade, um processo intelectual que é construído ao longo do tempo e exige comprometimento: quando eu conheço uma cultura, eu a respeito. Então é essencial estudar, escutar e se informar.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. E-book. Localizável em: subt. Questione a cultura que você consome.

1. Você já parou para pensar sobre a origem das mercadorias que você consome? Sabe dizer, por exemplo, se entre elas há o consumo de bens e símbolos de outras culturas? Se sim, de quais culturas?

2 . Segundo o texto, no contexto do capitalismo, qual é a relação entre apropriação cultural, racismo e desigualdade?

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GREG SALIBIAN/FOLHAPRESS

► Rodney William é antropólogo e babalorixá (“pai de santo” em algumas religiões afro-brasileiras).

GREG SALIBIAN/FOLHAPRESS

► Djamila Ribeiro é filósofa e coordena a iniciativa Feminismos Plurais.

Interlocutor: membro de um diálogo.

Massa: a quantidade de matéria de um corpo; a matéria, por sua vez, é o que compõe todos os corpos ou seres naturais.

► Ilusão de óptica com dados. A realidade corresponde realmente ao que percebemos dela e ao que pensamos sobre ela?

Desconstruir e reconstruir os saberes

Cultivando os mais diferentes saberes (as ciências, a literatura, as artes, a política, as religiões…), chegamos muitas vezes a perguntas que os próprios saberes são incapazes de responder. São as filósofas e os filósofos que geralmente tratam dessas questões ou orientam a formulação de perguntas específicas.

Falaremos de saber , aqui, como sinônimo de todo conjunto de conhecimentos que permitem a cada pessoa construir sua visão do mundo. Conhecimento, por sua vez, refere-se a todo tipo de informação construída em debate com uma comunidade de interlocutores e interlocutoras justificada nesse mesmo debate.

O saber e o conhecimento ocorrem de fato quando pessoas tomam posse de informações registradas em livros, artigos, obras de arte etc. e dão vida a essas informações, concretizando o que está registrado. Sem pessoas, não há nem saber nem conhecimento, mas somente livros e obras em bibliotecas, museus e laboratórios, à espera de serem acionados. Tomemos um exemplo das ciências, especificamente da Física, para ilustrar questões que a Filosofia ajuda a formular, esclarecer e responder. Costuma-se afirmar que o conhecimento científico proporciona resultados seguros por fundamentar-se em fatos, em dados objetivos, ou seja, em acontecimentos do mundo que são observáveis por qualquer pessoa que lhes dedique atenção. As ciências, assim, seriam responsáveis por produzir “retratos” do mundo, representações fiéis que tornariam sem sentido a atividade de questionar suas conclusões.

Desconstruindo essa imagem do conhecimento científico, vemos que o que se entende por fato torna-se uma questão interessante quando se observam como diferentes cientistas analisaram os mesmos “fatos”, mas deram-lhes explicações bastante diferentes. Surge, então, a questão: mas, afinal, o que é um fato? Um fato não seria igualmente percebido por todos, já que ele é evidente, porque defender o seu contrário mostra-se um absurdo?

Um belo capítulo da História da Ciência ilustra o debate sobre a natureza dos fatos e sua pretensa evidência: a Lei da Gravidade ou Lei da Atração Universal. No modo como ela é mais conhecida, essa lei foi formulada por Isaac Newton (1642-1727), que procurava explicar por que os corpos ou as realidades físicas interagem entre si, causando atração mútua sob o efeito de sua massa. Isso pode ser observado pela atração que a Terra exerce sobre nós, impedindo-nos de flutuar. A essa atração chamamos gravidade.

Fatos como esse há tantos: as marés, a órbita dos planetas em torno do Sol, a esfericidade dos corpos celestes etc.; e, em grande escala, a gravitação determina a estrutura do Universo; todos os corpos obedecem a essa lei, que pode ser assim formulada: dois corpos atraem-se com forças de mesmo valor, proporcionais à massa desses corpos e inversamente proporcionais ao quadrado da distância que os separa.

No entanto, desde o início do século XX, a Física apresentou uma nova explicação para o mesmo fato. Albert Einstein (1879-1955) observou que Newton, em sua teoria, assumia que os corpos possuíam uma velocidade absoluta, ou seja, estavam realmente em repouso ou em movimento. Einstein demonstrou que a velocidade de um corpo só pode ser medida em relação à velocidade de outro corpo, assim como sua posição depende da posição de outro corpo. Além disso, a interação entre os corpos (gravitação) ocorre a uma velocidade que, para Newton, era considerada instantânea, independentemente da distância.

Einstein questionava o significado do advérbio realmente. Sua argumentação tinha como base algo fundamental: a velocidade da luz. Ele explicava que a luz se move mais rapidamente do que qualquer outra coisa, porque não possui massa. Além disso, todo corpo experimenta um aumento de massa à medida que sua velocidade aumenta, pois o aumento de velocidade implica um aumento de energia.

Esse conceito é mais fácil de entender quando consideramos velocidades elevadas, em vez das baixas velocidades com as quais estamos acostumados. Uma velocidade alta, por exemplo, é de aproximadamente 1 666 km/h, que é a velocidade com que a Terra completa um giro inteiro sobre seu próprio eixo. Podemos dizer que compreendemos essa velocidade até certo ponto, pois sabemos que a Terra leva 24 horas em uma rotação. No entanto, não temos experiência direta do que realmente significam 1 666 km/h.

Esfericidade: característica do que tem o formato de uma esfera.

► DABOUL, Samer. Fases da Lua. 2018. Montagem de fotografias em time-lapse. Fases da Lua registradas na Síria. Em razão da força da gravidade ou da atração que os corpos celestes exercem entre si, a Lua pode fazer regularmente seu movimento de satélite da Terra, sem chocar-se com ela.

Retilíneo: o que tem o formato de uma linha reta.

Representação imaginativa do que significa afirmar que a gravitação opera por ondas. Assim como quando se coloca um objeto pesado sobre um colchão, e ele afunda, ao colocar um objeto mais leve próximo ao primeiro, este tende a se mover em sua direção. Se o segundo objeto for mais pesado, é o primeiro que tenderá a mover-se em sua direção.

A limitação da percepção direta de inúmeros fenômenos torna difícil compreender a revisão einsteiniana da física newtoniana. No entanto, para velocidades baixas, continuamos a aceitar as leis de Newton, já que elas são diretamente observáveis; e, embora os detalhes da teoria de Einstein possam não ser diretamente observáveis, isso não impede a compreensão de sua revisão das leis de Newton. Falamos de velocidade instantânea porque, tradicionalmente, enfatizamos o espaço e a força dos corpos; porém, ao considerar também o tempo, como fez Einstein, ou o conceito de espaço-tempo, percebemos que não é simples afirmar que os corpos estão realmente em movimento ou em repouso. Afinal, movimento e repouso são relativos à fonte do movimento e ao observador ou observadora. É por isso que Einstein propôs que a gravitação funciona por ondas, e não em trajetórias retilíneas. Para melhor compreender o que diz Einstein, tente imaginar que espaço e tempo são inseparáveis; formam uma unidade. Se segurarmos uma toalha de mesa bem reta e pusermos uma bola sobre ela, a ponto de evitar qualquer variação, a bola ficará em repouso; só se moverá se outra coisa a mover. Entretanto, Einstein explica que essa imagem não corresponde ao Universo. Tudo no Universo se encontra numa posição relativa, como se pegássemos uma toalha de mesa com uma bola no centro, formando um campo de influência sobre tudo o que for posto sobre essa toalha. Entre as pontas da toalha e o centro há, portanto, um trajeto não retilíneo, mas curvo, e tudo o que for posto sobre essa toalha será atraído pelo seu centro. Assim, em vez de simplesmente tratar a gravitação como força, Einstein irá considerá-la como a curva criada pelo espaço-tempo, produzida pela distribuição da energia e variável segundo a posição do observador.

A teoria de Einstein não anula a de Newton; apenas mostra-se mais completa. Ao estudar a teoria da gravitação universal de Newton e a teoria da gravitação relativa de Einstein, uma pessoa minimamente interessada em ciência dá-se conta de que: tratando-se do mesmo mundo (dos mesmos fatos), ambas são muito diferentes. Essa percepção pode levar a perguntas como: o que é uma lei científica? Se uma lei

científica é um retrato fiel dos fatos, como entender que duas leis diferentes expliquem os mesmos fatos? Ou as leis científicas são como quadros pintados de maneira pessoal, ao modo de uma interpretação e não de uma explicação?

A maioria das pessoas cientistas, porém, não se preocupa com perguntas desse tipo. Quando alguém no campo da ciência levanta questões como essas, essa pessoa está se comportando como filósofo(a) ou mesmo se torna filósofo(a). Problematizações como a de Einstein e as perguntas filosóficas que surgem dela permitem entender a curiosidade filosófica que pode ser despertada no estudo das ciências.

A Filosofia, aliás, opera dessa maneira não somente com as Ciências da Natureza, mas também com as Ciências Humanas. Por exemplo, filosoficamente cabe perguntar: se se crê que a Psicologia e a Psicanálise analisam fatos da vida psíquica, então cada pessoa vive experiências compreensíveis cientificamente? Há leis também na vida psíquica? Na Sociologia, quando se publicam estatísticas de comportamento de grupos, todos os membros desses grupos têm necessariamente o mesmo comportamento?

O que leva a falar de comportamento grupal se todo grupo é composto de indivíduos?

A curiosidade filosófica surge também diante dos outros saberes. Por exemplo, diante de manifestações artísticas, cabe perguntar: o que é arte? O que é beleza? Por que as obras de arte costumam ter preços elevados? Diante de práticas religiosas, podem surgir questões como: quem ou o que é Deus? Como saber que a experiência religiosa não é uma fantasia?

Acabamos de atravessar a porta que nos conduz dos saberes à Filosofia.

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EM GRUPO Considerando que, tanto nas artes quanto nas religiões, a Filosofia também pode operar uma desconstrução e uma reconstrução para esclarecer o que essas práticas envolvem, reúnam-se, reflitam e formulem perguntas sobre a arte e a religião, semelhantes às levantadas neste capítulo. Vocês podem seguir a forma se… então…? Por exemplo: se cremos que a arte está relacionada à beleza, então o que é a beleza? Se a religião fala de Deus, então ela sabe quem é Deus? Ao montar as perguntas, partam de suas experiências, sejam elas amplas ou limitadas nessas áreas. Façam dessas perguntas uma oportunidade para um diálogo respeitoso e interessado em conhecer as experiências dos(as) colegas. Inspirem-se nas

Fonte.

1917. Porcelana, 38,1 cm × 48,9 cm × 62,55 cm. Nova

► Símbolos de algumas religiões. Primeira linha: cristianismo, judaísmo, hinduísmo, islamismo, budismo. Na segunda linha: xintoísmo, sikh dharma (siquismo), religião bahá’i, jainismo.

EXERCICIO
Não escreva no livro. B

A Filosofia

Contemple a imagem desta página. Deixe-se levar pelo prazer de simplesmente observar. Note a elegância da mulher, sua postura; atente-se ao máximo de detalhes que puder. A face da dama é séria, porém não triste. É como se ela dissesse a quem a contempla: “Possuo um tesouro imenso, relativo à Terra e ao Céu, ao que há embaixo da Terra e ao que há acima do Céu, mas a indiferença da maioria das pessoas para comigo é assustadora. Outros, ainda, usam partes de meu tesouro para seu benefício pessoal, ignorando que posso conduzir ao Bem de todos, o Bem universal, seja no conhecimento, seja na prática”.

A dama aqui representada é uma personificação da Filosofia, feita por volta de 1230, por um artista anônimo, a fim de ilustrar o trabalho do(a) copista que reproduziu um pergaminho da obra A consolação da Filosofia.

► [A DAMA Filosofia]. ca. 1230. Manuscrito 1253, fólio 3. Biblioteca da Universidade de Leipzig, Alemanha. Iluminura anônima em página do pergaminho da obra De consolatione Philosophiae [A consolação da Filosofia].

O autor desse livro foi Boécio de Roma (c. 475-c. 524), filósofo, poeta, teórico da música, cientista e senador. Foi sua descrição da Filosofia que permitiu ao(à) artista representá-la; e a seriedade da dama não é casual, pois, nos tempos de Boécio, durante o assim chamado declínio do Império Romano do Ocidente, a cultura (a Arte, a Literatura, a Filosofia, a Teologia, as Ciências) sofria uma desvalorização brutal. A seriedade de sua face explica-se, então, como um alerta ou um aviso para a necessidade de os seres humanos levarem mais em conta o que diz essa “senhora”, a fim de não perderem o rumo em seu trabalho constante de humanização, ouvindo as pensadoras e os pensadores do passado, bem como do presente, e produzindo perspectivas do futuro mais feliz possível para todos os seres, humanos e não humanos.

Concentremo-nos em outro detalhe da iluminura: a Filosofia carrega um livro, para representar os saberes antigos e a própria obra A consolação da Filosofia de Boécio, e a esse livro está unida uma escada desenhada no vestido da Filosofia, indicando os saberes que, na época, eram considerados requisitos para tornar-se um(a) bom(boa) filósofo(a). Indo de baixo para cima, os saberes são: Gramática,

Dialética, Retórica, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia. Trata-se de saberes que iniciam na mais concreta experiência, a linguagem e a língua, passam pelos hábitos de convencer, a matemática, a música e chegam ao estudo do que há de mais sublime neste mundo (na concepção da época): os corpos celestes. Podemos, assim, dizer que o pensador Boécio de Roma atravessou a porta dos saberes, pois levantou questões para as quais somente a prática filosófica consegue encontrar respostas ou indicativos de respostas, ou ainda a impossibilidade de respostas.

Em residência forçada por causa de intrigas políticas, Boécio organizou os fragmentos de sua A consolação da Filosofia e completou-a. Por essa razão, e sobretudo por testemunhar o risco de desaparecimento da cultura clássica – mediante a destruição de bibliotecas pelos invasores e de certa mentalidade anti-intelectual do momento –, Boécio inicia sua obra com uma poesia (a mesma que vem abaixo das letras em cor vermelha na iluminura) cujo tom de preocupação e lamentação manifesta-se já nos dois primeiros versos:

carmina qui quondam studio florente peregi, flebilis heu maestos cogor inire modos.

[Eu que antes escrevi versos na forma do deleite, Vejo-me agora levado a adotar formas outras e tristes.]

Copista: escriba; profissional encarregado de reproduzir documentos, textos ou obras de arte. A profissão existe desde a Antiguidade e, durante a Idade Média (séculos V-XV), teve importância essencial para preservar e transmitir a cultura antiga. Nesse período, ela foi exercida por mulheres e homens que viviam em comunidades religiosas (monjas e monges cristãos), sem esquecer dos copistas muçulmanos.

Iluminura: decoração feita à mão para embelezar um manuscrito, isto é, uma obra também escrita ou copiada à mão. Com o surgimento da imprensa, no século XV, as iluminuras praticamente desapareceram.

Residência forçada: perda do direito de ir e vir, sendo-se obrigado a permanecer na residência estipulada pelo poder judicial.

DOMÍNIO PUBLICO

• Livro em que o autor reflete sobre alegrias e tristezas da existência, bem como sobre o sentido dos saberes. DiCA

► BOÉCIO. A consolação da filosofia. Tradução: William Li. São Paulo: WMF, 2023. Reprodução da capa.

► [A FILOSOFIA conforta o senador Boécio]. ca. 1200. Iluminura.

O que é Filosofia?

Já aprendemos, neste capítulo, os primeiros passos para filosofar, a desconstrução e a reconstrução, além das duas principais portas que levam à Filosofia: a atenção à existência e a atenção aos saberes. Conhecemos a Filosofia apresentada por Boécio de Roma como a portadora de um imenso tesouro que pode iluminar nossa visão de mundo, nossa prática do conhecimento e nossa ação para construir nossa vida individual e social. Agora, cabe perguntar de forma mais direta: o que é a Filosofia? Seria possível obter uma definição de Filosofia?

Teremos de dar ainda alguns passos antes de enfrentar essa questão. Esses passos permitirão “nadar um pouco mais fundo no oceano” da Filosofia, sem, por enquanto, preocuparmo-nos diretamente com sua definição. É como mergulhar com um tubo de oxigênio e conviver com os seres do fundo do mar, sem estudar inicialmente as teorias sobre a relação entre a água, os seres marítimos, o oxigênio, a respiração etc.

O que leva a filosofar?

Um desses passos consiste em perguntar pelo motivo de filosofar.

A resposta mais direta é dizer que as filósofas e os filósofos percebem, por um lado, os sentidos mais evidentes que as pessoas conferem a seus pensamentos e ações e, por outro lado, os sentidos mais profundos, ocultos, que nem todas as pessoas apreendem.

É como se tudo tivesse camadas de sentido, assim como em uma rocha sedimentar, cuja idade pode ser calculada analisando as camadas que a compõem. Uma pessoa distraída olha, mas não vê; um geólogo não apenas olha e vê, mas também as analisa e calcula a idade da rocha. Assim também as filósofas e os filósofos não se contentam com o primeiro sentido percebido, aquele da superfície de nossas experiências, mas são movidos pela necessidade de saber se há sentidos menos aparentes.

Dito de outra maneira, filósofas e filósofos deixam-se admirar com a existência de tudo e com todo e qualquer tipo de saber e de conhecimento. Vivem uma mistura de admiração e de insatisfação, como dizia Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.).

No início de um de seus livros, intitulado Metafísica, Aristóteles registra a observação de que o ser humano deseja naturalmente conhecer, pois essa atividade dá prazer, como se observa, por exemplo, na satisfação que surge ao entender as informações obtidas por meio dos cinco sentidos físicos. A Filosofia, segundo Aristóteles, é uma continuação desse prazer e nasce da capacidade de admirar-se diante de tudo, até mesmo do que parece óbvio. Os filósofos admitem que não sabem; e, assim, eles procuram respostas.

► Rocha sedimentar em Zhangye, Gansu (China). Fotografia de 2024.
HARRY HUANG/PEXELS.COM

O trecho a seguir é retirado da famosa obra de Aristóteles, Metafísica.

No início do filosofar, a admiração

Foi pela admiração que os humanos começaram a filosofar, tanto no princípio como agora. De início, ficaram perplexos diante das dificuldades mais simples; depois, avançaram pouco a pouco e enunciaram problemas a respeito das dificuldades mais complexas, como os fenômenos da Lua, do Sol e das estrelas, assim como a gênese do Universo. Ora, quem é tomado de perplexidade e admiração percebe que não sabe […]. Portanto, como filosofavam para fugir da ignorância, é evidente que buscavam o conhecimento por si mesmo, a fim unicamente de saber, e não com uma finalidade utilitária. […] Nós não buscamos o conhecimento com o objetivo de ter qualquer outra vantagem; mas, assim como declaramos livre quem existe para si mesmo e não pertence a outro, assim também cultivamos esse conhecimento como o único livre, pois só ele tem em si mesmo o seu próprio objetivo.

ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução: Leonel Vallandro. Porto Alegre: Editoria Globo, 1969. (Biblioteca dos séculos, p. 40).

A admiração explica a insatisfação que caracteriza as filósofas e os filósofos, pois estes não se contentam com os sentidos superficiais de tudo, mas buscam razões que expliquem por que tudo é como é. A essa forma específica de insatisfação, Aristóteles chamava de melancolia , e ela era observável em quem produzia filosofia, poesia, mitologia... enfim, em todos que abriam a porta da existência e dos saberes.

A melancolia, porém, não é sinal de doença, tristeza ou depressão, como a palavra pode dar hoje a entender. Pelo contrário, no sentido especificamente filosófico, ela é sinal de sensibilidade intensa e de atenção afiada.

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EXERCICIO

Não escreva no livro. C

O que leva a filosofar? Responda de maneira completa, porém breve, e empregue as palavras admiração, melancolia e satisfação.

Perplexo: sem reação diante de algo espantoso, admirável.

Enunciar: formular; exprimir.

Gênese: origem; surgimento.

► LEBIEDZKI, Eduard. [Aristóteles com seus estudantes em pesquisa de zoologia]. ca. 1888. Afresco. Detalhe da fachada direita da Universidade Nacional de Atenas (Grécia).

• O filme apresenta a vida de algumas pessoas nos dias que precedem a colisão de um planeta fictício, denominado Melancolia, com o planeta Terra. O diretor inverte o olhar habitual que distingue uma pessoa considerada “triste e problemática” de outra vista como “saudável”.

► MELANCOLIA. Direção: Lars von Trier. França, Dinamarca, Suécia, Alemanha: California Filmes, 2011. Streaming (130 min). Reprodução de pôster.

CARL RAHL/UNIVERSIDADE DE ATENAS, ATENAS, GRÉCIA

DAVID, Jacques-Louis.

A morte de Sócrates 1787. Óleo sobre tela, 130 cm x 196 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova York (Estados Unidos).

Filosofia e razão

Desde seu nascimento, a prática que chamamos de Filosofia possui uma característica central: o uso da razão , isto é, a capacidade de investigar o significado das mais variadas experiências humanas e de também criar sentido a partir delas.

Um modo apropriado para entender o que é a razão consiste em observar como um dos primeiros filósofos a concebia. Trata-se de Sócrates (c. 470 a.C.-399 a.C.), que desenvolveu um trabalho intelectual tão significativo que o levou a ser conhecido como “pai” da Filosofia. Sabemos poucos detalhes de sua vida. Diz-se que seu pai era entalhador de pedras, e sua mãe, parteira. Profundamente envolvido com a vida da cidade de Atenas (Grécia), Sócrates conhecia também os debates dos pensadores que o antecederam. Não escreveu nenhuma obra, porque sua atividade filosófica era feita propositalmente na forma de diálogo; e a maior parte do que sabemos sobre seu pensamento vem dos registros nas obras de seu discípulo Platão.

Por causa de Platão, sabemos que Sócrates considerava a Filosofia uma prática radicalmente ética, isto é, voltada para melhorar a vida humana por meio da busca de comportamentos e ações boas para todos. Em homenagem à profissão de sua mãe, ele se autodenominava “parteiro de almas”, alguém que fazia nascer consciência livre em seus interlocutores. Em grego, esse parto denomina-se maiêutica e, mais propriamente falando, consiste em um diálogo não limitado a simplesmente emitir comentários livres e opiniões, mas um diálogo de contraponto de ideias, opiniões, crenças, visões de mundo, entre outros. É um parto que consiste em um revelar-se a si mesmo para o(a) interlocutor(a). A esse tipo de diálogo também chamamos de método dialético.

Por adotar a postura de sempre fazer perguntas e desconstruir as opiniões correntes, a maneira socrática de filosofar recebeu o nome de elenchos (pronúncia: elénkos), que significa, em grego, “questionamento”. Por sua vez, o modo com que Sócrates fingia ignorância para, de forma sutil, provocar os interlocutores a questionarem suas próprias crenças recebeu o nome de ironia. Hoje, essa palavra pode parecer

negativa, associada a deboche. Mas também se fala, por exemplo, de “ironia do destino”, quando se afirma que não sabemos por que algo aconteceu em nossa vida.

O maior prazer com a ironia Sócrates tinha ao dialogar com especialistas. Conversava sobre a guerra e sobre a coragem com generais; sobre a poesia com poetas; sobre a justiça e o bem público com políticos. Ao final, mostrava que os especialistas não conheciam seus assuntos tanto quanto pensavam e diziam. Sócrates, por sua vez, reconhecia que “sabia que não sabia”; e esse não saber era algo mais certo do que o saber daqueles que, acreditando conhecer, não percebiam a incompletude nem as falhas de seus pensamentos. “Sei que nada sei!”, dizia Sócrates.

Nos escritos de Platão, há muitos exemplos que permitem perceber a atividade socrática. Tomemos um deles a seguir.

O aprendizado não significa conhecer coisas totalmente novas.

Temos que:

a) de acordo com a opinião corrente, nós, ao aprendermos algo novo, aprendemos porque não sabemos nada sobre o assunto; se dissermos que já sabemos algo sobre o assunto, então ele não será novo;

b) a pergunta socrática imediata será: como podemos interessar-nos e procurar algo novo se não sabemos absolutamente nada a respeito dele? Como procuraremos algo se sequer sabemos que ele existe?

c) por exemplo, quando alguém nos explica o significado de uma palavra nova, precisamos conhecer pelo menos o sentido dos outros vocábulos usados para explicar a palavra nova, pois é pela correlação de significados de palavras já conhecidas que chegaremos a entender o significado da palavra nova;

d) em conclusão, a revisão socrática mostra que o aprendizado não é uma assimilação de assuntos completamente desconhecidos, mas uma nova maneira de relacionar assuntos conhecidos, chegando a novos entendimentos.

Sócrates examinava as justificações de toda ação e de todo pensamento e as contrapunha à experiência comum, a fim de aceitá-las ou não. Sócrates observava que as coisas têm um modo de ser, assim como Platão falava das essências e defendia que, pelo pensamento, podemos reproduzir esse modo de ser. Trata-se da atividade da razão, que, em grego, chama-se lógos. Captar o lógos e exprimi-lo de modo que todos os interlocutores e as interlocutoras possam avaliar a adequação dessa expressão (quer dizer, se a expressão corresponde realmente ao modo de ser daquilo de que se fala) era a tarefa da Filosofia, segundo Sócrates.

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• Descreva a atividade socrática e o modo como ela permite entender o que é a razão.

Uma definição de Filosofia

Neste momento, talvez você pergunte o que torna a Filosofia um saber específico, já que a atividade da razão também é uma característica central das ciências e, sem sombra de dúvida, indispensável para todos os saberes.

Temos condições de comparar o modo como usamos a razão ao analisar o grafite do início do capítulo, a coexistência de duas teorias físicas diferentes para explicar os mesmos fenômenos e a maneira de Sócrates testar as opiniões, fazendo com que o pensamento se dobrasse sobre si mesmo. O “dobrar-se do pensamento sobre si mesmo” é o significado da palavra reflexão, e ele permite defender que a especificidade da Filosofia é justamente esse dobrar-se do pensamento; ela é uma investigação racional da própria razão; um trabalho do pensamento sobre si mesmo, quer dizer, sobre nosso modo de construir nossas “leituras” do mundo, dos outros e de nós mesmos.

Dessa perspectiva, temos condições de propor uma definição de Filosofia

A Filosofia é a reflexão sobre o pensamento em sua atividade de compreender a existência e/ou de elaborar sentidos para a existência.

Na realidade, há uma constelação de filosofias. Há mesmo quem afirme haver tantas filosofias quantos são os filósofos e filósofas. Há ainda quem use a imagem das filosofias como ilhas espalhadas no oceano da razão. Todas, porém, são ligadas pelas águas da razão; e as águas da razão produzem ondas que fazem as águas voltarem-se sobre si mesmas, assim como nossa atividade racional ou pensamento é capaz de investigar-se a si mesmo.

Assim, podemos também dizer que:

A Filosofia é o pensamento do pensamento.

EXERCICIO Não escreva no livro. E

• Dê uma resposta o mais objetiva possível à pergunta: o que é Filosofia? Inclua em sua resposta a diferença entre o modo filosófico e o modo científico de praticar a razão.

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► Como em um reflexo no espelho, a Filosofia consiste no olhar do pensamento para si mesmo.

Só há filosofias “ocidentais”?

Você certamente notou que, em nossas referências, apareceram majoritariamente autores pertencentes ao que se costuma chamar de “Ocidente”. Mas é importante saber que, nas duas últimas décadas, intensificou-se um debate na comunidade filosófica a respeito da existência de filosofias não ocidentais (especialmente orientais e africanas). A problemática não é nova; já foi enfrentada desde a primeira metade do século XX por autores de grande destaque como Maurice Merleau-Ponty (1908-1961).

Há pensadores “ocidentais” que recorrem a dados culturais e elaborações conceituais “não ocidentais” para formular e resolver questões filosóficas. É o caso, por exemplo, do francês Michel Bitbol (1954-), renomado neurocirurgião e filósofo, que recorre a práticas meditativas zen para refletir sobre problemas ocidentais ligados à compreensão da consciência. O filósofo publicou impactantes obras como: A consciência tem uma origem?: das neurociências à plena consciência: uma nova abordagem do espírito; Física e filosofia do espírito, entre outras.

Além disso, há também “não ocidentais” que recorrem aos métodos “ocidentais” para refletir sobre temas de suas culturas e para oferecer respostas às próprias questões “ocidentais”. É o caso, por exemplo, dos filósofos da Escola de Kyoto, movimento filosófico japonês, iniciado na década de 1910 por Kitaro Nishida (1870-1945), em um momento de abertura e modernização do Japão.

► Retrato de Kitaro Nishida, idealizador da Escola de Kyoto, em 1910, no Japão. Fotografia de 1943.

A Escola de Kyoto não pretendeu considerar filosóficas as formas populares de ver o mundo, as mitologias, as práticas xamânicas, as sabedorias ancestrais e outros conhecimentos. Seus membros defendem que há uma especificidade, por assim dizer, técnica ou procedural da prática filosófica ocidental: a razão como instrumento de investigação e de resposta, até mesmo no caso da crítica da própria razão. Dever-se-ia, antes mesmo de mencionar a Escola de Kyoto, lembrar que a Filosofia nasceu na Grécia dos séculos V a.C.-IV a.C., quando esta ainda era considerada oriental. Foi cultivada por cristãos nestorianos dos séculos III d.C.-IV d.C. que, sentindo-se perseguidos por terem uma concepção de Jesus Cristo diferente daquela da maioria, fugiram da Europa para o Oriente Médio e levaram consigo exemplares de obras de Platão e Aristóteles, além de obras cristãs, pois eram bastante intelectualizados. Foi sobretudo por causa deles que essas obras sobreviveram e chegaram até nós, especialmente

► [PADRES nestorianos em procissão do Domingo de Ramos]. 683 d.C.-770 d.C. Afresco, 61 cm x 67 cm. Museum für Indische Kunst, Berlim (Alemanha). Pintura de mural em igreja na China.

Procedural: o que é ligado a um modo de proceder, de operar.

Nestoriano: cristão seguidor da maneira como Nestório (386 d.C.-451 d.C.) concebia a pessoa de Jesus Cristo, qual seja, como alguém dotado de duas essências distintas e separadas, a divina e a humana, sem formar uma unidade, um ser divino e humano, como pensa a maioria dos cristãos.

AL-SUHRAWARDI,

Shihab al-Din. Hikmat

al-Ishrāq. 1477-1478.

Iluminura da página de abertura do manuscrito. Em tradução livre, "Filosofia da iluminação".

por terem sido transmitidas aos muçulmanos, que as reproduziram e estudaram ao longo da Idade Média e nos locais onde o Islã se desenvolveu (o Oriente Médio, o norte da África e partes da Espanha e de Portugal).

O que causa dificuldade para muitos filósofos “ocidentais” chamarem de Filosofia o conjunto de pensamentos desenvolvidos por povos “não ocidentais” é o fato de incluírem-se, sob a nomenclatura de Filosofia, formas de sabedoria muito distintas quanto à prática da razão, à concepção de Universo, de ser humano e outros temas. Basicamente, revela-se uma diferença considerável de método e de temática entre essas sabedorias locais e a literatura que estabelece explicitamente debates com as formas filosóficas provindas da Grécia antiga.

No fim das contas, tem-se a impressão de que, para valorizar as inúmeras sabedorias orientais, africanas, indígenas e outras, é necessário chamá-las de Filosofia, como se o fato de não as chamar desse modo significasse desprezá-las.

A propósito, Maurice Merleau-Ponty enfatizava uma concepção de grande impacto a respeito da unidade do espírito humano. Leia o trecho a seguir sobre o assunto.

Unidade do espírito humano

[...] A unidade do espírito humano não se fará por vínculo simples e subordinação da “não filosofia” à verdadeira filosofia. A unidade já existe nas relações laterais de cada cultura com as outras, nos ecos que uma desperta na outra.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Em toda e em nenhuma parte. In: HUSSERL, Edmund. Investigações lógicas: sexta investigação (elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento).

Tradução: Marilena de Souza Chauí Berlinck. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção Os pensadores, p. 410).

Há de considerar-se que no centro dessa problemática está um dos maiores desafios filosóficos da atualidade: evitar ao máximo a crença em particularismos culturais e em identidades grupais fechadas, em favor da busca pelo que há de universal nas mais diferentes experiências. Talvez por razões semelhantes às aventadas aqui, o filósofo Lewis R. Gordon (1962-), ao tratar especificamente da filosofia africana, defende que ela deve definir-se em termos de projeto intelectual, e não de retomada e projeção das sabedorias e práticas tradicionais.

Como definir a filosofia africana?

[...] Sustento que é preciso definir a filosofia africana em termos de projeto intelectual, ligado ao surgimento de uma diáspora africana no mundo moderno, e em torno de ao menos três problemáticas: antropologia filosófica; filosofia da liberdade/libertação (freedom); avaliação metacrítica da razão. Antropologia filosófica porque a negação ou o menosprezo da humanidade daqueles que sofreram a escravidão e o racismo estimulou a interrogação sobre as normas, critérios e regras segundo os quais o humano pode ser constituído e estudado. Desse modo, a antropologia filosófica é a verdadeira “filosofia primeira” deste tempo, e não, como se gostaria de pensar, a epistemologia, a metafísica ou a ética. “Libertação” porque é uma noção que se opõe à realidade da opressão e da dominação, mas cujo sentido não é fácil de enunciar. O mundo moderno celebrou bastante a liberdade, mas desenvolvendo práticas rigorosas de submissão. Convém, então, distinguir (como possibilita o inglês) entre liberty e freedom: o primeiro termo designa a ausência de restrições; o segundo designa o fato de nos tornarmos responsáveis por nossa existência, por nosso amadurecimento e pelo cultivo de nossa humanidade. Vê-se imediatamente a ligação entre essa freedom e a antropologia filosófica: elas estão em uma relação simbiótica, que se pode compreender em termos de “lógica do outro”, o que põe a questão da articulação entre freedom e antropologia filosófica pela razão. Donde o terceiro ponto: a metacrítica da razão, que consiste em avaliar nossas práticas de justificação racional. A razão, que pôde ser mobilizada para a opressão, é também a deusa da Filosofia. Ela não corre o risco de tornar-se um cavalo de Troia para os africanos da diáspora? Desde 1952, em Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon [1925-1961] observava que a razão tinha o hábito de comportar-se de maneira muito irrazoável desde que um negro estava em causa! O problema, entretanto, é que, sendo irrazoável quanto a essa desrazão, também não se sai de um mundo de violência. Fanon lutou constantemente com o paradoxo de ter de ponderar razoavelmente com essa razão irrazoável.

GORDON, Lewis R. La “philosophie africaine” doit se définir en termes de projet intellectuel [A “filosofia africana” deve definir-se em termos de projeto intelectual]. [Entrevista cedida a] Souleymane Bachir Diagne. Critique, Paris, n. 771/772, p. 626-628, 2011. p. 626-627. Tradução nossa.

A filósofa, escritora e editora Séverine Kodjo-Grandvaux (1977-) tem dado significativa contribuição ao debate sobre filosofias “não ocidentais”, especialmente africanas. Em um de seus artigos mais conhecidos, “Vocês disseram filosofia africana?”, ela procura chegar ao que seria fundamental para poder falar com pertinência sobre o tema. Nas duas últimas páginas do artigo, ela presta homenagem ao destacado pensador Jean-Godefroy Bidima (1958-) e inspira-se no pensamento dele a fim de

Diáspora: tecnicamente, é o nome dado à dispersão dos judeus pelo mundo no século I, mas também pode significar a dispersão de qualquer povo ou grupo por causa de perseguições políticas, religiosas etc.

Simbiótico: característica de algo que se une a outro para benefício mútuo.

Cavalo de Troia: expressão para designar um presente que destrói quem foi presenteado. Para melhor entender essa interessante expressão, você encontrará facilmente muitos elementos na internet.

► Lewis R. Gordon, em São Paulo (SP), 2023. É professor da Universidade de Connecticut (Estados Unidos) e um dos mais influentes pensadores sobre as filosofias “não ocidentais”, assim como sobre a condição de grupos historicamente marginalizados.

MARIA ISABEL OLIVEIRA/AGÊNCIA O GLOBO

A pensadora Séverine Kodjo- Grandvaux. Genebra (Suíça), 2017. Além de pensadora, é literata e representante científica da Fabrique de Souza Camarões), um centro de pesquisa e experimentações que reúne cientistas, artistas, filósofos, agricultores, juristas e muitos outros profissionais, a fim de conceber e exercitar uma utopia ativa que pense o ser humano em sua relação com tudo o que existe.

exprimir o fundamental por ela buscado. Na sequência, temos um trecho da homenagem a Bidima, com a reflexão de Kodjo-Grandvaux.

Filosofia africana como travessia

[...] As filosofias africanas operam sem cessar desterritorializações e reterritorializações de filosofias e conceitos que lhes são exteriores; e constroem-se como encontro.

Disso é testemunho o trabalho de Jean-Godefroy Bidima. Sua apresentação da filosofia africana procura, antes de tudo, pensar a mediação e convida a ler de maneira renovada os filósofos ocidentais na viagem africana deles. Em seu livro A filosofia negro-africana, Bidima mostra como toda vez as temáticas desenvolvidas pelos filósofos africanos fornecem ocasião de deturpar os filósofos ocidentais. Ele apresenta, por exemplo os usos africanos de Marx, Aristóteles, Hegel, ou ainda da Teoria Crítica, à qual Bidima mesmo consagrou uma obra, Teoria crítica negro-africana. […] [...] Em função de sua história, a prática filosófica africana aparece como a da travessia. Forjado por Bidima, esse conceito permite desviar da armadilha da questão da universalidade ou da particularidade da filosofia africana e não valoriza tanto o conteúdo, mas o movimento, quer dizer, não tanto aquilo que é transmitido, mas a transmissão em si mesma. Compreendendo a filosofia africana como travessia, Bidima a põe em movimento e a desloca para um terreno jamais estável, mas sempre escorregadio, um “território que escapa”. A travessia é uma “fresta sempre aberta” que recusa o fechamento em si mesmo identitário, neurótico e reivindicativo, assim como a dissolução em um universalismo coagulante. A travessia “ressitua os problemas da filosofia africana elevando-os ao nível do especificamente humano. Para essa travessia, as classificações do que é da Europa e do que é da África, embora historicamente enraizadas, não devem impedir a reflexão sobre o que, para além das separações resultantes das classificações, liga os humanos”. Bidima lembra que os filósofos africanos habitam a experiência do mundo – experimentum mundi, em latim –, segundo a bela expressão de Ernst Bloch. [...]

KODJO-GRANDVAUX, Séverine. Vous avez dit “philosophie africaine”? [Vocês disseram “filosofia africana”?]. Critique, Paris, n. 771-772, p. 613-623, 2011. p. 620-621, 623. Tradução nossa.

Consultar orientações no Manual do Professor

• Leia os textos de Lewis R. Gordon e Séverine Kodjo-Grandvaux. Procure entender bem cada um deles e observe se há pontos comuns em ambos. Por fim, responda sucintamente: há semelhanças entre o conteúdo dos textos dos dois pensadores e a nossa análise da razão para caracterizar a especificidade da prática filosófica ocidental?

EXERCICIO Não escreva no livro. F

1. (Enem)

Alternativa A

A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação das mercadorias destinadas à diversão que essa pessoa não pode mais perceber outra coisa senão as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho.

ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento Rio de Janeiro: Zahar, 1997. No texto, o tempo livre é concebido como

a) consumo de produtos culturais elaborados no mesmo sistema produtivo do capitalismo.

b) forma de realizar as diversas potencialidades da natureza humana.

c) alternativa para equilibrar tensões psicológicas do dia a dia.

d) pr omoção da satisfação de necessidades artificiais.

e) mecanismo de organização do ócio e do prazer.

2. (Enem)

Sócrates: “Quem não sabe o que uma coisa é, como poderia saber de que tipo de coisa ela é? Ou te parece ser possível alguém que não conhece absolutamente quem é Mênon, esse alguém saber se ele é belo, se é rico e ainda se é nobre? Parece-te ser isso possível? Assim, Mênon, que coisa afirmas ser a virtude?”.

PLATÃO. Mênon. Rio de Janeiro: PUCRio; São Paulo: Loyola, 2001 (adaptado).

A atitude apresentada na interlocução do filósofo com Mênon é um exemplo da utilização do(a)

a) escrita epistolar.

b) método dialético.

c) linguagem trágica.

Alternativa B.

d) e xplicação fisicalista.

e) suspensão judicativa.

Consultar orientações no Manual do Professor.

3. Exercício inspirado em um dos temas de dissertação da Seletiva Nacional para a 30ª Olimpíada Internacional de Filosofia, 2022. Leia o trecho de texto a seguir e extraia dele o raciocínio fundamental para afirmar que Émilie du Châtelet (1706-1749) procede como filósofa.

Hipóteses em Física e descobertas de causas

Um dos erros de certos filósofos deste tempo é querer banir as hipóteses da Física. Elas são tão necessárias como os andaimes de uma casa em construção. É certo que, quando o edifício está pronto, os andaimes tornam-se inúteis, mas não teria sido possível erguê-lo sem a ajuda deles. Toda a Astronomia, por exemplo, funda-se unicamente em hipóteses; e, se as hipóteses tivessem sido sempre evitadas em Física, parece que não teria sido possível fazer tantas descobertas. Na mesma proporção, nada é mais capaz de atrasar o progresso das Ciências do que querer banir as hipóteses da Física e convencer-se de que se encontrou a grande mola que faz toda a Natureza mover-se. Afinal, não se busca uma causa que já se tome por conhecida, e ocorre, por conta disso tudo, que a aplicação dos princípios geométricos da Mecânica aos efeitos físicos – coisa muito difícil e igualmente necessária – permaneça imperfeita e que nos encontremos privados dos trabalhos e das pesquisas de numerosos belos gênios que teriam podido ser capazes de descobrir a verdadeira causa dos fenômenos.

DU CHÂTELET, Émilie. Institutions physiques. [Fundamentos de Física]. Paris: [s . n .], 1740. p. 9-10. Tradução nossa. ► LA TOUR, Maurice Quentin de. [Madame Du Châtelet em sua mesa]. ca. 1749. Óleo sobre tela, 120 cm x 100 cm.

Os seres humanos são seres de pensamento

2 MODOS DE CONVENCER

Assim como qualquer pessoa que valoriza a coerência de seu pensamento, filósofas e filósofos procuram convencer seus interlocutores e interlocutoras com argumentos bem fundamentados. Quem participa do diálogo naturalmente espera que essas razões sejam articuladas de maneira precisa e consistente.

► KOSUTH, Joseph. Uma e três cadeiras 1965. 1 cadeira, fotografia e painel. Museu de Arte Moderna, Nova York (EUA). Nesta obra, há três cadeiras e, ao mesmo tempo, uma só: a cadeira física, a sua representação fotográfica e a definição de cadeira, conforme apresentada no verbete de dicionário (verbete chair, em inglês). Kosuth provoca uma reflexão sobre o que nos faz reconhecer algo: se é o próprio objeto, a sua representação ou a ideia conceitual associada a ele.

Entre os vários modos de convencer estão: apelo apenas às emoções, combinação de emoção e razão e uso exclusivo da razão. Veremos adiante as características e o funcionamento deles.

Por que e como convencer?

Quando vamos expor nossas ideias e pensamentos sobre algum assunto, buscamos fazer com que a pessoa a quem nos dirigimos entenda e fique convencida de nosso ponto de vista.

Ao nos comunicarmos, queremos ser levados a sério. Esperamos que os outros concordem conosco ou, pelo menos, entendam os motivos que justificam nosso pensamento. Em outras palavras, procuramos convencê-los ou praticamos tentativas de convencimento. Os outros podem até discordar de nós, mas desejamos que eles, no mínimo, convençam-se de que temos boas razões para adotar nossa posição.

Em diversas situações cotidianas nos vemos diante da necessidade de justificar, de oferecer razões, de explicar qual a sustentação de nossas afirmações. Seja para convencer alguém de algo, seja para termos certeza em relação às nossas próprias ações, frequentemente temos de buscar entender ou explicar o porquê de algumas conclusões. Há, ainda, casos em que uma afirmação somente é considerada verdadeira se for muito bem justificada, como nos cenários científicos e jurídico. Em todas essas situações, faz-se necessário argumentar.

VELASCO, Patrícia Del Nero. Educando para a argumentação: contribuições do ensino de lógica. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. (Coleção Ensino de Filosofia, v. 3, p. 35).

O modo de convencimento mais elementar e mais suscetível a incertezas e erros consiste em obter a concordância sobre uma posição apelando apenas às emoções dos interlocutores e das interlocutoras, sem recorrer à razão. Ou seja, fazendo com que concordem com base apenas no que sentem, sem realizar uma análise crítica das justificativas da posição adotada. Outro meio de convencer consiste em combinar emoção e razão, sendo essa uma maneira mais eficaz, pois envolve tanto o interesse dos interlocutores e das interlocutoras, por meio da ativação de suas emoções, quanto o desenvolvimento de um processo argumentativo com base na razão. Por fim, um terceiro modo de convencer é aquele que desconsidera as emoções e se baseia exclusivamente na razão, permitindo que quem conheça seu funcionamento avalie se o procedimento que leva a uma conclusão é válido ou não.

Posição: lugar ou local onde algo ou alguém se encontra, mas também pode se referir a uma opinião, ponto de vista ou pensamento sobre determinado assunto. Válido: aquilo que segue as regras estabelecidas para o funcionamento de um sistema ou procedimento, ou que respeita condições predefinidas como necessárias para a realização correta de um processo.

► A estudante Aalayah Eastmond discursa sobre violência nas escolas. Washington D.C. (Estados Unidos), 2019.

DiAlOGANDO

• Você já precisou convencer alguém sobre algum assunto de seu interesse? Como foi? Compartilhe sua experiência com a turma.

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Convencer apenas com emoções

Um dos modos de se convencer um interlocutor é mobilizando suas emoções. Assim, ele tende a aceitar determinado posicionamento sem realizar uma análise objetiva do discurso apresentado.

As emoções não dependem de uma escolha consciente, mas simplesmente emergem nas pessoas, surgindo como expressões naturais da nossa vitalidade e conexão com o mundo ao nosso redor. Elas também são chamadas de paixões justamente por esse caráter involuntário e por serem respostas à influência que o ambiente exerce sobre nós. As emoções são o resultado da interação contínua entre o meio em que vivemos – o “mundo exterior” – e o que ocorre dentro de nós – o nosso “mundo interior”.

Paixão: algo que se sente independentemente da vontade da pessoa, mas que pode ser integrado ao conjunto da vida dessa pessoa com escolha e esforço. Por exemplo: amor, raiva, inveja, alegria etc. A palavra paixão originou-se do termo grego páthos, resultado de uma ação exercida sobre nós.

Interação: influência de duas ou mais pessoas/ coisas entre si.

Por serem fruto dessa interação, as emoções atuam como ressonâncias, impactos ou efeitos dessa troca entre o interno e o externo. Esses efeitos podem se manifestar no sistema neurológico, envolvendo estruturas cerebrais responsáveis pelo comportamento, memória, motivação, equilíbrio químico e estabilidade das funções do organismo. Podem também ser expressos biologicamente, como sensações físicas, ou de forma psicofísica, englobando tanto as percepções corporais quanto o nosso estado emocional interno. As emoções podem envolver uma ou várias dessas dimensões simultaneamente. Exemplos comuns incluem alegria, tristeza, medo, raiva, amor, nojo, surpresa, além de outras emoções mais complexas, como gratidão, vergonha, culpa, inveja, compaixão, esperança, frustração, orgulho e ansiedade. Essas emoções, de variadas intensidades, fazem parte da experiência humana e moldam nossas interações com o mundo e com os outros seres em nosso entorno.

As emoções são objeto de estudo de várias áreas específicas do conhecimento, como a Psicologia, Psicanálise, Psicobiologia, Neuropsicologia, entre outras. Essas ciências e saberes se dedicam à compreensão das

DiCAs

No mundo interior de uma garota de 11 anos, convivem emoções diferentes, como Alegria, Medo, Raiva, Nojinho e Tristeza. Alegria é a líder, mas tudo pode complicar-se conforme a garota cresce.

• DIVERTIDA mente. Direção: Pete Docter. Estados Unidos: Pixar Animation Studios, 2015. Streaming (95 min).

O mundo interior da garota, que agora tem 13 anos, teve mudanças, novidades e imprevistos, dando lugar a novas emoções: Ansiedade, Inveja, Tédio, Vergonha e Nostalgia. Poderá ser pacífica a convivência delas com as emoções que já habitavam aquele mundo?

• DIVERTIDA mente 2. Direção: Kelsey Mann. Estados Unidos: Pixar Animation Studios, 2024. Streaming (96 min).

► Pôsteres dos filmes Divertida Mente e Divertida Mente 2 .

emoções e podem desenvolver práticas que auxiliam na integração equilibrada das diferentes emoções na vida das pessoas.

No entanto, não são essas áreas de conhecimento que se dedicam a analisar a validade de diálogos, debates e discursos com base apenas no acionamento das emoções dos interlocutores e das interlocutoras, mas sim outras áreas, como a Linguística e, principalmente, a Filosofia. A Filosofia, como reflexão sobre o pensamento, também investiga o que pensamos sobre as emoções, o que elas são, de onde provêm, como se comportam.

Para a prática científica e filosófica, porém, não é adequado que uma hipótese, tese ou conclusão receba a concordância dos interlocutores e das interlocutoras com base apenas em suas emoções. Afinal, quando se está sob o domínio das emoções, geralmente falta clareza na análise dos critérios que tornam uma posição válida, assim como não há a lucidez necessária para dar concordância com base em análise objetiva.

EXERCICIO

EM GRUPOS Junte-se a três colegas e observem atentamente as imagens a seguir, leiam suas legendas e deem, em comum acordo, um nome para cada emoção expressa na imagem 1, tomando por base os termos empregados na roda das emoções (imagem 2). Lembremse de que nem todos os nomes das emoções estarão na imagem da roda, mas vocês podem mencionar emoções aproximadas. Anotem as

Respostas pessoais.

Imagem 1: Representações de emoções

► Colagem de fotografias de pessoas mostrando diferentes emoções. 2018.

justificativas dadas para cada escolha, bem como possíveis discordâncias em relação às representações das emoções. Ao final, façam uma plenária na qual cada grupo expõe para toda a classe os porquês de suas escolhas. Caso outros grupos tenham feito escolhas diferentes, abram espaço para a discussão e expliquem justificativas.

Imagem 2: Roda das emoções

► Representação simbólica da roda das emoções pensada por Robert Plutchik (1927-2006).

Não escreva no livro. A

Falar idealmente: tomar posição sobre um tema comparando-o ao seu padrão ideal, aquilo que de mais perfeito podemos imaginar sobre ele.

CENTRAL do Brasil. Direção: Walter Salles. Brasil: Mact Productions, 1998. Streaming (113 min). Com esse frame impactante do filme, o diretor faz com que os espectadores concordem que há fragilidade e bondade em Dora, consolada por Josué.

Convencer com emoções e razão

Este meio de convencer articula emoção e razão. Idealmente falando , essa é a melhor maneira de convencer, pois, ao acionar as emoções dos interlocutores e das interlocutoras, eles(as) se envolvem pessoalmente e se dedicam ao debate, atentos(as) aos procedimentos de convencimento. Essa atenção permite que a razão se una às emoções, trazendo precisão e objetividade na construção ou análise de argumentos.

A arte, por exemplo, é uma prática que podemos considerar como fundamentada na união entre emoção e razão. Não se trata de pensar que a arte começa com emoções e termina em um debate sobre validade ou verdade. Trata-se de entender que, ao acionar as emoções, a arte leva as pessoas a se identificarem ou rejeitarem o que é apresentado. A razão entra nesse processo para refletir sobre essa identificação ou rejeição, confirmando-as ou propondo uma revisão.

No filme brasileiro Central do Brasil, por exemplo, os espectadores e as espectadoras inicialmente têm uma visão negativa de Dora, personagem de Fernanda Montenegro (1929-). No entanto, em uma das cenas, quando ela e Josué, interpretado por Vinícius de Oliveira (1985-), estão sentados em uma mureta de concreto, completamente sem esperança, a tristeza e o desamparo são tão intensos que os espectadores e as espectadoras acabam se identificando com as personagens e podem até mesmo mudar sua percepção sobre Dora.

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

Transformando emoções em ação

Os usos da raiva

Toda mulher tem um arsenal de raiva bem abastecido que pode ser muito útil contra as opressões, pessoais e institucionais, que são a origem dessa raiva. Usada com precisão, ela pode se tornar uma poderosa fonte de energia a serviço do progresso e da mudança. [...] Estou falando de uma alteração radical na base dos pressupostos sobre os quais nossas vidas são construídas.

Fui testemunha de situações em que mulheres brancas ouvem um comentário racista, se ofendem com o que foi dito, ficam enfurecidas, mas se mantêm em silêncio por terem medo. Essa raiva que não é expressa fica dormente dentro delas como uma granada não detonada, que geralmente é arremessada contra a primeira mulher de cor que fale sobre racismo.

No entanto, a raiva expressa e traduzida em uma ação a favor de nossos ideais e nosso futuro é um ato de esclarecimento que liberta e dá força, pois é nesse processo doloroso de tradução que identificamos quem são os nossos aliados com quem temos sérias diferenças e quem são nossos verdadeiros inimigos.

A raiva é repleta de informação e energia. Quando falo de mulheres de cor, não me refiro apenas às mulheres negras. A mulher de cor que não é negra e me acusa de torná-la invisível ao presumir que as suas lutas contra o racismo são idênticas às minhas tem algo a me dizer, e é melhor que eu aprenda com ela para que não nos esgotemos na disputa entre as nossas verdades. Se eu participo, conscientemente ou não, da opressão da minha irmã, e ela chama minha atenção para isso, reagir à raiva dela com a minha apenas faz com que as reações abafem a essência da nossa discussão. É um desperdício de energia. E sim, é muito difícil ficar quieta e ouvir a voz de outra mulher delineando uma agonia que não compartilho, ou para a qual contribuí.

► Audre Lorde (1934-1992).

Aqui reunidas, nós falamos distanciadas dos lembretes mais óbvios de nossas batalhas enquanto mulheres. Isso não precisa nos cegar quanto ao tamanho e à complexidade das forças que se levantam contra nós e contra tudo o que há de mais humano em nosso ambiente. Não estamos fazendo uma análise do racismo em um vácuo político e social. Estamos operando em oposição direta a um sistema no qual o racismo e o machismo são pilares primordiais, estabelecidos e indispensáveis para o lucro.

LORDE, Audre. Irmã outsider . Tradução: Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 161-162.

1. Em sua opinião, como a raiva pode ser utilizada de forma construtiva em nossa sociedade atual? Você consegue pensar em situações em que a raiva de um grupo levou a mudanças positivas? Explique com exemplos.

2. No texto, Audre Lorde (1934-1992) fala sobre como as mulheres devem se ouvir e aprender umas com as outras, mesmo quando não compartilham a mesma experiência de opressão. Como o encontro de emoções pode ajudar na construção de alianças entre diferentes grupos sociais? Pense em exemplos práticos da sua comunidade ou da história.

3. Lorde afirma que a raiva pode ser uma “fonte de energia” para promover a mudança. Na sua opinião, quais outras emoções poderiam desempenhar um papel semelhante no combate às injustiças sociais? Justifique sua resposta.

Agravante: algo que aumenta o prejuízo provocado em determinada situação.

Satírico: algo que contém sátira, um estilo de expressão que combina humor e ironia para criticar, de forma indireta e muitas vezes mordaz, aspectos da sociedade, política ou comportamento humano, visando provocar reflexão ou mudança.

C onvencimento emocional-racional no mundo da “pós-verdade”

A estratégia de convencimento por meio da emoção e da razão pode também ser usada para defender conclusões duvidosas, uma vez que o acionamento das emoções pode levar a um comprometimento rápido demais com uma posição, sem que o pensamento tenha o tempo necessário para examinar se o procedimento que levou à obtenção dessa conclusão é válido.

As conclusões duvidosas podem resultar tanto de desonestidade, quer dizer, de uma decisão intencional de enganar os interlocutores e/ou as interlocutoras, quanto de distração e de desconhecimento. Para evitar conclusões duvidosas, há apenas um caminho: o conhecimento, guiado por uma razão atenta que analisa todos os detalhes de nossas concordâncias e discordâncias. Além disso, idealmente, esse conhecimento ou esse guia da razão alcança um grau ainda maior de eficácia quando se une às emoções, resultando em uma experiência interna harmoniosa. Atualmente, há um agravante na convivência social no que diz respeito às maneiras de convencer: as notícias falsas, ou fake news, em inglês. Trata-se de notícias fabricadas, inventadas e que não retratam nem interpretam fatos, mas que mostram opiniões parciais tomadas como válidas para todos.

Algumas fake news chegam a ser satíricas, como o caso da americana Kass Theaz, a qual comentou que teria processado seus pais porque eles a fizeram vir ao mundo, ou seja, nascer, sem que ela tivesse sido consultada primeiro. A notícia chegava a dizer que Kass havia conseguido que a justiça estadunidense obrigasse seus pais a pagarem-lhe uma pensão mensal de 5 mil dólares! As visualizações de seu perfil em uma rede social chegaram a 3,5 milhões!

► SHOVEL, Martin. [Verdade x pós-verdade]. In: BUCKER, Caio. A arte na era da balela. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 jun. 2021. Na charge, enquanto o filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650) simboliza a era da verdade, na qual o pensamento ou o uso da razão justificava as posições adotadas, o cidadão à direita simboliza a era da pós-verdade, quando acreditar em algo basta para considerá-lo verdadeiro.

Mas Kass logo esclareceu que havia sido satírica. Ela queria debochar da facilidade com que as pessoas acreditam, hoje, no que leem ou veem, ou ainda ouvem dizer.

As fake news, no entanto, podem ser produzidas conscientemente com a intenção de enganar. Em nosso país, assim como em muitos outros, elas têm sido utilizadas como ferramenta de difamação e disseminação de mentiras a respeito de candidatos e candidatas políticos(as), figuras públicas ou até mesmo cidadãos e cidadãs comuns. No tocante à política, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

do Brasil mostrou entender que os danos causados pelo uso das fake news não são apenas de interesse daqueles que são difamados, mas um problema de interesse público. Essa é a explicação para, em 2024, o TSE ter iniciado estudos para controlar o uso de inteligência artificial nas campanhas políticas, principalmente na produção de notícias fabricadas.

Outro agravante para a convivência social em nossos tempos é a tendência de muitas pessoas a fecharem-se a todo debate, não permitindo que suas posições sejam analisadas por seus(as) interlocutores(as), mas pretendendo que estes(as) as aceitem como válidas simplesmente porque são as opiniões dessas pessoas.

Trata-se de um comportamento com diferentes facetas, estudadas com mais detalhes por áreas como a Sociologia, a Antropologia, a Geografia e a História. Em Filosofia, o interesse é mais amplo e está relacionado à concepção do que é a verdade.

Até o momento falamos da validade dos procedimentos que justificam uma posição. Agora, buscaremos entender a ideia que as pessoas geralmente fazem da verdade , pois é exatamente nela que está a origem do comportamento fechado ou autorreferente de muitas pessoas.

Observa-se que essas pessoas não se preocupam com a validade dos procedimentos empregados para convencer sobre a verdade de uma posição. Elas simplesmente assumem-na como verdadeira porque lhes dá segurança, fornece-lhes uma identidade e a crença de que pertencem a um grupo coerente de pessoas com os mesmos objetivos (e todas com razão só pelo fato de se sentirem seguras).

Alguns estudiosos e estudiosas nomearam o nosso momento histórico, marcado por novidades desestabilizadoras como as fake news , de era da pós-verdade. Mesmo sem termos ainda investigado o que se entende por verdade, já podemos compreender ao menos em parte o que significa essa era, pois ela é caracterizada pela crença pessoal ou grupal como fundamento para considerar verdadeira para todos uma posição qualquer.

DiCA

► Fotografia de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), no seminário "Combate à Desinformação e Defesa da Democracia". Brasília (DF), 2023.

Inteligência artificial (IA): conjunto de teorias e práticas com o objetivo de construir máquinas capazes de imitar tão bem a inteligência humana a ponto de seus resultados passarem por obras criadas por seres humanos.

Autorreferente: refere-se a uma pessoa ou posição que toma a si mesma como única fonte de validação e conclusão, sem considerar outras perspectivas ou engajar-se em um debate com diferentes pontos de vista.

Apresentação didática do que se entende por pós-verdade, especialmente na Filosofia. O vídeo também permite entender com mais detalhes as fake news.

• O QUE é pós-verdade? A filosofia explica! [S. l.: s. n.], 2022. 1 vídeo (14 min). Publicado pelo canal A Filosofia Explica. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WMuRLFLeoQw. Acesso em: 8 jul. 2024.

ROSINEI COUTINHO/SCO/STF

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

Ciência e tecnologia para o fim da capacidade de dialogar?

No contexto da chamada era da pós-verdade, a ciência e a tecnologia, que, em geral, visam obter conhecimentos verdadeiros e benefícios de todo tipo para a humanidade, podem também, agora, visar a divulgação de mentiras e a obtenção de prejuízos para os seres humanos.

A ciência e a tecnologia, considerando apenas si mesmas, são eticamente neutras, quer dizer, nem boas nem más de um ponto de vista ético, comportamental? Seus produtos são sempre neutros em si mesmos, ou são bons em si mesmos?

A ideia de que ciência e tecnologia são neutras em si mesmas é discutida amplamente em Filosofia. A ciência e a tecnologia são criações humanas, e, embora possam ser entendidas como neutras em termos de utilidade, elas sempre envolvem contextos sociais, culturais e éticos. Portanto, mesmo o uso que fazemos dessas criações é influenciado por valores e intenções humanas. Além disso, muitas filósofas e filósofos questionam se algo pode ser realmente neutro, uma vez que qualquer criação reflete uma intenção ou propósito.

Podemos considerar que é o modo como os humanos usam a ciência e a tecnologia que pode ser considerado bom ou mau; e, infelizmente, vemos produtos da ciência e da tecnologia que são propositadamente maus. Por exemplo, máquinas programadas para espalhar mentiras ou falsificar dados, difamar pessoas etc.

Por esse motivo, a ciência e a tecnologia podem, de fato, contribuir para o enfraquecimento de nossa capacidade de dialogar. Sendo usadas por indivíduos e grupos para divulgar apenas o que eles creem, sem a menor possibilidade de que debatam suas ideias por uma simples contraposição saudável com opiniões diferentes, elas servem a pessoas que, antes mesmo de dialogar, já condenam como errado o pensamento de quem for discordante.

Trata-se de um fechamento em si mesmo que provém do mau uso dos resultados da ciência e da tecnologia, bem como de outras áreas, mesmo da Filosofia, da Teologia, da Antropologia e de outras ciências humanas.

► PELEKANOS, Teodoro. [Serpente Ourobouros]. 1478. Manuscrito em grego. A serpente que devora a própria cauda é tomada como símbolo de autorreferência.

1. Considerando a autorreferência como a incapacidade de formar uma visão de mundo em comparação com outras visões, escreva um texto relacionando esse conceito à problematização apresentada no texto sobre a ciência e a tecnologia e a incapacidade de diálogo.

2. No contexto de bots que distribuem fake news , seriam as máquinas (ou sistemas) responsáveis pela fabricação das inverdades?

Consultar orientações no Manual do Professor.

Faz sentido falar em pós-verdade?

A expressão pós-verdade é recente e de origem estadunidense. Ela aparece já em 2004 no título da obra A era pós-verdade: desonestidade e decepção na vida contemporânea, de Ralph Keyes (1945-), mas, ao que tudo indica, ela se tornou mais conhecida com o polêmico livro do escritor e jornalista Kurt Andersen (1954-), intitulado Fantasyland: how America went haywire: a 500-year history (em tradução livre, "Terra da Fantasia: como a América enlouqueceu: uma história de 500 anos"). Essa obra, cuja primeira edição é de 2017, afirma que os estadunidenses, desde o nascimento de seu país, fizeram deste um mito, uma história de heróis, deuses e deusas, seres infalíveis, grandes ancestrais. Por isso, segundo Andersen, a relação dos estadunidenses com a política é sempre marcada com cores religiosas. Ainda no dizer do autor, os Estados Unidos foram construídos sobre fantasias, construções imaginárias, de modo que o estadunidense sem senso crítico é muito mais exposto a teorias irracionais. Embora a expressão pós-verdade tenha surgido em 2004 e se difundido a partir de 2017, é possível dizer que seu conceito surgira um pouco antes, no fim do século XX. Com efeito, o filósofo americano Harry Frankfurt (1929-2023) publicou o artigo "Sobre a besteira", em 2005, no qual estabelece um grau de parentesco e de distância entre a mentira (lie, em inglês) e a besteira ou o falar bobagem (bullshit, em inglês): enquanto quem mente faz propositalmente declarações falsas, quem diz bobagem não está preocupado com a verdade, não a leva em consideração. A pessoa que mente conhece a verdade e a esconde; quem fala besteira, por sua vez, não tem o menor interesse pela busca da verdade, mas apenas pelos seus objetivos pessoais. Falar bobagem, portanto, é mais contrário à verdade do que a mentira.

No entanto, como diferentes pensadores e pensadoras defenderão, a expressão pós-verdade parece equivocada. Por exemplo, o sociólogo Sylvain Parasie alerta que, de acordo com essa expressão, os fatos –e apenas eles – sempre teriam contado para o jogo político, porém, esse jogo organiza-se não apenas em torno de fatos, mas também de valores e emoções.

Já Gérald Bronner (1969-), também sociólogo, considera uma má escolha a expressão pós-verdade simplesmente porque ela faz pensar que as pessoas mais representativas dessa era tornaram-se indiferentes à verdade, mas o que se observa é que essas pessoas creem estar sempre com a verdade, sem mesmo interrogar-se sobre o que é a verdade nem aceitar ouvir opiniões contrárias, pois quem discorda é visto como mau pelo simples fato de não ter a mesma posição.

Neste livro, a filósofa faz uma análise da história brasileira muito semelhante à que, dez anos depois, faria Kurt Andersen com a história dos Estados Unidos.

► CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2007.

DiCA

Crédulo: quem crê facilmente em algo, sem o menor exame crítico.

Polemista: quem aprecia debates intensos; quem divulga suas posições para gerar debates.

Precariedade: condição do que é falho, imperfeito, frágil.

Segundo Bronner, vivemos na democracia dos crédulos. A liberdade de expressão, preceito fundamental de uma democracia, aliada ao acesso facilitado a informações de todo tipo na internet, também está, para o bem e para o mal, na raiz da credulidade.

Outros(as) pensadores(as) e cientistas não acreditam que serão tão destruidoras as consequências da pós-verdade. Assumindo seu caráter de polemista, Didier Raoult (1952-) tomou posição frente à pós-verdade no artigo “A necessária 'pós-verdade'” , publicado no jornal Le Point , em 4 de janeiro de 2017. O microbiologista Didier Raoult defende que não se deve tomar a mentira sempre por vilã. Ele se tornou mundialmente conhecido nos anos da pandemia de covid-19 ao defender o tratamento da doença com cloroquina, medicamento comprovadamente ineficaz.

No dizer do microbiologista, era natural chegar à era da pós-verdade, porque somos acostumados com a mentira. Essa era seria mesmo necessária, pois traz à tona nossas incoerências, bem como melhora a visão política de todos, uma vez que, alertados pela transparência agora permitida pela tecnologia e pela memória dos bancos de dados, as democracias, decepcionadas e livradas de suas próprias ilusões, serão rapidamente alcançadas pela realidade e deixarão de considerar que tudo é podre na política, a fim de passar a pensamentos, discursos, exigências, julgamentos e ações mais moderados, com mais compaixão; enfim, mais coerentes com a fragilidade dos seres humanos. Peggy Sastre (1981-), filósofa, jornalista e blogueira francesa, defende a aceitação da pós-verdade, porém, não como uma crença de que não há mais verdade, mas como instrumento para assumirmos nossa precariedade natural.

► GE, Nikolay. O que é a verdade?: Pilatos e Jesus. 1890. Óleo sobre tela, 233 cm × 171 cm. Representação de uma narrativa bíblica: o silêncio de Jesus quando Pilatos pergunta-lhe o que é a verdade.

Leia um trecho de texto da filósofa.

Nosso cérebro já é um filtro-bolha

Por que se escandalizar com a pós-verdade? Ela é o modo operacional de nosso cérebro!

[…] Vamos dar uma olhada nisso antes de dirigirmos nossa atenção aos que denunciam a “pós-verdade” […].

[...] Ninguém mais – menos ainda os políticos – vê o mundo tal como ele é, mas como gostaria que ele fosse, e, se enganamos, manipulamos, deformamos, alteramos, é porque preenchemos os buracos de nossa visão e contamo-nos histórias. […]

[...] para apreender a realidade, devemos fazer trabalhar nosso cérebro, mas não há ferramenta mais incerta, mais caprichosa, mais preguiçosa, mais parcial e mais contadora de besteiras do que essa coisa esponjosa colocada sob nossa caixa craniana.

Como todos os nossos órgãos, nosso cérebro foi “feito” para garantir nossa sobrevivência, quer dizer, tirar proveito do mundo.

► Peggy Sastre durante conferência em Paris (França), 2021.

Não é necessário amaldiçoar [as redes sociais]; nosso cérebro é um filtro-bolha por si mesmo e sozinho.

SASTRE, Peggy. Pourquoi s’offusquer de la post-vérité? C´est le mode par défaut de notre cerveau [Por que se escandalizar com a pós-verdade? É o modo padrão do nosso cérebro]. Slate, [s l.], 4 jan. 2017. Disponível em: https://www.slate.fr/story/133049/post-verite-mode-defaut-cerveau. Acesso em: 26 ago. 2024. Tradução nossa.

O hexágono das ciências cognitivas e suas relações entre si, pensado por George Armitrage Miller (19202012), é um esquema das relações entre as ciências cognitivas, às quais, segundo Peggy Sastre, devemos recorrer (e não a alguma forma de ética ou controle) para compreender o que está por trás da expressão pós-verdade

EXERCICIO Não escreva no livro. B

Filtro-bolha: conceito que nomeia, ao mesmo tempo, a filtragem de informações que chegam aos internautas por diferentes meios e o estado de isolamento cultural em que eles são postos quando as informações às quais eles têm acesso já são filtradas e personalizadas segundo os gostos de cada pessoa. Essa filtragem é feita sem que as pessoas autorizem conscientemente e baseia-se nos sites por elas visitados.

Consultar orientações no Manual do Professor

1. Consideremos que nossa mente pode enganar-se. Por exemplo, quando pensamos rápido demais e vemos alguém se aproximando, podemos dizer que é X, mas, quando está mais perto de nós, vemos que se trata de Y. Essa possibilidade de erro apoia a tese de Sastre, para quem a oposição absoluta entre verdade e não verdade perdeu sentido na era da pós-verdade?

2. Justifique sua resposta, incluindo nela a seguinte frase: “O recurso às ciências cognitivas pode ser combinado com o recurso a reflexões éticas”.

Filosofia

O que é a verdade?

Considerando o conjunto de saberes que construímos até aqui neste capítulo, não podemos adiar mais a pergunta pelo que se entende por verdade.

Para fazer isso, leremos um texto não filosófico, com o objetivo de explorar as imagens nele presentes como maneiras de transmitir conteúdos diretamente (mediante nossa imaginação e nossas emoções). Trata-se de uma história muito contada na Alemanha para explicar a tragédia de 26 de junho de 1284, na cidade de Hamelin (atual Alemanha). Resumiremos a seguir a versão dada pelos escritores mundialmente conhecidos como Irmãos Grimm, que viveram na passagem do século XVIII ao XIX.

Certamente, sentiremos uma reação imediata, uma emoção de recusa de que a história seja verdadeira. Por essa razão, podemos tomá-la como o melhor símbolo do comportamento do bullshit, das fake news e da pós-verdade. É, então, com base nessa reação imediata que investigaremos depois o que se entende por verdade.

As crianças de Hamelin

Um homem estrangeiro foi visto em Hamelin, em 1284. Ele usava uma vestimenta externa feita de tecido multicolorido e dizia ser um caçador de ratos, prometendo livrar a cidade de todos os camundongos e ratazanas, em troca de uma quantia de dinheiro. Naquela época, Hamelin sofria de uma grande praga de ratos que a própria cidade não conseguia controlar, razão pela qual aceitou com satisfação a oferta do estranho. Os habitantes da cidade prometeram-lhe um salário, e o estrangeiro pegou sua flauta e tocou uma música. Os ratos e camundongos saíram de todas as casas e se reuniram ao redor dele. Quando notou que não ficou mais nenhum para trás, saiu da cidade para o rio Weser; todo o grupo o seguiu, caiu na água e se afogou. Mas quando os cidadãos se viram livres da praga, arrependeram-se da promessa e recusaram-se a pagar ao homem, que foi embora furioso e amargurado.

► Fotografia dos irmãos Jakob (1785-1863) e Wihelm Grimm (1786-1859), conhecidos como Irmãos Grimm. Alemanha, 1850.

Porém, no dia 26 de junho, dia dos santos João e Paulo, ele voltou disfarçado de caçador, com uma expressão amedrontadora em seu rosto e um chapéu vermelho estranho. Enquanto todos estavam reunidos na igreja, soou novamente a flauta nas ruas. Desta vez, não foram ratos e camundongos, mas crianças, meninos e meninas a partir dos quatro anos de idade, que vieram correndo em grande número. Ele os conduziu, sempre brincando, até o portão de passagem para uma montanha, onde desapareceu com eles.

Apenas duas crianças voltaram porque não puderam segui-lo. Ocorre que uma delas era cega, e não podia mostrar o lugar para onde o homem se dirigia com as crianças; e a outra era muda e não conseguia falar do caminho. Alguns disseram que as crianças foram levadas para uma caverna e surgiram na Transilvânia. Um total de 130 crianças nunca mais foi visto.

RATTENFÄNGER von Hameln [Flautista de Hamelin]. In: WIKIPEDIA: the free encyclopedia. [San Francisco, CA: Wikipedia Foundation], 4 jul. 2024. Disponível em: https://de.wikipedia.org/wiki/Rattenf%C3%A4nger_von_Hameln. Acesso em: 25 jul. 2024. Adaptação e tradução nossa.

HULTON ARCHIVE/GETTY IMAGES

Nossa reação imediata ao ler esse conto é certamente a de recusar-nos a crer nele. Podemos até considerá-lo uma fábula, quer dizer, uma história composta com a finalidade de ensinar algo, sobretudo relativo à ética. Aprenderíamos assim que todo acordo deve ser cumprido, pois o conto retrata a punição extrema dos habitantes de Hamelin: não pagaram o devido salário pelo desaparecimento dos ratos, mas acabaram pagando com a vida de suas crianças.

Isso pode parecer óbvio, mas não é certo que desconfiaríamos da verdade desse conto se ouvíssemos falar dele nos anos que se seguiram a 1284. Provavelmente houve quem duvidou da sua verdade, mas muitos confiaram nela. A primeira prova pública de confiança foi o vitral feito já em 1300 para a igreja da cidade, no qual se observava o flautista estrangeiro seguido pelas crianças. Em 1384, um documento registrava: “Há cem anos, nossas crianças foram levadas”.

Façamos um exercício de imaginação e coloquemo-nos entre os habitantes de Hamelin por volta de 1400. Ouviríamos o conto, observaríamos o vitral, saberíamos do documento que celebrava os cem anos do evento… Só continuaríamos a desconfiar se insistíssemos que qualquer pessoa de bom senso não acreditaria que 130 crianças se deixaram levar ao som de uma flauta e seguiram seu tocador. Mas talvez muitos de nós continuemos a preferir acreditar , porque a história dá a sensação de segurança , como quando se conhece realmente a causa de algo. Além disso, quem crê na verdade do conto sente-se pertencente a uma comunidade de pensamento, a uma identidade , ainda que, para isso, tenham de contrariar aquilo que costumamos observar nos fatos.

Quem não acredita nesse conto recorre ao bom senso nascido da observação da realidade. Mas os que acreditam também dizem recorrer ao bom senso nascido com a observação da realidade. Aqueles dirão que a realidade nunca deu provas de crianças seguirem flautistas. Estes dirão para observar as provas do vitral da igreja e o documento do centenário. O vitral da igreja e o documento do centenário podem até ser considerados provas de que, em 1284, algo aconteceu com as crianças de Hamelin. Elas podem, por exemplo, ter morrido de peste bubônica, como era comum acontecer naquela época. Seja como for, não há garantia nenhuma de que tudo ocorreu como se costuma contar. Ainda, se lembrarmos que a fábula era um estilo literário muito comum na época em que o conto foi inventado, provavelmente tenderemos a apenas aprender sua moral (“É sempre bom cumprir os acordos, para o benefício de todas as partes”), mas considerar como fantasias os detalhes.

► DOBBERTIN, Hans. As crianças de Hamelin. Vitral. O primeiro vitral da igreja de Hamelin (Alemanha) foi destruído, mas o matemático Hans Dobbertin (1952-2006) criou um novo, em estilo moderno.

Peste bubônica: infecção bacteriana transmitida principalmente pelas pulgas de animais pequenos contaminados. Em caso de falta de tratamento, pode ser mortal.

HANS DOBBERTIN/REPRODUÇÃO

Evidência: característica tão óbvia de uma realidade que, ao pensar em seu contrário, percebe-se imediatamente que este é falso. Por exemplo, é evidente que a lua aparece como algo branco a maior parte do tempo, pois é absurdo afirmar que a lua não aparece como branca a maior parte do tempo.

Realidade: nesta ocorrência, realidade significa apenas um conjunto de dados, de conhecimentos sobre algo. Julgar: classificar; avaliar. Note-se que o verbo julgar, nesta ocorrência, não tem conotação moral (como quando julgamos alguém com base em critérios de comportamento).

Fotografia de peixe-palhaço no oceano. Ilhas Raja Ampat (Indonésia), 2010. O peixe-palhaço pode ser uma metáfora de nossa relação com o mundo, à qual denominamos verdade: podemos estar envolvidos por ela por todos os lados, mas só temos condição de analisar a verdade de uma experiência de modo parcial, tal como o mundo aparece para nós.

Assim, se alguém insistir que tudo ocorreu igual ao conto, sentiremos um desconforto por não poder acompanhar essa pessoa em sua crença, pois não há evidência que dê base a ela. Mas, curiosamente, esse alguém também poderá sentir um desconforto parecido, não podendo seguir-nos em nosso bom senso, pois, no seu interior, formou-se uma convicção tão forte que a pessoa, para sentir-se segura, precisa crer que, para além de sua moral, o conteúdo do conto é verdadeiro. Aqui aparece um dado fundamental: o que se costuma chamar de verdade é, antes de tudo, uma relação nossa com uma realidade que julgamos verdadeira ou falsa. A verdade não seria algo, uma “coisa” ou um ser, mas uma propriedade do encontro entre quem conhece e uma realidade conhecida. Ainda que ela seja algo ou um ser, como afirmam, por exemplo, algumas religiões, sabedorias ancestrais etc., nós encontramos esse algo ou esse ser, em um primeiro momento, no modo como ele é conhecido por nós. Somente por reflexão diremos que tal algo ou tal ser existe por si mesmo, é a fonte de toda a verdade no Universo etc. Por fim, é justamente por ser a verdade mais uma relação do que algo existente por si mesmo que algumas pessoas, mesmo contrariando dados e fatos, preferem tomar por verdadeiro algo que nenhuma realidade confirma, ou por falso algo que toda realidade confirma. Não é por acaso que a era da pós-verdade também foi chamada de era “pós-fatos”

Verdade e evidência

Praticamente todas as filósofas e todos os filósofos tomaram posição diante da questão: “O que é a verdade?”. Todos, em alguma medida, procuraram e procuram evitar que apenas a sensação de segurança ou unicamente uma emoção sejam o motor para alguém comprometer-se com uma afirmação ou com uma negação.

Já os primeiros filósofos gregos levantaram a problemática do que permite tomar por verdadeira ou falsa nossa relação com uma realidade. A verdade mostrava ser o oposto da aparência, da ilusão, da falsidade. Considerando que a verdade é, em primeiro lugar, nossa relação com aquilo que conhecemos de uma determinada realidade, é compreensível que os filósofos gregos tenham passado do que conhecemos de uma realidade para a realidade em si mesma, ou seja, passaram a dizer que uma realidade é a fonte de sua própria verdade. A essa verdade alguns historiadores da Filosofia chamam de verdade metafísica ou ontológica , pois ela passa a referir-se à realidade mesma, que é chamada de verdadeira, o ser verdadeiro. Por conseguinte, os filósofos gregos também levantaram a problemática da garantia da verdade das frases que construímos para exprimir uma realidade. Chegavam, assim, ao que é conhecido como a verdade lógica . Por fim, àquela maneira de exprimir a verdade como relação, os historiadores costumam chamar de verdade fenomenológica , pois é a verdade percebida no modo como uma realidade aparece para nós, com seu modo próprio de apresentar-se e no encontro com o modo próprio de nossa percepção captá-la. Como o modo de aparecer ou a aparição de uma realidade chama-se também fenômeno , daí se originou o adjetivo "fenomenológica" para a verdade como relação.

Hoje se fala de outros tipos de verdade (semântica, existencial, performativa, probabilística etc.), mas todas, no limite, operam com a necessidade de justificar racionalmente por que se considera algo verdadeiro ou falso. Mesmo pensadores e pensadoras que negam a existência de uma verdade operam desse modo, pois esperam que creiamos na verdade da negação da verdade.

O filósofo Edmund Husserl (1859-1938), muito mais próximo de nós no tempo do que os gregos, mas com alguns pensamentos bastante parecidos com os deles, analisou a experiência fundamental da verdade como relação. Ele observou que a verdade se manifesta através da evidência (aquilo mesmo que se costuma chamar de realidade), a qual não é algo que se observa diretamente, mas uma relação intencional entre a consciência e o fenômeno. Assim, a realidade, tal como se apresenta a nós, é também relacional, constituída no encontro entre o objeto que aparece e nossa maneira de percebê-lo. Portanto, a realidade, na visão fenomenológica de Husserl, é sempre uma experiência vivida e intencional.

► Fotografia do filósofo Edmund Husserl (1859-1938). Alemanha, 1932.

Acidentalmente: por acaso.

Juízo: operação mental pela qual unimos ou separamos dois termos. Por exemplo: “A vida é movimento”; “A dor não é uma coisa”.

Valor lógico: estado de uma afirmação ou de uma negação quando comparada com aquilo que é conhecido. Só há dois valores lógicos: verdadeiro ou falso.

Visado: em sentido amplo, visado é o que é percebido, conhecido.

DiAlOGANDO

• Se uma nota/ imagem/história é divulgada na internet e tem um alto nível de alcance (reposts, likes, comentários) se torna verdade? Para quem e como?

Consultar orientações no Manual do Professor.

Verdade e evidência

Dentro da compreensão estrita do conceito de evidência, aqui considerada fundamental, são obviamente absurdas certas dúvidas externadas ocasionalmente nos últimos tempos: como por exemplo, se, ligada a uma mesma matéria A não poderia estar, em alguém, a vivência da evidência, e, num outro, a do absurdo. Dúvidas semelhantes só eram possíveis enquanto a evidência e o absurdo eram interpretados como sentimentos peculiares (positivos ou negativos) que, prendendo-se acidentalmente ao ato do juízo, conferiam a este último aquela característica particular à qual atribuímos o valor lógico da verdade ou da falsidade. Se alguém experimenta a evidência A, é evidente que ninguém poderá experimentar o absurdo do mesmo A; pois dizer que A é evidente é o mesmo que dizer: A não é apenas visado, mas é também verdadeiramente dado, exatamente como aquilo-como-o-que-é-visado; ele próprio está presente, no sentido mais estrito da palavra. Como seria então possível, no caso de uma segunda pessoa, que este mesmo A fosse visado, mas que o visar de que é um A fosse excluído por um não A verdadeiramente dado?

HUSSERL, Edmund. Investigações lógicas: sexta investigação: elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento. Tradução: Zeljko Loparic, Andréa M. Altino de Campos Loparic. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção Os Pensadores, p. 97).

Numa palavra, a verdade, em sua ocorrência mais plena, consiste, segundo Husserl, em uma identidade: a total concordância entre aquilo que se conhece sobre algo e este mesmo algo. A evidência, por sua vez, é a vivência da verdade. A evidência, portanto, remete à verdade, e esta, em sua forma mais plena, remete à harmonia entre o que conhecemos sobre algo e este algo em si mesmo. Participamos, assim, da constituição da verdade, mas não a inventamos como bem entendemos, pois obedecemos aos dados mostrados por aquilo que é conhecido. Essa prática lúcida é a evidência.

Como visto no capítulo, a verdade como relação com uma realidade e com o que conhecemos sobre essa realidade, juntamente com a verdade lógica, são, por assim dizer, as concepções mais recorrentes na História da Filosofia. É hora, então, de iniciarmos o estudo da verdade lógica, aquela referente ao convencimento apenas com a razão. Esse estudo será feito no próximo capítulo.

Coleção de artigos organizada por Antonio Ianni Segatto para o debate atual sobre fake news, com destaque para o do filósofo Ernesto Perini-Santos.

• SEGATTO, Antonio Ianni (org.). Dossiê: pós-verdade, negacionismo e fake news. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 28, n. 1, p. 1-179, 1 ago. 2023.

InTEGranDO COm...

HISTÓRIA

A manipulação da verdade

As reflexões da filósofa Hannah Arendt (1906-1975) podem ser relacionadas ao tema da pós-verdade, especialmente em sua obra Origens do totalitarismo, publicada pela primeira vez em 1951, na qual ela explora o modo como regimes totalitários, como o nazismo, manipulam a verdade para controlar as massas. Esse tipo de distorção sistemática, segundo Arendt, cria uma realidade alternativa, um fenômeno que pode ser comparado à pós-verdade atual. Leia, a seguir, um trecho de uma entrevista concedida pela filósofa em 1973.

No momento em que não mais tivermos uma imprensa livre, tudo pode acontecer. O que torna possível que uma ditadura totalitária ou qualquer outra governe é que as pessoas não estejam informadas; como se pode ter uma opinião se não se está informado? Se todo mundo sempre mentir para você, a consequência não é que você vai acreditar em mentiras, mas sobretudo que ninguém passe a acreditar mais em nada. […] E um povo que não acredita mais em nada não pode tomar decisões. Ele é privado não apenas de sua capacidade de agir, mas também de sua capacidade de pensar e julgar. E com esse povo você então pode fazer o que quiser.

► [TODA a Alemanha escuta o Führer com a Rádio do Povo]. 1936. 1 pôster. Em 1933, na Alemanha nazista, foi criado o Ministério do Reich para Esclarecimento Popular e Propaganda, cujo objetivo era garantir a transmissão das mensagens nazistas nos diferentes meios de comunicação em massa.

ARENDT, Hannah. Hannah Arendt: from an interview. [Entrevista cedida a] Roger Errera. The New York Review of Books, Nova York, 26 out. 1978. Disponível em: https://www.nybooks.com/articles/1978/10/26/hannah-arendt-from-an-interview/. Acesso em: 9 set. 2024. Tradução nossa.

1. Analise o pôster nazista de 1936. Qual é o seu objetivo?

2. Qual é a relação entre o nazismo e os meios de comunicação de massa?

3. A partir das ideias da filósofa Hannah Arendt, explique de que forma é possível evitar uma ditadura totalitária.

#jovensemação

Memes no combate às fake news

PASSO 1

Conhecer ações inspiradoras realizadas por três jovens

De nome bem-humorado e brasileiro nato, o site Vaza, Falsiane! (Disponível em: https://vazafalsiane.com#toppadding. Acesso em: 24 jul. 2024) é um recurso didático de grande utilidade para formar a juventude quanto à avaliação das notícias, visando à maior objetividade possível, isto é, sem deixar que as emoções e as sensibilidades interfiram no juízo imparcial a respeito das mais variadas tendências noticiadas, como políticas, governamentais, religiosas, estéticas, artísticas, científicas, ético-morais, econômicas, societárias etc.

O portal é uma iniciativa de três jovens jornalistas e professores que, ao longo dos últimos anos, estudaram as fake news e as melhores formas de resistir a elas, divulgando o assunto para um público amplo.

PASSO 2 Mapear a realidade

Produções pessoais.

A Faça o “Teste seus conhecimentos sobre fake news” disponibilizado no site Vaza, Falsiane!

B Discuta sobre como a propagação de fake news pode influenciar negativamente a opinião das pessoas. Vocês já identificaram fake news? Como aconteceu?

C Pesquise por memes usados como estratégia para checagem dos fatos.

Não escreva no livro.

PASSO 5 Autoavaliação/Conclusão

Rememorem todos os passos dessa atividade e pensem no que fizeram de bom e de menos bom, tecnicamente falando. Em que poderiam melhorar? Entendam essa autoavaliação como sua conclusão, pois, produzindo o que aqui foi sugerido, vocês já confirmaram como é benéfico evitar fake news.

PASSO 4 Compartilhar o trabalho com a comunidade

Registrem os passos da realização do trabalho. Vocês podem tirar fotografias, fazer vídeos curtos, dramatizações, reportagens sobre o tema em tela e lives sobre o trabalho realizado. Compartilhem os registros nos canais oficiais da escola com a hashtag da seção (#JovensEmAção).

PASSO 3 Atuar na sociedade

Criem um acervo (físico ou on-line) no qual os materiais pesquisados possam ser consultados e/ou complementados por toda a comunidade escolar.

Consultar orientações no Manual do Professor

1. Responda de maneira direta e breve: considerando-se especificamente as emoções, como é possível convencer? Comente.

2. Leia os trechos a seguir.

Texto A

Pólos: Tu preferirias sofrer por uma injustiça em vez de a cometer?

Sócrates: A bem da verdade, eu não preferiria nem um nem outro. Mas, se fosse necessário que eu escolhesse entre sofrer uma injustiça ou cometê-la, eu preferiria sofrê-la.

PLATÃO. Gorgias [Górgias]. Tradução: Jean-Paul Laffitte. Paris: Nathan, 2003. p. 75. Tradução nossa.

Texto B

Inteligência artificial (IA) não é uma técnica computacional objetiva, universal ou neutra que decide sem direção humana. Os sistemas dela são modelados por mundos sociais, políticos, culturais e econômicos, moldados por humanos, instituições e imperativos que estabelecem o que esses sistemas fazem e como devem fazê-lo. Eles são projetados para discriminar, aumentar hierarquias e determinar rankings [classificações] apertados. Quando aplicados em contextos sociais como o policiamento, o sistema judiciário, a assistência-saúde e a educação, os sistemas de IA podem reproduzir, sofisticar e aumentar desigualdades estruturais para existir. Isso não é casual: os sistemas de IA são construídos para ver e intervir no mundo conforme maneiras que beneficiem os Estados, as instituições e as corporações a que os Estados atendem.

CRAWFORD, Kate. The atlas of AI: power, politics and the planetary costs of artificial intelligence [O atlas da IA: poder, política e os custos planetários da inteligência artificial]. New Haven: Yale University Press, 2021. p. 211. Tradução nossa.

Dê ouvidos a suas emoções e relembre se já teve experiências que podem ser interpretadas com o que é dito nos textos A e B. Se já teve, selecione uma delas e tente lembrar-se do maior número de detalhes. Releia, então, os textos A e B respondendo ao que se pede.

a) Busque um fio condutor que una os textos A e B.

b) E xplique por que você vê esse tipo de conexão entre os textos.

3. Leia a charge a seguir. Observe-a detalhadamente e com uma atitude importante: imagine-se no lugar da criança. Você reconhece a desigualdade social como um problema ético e de justiça social? Argumente.

► DALCIO. [Consumo orgânico]. Ecodebate, São Paulo, 19 maio 2014. Disponível em: https:// www.ecodebate. com.br/2014/05/19/ consumo-que-virouconsumismo-artigo-de-marcus-eduardo-de-oliveira/. Acesso em: 27 ago. 2024.

Não escreva no livro.

4. ( Exercício inspirado na prova seletiva nacional para a 31a Olimpíada Internacional de Filosofia ). Leia e analise o trecho de texto abaixo, escrito por Agostinho de Hipona (354 d.C.-430 d.C.), e, na sequência, tomando o texto como critério de avaliação, responda: as pessoas que espalham fake news , mesmo sabendo que são notícias fabricadas, são mentirosas?

Não diz uma mentira quem afirma algo em seu ânimo , ou opina, mesmo se esse algo é falso. Com efeito, na apresentação de sua crença, afirma aquilo que tem em seu ânimo, e a tudo trata com base no que afirma. […] Esse alguém toma por conhecido o que não conhece. Mente, porém, quem tem algo em seu ânimo enquanto, por palavras ou qualquer outro meio expressivo, diz outro algo. Por isso, costuma-se dizer que os mentirosos têm dois corações: um, que conhece e considera o verdadeiro, mas disso não falam; outro, que, diferente do primeiro, abre os lábios para proferir aquilo que já sabe ou imagina ser falso. Daqui segue que alguém, sem mentir, pode afirmar algo falso, porque crê que esse algo é como ele diz, embora não o seja de fato. Igualmente, pode acontecer que alguém, mentindo, diga a verdade, como quando alguém crê que é falso algo que ele afirma ser verdadeiro, enquanto, efetivamente, algo é como ele afirma. Retenhamos que uma pessoa é sincera ou mentirosa com base no juízo do seu ânimo, e não com base na verdade ou falsidade de algo em si. Portanto, a respeito de alguém que diz o falso no lugar do verdadeiro, mas considerando-o efetivamente verdadeiro, podemos dizer que está no erro ou, ainda, que é um iludido, mas não um mentiroso. […] Já a culpa do mentiroso – quer ele consiga enganar de fato, porque alguém crê na falsa declaração dele, quer ele não engane, seja porque ninguém lhe dá crédito, seja porque pode, apesar de seu desejo de enganar, dizer o verdadeiro – está no seu desejo de enganar quando seu ânimo declara aquilo que não considera verdadeiro.

AGOSTINHO DE HIPONA. De mendacio liber unus [Livro sobre a mentira]. [S. l.]: Sant'Agostino, 2024. Tradução nossa de reprodução do original de 395 d.C. Disponível em: http://www.augustinus.it/latino/menzogna/index.htm. Acesso em: 25 de jul. 2024.

5. ( Exercício inspirado na prova seletiva nacional para a 32 a Olimpíada Internacional de Filosofia). Leia o trecho de texto a seguir e, depois, compare-o com o texto de Agostinho de Hipona, estudado no exercício anterior, e responda: é correto dizer que os dois textos encaram como complexa a tarefa de identificar claramente o que é verdadeiro? Por quê?

Ora a verdade aparece-nos tão clara como o dia, ora ela se esconde por sob as coisas materiais e corriqueiras, e, então, caímos em uma noite profunda quase como aquela em que estávamos antes. Somos, então, como o homem que, encontrando-se na noite profundamente obscura, nela vê, de quando em quando, brilhar um relâmpago.

MAIMÔNIDES, Moisés. Le guide des égarés [O guia dos desorientados]. Tradução: S. Munk. Paris: Verdier, 1979. p. 12. Tradução nossa.

Ânimo: alma especificamente humana, dotada de inteligência e vontade. Agostinho chamava de alma a vitalidade que habita todo ser vivo (plantas, animais não racionais e seres humanos). Mas preferia o termo ânimo para referir-se à alma humana.

Os seres humanos são seres de pensamento

3 MÉTODO RACIONAL

No Teatro, na Literatura, no Cinema, nas Artes em geral, a Filosofia muitas vezes trabalha com metáforas, comparações e outros processos que, longe de serem irracionais, são plenamente legítimos diante da razão. A Filosofia, portanto, não se limita a um campo específico, mas se preocupa sempre com a verdade e o conhecimento, elementos que moldam o método racional e caracterizam o pensamento filosófico.

► Imagens holográficas atribuem símbolos às relações estabelecidas entre dados em nossa mente. Nossa vida interior será sempre a fonte de estabelecimento de relações.

Modos de compreender a verdade

Na atividade filosófica, a razão está diretamente ligada às noções de verdade e falsidade . Mesmo quando a Filosofia recorre a elementos como emoções ou imaginação para conhecer e convencer, ela ainda opera com essas noções. Diferentemente do que se pensava até o século XVIII, quando a Filosofia era entendida como a investigação das causas primeiras de tudo, hoje ela não possui um objeto definido. A Filosofia se encontra onde quer que haja interesse em explorar o sentido de algo.

Há três maneiras recorrentes de compreender a verdade na história da Filosofia: (1) a relação entre uma realidade e a imagem que ela grava em quem a conhece; (2) a relação entre uma realidade e a representação mental elaborada sobre ela; (3) a relação entre proposições e a adequação delas para expressar algo de forma verdadeira.

Relação de adequação de nossa mente a uma realidade

REALISMO

Relação de acordo entre as mentes daqueles que conhecem uma realidade

IDEALISMO

Relação de acordo entre proposições consideradas adequadas para exprimir algo

PROPOSICIONALISMO

Poderíamos mencionar outras compreensões do que possa ser a verdade, mas a necessidade de justificar cada compreensão torna a tarefa muito exigente e de imensas dimensões. Para as finalidades que desejamos atingir com a formação no Ensino Médio (discutir a existência, a natureza, o modo de ser da verdade), mostram-se suficientes as concepções aqui mencionadas.

A Filosofia não opera exclusivamente pelo acionamento das emoções para convencer. Por outro lado, ela pode acionar as emoções, a fim de captar o interesse de seu público. O mais frequente, porém, é que ela recorra ao que já chamamos de argumentação mediante a razão (capítulo 2).

Na sua forma mais elaborada, o convencimento por emoção e razão ocorre na Literatura; e mesmo não filósofos ou filósofas podem, por meio dela, tratar filosoficamente dos mais variados temas.

Vertiginoso: algo que causa vertigem, que faz perder o autocontrole.

Desfalecer: perder a força.

Semblante: face, rosto; aparência.

Inofensivo: que não oferece nenhum perigo ou incômodo.

Categoria: critério para fazer classificações.

Abstrato: uma compreensão de algo material, da Natureza, mas agora em formas racionais, menos concretas.

Obsceno: chocante; algo que vai contra os costumes considerados bons por um grupo.

O pensamento filosófico expresso em modo artístico

O romance A náusea, de Jean-Paul Sartre (1905-1980), é um exemplo de produção filosófica em forma artística, nesse caso, a forma literária (seguindo as normas e estruturas do gênero literário). Seu romance leva os leitores a experimentarem a existência, ou melhor, o que significa o ato de existir. Mas não o faz com raciocínios abstratos e com teorias relativas ao existir e ao morrer. Ele procura convencer mostrando o que a personagem Roquentin sente em sua carne e escreve em primeira pessoa. Roquentin era um jovem de cerca de 35 anos, que escrevia um diário quando decidiu deixar o trabalho, a fim de escrever um livro. Ele sentiu a necessidade de escrever o diário porque sua relação com as coisas e as pessoas havia mudado. Não suportava mais a vida em sua cidade e estava perdendo até o interesse pelo livro que escrevia. Foi então que ele viveu a experiência vertiginosa que lemos no livro A náusea.

A vertigem da existência

Eu estava agora há pouco na praça. A raiz da castanheira adentrava na terra, chegando embaixo do meu banco. Sequer me lembro de que era uma raiz. As palavras haviam desfalecido, e, com elas, a significação das coisas, seu manual de instrução, as frágeis referências que os humanos desenharam na face delas. Eu estava sentado sozinho, diante daquela massa escura e cheia de nós, inteiramente bruta e que me causava medo. De repente, tive uma iluminação. Isso me fez perder o fôlego. Nunca antes eu havia sentido o que quer dizer existir. Eu era como os outros, como aqueles que caminham à beira-mar com roupas leves de primavera. Assim como eles, eu dizia: ‘o mar é verde’; ‘aquele ponto branco, lá no alto, é uma gaivota’. Mas, eu não sentia que isso existia ou que a gaivota era

uma ‘gaivota existente’. Geralmente, a existência se esconde. Ela está aí, à nossa volta, em nós; nós somos a existência; não podemos dizer nem duas palavras sem falar dela, mas, no fim das contas, não a tocamos. […] E eis que, de repente, tudo estava diante de mim, claro como a luz do dia: a existência de repente deixou cair seu véu. Ela perdeu seu semblante inofensivo de categoria abstrata: era a massa mesma das coisas; a tal raiz estava modelada na existência. Melhor ainda, a raiz, as grades da praça, o banco, as gramas finas do jardim, tudo isso tinha desfalecido; a diversidade das coisas, sua individualidade, não passava de uma aparência, um verniz. Esse verniz tinha derretido; só restavam massas monstruosas e moles, em desordem, nuas; numa assustadora e obscena nudez.

• Sartre, em virtude do estilo literário, procura ativar as emoções de seus interlocutores, principalmente pela quantidade de detalhes que nos fazem sentir aquilo que Roquentin vivenciava. Mas sua intenção era levar os leitores a passarem do nível emocional elementar ao mais sofisticado, que, além das emoções, permite à razão associar-se a elas, a fim de encontrar argumentos mais resistentes.

► SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Tradução: Caio Liudvik. 26. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 2021. (Coleção Clássicos de ouro). Reprodução da capa. Primeiro romance filosófico de Sartre.

SARTRE, Jean-Paul. La nausée. Paris: Gallimard, 1938. p. 110. Tradução nossa.

Métodos centrados apenas na razão

Outros métodos filosóficos concentram-se “exclusivamente” no aspecto racional, sem ênfase nas emoções, e seguem um método composto de tentativas de justificar aquilo que dizem ou escrevem, partindo de informações iniciais (em alguma medida bem conhecidas dos participantes do debate) e articulando-as a fim de obter conclusões.

Cada tentativa recebe o nome de argumento ou raciocínio. Dessa perspectiva, é possível unir, de modo geral, as diferentes formas filosóficas de trabalho argumentativo em um método que costuma ser chamado de método discursivo. Além disso, é possível dividir o método discursivo, também de modo geral, em método silogístico e método dialético, como estudaremos a seguir.

Alguns filósofos e filósofas, porém, decidiram não escrever seus pensamentos. São chamados de ágrafos, quer dizer, sem escrita. Sua própria vida constituía o melhor “discurso” ou a melhor maneira de convencer. O mais conhecido deles foi Sócrates (c. 470 a.C.-399 a.C.), considerado o filósofo por Platão (c. 427 a.C.-347 a.C.). Mas houve ainda Diógenes de Sínope (413 a.C.-323 a.C.), também conhecido como Diógenes, o Cão, por criticar a vida artificial construída pelos seres humanos e defender que eles seriam mais felizes se aprendessem as “virtudes” dos cães.

Outra forma de convencer que também compõe o método filosófico consiste em não recorrer propriamente a discursos ou construções de pensamentos, mas em decompor aquilo que chamamos de realidade ou de experiência, até chegar a elementos sobre os quais não há dúvida, ou seja, que não podem ser objetos de interpretações variadas, mas que são pressupostos em toda interpretação. Esse método costuma ser chamado de método intuitivo.

► KAVČIČ, Franc. Sócrates com um discípulo e Diotima. [ca. 1810]. Óleo sobre tela, 121,5 cm x 173,5 cm. Narodna Galerija, Liubliana (Eslovênia). Sócrates e Diotima são exemplos de filósofos ágrafos.

Decompor: separar os elementos que compõem algo.

InTEGranDO COm...

LÍNGUA PORTUGUESA

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O

discurso

da vida cínica: Diógenes, o Cão, e Mouna Aguigui

Não escreva no livro.

O termo cinismo costuma designar a atitude de uma pessoa falsa ou que procura dizer ambiguidades sobre um tema, quando, na verdade, possui uma posição precisa a respeito. Na História da Filosofia, porém, cinismo é o nome de um estilo filosófico desenvolvido na Antiguidade por Antístenes (445 a.C.-365 a.C.), discípulo de Sócrates. O mais conhecido dos filósofos cínicos foi Diógenes de Sínope.

O adjetivo cínico, aliás, vem do termo cão (kyon, kynos, em grego), porque os filósofos cínicos ficaram associados à imagem desse animal. Conta-se que eles se reuniam em um local conhecido pelo nome de Cão Rápido. Eles também podiam ter sempre junto de si um cão, animal dócil com quem o acaricia, insistente com quem não o alimenta e bravo com quem ele não aprecia. Conta-se, também, que esses filósofos viviam como cães, indiferentes às convenções sociais.

À parte o aspecto lendário, os cínicos criticavam, de fato, os costumes sociais. Parece que Platão chegou a elogiar a inteligência de Diógenes, comparando-o com Sócrates, mas logo acrescentou que seria um Sócrates louco.

Diógenes acreditava que leis e costumes só afastam os seres humanos da Natureza. Mas, em vez de demonstrar desgosto, ria de tudo e de todos.

A associação atual com falta de sinceridade torna difícil, hoje, entender o sentido antigo da palavra cínico . O cinismo de Diógenes nada tinha de falta de sinceridade; ao contrário, ele não negociava sua liberdade e sua integridade.

Um caso mais recente, porém, ocorrido na França, entre os anos 1950 e 1960, pode ajudar a compreender o sentido do cinismo antigo, porque veio à luz um cínico! Trata-se de André Dupont (1911-1999), que adotou o nome de Mouna Aguigui. Tal nome não significa nada de preciso e parece mais um jogo de palavras francesas como moumouna e gaga. Ambas são

GÉRÔME, Jean-Léon. Diógenes. 1860. Óleo sobre tela, 74,5 cm x 101 cm. Walters Art Museum, Estados Unidos.

oxítonas (pronunciam-se mumuná e gagá). A primeira é uma palavra carinhosa, que, com uma pronúncia um pouco diferente (mumún), pode usar-se para um animal. A segunda é um equivalente do mesmo termo em português: louco. Mouna Aguigui só se locomovia de bicicleta ou a pé, usando sempre um chapéu com pequenos sinos e um casaco cheio de adesivos. Escrevia em folhas de couve; registrava discursos políticos e deles debochava. Nas eleições, Mouna sempre se candidatava, mas na qualidade de não candidato. Denunciava o caca-pipi-talismo, outro jogo de palavras, com caca (fezes), pipi (urina) e talismo, a fim de criticar o capitalismo. Seu lema era: “Os tempos são duros... Viva o mole!”. Alguns políticos de esquerda diziam: “Mouna é folclore!”, mas ele respondia: “Vocês preferem o cloro?”, em referência ao gás lacrimogêneo usado para reprimir manifestações populares. Reúna-se com toda a turma e faça o que se pede.

► Mouna Aguigui ironiza os participantes do Prêmio Goncourt (premiação literária francesa) e é reprimido pela força policial. Paris (França), 1968.

1. Identifiquem no texto os termos que, eventualmente, alguém possa desconhecer e encontrem o(s) significado(s) adequado(s) para ele(s).

1. Resposta pessoal.

2. Chama-se etimologia a área do saber que contribui para compreender o significado dos termos mediante o estudo da origem deles. Esse estudo oferece, em geral, uma ampliação de entendimento em áreas específicas do saber, que operam com os termos explicados. Por exemplo: em Medicina, usa-se frequentemente o termo diagnóstico, que significa a identificação de uma doença, um mal-estar ou um problema, após análise de dados, exames, testemunhos... Quando analisamos sua etimologia, notamos que essa palavra é formada pela adaptação de duas palavras da língua grega: dia (por meio de) + gnosis (conhecimento). Com efeito, diagnóstico é uma identificação, mas não baseada em acaso, sorte ou testes aleatórios, e sim por meio de conhecimentos que foram associados até trazer à luz a identificação buscada.

DiCAS

• Os dicionários Aulete Digital e Dicionário etimológico da Língua Portuguesa, de imensa utilidade para redação de textos sem repetição excessiva de termos e ideias, sobretudo quando precisamos de termos parecidos, mas não propriamente sinônimos.

AULETE DIGITAL. [S. l., 202-]. Site. Disponível em: https://www.aulete. com.br. Acesso em: 23 set. 2024. NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: [s. n.], 1955. Tomo I.

a) Procurem no texto palavras cuja etimologia vocês imaginam ser esclarecedoras.

2. a) Resposta pessoal.

b) Pesquisem se é possível encontrar a etimologia dos nomes de pessoas da turma. Vocês se identificam com os significados encontrados para os próprios nomes?

2. b) Resposta pessoal.

3. Solicite ao(à) professor(a) de Língua Portuguesa uma breve explicação sobre figuras de linguagem, em especial sobre a perífrase. O nome do cínico francês moderno pode ser considerado uma perífrase? Explique.

3. Resposta pessoal.

Método discursivo

Donald Trump (1946-) e Joe Biden (1942-) em um debate presidencial. Estados Unidos, 2024. Argumentadores acalorados, mas nem sempre ouvintes da razão. O então presidente Joe Biden desistiu de sua candidatura à reeleição, dando lugar à candidata Kamala Harris (1964-).

Enunciado: proposição, isto é, declaração que expressa algum pensamento.

A razão , ou a construção e expressão racional do pensamento, significa a elaboração de um discurso que justifique seus pontos de partida, suas mediações e suas conclusões. Ele toma por base um conjunto de afirmações e negações que podem ser avaliadas por todas as pessoas que conhecem as regras seguidas na construção desse discurso.

O termo regra é tomado aqui em um sentido bastante amplo e remete aos modos de justificar as articulações ou as relações entre as afirmações e negações de cada discurso. Não é uma regra matemática, como se a inteligência humana funcionasse ao modo dos computadores, quer dizer, sem a possibilidade de improvisar e de ter criatividade. Em vez disso, o termo regra, aqui, refere-se a tudo aquilo que se deve respeitar em um jogo, por exemplo.

Trataremos do método discursivo pondo-o em prática, e não apenas por meio de explicações teóricas. Como o método discursivo pode ser reduzido ao uso de argumentos, o primeiro passo é dar atenção à atividade de reconhecê-los.

C omo reconhecer um argumento?

Premissas e conclusões

Nos argumentos ou raciocínios, tudo o que é apresentado como justificativa recebe o nome de premissa ou antecedente. Trata-se do ponto de partida (ou dos pontos de partida) para chegar à conclusão, a qual, por sua vez, chama-se apenas conclusão ou também consequente. O argumento pode ser definido como um grupo de enunciados encadeados composto necessariamente de justificativa(s) e conclusão. Para bem analisar um argumento, convém identificar a premissa ou as premissas e verificar se há uma conexão justificada com a conclusão. Em geral, os pensamentos são feitos de maneira compacta, quer dizer, não apresentam necessariamente todos os momentos que os compõem. Pela análise, contudo, esses momentos podem ser trazidos à tona. Quando uma ou mais premissas não são explícitas, mas contadas como certas no raciocínio, dá-se a elas o nome de pressuposto. Analisemos, por exemplo, a frase a seguir.

Até quem comete crime merece respeito, porque é um ser humano.

BRENDAN SMIALOWSKIJIM WATSON/AFP/GETTY IMAGES

Observa-se que a conclusão está na primeira parte da frase (“até quem comete um crime merece respeito”) e que sua justificativa está na segunda parte (“porque é um ser humano”). As duas partes são ligadas pela conjunção porque. De acordo com essa conjunção, o que é expresso depois dela equivale à premissa que dá base para afirmar o que é dito antes (a conclusão). Além disso, essa premissa se fundamenta em duas outras premissas não declaradas (pressupostos): a de que todo ser humano merece respeito e a de que cometer um crime não faz alguém deixar de ser humano.

Pressuposto: todo ser humano merece respeito.

Pressuposto: os(as) criminosos(as) não deixam de ser humanos.

Premissa: quem comete um crime é um ser humano.

Conclusão: até quem comete um crime merece respeito.

Podemos observar que o raciocínio está bem montado, porque parte de um dado geral (“todo ser humano merece respeito”) e mostra que, mesmo na hipótese de alguém cometer um crime, esse alguém é um caso particular que pertence ao dado geral. O fato de cometer um crime não o torna menos humano; portanto, também merece respeito.

Um famoso exemplo fornecido por Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) em sua obra Analíticos posteriores, pode assim ser resumido:

Como este navio navegou seguindo sempre a mesma costa, não fez nenhum retorno e chegou à mesma praia de onde saiu, é porque contornou uma ilha.

Conclusão

Justificativa introduzida pela conjunção como, que, em geral, faz a conclusão situar-se no que vem em seguida.

Justificativa introduzida pela conjunção porque, que, em geral, introduz uma razão para a conclusão.

Esse raciocínio tem dois pontos de partida ocultos (dois pressupostos): 1) todo barco que contorna uma ilha não faz nenhum retorno e chega ao mesmo ponto de onde partiu; 2) contornar uma ilha faz seguir a mesma costa. Também tem duas premissas: 1) este navio navegou seguindo a mesma costa; 2) este navio contornou uma ilha. Com base nos dois pressupostos e nas duas premissas, conclui-se que este barco não fez nenhum retorno e chegou à mesma praia de onde saiu.

A diferença de estilos de convencimento, de compreensão de termos, do significado de um pensamento etc. aponta para um dado de grande importância em Filosofia: o melhor debate de ideias se dá na escolha das premissas e dos pressupostos, e não em torno da conclusão.

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

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Investigar o que antecede uma conclusão é filosoficamente mais interessante do que simplesmente debater a conclusão.

Os trechos a seguir foram escritos pelos filósofos Baruch de Espinosa (1632-1677) e Simone Weil (1909-1943).

Texto 1

[ ] Se a natureza humana estivesse feita de tal modo que aquilo que os seres humanos mais desejassem fosse aquilo que é mais útil, não seria preciso nenhuma arte para a concórdia e a lealdade. Mas, porque a natureza humana é, manifestamente, constituída de modo bem diferente, o Estado tem necessariamente de ser instituído de tal maneira que todos, tanto os que governam como os que são governados, queiram ou não, façam aquilo que interessa à salvação comum, isto é, que todos sejam levados, espontaneamente, ou à força, ou por necessidade, a viver segundo o que prescreve a razão [ ].

ESPINOSA, Baruch de. Tratado político. Tradução: Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 48. (Clássicos WMF).

Texto 2

Como certas funções do Estado servem ao interesse de todos, temos o dever de aceitar de bom grado o que o Estado impõe em relação a essas funções. (Exemplo: regulamentação do trânsito). Quanto ao resto, é necessário sofrer o Estado como uma necessidade, mas não aceitá-lo dentro de nós. [... ] Devemos recusar reconhecer as recompensas (podemos felizmente recusar as recompensas e até as punições), utilizar ao máximo todas as liberdades que o Estado nos deixa (é muito raro os cidadãos ousarem abusar de todos os direitos reais). Também temos o direito de usurpar, contra a lei, as liberdades que o Estado não nos deixa, desde que isso valha a pena. Temos o dever, quando as circunstâncias nos permitem escolher entre vários regimes, de escolher o menos ruim. O Estado menos ruim é aquele em que somos menos limitados pelo Estado e aquele no qual os simples cidadãos têm maior poder de controle [...]. Temos o dever de trabalhar pela transformação da organização social: aumento do bem-estar material e instrução técnica e teórica das massas.

WEIL, Simone. Aulas de filosofia . Tradução: Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1991. p. 150.

Sofrer: receber a ação de alguma coisa; suportar.

Usurpar: tomar posse ilegalmente.

► ELEK, Krisztian. Civil disobedience is necessary [Desobediência civil é necessária]. 2019. Reino Unido. A musicista fez uma bela performance com a canção “Não deixarei ninguém fazer girar-me em círculo”, conhecida por se tratar dos direitos civis, com grande sucesso nos anos 1960.

1. Em dupla. Antes, identificar, individualmente, as premissas, os pressupostos e as conclusões nos raciocínios a seguir. Na sequência, os(as) integrantes da dupla compararão suas respostas. Se elas divergirem, solicitem a ajuda do(a) professor(a) para indicar maneiras de resolver a divergência. Por fim, digam se vocês concordam ou discordam das conclusões, bem como se consideram verdadeiras ou falsas as premissas e pressupostos.

a) Posso dizer que sou amigo de Cláudia, porque temos os mesmos gostos.

b) Visto que esta afirmação se baseia em regras universais, ela é científica.

c) Este político é corrupto; aquele também; aquele outro também; portanto, todo político é corrupto.

d) Posso duvidar de tudo, mas se duvido é porque penso; e, se penso, eu existo.

e) A dipirona baixou a febre da minha vizinha; então ela também deve baixar a minha febre.

2. Leia os textos 1 e 2 e repita os procedimentos realizados na atividade 1

T ipos de argumento

O filósofo Aristóteles chamava de silogismo o raciocínio ou argumento, ou seja, a conexão de ideias e de razões ou porquês que permite extrair validamente conclusões (em grego, syllogismoí ). Pelo termo silogismo passou-se, então, a designar toda unidade básica de raciocínio em estilo aristotélico, que, como estudaremos a seguir, combina ideias e premissas conforme regras claras que garantem a validade do raciocínio. Esse estilo aristotélico de descrever as regras de organização das ideias, dos porquês e das conclusões, bem como a relação do estilo aristotélico com outros, forneceu à teoria do conhecimento, à história da Filosofia, à história da Lógica (parte da Filosofia que estuda as leis do pensamento e expõe as regras a serem observadas na exposição da verdade) e de outras áreas o procedimento epistemológico ou

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Falácia: elaboração de raciocínio aparentemente válido, mas que contém problemas que levam a uma conclusão não justificada racionalmente.

hábito cognitivo de central importância: substituir termos, frases, conclusões por símbolos. Dessa forma, fica mais fácil realizar cálculos com símbolos; em vez de frases longas, palavras raras e/ou desconhecidas, esforça-se em tentar evitar os erros e as falácias nos silogismos.

Os tipos fundamentais de silogismo são o silogismo dialético , o silogismo categórico e o silogismo hipotético . Nos silogismos dialéticos, as premissas são apenas prováveis, ao passo que nos silogismos categóricos as premissas exprimem dados categoricamente, ou melhor, sem deixar dúvida, porque são evidentes ou porque já foram provadas anteriormente. Já os silogismos hipotéticos operam com hipóteses formuladas sobre uma base de dados seguros. Deu-se também o nome de dedução ao silogismo.

Ao longo da História da Filosofia, identificaram-se novos tipos de lógica, algumas até muito distantes da lógica aristotélica. Em nossos dias, as lógicas mais estudadas têm pouco em comum com a lógica de Aristóteles.

Segundo o estilo aristotélico de convencimento, deve-se completá-lo com a indução e a analogia . Ambas são consideradas argumentos, porque também estabelecem relações entre premissas e conclusões. É justamente o modo como se passa das premissas à conclusão (o modo como se procura garantir a verdade da conclusão com base na verdade das premissas) que permite diferenciar entre a dedução , a indução e a analogia.

Alguns pensadores incluíram ainda outro tipo de argumento, chamado de argumento de autoridade . A compreensão e a utilização desse quarto tipo merece atenção redobrada, pois, muitas vezes, ele não justifica a passagem da verdade das premissas à verdade da conclusão, mas opera um ocultamento daquilo que toma por base para fazer a passagem.

• Dotada de fineza e bom humor em seu trabalho, a autora analisa um conjunto de lógicas não aristotélicas.

► HAACK, Susan. Filosofia das lógicas . Tradução: Cezar A. Mortari. São Paulo: Unesp, 2002. Reprodução da capa.

► Susan Haack (1945-), autora do livro Filosofia das lógicas, pensadora inglesa, estudiosa dos procedimentos da razão e de temas da atualidade.

DiCA

Indução

Na indução , parte-se de experiências particulares, seme lhantes e repetidas, a fim de se obter uma conclusão, mesmo que essa c onclusão não seja totalmente garantida como ver dadeira para sempre e para todos os casos semelhantes.

Dito de outra maneira, na indução, a verdade das premis sas não garante necessariamente a verdade da conclusão, além do fato de a indução praticamente não revelar nada novo, mas apenas evidenciar algo implícito no raciocínio. Por exemplo, quem observa vários patos brancos tende a con cluir que patos são brancos, até o momento em que descobre que há patos pretos, verdes, azuis... Essa novidade, porém, não leva a dizer que a indução é um equívoco, mas apenas um procedi mento cognitivo mais frágil do que a dedução, por exemplo.

Para a Matemática também é fundamental que a verdade das conclusões seja demonstrada segundo critérios rigorosos e públicos, quer dizer, isentos de erro e acessíveis a todos os que por eles se interessam. Imagine o quanto há de assunto entre Matemática e Filosofia! A começar do que é estruturante para ambos os saberes: o método, a busca da verdade e da certeza (ou da não verdade e da não certeza), a análise racional e imparcial dos procedimentos adotados no conven cimento etc. Não por acaso, é muito comum encontrar textos filosóficos com frases ou sentenças redigidas com símbolos matemáticos, assim como textos matemáticos, com símbolos lógicos. Isso, porém, é apenas um pequeno sinal da superfície do mar profundo das relações entre Filosofia e Matemática.

Nesse contexto, a a ideia filosófica e a prática do método indutivo Matemática, o método indutivo funciona pela prova de que um enunciado é verdadeiro para um valor inicial, o que prova também que o processo usado para passar de um valor ao subsequente é válido. Se ambas as proposições são provadas, então qualquer valor pode ser obtido mediante a repetição desse processo. Como no dominó , se houver uma longa série de dominós em pé, e se houver garan tia de que o primeiro dominó cairá, bem como que, sempre que um cair, seu vizinho subsequente também cairá, então será justificado con cluir que todo o dominó cairá.

InTEGranDO COm... MATEMÁTICA

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Não escreva no livro.

Solilóquio: “diálogo” de uma pessoa só, dela com ela mesma. Não é um monólogo, mas um verdadeiro diálogo, em que a pessoa pensa, diz ou escreve e oferece respostas a si mesma.

Conceitos filosófico-matemáticos?

Sim, muito prazer!

É notável a facilidade com que a Matemática, por meio de poucos símbolos, consegue traduzir o que a linguagem descritiva filosófica exprime de maneira mais longa. Não há dúvida também de que, na tradução com símbolos matemáticos, perdem-se, muitas vezes, aspectos importantes dos textos filosóficos, como informações vindas de metáforas, de descrições de paisagens, de solilóquios etc.

• Sob a supervisão de seu( sua) professor(a) de Filosofia, convide seu(sua) professor(a) de Matemática, organize a turma em cinco grupos, leia o trecho e a imagem a seguir e, depois, respondam juntos às questões.

A indução matemática e a Lógica

A reconfiguração da Lógica, proposta pelos autores Gottlob Frege e Bertrand Russell, foi motivada, em grande parte, pelo projeto de reabilitar a tese de Gottfried Leibniz, que buscava encontrar um lugar, em Lógica, para o princípio de indução completa: princípio utilizado para provar que uma proposição vale para todos os casos.

Também chamada de indução matemática, trata-se de um método de prova matemática usado para demonstrar a verdade de um número infinito de proposições.

A forma mais simples e mais comum de indução matemática prova que um enunciado vale para todos os números naturais n e consiste em dois passos: (a) a base: mostrar que o enunciado vale para n = 0, ou n = 1, dependendo da definição utilizada de ℕ (conjunto dos números naturais); (b) o passo indutivo, quer dizer, mostrar que, se um enunciado vale para n = k, então também valerá para n = k + 1.

Não é, então, surpreendente que Frege, em sua obra fundadora Begriffsschrift (Ideografia ou Notação conceitual), de 1879, teve por primeiro objetivo justificar logicamente o que ele considerava o fundamento da indução de Bernoulli, qual seja:

Se x tem uma propriedade F que é “hereditária” na F-sequência, então há a propriedade F. [Teorema 81]

Uma F-sequência é uma sequência determinada por uma função (relação) f – por exemplo, a sequência dos números inteiros naturais é uma sequência determinada pela função sucessor f (n) = n + 1.

Frege pensava ter, assim, formulado o primeiro esquema de uma empreitada considerável: mostrar que as Matemáticas não são mais do que um ramo da Lógica, ao que denominamos de tese logicista.

Bertrand Russell, no entanto, sustentará logo em seguida que o princípio de indução completa não é um princípio (uma regra fundante de um sistema, um procedimento etc.) e que sua validez nada tem de misterioso, pois ele não passa de uma definição (operação lógica que procura identificar e exprimir, de maneira clara, um conceito, um objeto).

Segundo Russell, nós já sabemos que a indução matemática é uma definição: nós definimos os números naturais como aqueles aos quais podem aplicar-se as provas por indução matemática, isto é, como aqueles que possuem todas as propriedades indutivas.

SCHMITZ, François. Induction mathématique (GP). In: KRISTANEK, Maxime (ed.). Encyclopédie philosophique. [S l.: s n.], 2017. Tradução nossa. Disponível em: https://encyclo-philo.fr/induction-gp. Acesso em: 23 set. 2024.

► Representação do método de indução matemática.

a) Depois de estudar atentamente a representação aqui proposta, sem esquecer que ela é um exemplo de aplicação da indução em matemática, criem hipóteses (as mais concretas possíveis) a respeito de por que aparecem e o que significam nas escadas as notações n = 1; n = k; n = k + 1.

b) Feitas as hipóteses, apresentem-nas a seus(suas) professores(as) e provem a verdade ou falsidade delas.

Não escreva no livro.

Hediondo: algo que desperta rejeição e reprovação; algo cruel, vil.

Dedução

Na dedução, se as premissas forem tomadas como verdadeiras, então a conclusão será necessariamente verdadeira, desde que o raciocínio esteja bem montado. A verdade das premissas garante necessariamente a verdade da conclusão. É o caso, por exemplo, de quando desejamos defender que as pessoas criminosas, por mais hediondo que seja o crime cometido, merecem respeito pelo simples fato de serem humanas.

Todo ser humano merece respeito. (V)

Silogismo válido

Todo criminoso é ser humano. (V)

Então, todo criminoso merece respeito. (V)

As verdades das premissas também podem ser articuladas, sem, no entanto, garantirem a verdade da conclusão. Pode ser um erro, uma distração ou, talvez, até um ato voluntário para enganar os interlocutores. Esse tipo de raciocínio também segue o procedimento da dedução, mas de maneira inválida. Observe o exemplo seguinte.

Todo ser humano é um ser que merece respeito. (V)

Silogismo inválido

Todo criminoso é um ser que merece respeito. (V)

Então, todo criminoso é ser humano. (V)

► ANTIGNY, Serge. Silogismo. [20--]. Fotografismo. O artista chama de “fotografismo” a técnica de criar um banco de imagens fotográficas, um fundo produzido com montagem de diferentes fotografias e uma junção em primeiro plano, alterando a forma das imagens de base. Na série apresentada, as duas primeiras imagens resultam na terceira, que, embora revele elementos das outras duas, oculta alguns elementos delas e manifesta outra forma de ver o que nelas estava presente.

A conclusão é obviamente verdadeira, o que se simboliza pela letra V, mas não é garantida, pelo modo como as premissas estão articuladas. Observe que a segunda premissa não tem necessariamente ligação com a primeira; embora todo criminoso seja um ser que merece respeito, essa premissa, tomada isoladamente, não garante que ele seja um ser humano só porque merece respeito. Todos os seres ou tudo o que há no mundo merece respeito, mesmo aqueles que parecem insignificantes, pois algum papel eles cumprem no conjunto dos seres. A verdade da conclusão, portanto, independe da verdade das premissas, e, ainda que estas sejam verdadeiras, não demonstram necessariamente a verdade da conclusão. Um raciocínio desse tipo não é uma dedução válida; é inválida.

Analogia

Na analogia, procede-se por comparação entre situações diferentes que permitem uma aproximação por terem um ponto comum. Quando esse procedimento é declarado, fala-se propriamente de analogia; quando ele é implícito, chama-se metáfora. A analogia e a metáfora podem se aplicar ao significado das palavras e à construção de raciocínios.

No caso das palavras, diz-se, por exemplo, que um alimento é “saudável”. Trata-se de uma analogia com a saúde humana, porque “ter saúde” ou “ser saudável” é algo específico dos seres humanos. Entretanto, se os alimentos contribuem para a saúde humana, diz-se, por comparação, que eles são “saudáveis”. Algo parecido ocorre quando se diz, em um exame de urina, que ela é “saudável”; ou, em uma análise do nível de poluição, afirma-se que o ar é ou não “saudável”.

Já quando dizemos que “nossos(as) amigos(as) são nossa vida”, temos uma metáfora, pois se transfere um significado de um domínio (vida biológica) para outro (relacionamentos), criando uma relação simbólica. No caso, “amigos” são equiparados ao valor vital, embora não tenham uma relação biológica direta com a vida, pois alguém pode estar vivo e não ter amigos. Essa metáfora significa que valorizamos os nossos amigos como valorizamos a nossa própria vida. Também afirmamos, por exemplo, que “uma pessoa não tem um pingo de vergonha“, ou pedimos, “coloque, por favor, uma lágrima de leite em meu café“.

► Projeção em 3D do que seria um avião com base nos desenhos de Leonardo da Vinci (1452-1519). O modelo é claramente construído por analogia com a anatomia dos pássaros.

► MONNIER, L. A experiência de Franklin: detalhe da armação de um para-raios. [S l .: s n .], 1752 Após diversas tentativas de construção de para-raios conduzindo-o até a água e vendo ocorrer muitos acidentes, Franklin chegou à forma correta de sua armação.

LEO BLANCHETTE/ALAMY/FOTOARENA
COLEÇÃO PARTICULAR

Falível: que pode falhar.

A metáfora tem um papel importante não apenas na linguagem cotidiana mas também na construção de teorias filosóficas e científicas. Por exemplo, Benjamin Franklin (1706-1790) entendia o raio como uma descarga elétrica e observava que, havendo descargas elétricas, havia faíscas, então pensou que os raios são atraídos por coisas pontiagudas. Nisso está a origem do para-raios.

Rosane da Silva Borges (1974-), professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL), discorre sobre a intolerância no Brasil, durante congresso na Universidade Federal de Goiás (UFG), em 2015. A relação ensino-aprendizagem baseia-se em um bom uso do argumento de autoridade, pois os estudantes confiam no preparo de seus professores para formá-los.

EXERCICIO

Argumento de autoridade

Argumento de autoridade é quando se usa o fato de alguém ser especialista em determinado assunto para convencer quanto ao crédito que a sua palavra merece. Mais do que analisar suas premissas e observar se elas justificam realmente a conclusão, nós tomamos como base o reconhecimento público de sua autoridade. É o que ocorre, por exemplo, quando confiamos na palavra dos(as) médicos(as) e dizemos: você está mal porque o médico disse isso. Esse procedimento também ocorre quando se afirma algo como: se Aristóteles disse que todo ser humano é racional, então você é racional.

Legítimo nos casos em que há reconhecimento público da formação específica de quem é tomado como fonte ou base de uma conclusão, o argumento de autoridade é frágil, pois a verdade da conclusão não é garantida pelas premissas do raciocínio, mas na autoridade pessoal sempre falível de alguém.

Por exemplo, em um texto qualquer, um pensador ou pensadora pode partir da definição dada por outro(a) pensador(a) e construir seu raciocínio sobre ela. O primeiro pensador, ao remeter-se à autoridade de alguém, admite publicamente como inteiramente correto o pensamento dessa pessoa, apenas com base em seu renome.

Não escreva no livro. A

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• Nos argumentos seguintes, identifique seus tipos (dedução, indução, analogia e argumento de autoridade), suas premissas e suas conclusões.

a) Os humanos são mortais, porque são animais.

b) O remédio x fez 2 mil pessoas melhorarem do estômago. Então, o remédio x faz bem para o estômago.

c) Se todo chá é diurético, então este chá preto ajudará o funcionamento dos meus rins.

d) Suspeitando que a substância x podia combinar com a substância y, o químico decidiu testar a combinação. Verificando que a combinação deu certo uma vez, testou mais vezes a mesma combinação. Concluiu que a substância x combina com a substância y.

e) Segundo os historiadores, os vikings tiveram uma passagem pela América do Norte muito antes do descobrimento do continente americano.

f) A ssim como um relógio é sinal de que há um relojoeiro, também o mundo é um sinal de que há um criador.

CAMILA CAETANO/ASCOM-UFG

Regras fundamentais da dedução ou do silogismo

O raciocínio dedutivo permite chegar a conclusões nem sempre previsíveis quando se olha apenas para as premissas. Uma vez formadas, elas permitem à dedução suspeitar de novas conclusões. É de grande importância conhecer os procedimentos básicos da atividade de deduzir. De modo resumido, pode-se dizer que Aristóteles identificava três operações do conhecimento humano: a formação de ideias ou conceitos, a formação de juízos e a formação de raciocínios. As ideias ou conceitos são as unidades básicas de significado, com as quais operamos para pensar e exprimir nossos pensamentos. Por exemplo, pensamos ideias ou conceitos como gato, árvore, carro, pessoa, cadeira, Deus, criança, água, terra etc. Cada ideia é revelada por um termo ou uma expressão. Por exemplo, em vez de falar de pessoa, posso falar de ser humano: mesmo composta de duas palavras (ser e humano), essa expressão aponta para uma única ideia; por isso, ser humano é um termo.

Os termos podem ser empregados em sentido universal ou particular, em função dos seus usos. O uso universal de um termo é aquele que pretende abarcar todos os seres que pertencem ao conjunto designado por ele. Por exemplo, fala-se em sentido universal quando se diz o ser humano ou todo ser humano. O particular de um termo é aquele que se refere a apenas um ou alguns dos seres que pertencem ao conjunto designado pelo termo. É o caso, por exemplo, de quando se fala de algum ser humano ou deste ser humano.

Por sua vez, o juízo (ou julgamento) corresponde a uma correlação de ideias. É uma segunda operação do pensamento, porque consiste em unir ideias ou separá-las. Quando se unem ideias, diz-se que o juízo é afirmativo. Por exemplo: o ser humano é mamífero (une-se a ideia de ser humano com a ideia de mamífero). Mas, quando se separam ideias, o juízo é negativo. Por exemplo: o ser humano não é ovíparo (isso significa que a ideia de ser humano não combina com a ideia de ovíparo).

Ovíparo: animal que se desenvolve dentro de ovos e fora do corpo da mãe.

► A equidna-de-bico-curto é um animal mamífero e ovíparo. A Natureza, em geral, prega-nos muitas peças, as quais, mesmo sendo exceções, confirmam a recorrência da regra geral.

É no juízo ou na segunda operação do pensamento que se pode falar de verdade ou falsidade. Segundo Aristóteles, o juízo mostra ser o movimento mediante o qual se retrata bem ou mal a realidade. Se o juízo une ideias de coisas que são realmente unidas na realidade, então ele é verdadeiro; se une ideias de coisas que não são realmente unidas na realidade, então é falso. Por sua vez, se o juízo separa ideias de coisas que são realmente separadas na realidade, é verdadeiro. Se, porém, ele separa ideias de coisas que não são realmente separadas na realidade, então é falso.

Além disso, em função da quantidade universal ou particular em que os termos são tomados, eles também são universais ou particulares. Observe o esquema.

JUÍZO

UNIVERSAL

PARTICULAR

Afirmativo

Negativo

Afirmativo

Negativo

Verdadeiro: Todo ser humano é mamífero.

Falso: O ser humano é um ser que tem asas.

Verdadeiro: Nenhum ser humano é um ser que tem asas.

Falso: O ser humano não é mamífero.

Verdadeiro: Algum ser humano é honesto.

Falso: Algum ser humano é um ser que tem asas.

Verdadeiro: Algum ser humano não é honesto.

Falso: Algum ser humano não é mamífero.

Por fim, o raciocínio ou silogismo é uma correlação de juízos. É a terceira operação do pensamento, pela qual se articulam afirmações ou negações (juízos), a fim de chegar a outras afirmações ou negações que se apresentam, então, como justificadas. Os juízos que servem para justificar a conclusão são as premissas e os pressupostos.

Em matéria de raciocínio, não se costuma dizer que ele é verdadeiro ou falso, mas que ele é válido ou inválido, pois a verdade ou a falsidade de algo deve ser estabelecida no momento da elaboração dos juízos. Uma vez elaborados e organizados como premissas e conclusões, os juízos constituem raciocínios. Cabe à análise lógica, nesse nível, observar se a montagem desses raciocínios é bem-feita ou não. Observe, por exemplo, estes três raciocínios.

Raciocínio válido

Raciocínio válido

Raciocínio inválido

Todo ser humano é mamífero.

Sócrates é ser humano.

Portanto, Sócrates é mamífero.

Todo livro é mamífero.

A pedra é um livro.

Portanto, a pedra é mamífera.

Todo ser humano é mamífero. Sócrates é mamífero.

Portanto, Sócrates é ser humano.

(Juízo afirmativo verdadeiro) (Juízo afirmativo verdadeiro) (Juízo afirmativo verdadeiro)

(Juízo afirmativo falso) (Juízo afirmativo falso) (Juízo afirmativo falso)

(Juízo afirmativo verdadeiro) (Juízo afirmativo verdadeiro) (Juízo afirmativo verdadeiro)

Você pode ter estranhado os exemplos. Talvez sua tendência fosse dizer rapidamente que o segundo raciocínio está “errado” e que o terceiro está “correto”. No entanto, do ponto de vista lógico (segundo as regras que estudaremos adiante), o segundo está “correto”, quer dizer, está montado corretamente, ao passo que o terceiro está montado incorretamente. Embora todos os juízos do segundo exemplo sejam falsos, o raciocínio articula de maneira satisfatória as ideias veiculadas pelos juízos. Já no terceiro exemplo, embora todos os juízos sejam verdadeiros, a articulação entre as ideias está malfeita. Nada garante que Sócrates seja um ser humano só porque ele é mamífero.

A elaboração de ideias e a formulação de juízos e raciocínios, para que tenham sentido, seguem três regras fundamentais do pensamento, segundo Aristóteles.

• 1. O princípio de identidade: algo é o que é. Só faz sentido falar de uma coisa afirmando o que ela realmente é. Por exemplo, ao olhar para uma rosa, seria sem sentido dizer que ela é um pássaro. A identidade da rosa é definida por suas características próprias.

• 2. O princípio de não contradição: só faz sentido falar de alguma coisa respeitando o fato de que ela não pode ser o contrário de si mesma ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva. Por exemplo, se eu disser que esta rosa que vejo agora é vermelha e não é vermelha ao mesmo tempo, digo algo que impede a compreensão racional. Posso até dizer que essa rosa é vermelha agora e será não vermelha (desbotada ou pálida) no futuro. Mas, se ela é vermelha agora, não faz sentido dizer que ela é também não vermelha.

• 3. O princípio do terceiro excluído: só faz sentido fazer um juízo respeitando o fato de que o sujeito desse juízo só pode ser expresso em dois estados, sem uma terceira possibilidade. Por exemplo: ou uma rosa é vermelha ou não é vermelha; ou uma rosa está viva ou não está viva. Não faria sentido articular dois estados em um juízo e pretender atribuir ao sujeito um “terceiro estado” (como se a rosa, sendo vermelha ou não vermelha, pudesse ser também vermelha e não vermelha ao mesmo tempo; ou, sendo viva ou não viva, pudesse ser viva e não viva ao mesmo tempo). Daí se excluí um terceiro ponto com relação aos dois estipulados no juízo.

Aristóteles distinguia, ainda, entre o silogismo categórico e o silogismo dialético. A diferença entre ambos está na escolha das premissas para a montagem do silogismo. No silogismo categórico, as premissas contêm dados categoricamente verdadeiros, quer dizer, evidentes ou já provados anteriormente. No silogismo dialético, as premissas contêm dados prováveis.

O modo aristotélico de se referir aos silogismos dialéticos deu margem para que alguns pensadores os considerassem formas menos rigorosas de obter conclusões verdadeiras, uma vez que eles se baseariam apenas em dados prováveis. Retomaremos essa temática adiante, ao estudarmos especificamente o raciocínio dialético. Por enquanto, vamos nos deter nos silogismos categóricos, aqueles que relacionam tão bem a verdade das premissas a ponto de levarem necessariamente à verdade das conclusões.

O silogismo categórico

Com base nos trabalhos de Aristóteles, alguns filósofos posteriores resumiram em oito regras o procedimento que um silogismo categórico deve seguir para ser válido. Para compreendê-las, precisamos ainda conhecer três outras noções lógicas: a de termo médio, a de extensão e a de premissa fraca.

O termo médio é aquele que articula as premissas. Pode-se falar também de termo maior (aquele que incluirá o outro termo que aparece na outra premissa) e termo menor (que será incluído no maior). O termo que os correlaciona é o médio.

Extensão, por sua vez, é o conjunto de elementos aos quais se refere uma ideia. A extensão é a universalidade ou a particularidade no uso dos termos.

Por premissa fraca, entende-se aquela que é particular ou negativa.

Observe as regras.

1. Os termos de um silogismo devem ser apenas três.

Observe os exemplos.

Todo cão é mamífero.

Rex é cão.

Silogismo válido

Silogismo inválido

Logo, Rex é mamífero.

Todo cão é mamífero.

Cão é uma constelação.

Logo, uma constelação é mamífera.

Observe que, no silogismo inválido, há quatro termos (quatro ideias), pois a palavra cão é tomada em dois sentidos diferentes: o animal (cão) e a constelação (Cão). O termo cão é corretamente o termo médio do primeiro silogismo, mas, no segundo silogismo, rigorosamente falando, não há termo médio, pois, se Cão significa uma coisa diferente de cão, então são dois termos diferentes, e não há articulação nenhuma entre as duas premissas.

2. O termo médio não pode aparecer na conclusão.

Se o termo médio aparecer na conclusão, não haverá argumento dedutivo, mas apenas repetição do que já foi dito nas premissas.

Observe os exemplos.

Todo ser humano é livre.

Eu sou um ser humano.

Silogismo válido

Logo, eu sou livre.

O termo médio desse silogismo é ser humano. Ele apenas articula as premissas e permite passar à conclusão.

Todo ser humano é livre.

Eu sou um ser humano.

Silogismo inválido

Logo, eu sou um ser humano livre.

O termo médio, aqui, aparece na conclusão. Isso não quer dizer que a conclusão seja errada ou falsa, mas não há um procedimento dedutivo. Então, não se pode dizer que a conclusão se fundamenta logicamente nas premissas. Só há uma somatória de informações e nenhum procedimento de fato silogístico.

3. Os termos da conclusão não podem ter extensão maior do que têm nas premissas.

Se os termos da conclusão tiverem extensão maior, cai-se em um erro grave, pois as premissas baseiam-se em um número particular de elementos e a conclusão vai além do que esses elementos permitem. Para ser válido, um raciocínio deve respeitar o sentido universal ou particular dos termos nas premissas. Se eles forem universais nas premissas, terão de ser universais ou particulares na conclusão. Um termo particular nas premissas não poderá nunca ser universal na conclusão. Observe os exemplos.

Silogismo válido

Todo sul-americano é ser humano.

Todo brasileiro é sul-americano. Logo, todo brasileiro é ser humano.

Observe que o termo sul-americano está tomado em sentido universal na primeira premissa (ele se refere a todo o conjunto dos sul-americanos e inclui esse conjunto no dos seres humanos), mas é tomado em sentido particular na segunda premissa (porque, nessa premissa, ele se refere apenas aos brasileiros). O termo ser humano é usado em sentido particular na primeira premissa (porque se refere apenas aos sul-americanos, e não a todos os seres humanos) e particular na conclusão (porque se refere apenas aos brasileiros). Quanto ao termo brasileiro, ele é universal na segunda premissa e universal na conclusão. A regra 3 é, portanto, respeitada.

Observe o próximo exemplo.

Todo brasileiro é sul-americano.

Silogismo inválido

Todo sul-americano é ser humano. Logo, todo ser humano é brasileiro.

Observe que os termos da conclusão têm extensão diferente do que têm na premissa. Não há problema com o termo brasileiro, pois ele é universal na primeira premissa e particular na conclusão. Mas o termo ser humano é universal na conclusão e particular na segunda premissa. Isso mostra a fragilidade do raciocínio que toma uma amostra de um conjunto (os seres humanos sul-americanos – segunda premissa) e a amplia para todo o conjunto (todo ser humano – conclusão). Esse é um deslize muito comum em nossa maneira cotidiana de pensar e falar, por isso é fonte de muitas confusões – uma delas é a generalização apressada ou generalização indevida.

4. O termo médio deve ser tomado ao menos uma vez em sentido universal. Observe os exemplos.

Todo animal é ser vivo.

Silogismo válido

Todo ser vivo se alimenta. Então, todo animal se alimenta.

Note que o termo médio é ser vivo . Na primeira premissa, ele é tomado em sentido particular (porque se refere apenas aos seres vivos que são animais, e não a todos os seres vivos), mas, na segunda premissa, ele aparece em sentido universal (todo ser vivo). Pelo seu uso na segunda premissa, ele articula as ideias das duas premissas e garante logicamente a conclusão. Observe agora um exemplo inválido.

Todo animal é ser vivo.

Silogismo inválido

Tudo que se movimenta é ser vivo. Então, todo animal se movimenta.

O raciocínio é claramente inválido, pois o termo médio (ser vivo) é tomado nas duas vezes em sentido particular (na primeira premissa, ele se refere apenas aos seres vivos que são animais; na segunda premissa, apenas aos seres vivos que se movimentam). Ele não articula, portanto, as duas premissas. No modo como elas estão construídas, nada poderia ser concluído.

5. Duas premissas afirmativas não permitem passar a uma conclusão negativa. Observe os exemplos.

Toda emoção é natural.

A raiva é uma emoção.

Silogismo válido

Silogismo inválido

Logo, a raiva é natural.

Toda emoção é natural. A raiva é uma emoção. Mas a raiva não é natural.

Se esse exemplo de silogismo inválido for tomado como válido, contraria-se o princípio de identidade e o próprio funcionamento dos juízos afirmativos (que unem ideias), pois, sendo a raiva uma emoção, e sendo toda emoção algo natural, não faria sentido dizer que a raiva não é natural. Em outras palavras, pensar dessa maneira corresponderia a uma tentativa de conceber a raiva como não sendo aquilo que ela é.

6. A conclusão segue a premissa fraca (particular ou negativa). Observe os exemplos.

Todo cão é mamífero.

Silogismo válido

Silogismo inválido

Alguns cães mordem. Portanto, alguns mamíferos mordem.

Todo cão é mamífero.

Alguns cães não mordem. Então, alguns mamíferos mordem.

Observe que as conclusões dos dois exemplos são idênticas. No entanto, a conclusão do primeiro é bem sustentada pelas premissas, ao passo que a conclusão do segundo não tem sustentação.

Vinculante: algo que estabelece um vínculo, uma ligação.

O erro do segundo exemplo é muito comum em nossas maneiras cotidianas de pensar e falar. Ele resulta da falta de atenção que leva a pensar: se alguns cães não mordem, outros mordem; e, se todo cão é mamífero, então parece possível concluir que alguns mamíferos mordem. Ocorre, porém, que fazer uma negação não significa ter base para se pronunciar sobre o contrário dessa negação. Assim, o fato de afirmar que alguns cães não mordem não dá base para afirmar com certeza que alguns cães mordem. Dito de outra maneira: se um grupo de cães é observado e se verifica que eles não mordem, isso não quer dizer que outros grupos de cães mordem. Pode ser que eles também não mordam...

Em continuação, o segundo exemplo é, portanto, inválido, pois não respeita a premissa fraca (a segunda premissa). Se respeitasse, a conclusão seria também fraca (uma negação é mais “fraca” ou menos vinculante do que uma afirmação, assim como uma frase particular é mais fraca do que uma frase universal).

O primeiro exemplo respeita a regra 6 , pois a conclusão segue a premissa fraca (segunda premissa, que contém uma frase particular). Já o segundo, embora siga a premissa particular, não segue a negação nela contida.

7. De duas premissas negativas nada se conclui.

Essa regra é facilmente compreensível, pois duas premissas negativas apenas separam ideias. Se a dedução consiste na associação de duas ideias por meio de um termo médio, então não há articulação entre duas premissas negativas.

Observe os exemplos.

Nenhum ser humano é imortal. Nenhum ser humano é máquina. ?

Talvez sua tendência fosse considerar óbvio que nenhuma máquina é imortal, mas simplesmente não há conexão nas duas frases. Observe como nossa compreensão fica mais clara com um exemplo particular.

Pedro não tem semelhança com André. André não tem semelhança com João. ?

O fato de Pedro não ter qualquer semelhança com André e de André não ter qualquer semelhança com João não dá base para dizer que Pedro não tem semelhança com João (nem que tem alguma semelhança).

8. De duas premissas particulares nada se conclui. Duas premissas particulares contrariam a regra 4, quer dizer, não apresentam o termo médio ao menos uma vez em sentido universal. Por isso, não há conexão alguma entre as ideias que elas exprimem. Observe os exemplos.

Alguns cidadãos são políticos. Alguns políticos são corruptos. ?

Não podemos negar que é forte o desejo de concluir que alguns cidadãos são corruptos, mas, no modo como o raciocínio está montado, nada permite tirar essa conclusão, pois as duas premissas não se articulam. Elas dizem apenas que alguns cidadãos são políticos e que alguns políticos são corruptos, sem garantir racionalmente que as duas premissas se refiram aos mesmos cidadãos e aos mesmos políticos. É possível perceber que, em nossa vida cotidiana, não fazemos raciocínios sempre com três termos explícitos e duas premissas bem declaradas. O mesmo ocorre com os textos filosóficos e outros textos. Por exemplo, o escritor Sêneca, que viveu entre os anos 4 a.C. e 65 d.C., em sua obra Medeia, oferece um bom exemplo de dedução com uma premissa inteira subentendida. Na obra, a personagem Medeia é casada com Jasão e se revolta contra sua vida oprimida, chegando a matar os próprios filhos. Para provar que Jasão era o culpado dos crimes de Medeia, diz Sêneca que aquele a quem o crime é útil é culpado do mesmo crime.

Sabendo que o crime deve ser atribuído a Jasão, tudo se passa como se Medeia dissesse:

“Aquele a quem o crime é útil é culpado do mesmo crime.

Jasão se beneficiou do meu crime (Jasão é alguém a quem o meu crime é útil).

Logo, Jasão é culpado do mesmo crime".

As regras do silogismo permitem, então, desmontar e remontar raciocínios dedutivos, revelando seus pressupostos e termos não explícitos, a fim de analisar se tais raciocínios estão construídos de maneira válida.

Muitas vezes, a conclusão de um silogismo torna-se premissa de outro silogismo. É preciso separá-los e observar se estão bem conectados. Por exemplo, podemos dizer: aquilo que não pode ser dissolvido é indestrutível. O plástico, portanto, fica para sempre na Natureza. Observe os exemplos.

Tudo o que não pode ser dissolvido é indestrutível.

O plástico é algo que não pode ser dissolvido.

Logo, o plástico é algo indestrutível.

Por sua vez, o que é indestrutível fica para sempre na Natureza.

O plástico é indestrutível.

Então, o plástico fica para sempre na Natureza.

Há certo exagero em dizer que o plástico fica para “sempre” na Natureza. Para discordar dessa conclusão, é preciso interferir nas premissas. Se, porém, elas são aceitas como verdadeiras, tal conclusão também será aceita como verdadeira em função dos dois raciocínios, pois eles cumprem perfeitamente as oito regras básicas da dedução.

No uso cotidiano do raciocínio dedutivo, constatamos também que algumas deduções são montadas de forma que a conclusão seja obtida sobre a base de mais de duas premissas: o predicado da primeira premissa se torna o sujeito da segunda, o predicado da segunda se torna o sujeito da terceira, e assim sucessivamente, até a conclusão. Com base no trabalho de Aristóteles, chama-se tal procedimento de sorites (em grego, significa uma grande quantidade ou “um monte”). Observe os exemplos.

Todo filósofo é ser humano.

Todo ser humano é animal.

Todo animal tem emoções.

Logo, todo filósofo tem emoções.

No século XVI, o filósofo lógico Rudolph Göckel (também conhecido como Goclênio) (1547-1628) propôs uma forma invertida do sorites aristotélico, indo do termo mais extenso ao menos extenso.

Todo animal tem paixões.

Todo ser humano é animal.

Todo filósofo é ser humano.

Logo, todo filósofo tem paixões.

Também se chama de sorites um raciocínio que não tem solução porque não oferece um critério claro de compreensão. Por exemplo, se dissermos que duas pessoas não são uma multidão, mas que mil pessoas são uma multidão, como será possível perceber que um grupo de pessoas já é uma multidão, e não mais um simples grupo? Diante de situações como essa, são os interlocutores e as interlocutoras que devem entrar em um acordo para “decidir” o critério a ser adotado em cada situação.

O silogismo hipotético

Além das deduções ou dos silogismos simples, há outro tipo de silogismo de grande uso nas mais diferentes formas de pensamento: o silogismo hipotético, que se subdivide em silogismo condicional, silogismo disjuntivo, silogismo conjuntivo e dilema .

O silogismo hipotético, como seu nome indica, opera com uma hipótese ou uma condição. Chama-se de silogismo condicional aquele cuja primeira premissa apresenta a forma clássica da hipótese: se algo ocorre, então outro algo ocorre (se x, então y). Observe o exemplo.

Se é dia, há luz.

Ora, é dia.

Então, há luz.

ponens

Se é dia, há luz.

Ora, não há luz.

Então, não é dia.

tollens

O primeiro exemplo é positivo, ou seja, afirma ou “põe” a condição e obtém o consequente: em latim, chama-se modus ponens (pronuncia-se “pônens”); “modo que põe” ou afirma a condição. Já o segundo exemplo é negativo, pois nega ou “tolhe” o consequente e, assim, também permite obter a negação da condição: em latim, chama-se modus tollens (pronuncia-se “tólens”), “modo que tolhe” o consequente.

O funcionamento desses dois tipos de silogismo é bastante simples: quando há uma condição e ela é atendida (posta), é válido afirmar a conclusão; quando há uma condição e a conclusão é negada (tolhida ou barrada), é válido negar também a condição.

Afirmar uma conclusão, no entanto, não permite afirmar a condição. Por sua vez, negar a condição não permite obter a negação da conclusão. Observe o exemplo.

Se é dia, há luz.

Ora, há luz.

Então, é dia.

Se é dia, há luz.

Ora, não é dia.

Então, não há luz.

Pense: se a luz é um resultado do dia, isso não quer dizer que a luz só resulte do dia; a luz pode ter outras causas. Assim também, se o dia resulta em luz, o fato de não ser dia não quer dizer que não pode haver luz (ela pode ter outra causa).

O silogismo disjuntivo também opera com hipóteses, mas em outro formato: a primeira premissa contém a forma de uma alternativa (ou... ou...), enquanto a segunda premissa afirma ou nega uma ou mais alternativas, de modo a obter ou a negação ou a afirmação da outra. O sentido da partícula ou, aqui, é um sentido de exclusão. Lembre-se de que ou também pode introduzir um sinônimo (como quando dizemos, por exemplo, a humanidade ou o conjunto dos seres humanos).

Em silogismos dessa forma, uma alternativa será sempre verdadeira e a outra, falsa. Observe o exemplo.

Ou há ditadura ou há liberdade política.

Ora, há ditadura.

Então, não há liberdade política.

Modus
Modus

Ao contrário do silogismo disjuntivo, o silogismo conjuntivo afirma, em uma das premissas, que um mesmo sujeito não pode possuir dois predicados ao mesmo tempo. A outra premissa, por sua vez, afirma um dos predicados (ela une o sujeito a um dos predicados, daí o nome de silogismo conjuntivo), de modo que o outro seja necessariamente negado na conclusão. Observe o exemplo.

O ser humano é alguém que, se servir a Deus, não serve ao dinheiro. Esta pessoa serve ao dinheiro. Logo, esta pessoa não serve a Deus.

O silogismo conjuntivo tem outra característica: mesmo que uma das premissas negue um dos predicados, não será possível afirmar necessariamente o outro. O silogismo fica simplesmente sem conclusão. Trata-se de um fato diferente do que ocorre com o silogismo disjuntivo, pois, neste, negar uma alternativa permite obter a outra. Mas, no silogismo conjuntivo, negar um elemento deixa a possibilidade de o outro também não ocorrer. Assim, se o ser humano é alguém que, servindo a Deus, não serve ao dinheiro, e se esta pessoa não serve ao dinheiro, não quer dizer que ela sirva a Deus. Ela pode servir a si mesma, à Ciência, ao esporte etc. Por fim, o dilema é um tipo de silogismo que também lida com alternativas e hipóteses, mas é montado de um modo em que as premissas não podem ser discutidas e evitam todo tipo de discordância sobre a conclusão. Qualquer alternativa que seja afirmada leva à afirmação também da outra. O dilema equivale, então, a um silogismo disjuntivo em que, por causa de uma premissa que guia todo o raciocínio, é necessário obter uma das alternativas afirmando a outra. No limite, é um raciocínio cuja conclusão também obriga a aceitar as alternativas dadas pelas premissas. Observe o exemplo.

Um paciente não foi atendido no pronto-socorro exatamente no momento em que você era o médico de plantão. Ora, se você era o médico que devia receber o paciente no pronto-socorro, ou você estava lá e não o recebeu ou você não estava lá quando deveria estar e, por isso, também não o recebeu. Se você estava lá e não o recebeu, faltou com seu dever. Se você não estava lá, também faltou com seu dever, pois o plantão era seu. Em qualquer dos dois casos, você deve ser responsabilizado por não ter recebido o paciente.

Diante de um dilema como esse, não há o que discutir. O raciocínio serve apenas para mostrar todas as possibilidades de pensamento sobre a situação, de modo a concluir por algo que não pode ser interpretado de outra maneira.

Há, porém, um mau uso do dilema, constituindo a falácia do falso dilema, tal como estudaremos adiante.

• A nalise os seguintes raciocínios dedutivos e indique se são válidos ou inválidos. Se forem inválidos, aponte a causa da invalidade. Não deixe de explicitar as premissas pressupostas.

1. Toda injustiça é proibida. Então, o assassinato é proibido.

2 . Alguns cidadãos são homens; alguns homens são covardes. Portanto, alguns cidadãos são covardes.

3. Se você tivesse lido o livro, teria aprendido. Como você não aprendeu, é porque não leu o livro.

4. Se você tivesse lido o livro, teria aprendido. Como você não leu o livro, não aprendeu.

5. Todas as pessoas alegres são seres que riem. Todas as hienas são seres que riem. Então, todas as pessoas alegres são hienas.

6. Nenhum problema me afeta. Nenhum riso me afeta. Logo, problemas são risos.

7. Alguns cidadãos são bons. Todos os humanos

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são cidadãos. Portanto, todos os cidadãos são humanos.

8. Ou os cidadãos lutam pela liberdade ou aceitam ser dominados. Como os cidadãos não lutam pela liberdade, então aceitam ser dominados.

9. Ou os cidadãos lutam pela liberdade ou aceitam ser dominados. Como os cidadãos lutam pela liberdade, então não aceitam ser dominados.

10. O cidadão é alguém que ou luta pela liberdade ou aceita ser dominado. Como o cidadão não luta pela liberdade, então aceita ser dominado.

11. O cidadão é alguém que ou luta pela liberdade ou aceita ser dominado. Como o cidadão luta pela liberdade, então não aceita ser dominado.

12. Sua função como bombeiro era acionar o alarme. O alarme não foi acionado porque ou você soube do incêndio e não o acionou ou porque não soube do incêndio (quando deveria saber) e também não o acionou. A responsabilidade pelo não acionamento do alarme é sua.

Falácias e paralogismos

Falácias e paralogismos são elaborações que têm a aparência de raciocínios válidos, mas contêm problemas que levam a uma conclusão não justificada racionalmente.

Chamam-se propriamente de falácias as elaborações feitas claramente com a intenção de dar a aparência de validade a elaborações inválidas. Chamam-se de paralogismos as elaborações equivocadas produzidas sem a intenção clara de enganar.

Aqui, para simplificar o vocabulário, falaremos apenas de falácias. Elas podem adotar a aparência de qualquer um dos tipos de raciocínio (dedutivo, indutivo etc.).

Na Idade Média, muita atenção foi dada às falácias. Alguns pensadores as classificaram em dois grupos: falácias de forma e falácias de matéria.

As falácias de forma resultam de falhas na estrutura lógica ou na montagem do raciocínio. As falácias de matéria, por sua vez, são mais sutis, porque não têm falhas lógicas ou estruturais, mas, mesmo assim, levam a conclusões problemáticas por causa do descuido com o conteúdo (a matéria de que se fala). Indicaremos, a seguir, apenas as falácias mais cometidas em nosso modo cotidiano de pensar e falar.

Falácias de forma

As falácias de forma ou falácias formais são todas as elaborações que se apresentam como raciocínios válidos, mas contrariam alguma das oito regras do silogismo (caso tenham a forma da dedução) ou são induções, analogias e argumentos de autoridade malfeitos.

Observe algumas das falácias de forma mais comuns.

A. Falácia por equivocidade.

Consiste em usar termos equivocados (termos que contêm mais de um significado, contrariando a regra 1). Observe os exemplos.

Toda manga é comestível. A camisa tem manga. Então a parte da camisa é comestível.

Um ser livre é aquele que não precisa obedecer a nada. O ser humano é um ser livre. Logo, o ser humano é um ser que não precisa obedecer a nada.

O primeiro exemplo é tão simples que não precisamos de esforço para constatar sua invalidade. O segundo exemplo, porém, requer mais atenção, pois o termo livre é tomado em dois sentidos diferentes: ninguém concordará que o “ser livre” típico do ser humano significa não precisar obedecer a nada, posto que a liberdade humana inclui coisas que não dependem das pessoas e às quais elas devem obedecer (a começar pelo funcionamento de seu próprio organismo, por exemplo).

B. Falácia da transferência de sentido.

Consiste em ir de uma parte ao todo e vice-versa, ou de um sentido próprio a um sentido metafórico. No primeiro caso, une-se o que é separado na realidade, mudando o sentido das partes, ou separa-se o que é unido, mudando-se o sentido do todo. Nada, porém, justifica essa passagem. Observe os exemplos.

Esta conta não me arruinará. Esta outra também não. Então o conjunto das contas também não me arruinará.

Quatro e dois são seis. Portanto, quatro são seis; e dois também são seis.

Todo construtor de castelos deve pagar impostos.

João faz castelos no ar.

Então, João deve pagar impostos.

C. Falácia da anfibologia ou ambiguidade. Trata-se de deixar uma brecha para interpretar de maneiras diferentes o sentido do que é formulado.

Não podemos culpar o fotógrafo porque ele tirou fotos de cenas que não foram reveladas.

Observe que essa frase pode referir-se às fotos que não foram reveladas como também a cenas que não foram reveladas.

Podemos entender melhor os efeitos ruins do uso da falácia da ambiguidade se imaginarmos que a frase do exemplo tenha sido escrita por um advogado em um processo penal. Talvez a intenção do advogado fosse dizer que o fotógrafo é inocente porque as fotos não foram reveladas. Porém, se o juiz interpretar que o fotógrafo tirou fotos de cenas não reveladas (cenas secretas), poderá condenar o fotógrafo. Caso o juiz tenha boa vontade e perceba a ambiguidade da má redação do advogado, poderá pedir esclarecimentos que lhe permitam julgar com justiça. Mas, caso ele não perceba a ambiguidade ou caso não tenha boa vontade, pode simplesmente tomar uma decisão que não será necessariamente a mais justa.

D. Falácia da tautologia.

A tautologia consiste em exprimir a mesma ideia de formas diferentes. Ela pode ter um uso positivo em Filosofia e em outras maneiras de falar de nossa experiência, mas, quando serve para justificar um raciocínio, dando a impressão de que ideias novas são articuladas, ocorre uma falácia. Observe o exemplo.

Um Estado é uma nação politicamente organizada.

Ora, o Brasil é um Estado.

Logo, o Brasil é uma nação politicamente organizada.

Não há problema de conteúdo nessa elaboração; e a conclusão é verdadeira, visto que, de fato, o Brasil é uma nação politicamente organizada. No entanto, nada se diz na conclusão que já não tenha sido dito nas premissas. Há, na verdade, um problema de forma, pois a primeira premissa apenas define o Estado (o sujeito é idêntico ao predicado: uma tautologia); por sua vez, na segunda premissa, diz-se que o Brasil é um Estado; e, na conclusão, só se repete a segunda premissa, porque se retoma a definição de Estado. Em resumo, essa elaboração só tem dois termos, contrariando a regra 1, que exige três termos para a dedução.

E. Falácia do consequente.

Consiste em usar o procedimento do silogismo condicional para afirmar a condição por meio da afirmação do consequente ou para negar o consequente por meio da negação da condição.

Se João rouba, então ele está vivo.

Ora, João está vivo.

Então, João rouba.

Se Maria está viva, então pode ir à escola.

Ora, Maria não pode ir à escola.

Então, Maria não está viva.

Falácias de matéria

As falácias de matéria costumam ser raciocínios formalmente válidos, mas com problemas ligados ao conteúdo.

F. Falácia do desvio do assunto.

Em vez de justificar um pensamento tratando diretamente dos seus elementos, a falácia do desvio do assunto leva a concentrar a atenção em outras coisas. É o caso de advogados que, em vez de provar a inocência de seus clientes mostrando que eles não são os responsáveis pelos crimes de que são acusados, passam a dizer que eles são bons filhos, bons maridos, bons trabalhadores, vítimas da sociedade e assim por diante. Observe o exemplo.

Pablo Escobar é assassino. Mas também dá dinheiro aos pobres e tenta melhorar a estrutura política de seu país. Ora, quem ajuda os pobres e luta para melhorar a estrutura política merece ser premiado. Então, Pablo Escobar merece ser premiado, e não condenado por seus assassinatos.

G. Falácia da força ou do argumento de autoridade. Consiste em usar o argumento de autoridade para pretender provar que a palavra de alguém não pode ser questionada (em vez de apenas dizer que essa palavra pode ser digna de confiança).

Se a Ana explicou esse fato e se é ela que estudou Química, você não pode questionar o que ela diz.

Nossa única saída é obedecer ao governador, porque ele é a autoridade no Estado.

H. Falácia da petição de princípio.

Muito comum no modo cotidiano de pensar e falar, a petição de princípio significa partir daquilo que justamente se pretende provar. Vem daí o nome de petição de princípio, já que o argumento permanece aberto, pedindo um princípio que o prove.

É bom ser honesto porque ser honesto é bom.

Poder dizer tudo o que pensamos é algo que faz bem à sociedade. Afinal, a sociedade é melhor quando as pessoas podem dizer tudo o que pensam.

Machado de Assis é mais importante do que José de Alencar, pois Machado de Assis é mais valorizado pelas pessoas que têm o hábito da leitura.

I. Falácia do círculo vicioso.

A falácia do círculo vicioso é uma dupla petição de princípio. Consiste em tomar duas frases e pretender provar uma pela outra. O pensamento gira em torno de si mesmo. Observe os exemplos.

É pela razão humana que se prova que Deus existe.

A razão humana foi dada por Deus. Então, Deus existe.

É pela razão humana que se prova que Deus não existe.

A razão humana não vem de Deus. Então, Deus não existe.

A burocracia é uma estrutura necessária para o país, pois ela produz e guarda documentos que são importantes. Sem a burocracia, então, o país não pode funcionar.

Observe que os três exemplos são circulares: giram em volta de si mesmos e não permitem encontrar um ponto para avaliar a validade dos raciocínios. Em outras palavras, as premissas já contêm aquilo que pretendem obter como conclusão. Não há raciocínio, portanto; apenas se faz uma repetição de ideias, com ares de pensamento justificado.

J. Falácia da falsa causa ou falácia do post hoc propter hoc. Consiste em simplesmente tomar o que acontece antes e considerá-lo como causa do que vem depois. É chamada de falácia do post hoc propter hoc ou falácia do post hoc ergo propter hoc: em latim, essa expressão significa “veio depois disso, então aconteceu por causa disso”. Observe os exemplos.

Em geral, depois que um cometa aparece no céu, acontecem coisas boas e ruins na Terra: amores, encontros, amizades, misérias, guerras, pestes. Então, isso tudo acontece porque o cometa aparece no céu.

Confio na Astrologia porque meu astrólogo, no ano-novo, disse que os astros iam fazer as coisas melhorarem e elas de fato melhoraram.

Este chá é muito bom, porque eu estava muito resfriado e melhorei depois que o tomei.

Continuo doente. Certamente é porque tomei o remédio que o médico receitou.

Meu vizinho concluiu que os ricos empobreceram porque os pobres melhoraram de vida; afinal, como ele diz, foi quando os pobres passaram a melhorar que os ricos começaram a piorar.

K. Falácia de pessoa ou falácia ad hominem.

A falácia de pessoa consiste em tirar a atenção da forma e do conteúdo do pensamento de alguém e concentrá-la na pessoa mesma que sustenta esse pensamento, desqualificando-a ou mesmo atacando-a. Por isso se chama ad hominem (em latim, “voltada para a pessoa [que fala]”). É uma das formas mais irracionais de tentar convencer e, por isso, também uma das mais violentas. Em vez de concentrar-se no raciocínio e em seu conteúdo, concentra-se em atacar o(a) autor(a) do raciocínio, a fim de impedir que seu pensamento seja levado a sério. Observe os exemplos.

As ideias de Antônio sobre a ecologia devem ser desconsideradas, porque ele já poluiu demais o meio ambiente.

Como você é de oposição, sua proposta não merece crédito.

L. Falácia do falso dilema.

Ocorre quando um pensamento adquire a forma de dilema, mas é mal montado e tem a aparência de que não pode ser resolvido. Observe o exemplo.

Para administrar o país, é preciso ser honesto ou desonesto. Não é bom ser honesto, pois isso desagradará algumas pessoas. Mas também não é bom ser desonesto, pois isso desagradará outras. Como é impossível não ser honesto ou desonesto, então é melhor que ninguém administre o país.

Você certamente percebe a fragilidade de uma elaboração como essa. Ela pode ser resolvida pela reformulação das premissas, pois elas não correspondem ao que, em geral, as pessoas governadas pensam sobre a honestidade de seus governantes, ou seja, não correspondem ao que alguém atento diria. Assim, se as premissas forem trocadas por: “é bom ser honesto, mesmo que isso desagrade algumas pessoas” e por “não é bom ser desonesto, pois isso desagrada um número ainda maior de pessoas”, então o raciocínio adquirirá outro caráter e deixará de ser um falso dilema.

Para administrar o país, é preciso ser honesto ou desonesto. Não é bom ser honesto, pois isso desagradará algumas pessoas. Mas também não é bom ser desonesto, pois isso desagradará outras. Como é impossível não ser honesto ou desonesto, então é melhor que ninguém administre o país.

EXERCICIO Não escreva no livro. C

• Identifique o tipo de falácia cometido nos casos a seguir.

1. É natural que existam ricos e pobres no mundo, porque isso sempre existiu.

2. O crime foi cometido por X, porque X passou pelo local.

3. Rato tem quatro letras. Rato come queijo. Quatro letras comem queijo.

4. Se você mantiver sua opinião, haverá consequências, porque quem pode pensar aqui sou eu!

5. Se o som é vibração e se a luz é vibração, então som e luz são a mesma coisa.

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O raciocínio dialético

Aristóteles chamava de silogismo dialético o silogismo cujas premissas são apenas prováveis e não necessariamente verdadeiras. As premissas podiam, no seu dizer, ser escolhidas em função de quem construía o discurso, porque não tratavam de dados evidentes que obrigassem a chegar à verdade também evidente de algum assunto.

No entanto, o uso do raciocínio dialético é historicamente mais amplo do que o modo como Aristóteles o resumiu, isto é, como um silogismo ou uma dedução. O raciocínio dialético não precisa seguir necessariamente as regras do silogismo para ser válido, pois sua forma pode ser diferente do esquema básico de duas premissas, três termos (com um médio) e uma conclusão.

Costuma-se apresentar o raciocínio dialético, de modo geral, como um raciocínio que opera por contradição. Ele se dá exatamente no encontro e na confrontação de duas ou mais posições, prática que deu origem ao termo dialética, que, por sua vez, provém do verbo grego dialégesthai, isto é, dialogar, contrapor.

Tomando-se uma expressão usada pelo matemático Euclides de Alexandria (c. 325 a.C.-265 a.C.), costuma-se dizer que o procedimento dialético básico consiste no raciocínio por redução ao impossível: toma-se uma hipótese e se mostra a conclusão que dela decorre; em seguida, mostra-se que essa conclusão é inaceitável; por conseguinte, obtém-se que a hipótese inicial deve ser rejeitada. Em alguns casos, dá-se um passo adiante, mostrando-se que é verdadeiro exatamente o contrário do que dizia a hipótese inicial. Esse último passo nem sempre é adequado, pois o contrário da hipótese inicial pode ser tão falso como a própria hipótese.

Dessa perspectiva, contradizer algo não significa necessariamente chegar a uma verdade.

Seja como for, o núcleo do raciocínio dialético está em operar por comparação e contradição de hipóteses. Trata-se de um procedimento tão antigo quanto a própria Filosofia, tendo sido empregado claramente pelos seguidores de Pitágoras de Samos (c. 570 a.C.-500-490 a.C.), por Heráclito de Éfeso (535 a.C.-475 a.C.), Parmênides de Eleia (530 a.C.-460 a.C.), Zenão de Eleia (c. 490 a.C.430 a.C.), Sócrates, Platão, entre muitos outros.

► DELLA ROBBIA, Luca. Aristóteles e Platão em debate. [Entre 1437 e 1439]. Alto-relevo. Museu Opera del Duomo, Florença (Itália).

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No livro Mênon , escrito em forma de diálogo, Platão dá um exemplo claro de raciocínio dialético. Ele faz a personagem Sócrates investigar se é correto afirmar que as pessoas virtuosas (pessoas que têm um bom hábito) podem ensinar a virtude (um bom hábito) a seus filhos. Em resumo, Platão monta o raciocínio a seguir.

Se os pais podem ensinar a virtude a seus filhos, então os filhos de Péricles, figura pública conhecida por sua virtude, devem ser virtuosos. No entanto, sabe-se que os filhos de Péricles não foram virtuosos. Então, não é correto afirmar que os pais podem ensinar a virtude.

Platão visava, com esse raciocínio, mostrar que a virtude é algo mais complexo do que um simples hábito que pode ser ensinado. Ele não pensava exatamente que ela não pudesse ser ensinada, mas também não acreditava que o fato de simplesmente ensiná-la a alguém bastava para que esse alguém se tornasse virtuoso. Então, a fim de descartar ou refutar essa hipótese (a de que a virtude é algo que depende apenas de ensinamento), ele monta seu raciocínio assumindo a hipótese simples de que a virtude pode ser ensinada e tira dela uma conclusão impossível ou absurda. Fazendo isso, leva o interlocutor a não concordar com a hipótese.

Conforme o exemplo de Platão, no método dialético, inicia-se, de certa maneira, pela conclusão que se deseja garantir (seja como verdadeira, seja como falsa), escolhendo-se bem as hipóteses (premissas) que se pretende refutar ou confirmar. As hipóteses confirmadas, nesse sentido, tornam-se também conclusões.

No livro Teeteto, também escrito em forma de diálogo, Platão dá um exemplo ainda mais radical: inicialmente, ele faz a personagem de nome Teeteto concordar que era falsa a hipótese do pensador Protágoras (481 a. C.-411 a. C.), para quem a verdade da ciência é uma simples invenção ou uma convenção humana, sem nenhuma significação objetiva (independente da vontade das pessoas). Em seguida, fazendo um movimento na direção contrária, leva Teeteto a concordar que a hipótese de Protágoras é verdadeira. Diante da contradição, seríamos tentados a pensar que Platão tomou partido e defendeu finalmente a hipótese que lhe parecia verdadeira. No entanto, ele não faz isso. Termina o debate por uma aporia, ou seja, uma situação com duas hipóteses que tanto podem ser aceitas como refutadas, sem nenhuma solução no horizonte.

A atitude platônica de não dar uma solução para a situação contraditória do Teeteto põe os leitores diante de um dado: era possível tanto defender que a verdade da ciência é uma convenção como que ela é mais do que uma convenção. Platão apontava, assim, para a necessidade de chegar a outro horizonte de compreensão, para além da oposição convenção ou não convenção.

Ele convidava a identificar elementos de convenção e elementos que não dependem dos acordos estabelecidos entre os humanos. Essa prática lhe permitiu consagrar a concepção da dialética como um método filosófico que vai além da mera articulação de frases sem erro ou contradição, pois ela envolve a possibilidade de identificar elementos verdadeiros em posições opostas, movendo-nos a encontrar resultados que unem esses elementos e respeitam a complexidade do assunto.

Em outras obras, Platão deu um sentido diferente à dialética, considerando-a um método capaz de chegar a verdades por meio de um contraponto entre posições, quer dizer, de uma separação de posições, confrontando-as até chegar a um acordo ou um desacordo (que se tornam, por sua vez, outra posição). Chegando a acordos, a dialética, segundo Platão, permite revelar a estrutura discreta que organiza o pensamento e a realidade, composta de Ideias, Formas ou Essências.

Ao longo da História da Filosofia, a dialética recebeu variados tratamentos, desde considerações que a tomavam por uma prática sem rigor até o seu elogio como método superior a qualquer outro.

Na Idade Média, apesar da desconfiança lançada sobre o método dialético por alguns autores, outros o acionaram junto com a lógica silogística e o consideraram uma parte legítima da Lógica, chegando a aplicá-lo mesmo para esclarecer assuntos da fé religiosa. Foi o caso, por exemplo, de Avicena (980-1037), Pedro Abelardo (1079-1142), Tomás de Aquino (1225-1274), Guilherme de Ockham (1285-1347), entre outros. Na modernidade e na contemporaneidade, muitos pensadores adotaram o método dialético. Certamente o nome mais conhecido por ter elevado a dialética à categoria de “filosofia verdadeira” foi Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).

► VON LANDSBERG, Herrad. The seven liberal arts [As sete artes liberais]. In : VON LANDSBERG, Herrad. Hortus deliciarum [Jardim das delícias]. [S. l.: s. n., ca. 1180]. Iluminura. As sete artes liberais eram as disciplinas do currículo de estudos organizado a partir do século VI e presente durante toda a Idade Média. A Dialética aparece à direita, entre a Retórica e a Música.

Objeção: argumento contrário.

Refutado: descartado; abandonado; considerado falso.

Repelir: afastar.

Incompatível: que não pode ser combinado; que não pode existir ao mesmo tempo que outra coisa.

Fluido: algo leve, suave; que escorre.

Orgânico: algo vivo; conjunto de partes relacionadas entre si, formando um todo vivo.

EXERCICIO Não

D

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escreva no livro.

• Nos trechos seguintes, identifique o tema central e resuma o procedimento empregado pelos autores a fim de obter suas conclusões.

Texto

1

Pedro Abelardo, Ética

[Contra o nosso pensamento, alguns dizem] que o ato do pecado é acompanhado de certo prazer que aumenta o próprio pecado, como acontece no ato sexual ou no ato de comer [frutas que foram roubadas]. Mas essa objeção só deixaria de ser absurda se pudessem nos convencer de que o prazer carnal é em si mesmo um pecado e que só poderíamos ter prazer carnal quando pecamos. Se fosse assim, as pessoas casadas estariam no pecado quando têm prazer carnal; e quem achasse que uma fruta é saborosa também pecaria. [...] Então, até Deus seria culpado, ele que é o criador tanto dos alimentos como dos corpos [...]; afinal, como ele nos daria alimentos para comer se fosse impossível comer sem pecar? [...] Teria ele mentido para nós, fazendo que o homem se unisse a uma mulher e que comêssemos comidas deliciosas, tal como ocorreu sem pecado desde o primeiro dia de nossa criação no Paraíso, para que depois ele nos acusasse de pecado sem termos ultrapassado o limite da autorização que ele mesmo nos deu? [...] No entanto, há quem ainda faça a seguinte objeção: o ato sexual dos esposos e o consumo de alimentos saborosos são permitidos desde que não haja prazer. Respondo que, se for assim, aquilo que é autorizado é totalmente impossível e que a autorização mesma é absurda, pois aquilo que ela autoriza é simplesmente irrealizável. [...] Para mim, a resposta é evidente: o prazer da carne está de acordo com a vida natural; não é um pecado. Também não é um pecado sentir o prazer que pertence radicalmente ao ato da carne.

PEDRO ABELARDO. Ethica seu liber qui dicitur nosce te ipsum. In : LUSCOMBE, David Edward (ed.). Peter Abelard’s ethics. Oxford: Clarendon, 2002. p. 16-22. Tradução nossa. Texto 2

Hegel, A fenomenologia do espírito

[...] A opinião [de grande parte das pessoas se prende rigidamente à oposição entre o verdadeiro e o falso]. [...] O botão desaparece no desabrochar da flor, e pode-se dizer que é refutado pela flor. Igualmente, a flor se explica por meio do fruto como um falso existir da planta, e o fruto surge em lugar da flor como verdade da planta. Essas formas não apenas se distinguem mas se repelem como incompatíveis entre si. Mas a sua natureza fluida as torna, ao mesmo tempo, momentos da unidade orgânica na qual não somente não entram em conflito, mas uma existe tão necessariamente quanto a outra; e é essa igual necessidade que unicamente constitui a vida do todo. [...]

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A fenomenologia do espírito. In: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Os pensadores. Tradução: Henrique C. Lima Vaz. São Paulo: Abril Cultural, 1989. p. 12.

Método intuitivo

Estudamos que o método discursivo dá uma série de passos para chegar à verdade sobre um assunto. Mesmo no raciocínio dialético, no qual o pensador praticamente já sabe a conclusão que pretende obter e escolhe as premissas que a justificam, o procedimento é indireto, quer dizer, passa por etapas até chegar ao seu objeto.

O termo objeto, aqui, não significa uma coisa que está fisicamente na Natureza e que podemos tocar, manusear etc. Em Filosofia, de modo geral, objeto significa, além das coisas físicas, todo conteúdo captado pelo pensamento. Tal significado se entende pela raiz da palavra latina que deu origem a objeto: objectum, ou seja, aquilo que está posto diante de nós (não necessariamente na nossa frente, mas diante de nossa percepção, que pode ser física ou apenas mental). Então, se uma coisa física pode ser chamada de objeto, também uma emoção, um raciocínio matemático, um pensamento, uma ideia, uma recordação (realidades que não podem ser “tocadas”) são igualmente objetos (conteúdos do pensamento).

Por isso, costuma-se dizer que o método discursivo chega aos poucos ao seu objeto; dá passos até ele. Já o método intuitivo começa diretamente pelo objeto; começa pelo que se põe no horizonte de nossa percepção. O método intuitivo não “constrói” seu objeto, mas o analisa, decompõe, desconstrói, até descobrir os elementos que formam o objeto e sobre os quais não resta dúvida.

A fim de reunir os diferentes procedimentos que partem do próprio objeto, falaremos aqui, de modo geral, de método intuitivo. Essa expressão se baseia no termo intuição, nome que se dá à relação direta com o objeto. O termo, por sua vez, origina-se do verbo latino intuo, que significa ver, estar diante de algo. Podemos observar, assim, que intuição significa mais do que “pressentimento” ou “instinto”, como muitas vezes entendemos em nosso modo cotidiano de pensar e falar. Esse modo nasce justamente do uso filosófico que indica um tipo de compreensão imediata, sem intermediários, direta.

Por conseguinte, a fim de retratar os possíveis sentidos da intuição, costuma-se falar de intuição sensível, ligada ao que é captado diretamente por meio dos cinco sentidos, e de intuição intelectual, referente ao que é percebido diretamente pela inteligência humana. Por exemplo, ao observar e diferenciar uma árvore e um ser humano, tem-se uma intuição sensível. O mesmo ocorre quando “vemos” a maciez da poltrona em que nossas costas estão apoiadas ou quando “vemos” a doçura de uma bala em nossa boca. Já quando entendemos imediatamente a frase: “o dobro é maior do que suas metades” ou “uma coisa não pode ser e não ser o que ela é ao mesmo tempo”, temos uma intuição intelectual. Observamos, por esses exemplos, que a visão é tomada como metáfora; afinal, ninguém “vê” fisicamente a maciez da poltrona ou a doçura da bala, nem a verdade da frase sobre o dobro ou sobre o ser e não ser algo ao mesmo tempo. Como a visão é o sentido que oferece mais informações sobre as coisas, usamos a metáfora

da visão para indicar essa operação em que, sem raciocínios (sem discursos), percebemos algo diretamente; percebemos a “presença” do objeto (do conteúdo que se põe diante de nosso pensamento). Se prestarmos atenção no exemplo que acabamos de dar a respeito da intuição da frase “uma coisa não pode ser e não ser o que ela é ao mesmo tempo”, constataremos que ela corresponde ao princípio de não contradição , que já apresentamos ao tratar dos princípios que orientam a lógica da dedução, no método discursivo. Essa correspondência mostra que os métodos intuitivo e discursivo não se opõem nem se excluem necessariamente. São diferentes e podem ser combinados em uma mesma filosofia. Aliás, o filósofo Aristóteles, organizador da lógica silogística, defendia que o princípio de não contradição é evidente ou compreensível (“visível”) tão logo se apresente à inteligência humana. Outro exemplo bastante forte de uso do método intuitivo foi dado pelo filósofo Henri Bergson (1859-1941), mais próximo a nós no tempo. Bergson chegou a defender que a intuição é o verdadeiro método filosófico, pois “colhe” ou “capta” a realidade tal como ela é. Segundo Bergson, há uma diferença entre a atividade cognitiva que separa a realidade em partes e a atividade intuitiva que “vê” ou constata a realidade nela mesma. Os cientistas, por exemplo, e mesmo todas as pessoas em sua vida cotidiana costumam olhar para as coisas da realidade e considerá-las como unidades que podem ser entendidas, controladas, melhoradas, administradas. Os filósofos, em vez disso, dão-se conta, segundo Bergson, de que as coisas tomadas separadamente não são realmente “vistas” naquilo que elas são: manifestações de um todo unido em constante movimento, em constante criação e recriação, num fluxo ou numa corrente semelhante à correnteza de um rio. Em nossa atitude cotidiana e na atitude científica, as coisas parecem paradas, pois estamos acostumados a isolá-las para melhor administrá-las. No entanto, se confiássemos em nossa “visão” direta

► Quando observamos um relógio como o da imagem, não constatamos o tempo, pois o tempo medido pelo relógio corresponde às divisões que nós estabelecemos, por convenção, para medir o movimento da realidade. A real percepção do tempo depende do modo como cada pessoa se conecta com a realidade.

e se não pensássemos no melhor modo de administrar as coisas, perceberíamos que elas estão todas intimamente unidas por um fundo misterioso, como as gotas que compõem a água do rio. O pensamento, assim, separa o que é unido na realidade. O papel da Filosofia, de acordo com Bergson, estaria em ir além da atividade do próprio pensamento, ultrapassando as identidades estáticas ou paradas que damos às coisas, a fim de chegar ao movimento que “vemos”, mas não enxergamos.

Também o filósofo francês René Descartes (1596-1650) adotou o método intuitivo. Vivendo em um contexto de profundas mudanças políticas, filosóficas, científicas, religiosas e geográficas, Descartes procurava reinaugurar a Filosofia por meio de algo que não deixasse espaço para dúvidas. Iniciou, então, por uma recusa de tudo o que havia aprendido com filosofias anteriores e mesmo de dados “naturais” que, no seu dizer, podiam ser duvidosos. Era o caso do conhecimento obtido por meio dos cinco sentidos; afinal, podemos nos enganar se confiarmos totalmente nos cinco sentidos (podemos ver uma pessoa que se aproxima e pensar que é Pedro, quando, na verdade, é João). No dizer de Descartes, não temos certeza sequer de que existimos, pois podemos estar em um sonho ou ser vítimas de um ser maior do que nós e que nos engana, fazendo-nos crer que existimos, quando, na verdade, não somos mais do que a imaginação desse ser. No entanto, mesmo quando nos enganamos, precisamos do pensamento, quer dizer, para nos enganarmos temos de pensar; e, para pensar, precisamos existir. Ora, se podemos nos enganar, então pensamos; e, se pensamos, existimos. Daí vem a famosa frase de Descartes: “Penso, logo existo”.

O pensamento torna-se, então, o objeto evidente do qual pode partir a Filosofia, segundo o filósofo francês. Ele esclarece a evidência do pensamento, porque a decompõe na possibilidade do engano; e, com base nessa evidência, ele reconstrói a Filosofia. Poderíamos responder que a evidência da qual Descartes parte não é exatamente a do pensamento, mas a da possibilidade da dúvida. No entanto, Descartes responderia que justamente a possibilidade da dúvida é já a evidência do pensamento; é a manifestação do objeto ou a sua intuição.

► O filósofo francês Henri Bergson sentado em seu jardim, [ca. 1910].

Sem mencionar os inúmeros pensadores(as) que associaram o método intuitivo ao método discursivo, poderíamos citar apenas alguns que deram ênfase ao método intuitivo: Johann Gottlieb Fichte (17621814), Maine de Biran (1766-1824), Friedrich Schelling (1775-1854), Arthur Schopenhauer (1788-1860), Wilhelm Dilthey (1833-1911), Edmund Husserl (1859-1938), Edith Stein (1891-1942), Simone Weil entre tantos outros(as).

EXERCICIO Não escreva no livro. E

Consultar orientações no Manual do Professor.

• I dentifique a temática central do trecho a seguir e qual intuição ou conjunto de intuições funda sua análise.

Confissões

Agostinho de Hipona (Santo Agostinho)

Se ninguém me pergunta, eu sei; mas, se eu quiser explicar a alguém que me pergunta, já não sei. O que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas, se eu quiser explicar a alguém que me pergunta, já não sei. No entanto, digo isto com confiança: sei que se nada passasse, não haveria o tempo passado; e, se nada adviesse, não haveria o tempo futuro; e, se não houvesse nada, também não haveria o tempo presente. [ ... ] Se há acontecimentos futuros e passados, quero saber onde estão. Se ainda não é possível saber isso, sei, no entanto, que, lá onde quer que eles estejam, eles são presentes, não são nem futuros nem passados. Afinal, se os acontecimentos futuros lá estão como futuros, então ainda não estão propriamente lá onde estão [pois são futuros]; e, se os acontecimentos passados estão como passados lá onde estão, então também não estão lá onde estão [pois são passados]. Em vez disso, onde quer que eles estejam e o que quer que sejam, só podem estar como presentes. Quando acontecimentos passados são narrados como acontecimentos verdadeiros, aquilo que se busca na memória não são os acontecimentos passados mesmos, mas as palavras foram concebidas com base nas imagens desses acontecimentos passados: por meio dos nossos sentidos, os acontecimentos passados deixaram em nosso espírito algo como um rastro. Mesmo a minha infância, que já não existe mais, está no tempo passado, que também já não existe mais; porém, quando me lembro da minha infância e a narro, vejo a sua imagem no tempo presente, porque ainda está na minha memória. Confesso que ignoro por enquanto [ ... ] se ocorre algo semelhante quando se preveem acontecimentos futuros. Mas isto eu sei: em geral premeditamos nossas ações futuras e essa premeditação é presente, mesmo que a ação que premeditamos ainda não exista, porque é futura. [...] Algo agora me é claro e explícito: não há acontecimentos futuros nem passados; é só inadequadamente que falamos de três tempos, o passado, o presente e o futuro. Em vez disso, seria mais adequado dizer que os três tempos que há são estes: o presente dos acontecimentos passados; o presente dos acontecimentos presentes; o presente dos acontecimentos futuros. Há na minha alma – e não vejo onde eles possam ocorrer senão na minha alma – estas três [possibilidades]: a memória presente de acontecimentos passados; a visão presente dos acontecimentos presentes; e a espera presente de acontecimentos futuros.

AGOSTINHO DE HIPONA. Confessions: XI, 14, 17; 18, 23; 20, 26. Paris: Belles Lettres, 1961. v. IX-XIII, p. 308-314. Tradução nossa.

Consultar orientações no Manual do Professor

1. (Enem)

A arte pré-histórica africana foi incontestavelmente um veículo de mensagens pedagógicas e sociais. Os San, que constituem hoje o povo mais próximo da realidade das representações rupestres, afirmam que seus antepassados lhes explicaram sua visão do mundo a partir desse gigantesco livro de imagens que são as galerias. A educação dos povos que desconhecem a escrita está baseada sobretudo na imagem e no som, no audiovisual.

KI-ZERBO, J. A arte pré-histórica africana. In: KI-ZERBO, J. (Org.) História geral da África, I: metodologia e pré-história da África. Brasília: Unesco, 2010.

De acordo com o texto, a arte mencionada é importante para os povos que a cultivam por colaborar para o(a)

a) t ransmissão dos saberes acumulados.

b) e xpansão da propriedade individual.

c) r uptura da disciplina hierárquica.

d) surgimento dos laços familiares.

e) rejeição de práticas exógenas.

1. Alternativa A

2. Releia o texto da atividade anterior, e, sem esquecer que ele chega a uma afirmaç ão verdadeira como conclus ão, pergunte-se, todavia, se o texto mesmo, em sua estrutura, não infringe a regra 2 do silogismo. Justifique sua resposta.

3. Em que o exemplo de uma viagem e da percepção de sua duração contribui para Bergson defender sua posição a respeito do tempo?

4. (Fuvest-SP)

Disponível em https : //tirasarmandinho.tumblr.com/. Adaptado.

2023

Da leitura da tira, depreende-se que

a) o f ilho leva o pai a uma reflexão inócua a respeito do patrimônio público.

b) o patrimônio público é restrito a equipamentos dispostos nas vias de uma cidade.

c) a s lixeiras e as placas de trânsito não f azem parte do patrimônio público.

d) a destruiç ão de hospitais, universidades, florestas e estatais é tamb ém crime de dano ao patrimônio público.

4. Alternativa D.

e) o pai e o filho discordam quanto aos efeitos da depreciação do patrimônio público.

ReToManDO Não escreva no livro.

DISSERTAÇÃO

Dissertação de síntese filosófica

Uma dissertação de síntese filosófica é uma redação que resume a posição de diferentes filósofos e filósofas a respeito de um tema específico. Deve conter introdução, desenvolvimento e conclusão.

Sintetizar ou resumir de maneira filosófica não é simplesmente repetir com poucas palavras aquilo que está em um texto filosófico. Em vez de repetir, a síntese identifica os diversos momentos lógicos ou partes de um texto, explicitando as ideias centrais defendidas em cada uma de suas partes ou momentos e mostrando a articulação dessas ideias. Afinal, se a Filosofia analisa as razões pelas quais os pensamentos são justificados, então uma síntese filosófica concentra-se em tornar claras essas razões, com atenção especial ao modo como elas são interligadas.

DICA 1

Evite parafrasear!

Parafrasear é reescrever um texto simplesmente repetindo, de forma resumida, tudo o que já afirmou seu (sua) autor(a). A paráfrase pode ser um bom exercício quando alguém nos pede para explicar algum assunto “com nossas próprias palavras”. Mesmo grandes escritores servem-se dela. Por exemplo, Rousseau (1712-1778) e Malherbe (1950-) fizeram paráfrases de versos dos Salmos; Liszt (1811-1886) e Bach (1685-1750) fizeram paráfrases de temas musicais de outros compositores. Porém, esse recurso é inadequado em uma redação de síntese filosófica cujo objetivo é apresentar as ideias centrais de um texto e explicitar suas articulações.

DICA 2 Não misture o que você pensa com o que o texto discute

É uma dificuldade de muitos estudantes e professores saber “calar-se” e “ouvir” um texto, isto é, deixá-lo “falar”, a fim de bem o conhecer em suas próprias razões. Muitos de nós não se contêm e, diante de um texto (ou mesmo de uma frase), já passam a interpretá-lo e a tomar posição pessoal. Esse é um comportamento apressado que não combina com a atividade filosófica e deve ser evitado a todo custo em uma redação de síntese. Independentemente de gostarmos ou não de um texto, a atitude filosófica mais necessária é compreendê-lo em sua estrutura antes de qualquer julgamento. Afinal, para julgar é preciso compreender bem!

DICA 3 As conjunções, amigas inseparáveis dos(as) filósofos(as)!

Algumas palavras são estratégicas na elaboração de uma redação de síntese filosófica. Elas articulam termos e frases. Em gramática, recebem o nome de conjunções, amigas inseparáveis dos filósofos, das filósofas, dos escritores e escritoras em geral, pois elas permitem entender o modo como alguém relaciona duas ideias, duas frases, dois parágrafos. Eis um quadro que pode ser muito útil em suas redações.

CONJUNÇÕES E LOCUÇÕES CONJUNTIVAS

Casos

E, nem, também...

Não só... mas também

Mas, porém, todavia, contudo, aliás, no entanto, quando*, entretanto...

Sentido

Ligar duas frases ou palavras

“Ele viu o arroz e o comprou.”

“Ela trouxe não só arroz mas também feijão.”

Contrariar ou alterar o sentido do que foi dito antes

“A criança viu o bolo, porém não o pegou.”

“O ser humano é racional. Contudo, erra.”

“Ele fez isto, quando* devia ter feito aquilo."

*Conjunção temporal, uso comum na língua falada, mas de sentido ambíguo; é melhor evitar.

Nome

ADITIVAS

ADVERSATIVAS

Casos

Ou, ou... ou, quer... quer, seja... seja, ora... ora

Logo, portanto, então, enfim, pois, assim, por isso, por conseguinte, donde...

CONJUNÇÕES E LOCUÇÕES CONJUNTIVAS

Sentido

Indicar frases ou palavras alternadas ou incompatíveis

“O animal é racional ou irracional.”

“Quer ele venha, quer não venha, veremos o filme.”

Exprimir a conclusão de algo dito anteriormente

“Penso, logo* existo.”

“Todo homem é mortal. Portanto, Pedro é mortal.”

*Não confundir a conjunção logo com o advérbio logo

Explanar ou continuar o sentido do que foi dito anteriormente

Nome

ALTERNATIVAS

CONCLUSIVAS

Ou, isto é, ou seja, por exemplo, a saber, além disso, com efeito, ademais, ora...

Que, se

“Dois alqueires, ou seja, 48 mil metros quadrados.”

“O animal racional ou o homem é um ser mortal.”

“Com efeito, aquilo queria dizer...”

“O bom é amável; ora, ele é bom; logo, é amável.”

Ligar frases que completam o sentido de algum verbo usado anteriormente

“Quero que você estude.”

“Não sei se ele virá.”

EXPLICATIVAS

INTEGRANTES

Como exercício, desenvolvamos uma dissertação de síntese filosófica sobre o conteúdo do capítulo 3, que acabamos de estudar.

O método racional como método cognitivo universal

O presente capítulo, dedicado ao método racional apresenta a orientação metodológica mais específica do filosofar.

Com efeito, a “obediência” praticamente total do pensamento às regras da razão faz dele mais seguro, porque menos exposto às variações velocíssimas ou morosíssimas da emoção, do sentimento e de outras tentativas de se obter a aquiescência dos interlocutores.

Ainda que possa servir-se da emoção conjugada à razão para convencer, a Filosofia, na maior parte de suas tematizações, prefere priorizar a justiça e a equidade garantidas por argumentos válidos, até porque o contrário seria abertamente um crime em certos casos.

O método racional é, enfim, o método mais econômico e mais formalmente seguro como caminho de convencimento, e, como tal, tem prioridade explicativa sobre os outros caminhos por ele incluídos: o método intuitivo, que explicita uma verdade ou uma evidência e que não conta com subdivisões, bem como o método discursivo (argumentativo), que pode operar por dedução, indução, analogia, raciocínio dialético e argumento de autoridade (conforme as circunstâncias sejam favoráveis). A dedução, por sua vez, subdivide-se em categórica, hipotética e dialética.

Por operar sob todas essas subdivisões em termos cognitivos, podemos considerar o método racional como método cognitivo universal.

4

CONHECIMENTO

Vigília: estado de quem está acordado.

GEHRY, Frank; MILUNIĆ, Vlado. Casa dançante 1996. Sede da Nationale Nederlanden, Praga (Chéquia), 2023.

Diante de obras de arquitetura como a de Frank Gehry (1929-) e Vlado Milunić (1941-2022), nosso olhar é desestabilizado e desafiado. Analogamente, em Filosofia, a reflexão sobre o conhecimento desestabiliza e desafia nossos conceitos sobre vida, realidade e olhar. Conhecer é a principal atividade que caracteriza os seres humanos. Por meio dela, os seres humanos descobrem e constroem sentidos. O tempo todo nós conhecemos, até mesmo quando sonhamos. Ao sonhar, podemos, por exemplo, ter inspirações que iluminam aspectos da nossa vida ou compreender coisas que nos parecem estranhas em estado de vigília.

Toda vivência é uma percepção (captação ou elaboração) de sentido com clareza. Havendo sentido, percepção e clareza, há conhecimento do objeto da vivência. Será no universo semântico do termo vivência que gravitarão outros termos, como experiência, ciência, saber etc.

Conhecer é “fotografar” mentalmente uma realidade?

A atividade de conhecer acontece de diferentes maneiras, de acordo com a sensibilidade de cada pessoa. É um processo único, posto em movimento pela singularidade de cada indivíduo. À Filosofia, como “pensamento do pensamento”, interessa, de modo especial, o tema do conhecimento.

No entanto, justamente por ser o que é, a Filosofia, mais do que pretensamente conhecer e explicar o mundo e a realidade – como se essa tarefa nascesse de um mero encontro “face a face” da pessoa que conhece com o que é conhecido, conforme crê, talvez, a maioria dos indivíduos –, interroga o que significa conhecer. Conhecer é fazer o retrato fiel de uma realidade? Ou é interpretá-la, transformá-la?

No decorrer da história do pensamento ocidental, ao menos três tipos de resposta foram dados sob a forma da metáfora da fotografia. Uma primeira resposta entende o conhecimento como a simples “fotografia” de uma realidade, ou seja, um registro pretensamente direto de uma realidade, tal como ela parece ser.

► Paisagem em Villa La Angostura (Argentina), 2024. Conhecer significa fotografar diretamente uma realidade?

Uma segunda resposta entende o conhecimento como uma “fotografia” com um espelho interposto entre a pessoa que contempla uma realidade e essa realidade mesma, de modo que o espelho leva o indivíduo a prestar atenção não apenas na realidade mas também em si mesmo, especificamente em sua maneira de ver a paisagem. Por fim, uma terceira resposta entende o conhecimento como um tipo completamente diferente de “fotografia”: não se trata nem de uma “fotografia” simples e direta, nem de uma “fotografia” que interpõe algo entre a pessoa que contempla uma realidade e essa realidade mesma. Ela chama a atenção para um complexo de dados observáveis, porém não óbvios, na atividade de conhecer.

em

Cognitivo: tudo o que se refere ao conhecimento, seja de si, seja de outrem, seja de algo.

É possível tomar como ponto de partida a fotomontagem de Philippe Ramette (1961-) para pensar que, se uma pessoa conhece algo, é porque ela possui uma estrutura de possibilidades que a habilitaram a perceber, identificar e conhecer algo, e porque esse algo irradia características que permitem chegar a dados essenciais, bem como encontrar-se com as possibilidades humanas, de modo que conhecer não é fotografar nem interferir no que uma realidade tem de essencial e inegociável.

A pessoa que conhece – sujeito do conhecimento – e aquilo que é conhecido – objeto ou conteúdo de conhecimento – participam juntos da atividade de conhecer. A pessoa, ou o sujeito, cuja estrutura viva é ela mesma, conhecerá aquilo para o que está preparada naturalmente. O objeto ou o conteúdo, por sua vez, apresenta-se ou doa-se para ser conhecido segundo o que revela naturalmente de sua estrutura íntima e do que pode dar a conhecer.

As três possíveis respostas podem ser resumidas em três atitudes cognitivas :

1) retratamos a realidade conhecida;

2) representamos a realidade conhecida, mas apenas parcialmente, porque a representamos construindo-a segundo os limites cognitivos nossos e do mundo, sem podermos afirmar que a representação seja um retrato direto daquilo que é conhecido (dito de outro modo, há algo entre nós e a realidade, ou seja, a representação que construímos para lidar com a realidade, uma vez que nossa estrutura cognitiva tem fronteiras claras que determinam o que podemos conhecer; nunca conhecemos algo nele mesmo, algo em si, mas apenas o que construímos a seu respeito);

3) c onstituímos o significado e o sentido de uma realidade, sem os inventar ou os captar apenas parcialmente, mas inteiramente no processo de recepção e captação imediata dos dados que algo faz de si ao mostrar-se na realidade, ao mesmo tempo que somos ativos nessa recepção, permitindo uma relação sempre presente e mutuamente “fecundante” com o que conhecemos; não inventamos aquilo que conhecemos, como se não tivesse ocorrido sua autodoação; assim, nada se interpõe entre o sujeito do conhecimento e o objeto do conhecimento.

RAMETTE, Philippe. Balcon II (Hong Kong). 2001. Impressão cromogênica laminada
alumínio, 155,5 cm x 126 cm. Centre Pompidou, Paris (França).

Essas três maneiras básicas de compreender o conhecimento operam com duas noções ainda mais básicas: a de representação e a de consciência .

A representação da realidade

Duas possíveis maneiras de iniciar a compreensão do que seja a atividade de conhecer consistem em compará-la a uma pintura ou fotografia de uma realidade. Assim, tudo o que conhecemos (o que está diante de nós, como uma paisagem, uma pessoa, uma equação, ou o que está em nós, como as emoções, os pensamentos) é registrado em nós como substitutivo daquilo que vivenciamos.

Dificilmente algum filósofo acreditará que conhecer é captar diretamente a realidade conhecida, como se fosse possível, digamos, introduzir em nossa consciência a árvore, o fogo, a madeira, a pedra, o animal ou a pessoa que observamos. Assim, tornou-se consensual afirmar que conhecemos a realidade e nos relacionamos com ela por meio do “retrato” que dela fazemos. A esse “retrato” costuma-se chamar de conceito ou ideia

No pensamento antigo, Platão (c. 427 a.C.-347 a.C.) e Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), entre outros, afirmaram que Ideias, Formas ou Essências eram mais do que simples retratos; eram as “letras” invisíveis com as quais o mundo está “escrito”. Conhecer as Ideias seria conhecer as regras do mundo mesmo. Platão declarou que o ser humano é habitado pelas mesmas Ideias com as quais o mundo é escrito, pois elas seriam aquilo que permite a atividade de conhecer.

Consensual: algo sobre o que se concorda. ► Pôr do sol em Punta del Leste (Uruguai), 2024. De acordo com a teoria da representação, tudo o que está diante de nós é registrado como substitutivo daquilo que vivenciamos.

BIOGRAFIA

Francis Bacon (1561-1626)

Filósofo e político inglês, reconhecido como um dos principais fundadores da ciência moderna. Com sua obra Grande instauração, de 1620, pretendeu fundar um novo modelo de conhecimento fundamentado na observação empírica e um novo método que permitisse poder e controle sobre a Natureza.

► VANDERBANK, John. Fracis Bacon, 1st Viscount St Alban. [ca. 1731]. Óleo sobre tela, 76,5 cm x 63,2 cm. National Portrait Gallery, Londres (Inglaterra).

Durante a Idade Moderna, grande parte dos filósofos passou a falar de conceito ou de ideia como algo “construído”, como um “retrato” tirado para representar as leis que organizam o mundo. A ciência moderna, sobretudo por seu caráter fortemente mecanicista, contribuiu para essa maneira de entender a ideia, razão pela qual escrevemos aqui “ideia” com “i” minúsculo, a fim de distinguir da Ideia em sentido platônico.

Entre os filósofos modernos, houve os que consideraram a ideia ou o “retrato” do mundo como uma representação fiel. Essa maneira de pensar, embora com variações, foi corrente entre autores do racionalismo e do empirismo . De modo geral, esses filósofos identificavam no ser humano as capacidades da sensação e do intelecto, responsáveis pela atividade do conhecimento. A sensação seria a capacidade de sentir ou de captar dados por meio dos cinc o sentidos; o intelecto seria a capacidade de elaborar os dados físicos captados, transformando-os em ideias ou conceitos.

Do lado do racionalismo, dá-se ênfase ao papel do intelecto (ou da razão, origem do nome racionalismo ). René Descartes (15961650), por exemplo, identificava na alma humana ideias inatas (nascidas com cada pessoa), que permitiriam a compreensão dos dados captados pelos cinco sentidos. Seria o caso das ideias matemáticas, por causa das quais se identificam relações numéricas entre as coisas, assim como se procede na Geometria. Outras ideias seriam adquiridas, construídas no encontro entre as ideias inatas e a realidade do mundo. É desse segundo sentido que vem a maneira mais frequente de entender o termo ideia em nossos dias.

Do lado do empirismo, considerava-se mais adequado concentrar-se apenas no que pudesse ser observado por meio dos cinco sentidos, pois eles seriam uma fonte de informações de que dificilmente alguém poderia discordar. Dessa perspectiva, pensar em ideias inatas parecia algo problemático demais, justamente porque elas escapavam a toda observação física. O próprio intelecto, entendido como algo separado dos cinco sentidos, aparece como algo impossível de ser analisado. Por essas razões, os empiristas, na tentativa de compreender o conhecimento, darão ênfase à sensação, uma vez que os dados captados por ela podem ser avaliados por todos, constituindo, assim, uma base mais segura para a reflexão. O termo empirismo deriva da palavra grega empeiría , que significa o esforço por captar aquilo que é conhecido, envolvendo-o por todos os lados, ou seja, explorando todos os seus aspectos. Dessa palavra vem também o termo experiência , que os empiristas entenderão no sentido do conhecimento

fundamentado nos dados sensíveis. Para Francis Bacon, o empírico ou o empirista parece uma formiga, pois se contenta em juntar suas provisões e em consumi-las, ao passo que os não empiristas (por ele chamados de dogmáticos, quer dizer, pessoas que afirmam com autoridade própria, e não com a autoridade da experiência) seriam como a aranha: para eles, o conhecimento é como a teia cuja matéria é tirada da própria aranha.

Um dos representantes mais conhecidos do empirismo foi David Hume, que, embora não desprezasse o papel do intelecto, considerava necessário diferenciar com mais clareza aquilo que de fato pode ser encontrado na natureza daquilo que os seres humanos nela projetam.

Por exemplo, ao observarmos bolas que batem umas nas outras, parece-nos natural afirmar que uma bola causa o movimento da outra. No entanto, não observamos nada que pode receber o nome de “causa” ou “causalidade”. O movimento das bolas é um fato natural, mas algo como uma “causa” não é um fato natural, e sim humano. Ideias desse tipo (não naturais) seriam resultado de nossos hábitos (costumes), que nos permitem, de certo modo, dominar mentalmente os acontecimentos.

A reflexão de Hume corresponde a outra metáfora: o conhecimento é como a atividade da abelha que extrai sua matéria das flores (base sensível) e, por causa do saber que desenvolveu com o passar do tempo (imagem do intelecto), reelabora essa base. Em outras palavras, Hume considera que o intelecto interfere na produção do conhecimento, mas sempre com base nos dados vindos da Natureza. A experiência sensível seria, assim, a única fonte de conhecimento seguro. As ideias começariam por impressões ou inscrições repetidas das informações sensíveis na mente.

BIOGRAFIA

David Hume (1711-1776)

Filósofo, economista e historiador escocês, considerado um dos mais importantes escritores de língua inglesa, Hume produziu um pensamento empirista que exerceu grande influência na Idade Moderna e na contemporaneidade. Suas obras mais conhecidas são: Tratado da natureza humana e Investigação sobre o entendimento humano, publicadas pela primeira vez em 1739-1740 e 1748, respectivamente.

Provisão: material; mantimento; o que é necessário para sobreviver.

Edimburgo (Escócia).

• Nessa obra, o autor demonstra que o mundo dos fatos e o mundo dos valores é radicalmente uno.

► PUTNAM, Hilary. O colapso da dicotomia fato/valor e outros ensaios

Tradução: Pablo Rubén Mariconda, Sylvia Gemignani Garcia. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia, 2024.

REPRODUÇÃO/SCIENTIAE
► RAMSAY, Allan. David Hume. 1766. Óleo sobre tela, 76,2 cm x 63,5 cm. National Galleries of Scotland,
GALERIAS NACIONAIS DA ESCÓCIA, EDIMBURGO, ESCÓCIA

Em resumo, se para os racionalistas o ser humano é dotado de um conjunto de dados que permitem a reelaboração das informações sensíveis, para os empiristas o ser humano é como uma tabula rasa (uma tábua lisa, uma folha em branco). Nela, a experiência sensível grava informações que são reelaboradas pelos seres humanos por meio do hábito, permitindo inventar outras ideias com base nas ideias oriundas da sensibilidade.

Modos de entender o conhecimento

Representação do objeto externo

CONSCIÊNCIA/ CONHECIMENTO

OBJETO EXTERNO

SUJEITO

► Esquema para visualização do modo racionalista e empirista de entender o conhecimento do mundo que circunda a mente. Seria como uma operação em que o sujeito “colhe” objetos e forma ideias ou hábitos.

Racionalistas e empiristas sempre buscaram compreender o que é o conhecimento seguro ou verdadeiro. Era preciso distingui-lo como um conhecimento que deve ser aceito por todos, diferentemente das opiniões ou formas não seguras de conhecimento. Com o passar do tempo, principalmente nos séculos XIX e XX, muitos pensadores reforçaram a ideia de que a observação empírica é indispensável para o conhecimento seguro. Passou-se a defender que o conhecimento verdadeiro não é subjetivo, mas objetivo.

O filósofo Karl Popper (1902-1994) considerou o modelo científico de conhecimento o padrão de saber objetivo porque sobrevive aos próprios indivíduos, já que o conhecimento registrado em livros e escritos pode ser ativado por outros indivíduos. Assim, numa visão objetiva “sobre o mundo”, o conhecimento retrata o mundo como numa fotografia simples. Nesse ponto, racionalistas e empiristas convergem.

EDITORIA
DE ARTE

Outros filósofos mostraram reservas em relação à concepção do conhecimento como simples “retrato” do mundo. Sem serem propriamente contrários a ela, não consideram que nosso conhecimento seja uma cópia fiel da realidade. Justamente por ser um “retrato” da realidade, o conhecimento depende das condições ou da “aparelhagem” dos sujeitos ou indivíduos cognoscentes. Nada justificaria, portanto, crer que a realidade seja só aquilo que seu “retrato” apresenta.

Immanuel Kant (1724-1804) é certamente um dos principais filósofos desse modo de entender o conhecimento. Kant concordava com Hume quando insistia na afirmação dos dados sensíveis como fonte do conhecimento seguro, porém também concordava com Descartes, pois considerava muito difícil explicar a elaboração dos dados sensíveis, caso não houvesse, em todo ser humano, um “aparelhamento” cognitivo ou uma estrutura que permitisse reelaborar os dados captados por meio dos cinco sentidos. Ainda que a mente ou a capacidade cognitiva do ser humano seja uma tábula rasa ou uma folha em branco, ela é dotada de certas possibilidades.

Kant percebia que, ao descrever o conhecimento humano, não era justificável a passagem direta das impressões sensíveis às representações mentais das coisas percebidas. Sozinhos, os cinco sentidos permaneceriam “mudos”, pois são incapazes de correlacionar as informações captadas por eles mesmos. Ademais, cada sentido sequer percebe sua própria operação: a visão não percebe o próprio ato de ver, apenas as coisas vistas; assim como a audição não percebe o ato de ouvir, apenas os sons. Segundo Kant, é preciso, então, haver uma estrutura interna nos indivíduos capaz de sintetizar os dados captados

Cognoscente: que ou quem conhece ou pode conhecer.

► Mulher observa a obra Veneza: a Praça de São Marcos, de Richard Parkes Bonington. Londres (Inglaterra), 2023. Uma pintura reproduz a realidade tal qual ela é?

por meio dos cinco sentidos. De certo modo, a compreensão kantiana do conhecimento combina o empirismo de Hume com o racionalismo de Descartes. Também é possível dizer que a análise de Kant une subjetivismo e objetivismo, no sentido de que o conhecimento objetivo (seguro, verdadeiro) depende de uma estrutura subjetiva.

Segundo Kant, embora Hume tivesse razão ao falar da base sensível como fonte do conhecimento objetivo, ele exagerava ao dizer que o estabelecimento de relações de causalidade entre as coisas é apenas um hábito. Tais relações constituem um dos modos como nosso entendimento reelabora os dados captados por meio dos sentidos. A causalidade não seria uma “coisa” entre outras na Natureza, e nisso Kant concordaria com Hume. Todavia, ela também não é apenas um costume, mas uma das maneiras naturais de estabelecer relações entre os dados captados no tempo e no espaço. A estrutura subjetiva composta das formas da sensibilidade (tempo e espaço) e das categorias do entendimento (as relações de causalidade, entre outras) está presente em todos os seres humanos, pois a comunicação entre eles a comprova. A ela, Kant denomina subjetividade transcendental ou sujeito transcendental.

CONCEITOS ESTRATEGICOS

TRANSCENDENTAL NÃO SIGNIFICA TRANSCENDENTE!

Embora os termos transcendental e transcendente sejam muito parecidos e tenham a mesma raiz, eles não possuem o mesmo significado.

• Transcendente é o nome que se dá a tudo que ultrapassa o que é analisado, por ser maior do que ele sem estar necessariamente separado dele (trans-). Em nosso modo cotidiano de falar, percebemos afirmações como: “Deus é transcendente” ou “não há nada transcendente ao mundo”.

O termo transcendental, por sua vez, também tem o sentido de “ir além” ou “ultrapassar”, mas sem ser algo maior do que aquilo que é analisado. Por exemplo, no modo kantiano de falar, a estrutura subjetiva é transcendental porque, mesmo estando nos indivíduos, ela independe de cada um deles singularmente; ela é comum a todos eles, sem, no entanto, ser alguma coisa em si mesma e maior do que eles. Segundo muitos filósofos, ser ou existir é sinônimo de ser verdadeiro (algo que existe verdadeiramente), ser uno (cada ser é uma unidade), ser belo e ser bom (cada coisa tem um papel na ordem do conjunto e é desejável por si mesma). Diz-se, então, que a veracidade, a unidade, a beleza e a bondade são transcendentais do ser, ou seja, quando se pensa no ser, pensa-se automaticamente na veracidade, na unidade etc. Assim, em vez de ser maior, algo transcendental atravessa (trans-) aquilo de que se fala, sem se confundir com ele, mas estando nele. É do vocabulário medieval que Kant parece ter tomado a noção de transcendental.

Fala-se em sujeito porque, no seu entender, há sempre algo como um “eu” ou um suporte subjetivo, individual, para o conhecimento, e em transcendental porque se trata de uma estrutura comum a todos os indivíduos, algo que os atravessa e é igual para todos. Assim, mesmo que o conhecimento seja sempre um ato pessoal, ele segue uma estrutura comum a todas as pessoas e anterior a toda experiência, sendo a condição mesma para haver experiência.

Dotado de um “aparelho” cognitivo natural e responsável por transformar os dados da impressão sensível em representações do mundo, o ser humano, de acordo com Kant, só conhece de modo seguro, objetivo e mesmo científico aquilo que pode ser captado por esse “aparelho”. É possível pensar outras coisas que não são captadas sensivelmente (como Deus, o Bem, a Beleza e assim por diante); no entanto, tal pensamento não poderá ser considerado objetivo. Por essa razão, Kant distingue a razão, capacidade humana de pensar em geral, do entendimento ou do intelecto, capacidade racional de conhecer de modo objetivo e científico.

Da perspectiva da amplitude da razão, comparada ao intelecto, Kant conclui que a realidade pode ser entendida como algo que vai além do que aquilo que é representado pelo intelecto sintetizador dos dados captados pela sensibilidade. O conhecimento objetivo seria como uma fotografia que interpõe, entre nós e a realidade, um espelho com a imagem que construímos para retratar a realidade. Sobre essa imagem espelhada (consciente dos dados captados e da construção resultante da estrutura transcendental), pode-se falar de modo objetivo, mas a realidade pode ser mais ampla do que a imagem construída.

Para indicar o caráter mais amplo da realidade e delimitar o campo do que pode ser considerado objetivo, Kant criou uma distinção entre aquilo que a realidade mostra de si mesma (e que pode ser conhecido objetivamente por todos) e o que a realidade guarda como seu fundamento (e que está além do que o “aparelho” cognitivo humano pode captar objetivamente). Ao que a realidade mostra de si mesma Kant chamava de fenômeno, servindo-se da palavra grega phainomenon, “aquilo que aparece”.

Trata-se do modo como as coisas conhecidas se mostram para o ser humano (sempre no tempo e no espaço e captadas segundo as categorias do entendimento ou intelecto). Ao fundamento das coisas – impossível de ser conhecido objetivamente, porque não é captado pelo aparelho cognitivo –, Kant chamava númeno , também se servindo de uma palavra grega, noumenon, “a coisa em si”, ou a coisa com que os humanos se deparam, porém tomada em si mesma, ou seja, naquilo que ela é, e não segundo o que os humanos conhecem sobre ela.

É importante ressaltar que o termo fenômeno, utilizado em nosso cotidiano para designar um acontecimento fora do comum, embora contenha a ideia de um “aparecer”, não corresponde

BIOGRAFIA

Immanuel Kant (1724-1804)

Filósofo alemão considerado um dos pensadores mais importantes da Idade Moderna, conhecido pela “virada epistemológica” que procura superar a crise e a dualidade do debate entre o empirismo e o racionalismo da filosofia moderna. Suas obras mais conhecidas são Crítica da razão pura, Crítica da razão prática e Crítica da faculdade do juízo, publicadas pela primeira vez em 1781, 1788 e 1790, respectivamente.

► BECKER, Johann Gottlieb. Immanuel Kant (1724-1804). 1768. Óleo sobre tela. Schiller-National Museum, Marbach (Alemanha).

MUSEU NACIONAL SCHILLER, MARBACH, ALEMANHA

DiCA

• O f ilósofo italiano

Luigi Pareyson (19181991) propõe uma compreensão da verdade imersa na História. Ele investiga o conceito de interpretação como capaz de satisfazer exigências vindas das mais diversas filosofias e das Ciências Humanas.

► PAREYSON, Luigi. Verdade e interpretação

Tradução: Maria Helena Nery Garcez, Sandra Neves Abdo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

DiAlOGANDO

• Em dupla. Reflitam sobre as imagens das páginas 113 e 116. Com uma apresentação sucinta, as duplas mais próximas devem compartilhar suas conclusões, empregando os nomes de Descartes, Hume e Kant.

Resposta pessoal.

ao sentido filosófico propriamente dito. Filosoficamente, em Kant, o fenômeno é aquilo que o ser humano pode conhecer nas coisas, porque é o modo mesmo de elas se mostrarem.

Quanto ao númeno, Kant esclareceu em sua obra Crítica da razão pura, de 1781, que não se trata de um conceito com um significado direto. Isso significa que, ao falar de númeno, não apontamos para alguma “coisa”. Trata-se de um conceito limitativo, ou seja, útil para limitar o campo do conhecimento objetivo, aquele que se refere ao que pode ser apontado.

A concepção kantiana do conhecimento levou grande parte dos historiadores do pensamento a chamá-la de filosofia da representação, isto é, uma filosofia segundo a qual os seres humanos, embora não conheçam a realidade em toda a sua amplitude, conhecem essa mesma realidade, porém não como ela é em si mesma, independentemente de nossa percepção, mas como uma realidade tal como representada por eles.

A atividade de conhecer interpõe algo entre o sujeito cognoscente e a realidade em sua amplitude: a representação, como é possível observar na imagem a seguir. Além disso, como na fotografia, aquilo que é conhecido leva o sujeito a prestar atenção em sua própria maneira de olhar para a realidade, fazendo-o tomar conhecimento também das suas possibilidades e de seus limites implicados no próprio ato de conhecer.

► GRAHAM, Dan. Bisected triangle, interior curve [Triângulo bissectado, curva interior]. Vidro espelhado e aço inoxidável, 220 cm x 713 cm x 504 cm. Instituto Inhotim, Brumadinho (MG), 2002.

Análise crítica da representação: o ceticismo

Kant não foi o primeiro pensador a elaborar uma “filosofia da representação”. Embora sem chegar aos resultados que obteve o filósofo alemão, os pensadores ligados ao estoicismo defendiam algo bastante semelhante. Essa doutrina, fundada por Zenão de Cítio (c. 335 a.C.-263 a.C.), concebe a Filosofia em três partes fundamentais: a Física, centrada na ideia de que o Universo é um todo único e divino; a Lógica ou investigação sobre o conhecimento; e a Ética, referente à busca da felicidade por meio das virtudes e da ataraxia, ou tranquilidade da alma, obtida pelo controle das paixões e pela aceitação do destino (o comportamento da Natureza). Entre os estoicos mais conhecidos estão Crisipo de Solis (c. 279 a.C.-206 a.C.), Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), Epicteto (55-135) e o imperador romano Marco Aurélio (121-180). Segundo a análise estoica, o conhecimento propriamente dito parte da imagem que as coisas imprimem na alma humana, como um carimbo ou a marca que um objeto deixa em uma superfície mole. Essa metáfora usada por Zenão simbolizava o início do conhecimento ou a impressão deixada pelas coisas na alma. Esta, por sua vez, para chegar a ter certeza sobre as coisas, sistematiza as impressões, aceitando aquilo que é verdadeiro, caso ela tenha se preparado para isso. Do contrário, a alma pode errar. Acertar ou errar é emitir um juízo ou um julgamento sobre as coisas, uma afirmação ou uma negação que pode ser verdadeira, caso a alma preparada para a verdade consiga exprimir a verdade das próprias coisas. Essa expressão é o próprio juízo.

A sensação, segundo os estoicos, é uma atividade da alma (afirmação muito semelhante à de Kant, quando ele declarava ser necessária uma estrutura interna ao ser humano capaz de sintetizar os dados que se apresentam aos sentidos). Para que a sensação se transforme em uma percepção verdadeira, ela tem de operar com imagens (impressões) fiéis das coisas.

► Labirinto de espelhos em The Paradox Museum. Inglaterra (Londres), 2024. série de espelhos reflete imagens distorcidas e representa a dificuldade em discernir a verdade. A imagem pode simbolizar a ideia de que as representações são sempre mediadas por percepções e podem gerar dúvida.

BIOGRAFIA

Sexto Empírico (século II-III)

Médico e filósofo grego cujos textos representam um dos maiores exemplos do ceticismo pirrônico. Suas principais obras são Hipotiposes pirrônicas (Esquemas pirrônicos), Contra os gramáticos e Contra os retóricos.

► RIEDEL, Gottlieb Friedrich. Sextus Empiricus. 1801. Gravura, 14,5 cm x 10 cm.

Tão forte quanto a insistência estoica na representação foi a reação crítica por parte dos filósofos céticos. A doutrina filosófica conhecida como ceticismo, fundada por Pirro de Élis (360 a.C.-270 a.C.), fundamentava-se na tese de que, se a verdade existe, ela não foi nem pode ser encontrada. O filósofo cético é um “exercitador” do pensamento que não se compromete com nenhuma afirmação dogmática (defensora da existência da verdade).

De acordo com Sexto Empírico (século II-III), um dos principais representantes do ceticismo antigo, a ideia mais importante do pensamento pirrônico se originou de uma observação da variedade de respostas dadas pelos filósofos em suas tentativas de explicar o mundo (conhecê-lo e construir sobre ele um discurso ou uma expressão correta). Os céticos observaram que os filósofos apresentavam razões muito diferentes para justificar suas afirmações sobre a realidade. Algumas dessas afirmações, mesmo justificadas razoavelmente, eram tão aceitáveis quanto outras que exprimiam, muitas vezes, dados contrários. Outras dessas afirmações simplesmente podiam ser descartadas por não serem bem justificadas ou por poderem ser feitas ao mesmo tempo que afirmações contrárias a elas. Com base nas concepções filosóficas conflitantes, e muitas vezes injustificadas ou igualmente justificáveis (apesar de chegarem a conclusões diferentes), os céticos passaram a explicar que, se a verdade existe, ela ainda não foi encontrada e que talvez nem seja possível chegar a ela. Assim, seria mais adequado evitar toda afirmação sobre a verdade das coisas, alcançando apenas um tipo de conhecimento que permita ao ser humano viver sua vida do melhor modo possível. A maneira, portanto, para evitar essa perturbação seria conter o impulso de fazer um juízo sobre a verdade das coisas. A essa contenção do juízo, os céticos denominavam epoché

► Relógio de mesa antigo em madeira, sem vidro, chave e ponteiro. O tempo congelado, representado por um relógio sem ponteiros, ilustra o conceito de epoché como uma pausa na busca de uma resposta ou decisão, isto é, a contenção do juízo.

A filosofia cética consistia em um exercício constante de se apegar apenas aos fenômenos das coisas (aquilo que aparece), sem buscar a “verdade” sobre o modo de ser delas, vício dos filósofos dogmáticos, isto é, daqueles que afirmavam verdades. A dúvida, desse ponto de vista, poderia dar mais paz aos seres humanos do que a verdade. Por ser um exercício constante da dúvida e da contenção do juízo, a filosofia mais coerente seria tão somente esse mesmo exercício, o ceticismo (palavra originada do termo grego sképsis, “habilidade de examinar”).

No que diz respeito à concepção estoica do conhecimento como representação, alguns seguidores do pensamento cético, principalmente Carnéades (c. 219 a.C.-129 a.C.), afirmaram que é impossível separar representações verdadeiras de representações falsas, pois, no limite, a nenhum ser humano é dada a possibilidade de esclarecer definitivamente a base ou o fundamento que garante essas representações. Para cada afirmação feita por alguém sobre tal fundamento, e comparando-se sua afirmação com a de outro alguém, será possível buscar o que permite que uma representação seja considerada mais adequada do que a outra.

Além disso, as representações sempre pressupõem aquilo que querem representar, não chegando a dar uma razão boa o bastante para se impor como representação verdadeira. É como se alguém dissesse que a sua representação é a melhor porque representa melhor aquilo que é conhecido. Ora, quando se busca saber por que uma representação é melhor, é insuficiente dizer que é melhor porque é essa representação, e não aquela. É insuficiente dizer que “é melhor porque é melhor”.

Diante dessas dificuldades, Carnéades propõe compreender o conhecimento como probabilidade. Em vez de chamar um conhecimento de verdadeiro ou de falso, seria mais adequado chamá-lo de provável ou de mais provável e menos provável.

Por conseguinte, Carnéades é um exemplo do fato de que os céticos, em vez de negarem toda possibilidade de conhecimento, negavam a confiança na passagem da aparição das coisas (o que é observável nelas ou os fenômenos) às afirmações sobre o modo de ser delas. Essa passagem não seria justificada.

O que os céticos não defendem é, portanto, o assentimento voluntário. Em outras palavras, os céticos não acreditam que os humanos possam decidir se aceitam ou não as impressões sensíveis. Elas simplesmente ocorrem, e a aceitação é imediata, involuntária.

Discutir a possibilidade de aceitar ou não as impressões sensíveis era a crença estoica, que considerava a representação como verdadeira ou falsa de acordo com o papel da escolha humana em assentir a ela ou não como representação da coisa conhecida.

BIOGRAFIA

Carnéades (c. 219 a.C.-129 a.C.)

Filósofo grego nascido em Cirene (território na atual Líbia), membro da Academia fundada por Platão, Carnéades, embora não tenha deixado escritos, foi um dos filósofos que desenvolveram o ceticismo acadêmico, concentrando-se na concepção do conhecimento como algo apenas provável.

► RIEDEL, Gottlieb Friedrich.

Carnéades. 1801. Gravura, 14,5 cm x 10 cm.

COLEÇÃO PARTICULAR

Os céticos criticam fortemente a representação tal como concebida pelos estoicos, embora mantenham certa ideia de representação, aquela que as coisas produzem imediatamente em quem as conhece. Esse aspecto do pensamento cético exerceu forte influência na História da Filosofia e é claramente presente em várias vertentes da reflexão contemporânea. É possível mesmo afirmar que o pensamento atual é envolvido por debates semelhantes aos promovidos pelos céticos antigos (céticos pirrônicos).

Vários pensadores têm defendido que a maneira mais adequada de evitar cair em discussões intermináveis e em problemas insolúveis é conceber o conhecimento como uma crença justificada. Mais do que uma simples crença, impossível de ser avaliada pelas outras pessoas, a crença em sentido cético se esforça para se basear em razões que reduzam ao máximo possível a margem de erro no ato de pensar sobre as coisas e falar sobre elas. Entre essas razões, a principal continua a ser a aceitação da realidade em seu modo de aparecer para os seres humanos. Ao se transformar em discurso ou em frases sobre o mundo, o conhecimento deve ser justificado, isto é, deve apresentar boas razões para ser tomado como conclusivo (sem a possibilidade explícita do erro).

Na História da Filosofia, o preceito cético que leva a evitar a precipitação permaneceu, e certamente permanecerá, como ponto de referência para a reflexão sobre a atividade de conhecer, assim como um alerta contra a aceitação apressada de visões de mundo não justificadas. Trata-se de ter o mundo diante dos olhos ou, como explica o filósofo brasileiro Oswaldo Porchat Pereira (1933-2017), de respeitar o mundo e sua maneira de aparecer.

Insolúvel: sem solução.

► PIRRO de Élis, filósofo da Grécia antiga. In: STANLEY, Thomas. The history of philosophy: containing the lives, opinions, actions and discourses of the philosophers of every Sect, illustrated with effigies of divers of them [A história da filosofia: contendo a vida, opiniões, ações e discursos dos filósofos de cada escola filosófica, ilustrada com figuras de diversos deles]. [S. l.: s. n., ca. 1655].

Porchat Pereira fundou uma releitura do pirronismo antigo, chamada de neopirronismo, atitude filosófica que defende a visão comum do mundo, lembrando, porém, que sequer essa visão precisa ser tomada necessariamente como verdadeira. A visão comum do mundo – que obtemos sem ceder ao que os céticos considerariam as questões artificiais dos filósofos dogmáticos – são válidas exatamente como crenças; no entanto, trata-se de crenças que permitem viver em paz e agir no mundo.

► Oswaldo Porchat Pereira, ex-professor da Universidade de São Paulo (USP) e criador do Centro de Linguagem e Epistemologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é um dos mais destacados historiadores da Filosofia, com reconhecimento mundial, sobretudo pela sua produção sobre o ceticismo.

Os céticos rejeitam o aparente?

Aqueles que afirmam que o cético rejeita o aparente […] não prestaram atenção ao que dissemos. Pois, como dissemos antes, não rejeitamos as impressões sensíveis […] que nos levam ao assentimento involuntário […] e estas impressões são o aparente […]. E quando investigamos se as coisas na realidade […] são como parecem ser, aceitamos o fato de que aparecem; e o que investigamos não diz respeito à aparência, mas à explicação da aparência, e isto é diferente de uma investigação sobre o aparente ele próprio. Por exemplo, o mel nos parece doce (e aceitamos isto na medida em que temos uma percepção sensível da doçura), porém se é doce em si mesmo é algo questionável, pois não se trata mais de uma aparência, mas de um juízo sobre o aparente. E mesmo se formulamos argumentos sobre o aparente, isto não se deve à intenção de rejeitarmos as aparências, mas apenas de mostrarmos a precipitação do dogmático, pois se a razão nos ilude de tal modo que nos tira até mesmo o aparente de debaixo de nossos olhos, então temos de tomar cuidado no caso das coisas não evidentes […] para não nos precipitarmos ao segui-la.

SEXTO EMPÍRICO. Hipotiposes pirrônicas: livro I. Tradução: Danilo Marcondes. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v. 9, n. 12, p. 115-122, jun. 1997. p. 119.

EXERCICIO Não escreva no livro. A

Assentimento: concordância; aceitação.

Involuntário: automático; algo que não depende da vontade nem do juízo.

Consultar orientações no Manual do Professor

1. Em que consiste a epoché cética e qual seu objetivo?

2. Explique por que, segundo Carnéades, é mais adequado falar de conhecimento provável, e não de conhecimento verdadeiro.

3. Em sentido cético, o que é uma crença justificada?

É legítimo duvidar do conhecimento?

É possível evitar o ceticismo? Leia o texto a seguir.

Para evitar o ceticismo, é preciso argumentar em favor de uma das três teses a seguir (ou até mesmo em favor das três): 1) contra as aparências, nós sabemos (ou pelo menos podemos saber) que as hipóteses céticas são falsas; 2) contra as aparências, de nossa ignorância desse fato não se conclui que ignoramos também um grande número de coisas nas quais cremos ordinariamente; 3) contra as aparências, essas três teses não são finalmente contraditórias.

Mas, como insiste K. de Rose (no artigo ‘Resolver o problema cético’, publicado em Philosophical Review 104, 1995, p. 1-52), ‘buscando uma solução a esse enigma, devemos procurar uma explicação de por que caímos, para começar, na armadilha cética, e não simplesmente dedicar-nos a fazer uma escolha entre essas três maneiras desagradáveis de sair da armadilha. Devemos explicar como duas premissas que, juntas, produzem uma conclusão tão inacreditável podem elas mesmas parecer-nos tão plausíveis. É somente depois de obter essa explicação que podemos proceder com confiança para libertar-nos da armadilha’.

TIERCELIN, Claudine. Le doute en question: parades pragmatistes au défi sceptique. Paris: Éditions de l’Éclat, 2005. p. 53-54. Tradução nossa.

BIOGRAFIA

Claudine Tiercelin (1952-)

Filósofa francesa, dedica-se às questões teóricas mais polêmicas da atualidade, como a dúvida, a certeza, a verdade, o conhecimento, a linguagem. Tornou-se membra do renomado Collège de France, no qual professores aposentados, porém ativos e com um trabalho impactante em suas áreas, são convidados a ministrar cursos livres.

► A filósofa Claudine Tiercelin.

Realidade e linguagem

O tema da percepção das coisas e suas consequências para a representação do mundo despertou de modo especial o interesse do filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951), responsável por um dos estilos mais influentes do pensamento contemporâneo.

CLAUDINE TIERCELIN/COLLÈGE DE FRANCE, PARIS, FRANÇA

Wittgenstein entendeu que a história do pensamento filosófico, principalmente na modernidade, concebia o conhecimento humano em função das possibilidades e dos limites do sujeito, ou seja, da pessoa que conhece. Em outras palavras, a maioria dos filósofos, para explicar o conhecimento, concentrava-se em uma análise das capacidades humanas, recorrendo a noções como sensação, intelecto ou entendimento, razão, subjetividade, alma etc.

No entanto, algumas situações cognitivas chamaram a atenção de Wittgenstein, levando-o a compreender o conhecimento de um modo inteiramente original. No livro Investigações filosóficas, publicado postumamente em 1953, o pensador austríaco explora um caso em que uma mesma coisa pode ser percebida de modos diferentes, ou seja, uma mesma coisa pode ser “dois objetos diferentes” de percepção.

O que é possível observar na ilustração a seguir?

► KANINCHEN und Ente [Coelho e pato]. Fliegende Blätter, Munique, 23 out. 1892. Desenho publicado pela primeira vez em jornal satírico alemão.

Em 1900, Joseph Jastrow (1863-1944), psicólogo polonês naturalizado estadunidense, reproduziu o desenho do “pato-coelho” em seu livro Fato e fábula em Psicologia , para ilustrar a importância da fisiologia humana e do contexto cultural na percepção visual. Jastrow utilizava a imagem para perguntar: cremos no que vemos ou vemos o que cremos?

Se você viu um pato na ilustração, também pode ver um coelho; se viu um coelho, também pode ver um pato.

► À esquerda da imagem, percebemos o bico de um pato; à direita, identificamos o contorno de sua cabeça, com o olho no meio.

► Ao focarmos o olhar mais para a direita da imagem, notamos o contorno do focinho e da boca de um coelho; o que era o bico de um pato agora é percebido como as duas orelhas do coelho.

Sabendo, então, que a mesma figura pode gerar duas percepções diferentes e igualmente legítimas, você diria que a frase “isto é um pato” é verdadeira, enquanto “isto é um coelho” é falsa?

O fato é que a frase “isto é um pato” é tão verdadeira quanto a frase “isto é um coelho"; portanto, nenhuma das duas é falsa. Essa experiência perceptiva mostra que não existe simplesmente um “ver”, e sim um “ver como”. Quando percebemos algo, nós o percebemos sempre “como” algo, e tudo o que pretendermos afirmar sobre a verdade ou a falsidade de nossa percepção dependerá do que dissermos sobre ela.

A análise de Wittgenstein sob o aspecto do respeito ao mundo tal como ele se mostra revela uma semelhança bastante forte com o ceticismo, embora o pensador austríaco não fosse um cético. Outra semelhança está em se recusar a propor uma teoria sobre as coisas e mesmo sobre o conhecimento. Segundo Wittgenstein, é mais razoável que a prática filosófica aceite que explicar o mundo é tarefa da Ciência, não da Filosofia. A esta cabe “curar” o ser humano de ilusões, como a de acreditar que é filosoficamente possível conhecer “tudo”. Nesse aspecto, há também semelhanças entre ele e Kant.

Contusão: lesão causada por golpe ou impacto.

No entanto, Wittgenstein adota uma postura diferente tanto dos céticos como de Kant. No tocante à sensação ou à percepção sensível, por exemplo, ele considera um equívoco discutir essa operação como se o seu resultado fosse mais uma “coisa” entre as “coisas” do mundo. Em outras palavras, ele denunciava o erro de crer que a sensação ou a operação pela qual os seres humanos percebem as coisas físicas tem vínculos claros e imediatos com as próprias coisas físicas. Esse erro levaria a pensar em “representações das coisas”, como se uma representação fosse também uma “coisa” em si mesma (um resultado deixado na mente, uma impressão, um “algo”). Esse caminho de investigação seria sem saída ou levaria, no máximo, à confusão das explicações filosóficas que se perdem em teorias sobre o que não cabe a elas explicar. A Filosofia, então, em vez de propor teorias, deveria curar o pensamento das “contusões” que muitos filósofos fizeram o próprio pensamento sofrer.

Wittgenstein considerava impossível entender a afirmação de “estruturas” do sujeito e de “representações”. Se a experiência da dupla percepção da mesma coisa (como no caso da figura do pato-coelho) mostra que uma mesma coisa pode produzir percepções diferentes, uma explicação que recorresse à estrutura mental dos sujeitos e a representações fixas seria inadequada.

Em vez desse tipo de explicação, Wittgenstein encontrou um campo de investigação no qual a Filosofia poderia desempenhar sua própria tarefa: a da linguagem, modo de ser que caracteriza os seres humanos de maneira especial.

► Cientistas observam camundongo em laboratório. Para Wittgenstein, a ciência é encarregada de explicar o funcionamento do mundo, e a Filosofia tem a tarefa de desmascarar ilusões e confusões linguísticas ou conceituais.

Páginas de partitura. Nossas afirmações sobre o mundo assemelham-se, segundo Wittgenstein, à partitura musical: a escrita musical não é a música propriamente dita, mas uma imagem dela. Assim também nossas afirmações sobre o mundo são a imagem do mundo.

Wittgenstein percebeu que apenas quando alguém exprime sua percepção do mundo é que se pode avaliar se essa percepção tem ou não significado e sentido, se é correta ou equivocada. É apenas pelo uso de palavras e frases que se pode avaliar a operação humana de perceber e conhecer; portanto, para analisar o conhecimento humano de modo plausível, a única base possível é a investigação da linguagem.

Costuma-se dizer que Wittgenstein promoveu uma virada linguística na Filosofia, substituindo as especulações sobre o modo de ser das coisas pelo funcionamento da linguagem. Segundo Wittgenstein, nossos próprios “estados mentais” consistem em formas linguísticas: as palavras que são nomes de coisas têm significados e as frases (proposições) têm sentido, pois, ao relacionar palavras (significados), elas reproduzem a realidade, como em uma pintura.

Para Wittgenstein, a linguagem é mais do que um instrumento do qual os seres humanos se servem para expressar aquilo que vivenciam. A linguagem é o próprio modo de ser especificamente humano; é o pensamento ou a capacidade de construir proposições com sentido sobre o mundo. O pensamento, por sua vez, é uma proposição com sentido, e o conjunto das proposições é a linguagem.

Para entender um pouco melhor o que isso significa, tente pensar em algo sem usar palavras (significados) e sem relacionar esse algo

Plausível: aceitável; razoável.

Aforismo: sentença ou frase enunciada com poucas palavras e com o objetivo de resumir uma posição nova sem cair em modos comuns de expressão.

► Placas de sinalização em São Sebastião (SP), 2023. Para Wittgenstein, a linguagem está em correlação direta com o mundo, e as palavras são nomes que exprimem diretamente as coisas e seu significado, como as placas.

com outro algo (proposição/sentido). Mesmo que você esqueça o nome que uma palavra dá a algo, você concorda que sempre precisará do significado desse algo para pensar nele?

O primeiro exame ou a primeira crítica da linguagem feita por Wittgenstein encontra-se em seu livro Tractatus logico-philosophicus, de 1921, obra escrita em aforismos e na qual o filósofo concebe a linguagem em correlação direta com o mundo: haveria uma estrutura comum entre o mundo e a sua expressão pela linguagem. As palavras, que são nomes, exprimem diretamente as coisas, e seu significado são as próprias coisas que elas designam. Já as proposições (frases que têm sentido), figuram casos, fatos ou possíveis estados de coisas, que são compreensíveis pela projeção de casos ou fatos já conhecidos.

Uma consequência direta dessa concepção do conhecimento ou da linguagem é a determinação dos limites do conhecer ou do fato de sermos “seres de linguagem”: apenas aquilo que é dizível (pensável e exprimível pela figuração das proposições e nomes) pode representar o conhecimento. A linguagem, assim, contém os limites do mundo. Tudo o que não pode ser expresso pela linguagem, ou seja, que não remete diretamente a uma coisa percebida na realidade (como os conteúdos da ética, da estética, da religião e da política), deixa de ser considerado como objeto de conhecimento propriamente dito. Wittgenstein tinha, é certo, preocupações éticas, estéticas, políticas e mesmo religiosas, mas, à semelhança de Kant, pretendia apontar para o fato de que o conhecimento, cujo melhor modelo é a ciência, não tem condições de tratar objetivamente (pela linguagem) dessas preocupações. Em outras palavras, os termos éticos, estéticos etc. são destituídos de significado, e, por conseguinte, as proposições que empregam esses termos são destituídas de sentido. Compreende-se, assim, o aforismo final de seu livro, que diz que se deve calar sobre aquilo de que não se pode falar.

Wittgenstein reconhecia que preocupações desse tipo (éticas, estéticas, políticas, religiosas) são as que costumam mais importar na vida. No entanto, elas devem ser resolvidas na vida íntima dos indivíduos, e nunca ter a pretensão de se elevar em formas de conhecimento, supondo que haveria algum grau de universalidade compreensível por todos os outros indivíduos.

Mais tarde, em sua obra Investigações filosóficas de 1953, Wittgenstein atualizou sua primeira concepção da linguagem. Por causa das diferenças de posição, costuma-se falar em “primeiro Wittgenstein” (Tractatus logico-philosophicus ) e em “segundo Wittgenstein” Investigações filosóficas), mas seria inadequado afirmar que o filósofo abandonou completamente suas primeiras posições ou seus “graves erros”, como ele dizia. Na verdade, a concepção de linguagem apresentada na primeira fase de seu pensamento permanece como pano de fundo. As palavras deixam de ser entendidas como simples “etiquetas” das coisas, embora continuem a remeter a elas. A diferença é que o seu significado depende do uso que se faz delas e do “jogo” que se realiza de acordo com regras conhecidas pelos jogadores. Se alguém diz “água”, por exemplo, isso pode ser interpretado de diversas maneiras e em função do uso em determinado momento. Se a pessoa está no deserto e grita: “água!”, provavelmente se entende que ela pede socorro, mas pode ser o caso de ela ter encontrado um oásis e fazer uma exclamação de alegria. Essa possibilidade de variação leva a um rearranjo das regras do jogo linguístico e a uma nova prática de compreensão. Se a pessoa, porém, estiver na cidade, pode ser que queira apontar para um incêndio, mas também pode ser que simplesmente queira um copo d’água. O significado de “água”, portanto, depende dos usos ou jogos de linguagem em que a palavra é usada.

► Duas pessoas jogam xadrez. Os jogos têm regras conhecidas pelos jogadores.

Assim, no “segundo Wittgenstein”, a linguagem passa a ser entendida como prática humana que se constitui de vários usos determinados pelas variadas formas de vida. Seu funcionamento depende do aprendizado, que também pode ser bastante diferente em função dos costumes dos indivíduos que adotam as mesmas formas de vida. Wittgenstein enfraquece mais ainda a concepção do conhecimento em função da estrutura mental dos sujeitos ou da psicologia da representação e insiste no caráter social da linguagem.

Por sua vez, o caráter social torna também menos rígidos os limites estabelecidos no “primeiro Wittgenstein”: embora no campo do conhecimento objetivo seja preciso jogar um jogo universal e de

modelo científico, muitos outros jogos podem ser realizados de acordo com outras formas de vida. Wittgenstein, aliás, dá exemplos de jogos em que há uma produção social de sentido por meio do conhecimento das regras por parte dos jogadores: dar ordens (comandar) e obedecer; relatar um acontecimento; levantar hipóteses e prová-las; representar como no teatro; contar uma piada; pedir; agradecer; orar etc. As proposições vão além da simples designação de coisas.

O entendimento ou o intelecto, com Wittgenstein, deixa de ser uma capacidade humana “natural” (mente, alma etc.) para ser o resultado de um conjunto de comportamentos aprendidos socialmente, com regras também socialmente construídas. Mais do que uma “parte” do ser humano, o entendimento torna-se o trabalho social da linguagem. A Filosofia, por sua vez, teria o papel de compreender esse trabalho ou a construção dos comportamentos linguísticos, produzindo uma visão de conjunto que permita deixar claras as conexões internas de um mesmo jogo de linguagem ou mesmo entre diferentes jogos de linguagem.

Essência da proposição e do mundo

['Primeiro' Wittgenstein]

O mundo é tudo que é o caso.

[ ]

O que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas. [ ]

O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas).

[ ]

A figuração é um modelo da realidade.

[ ]

O que a figuração representa é seu sentido.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução: Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 2001. p. 135, 143, 147.

Jogos de linguagem

['Segundo' Wittgenstein]

[…] Quantas espécies de frases existem? Afirmação, pergunta e comando, talvez?

– Há inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de emprego daquilo que chamamos de ‘signo’, ‘palavras’, ‘frases’. E essa pluralidade não é nada fixo, um dado para sempre; mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e são esquecidos. […]

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução: José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção Os pensadores: história das grandes ideias do mundo ocidental, p. 22).

1. O que pretendia Wittgenstein com o exemplo do pato-coelho?

Consultar orientações no Manual do Professor

2. Por que o “primeiro Wittgenstein” entende as palavras como “etiquetas”?

3. Como a linguagem é entendida pelo “segundo Wittgenstein”?

Realidade e consciência

Outra maneira filosófica de conceber a atividade de conhecer, bastante influente no pensamento contemporâneo, consiste em chamar a atenção para a consciência que caracteriza os seres humanos.

A ênfase na consciência apresenta certas semelhanças com o trabalho de Wittgenstein, embora o filósofo austríaco não encontrasse um significado para esse termo e, portanto, não acreditasse na existência de uma capacidade ou de uma estrutura subjetiva chamada consciência . A semelhança vem do fato de que, assim como Wittgenstein rompe com a compreensão do conhecimento entendido como representação da realidade e esclarece a centralidade da linguagem, também os filósofos da consciência abandonam a ideia de representação e passam a entender o conhecimento como uma relação estabelecida entre dois polos: de um lado, há aquele ou aquela que conhece e, de outro, há a presença da coisa conhecida (“presença presente”, com o conteúdo diante de quem conhece, ou “presença presentificada”, quer dizer, tornada presente pela memória de algum conteúdo já conhecido).

R ealidade e consciência na fenomenologia

A presença das coisas mesmas torna-se a chave de compreensão da atividade do conhecimento. Como a presença ou a aparição das coisas é o que se denomina fenômeno em Filosofia, dá-se o nome de fenomenologia a uma das mais destacadas tendências filosóficas que entendem o conhecimento como relação entre a consciência e o fenômeno daquilo que é conhecido. Estudar fenomenologia significa entender o modo como as coisas se apresentam a quem as conhece. Trata-se de ter “consciência da consciência”.

O primeiro filósofo a consagrar o uso do termo foi Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), mas a fenomenologia como doutrina filosófica desenvolvida no século XX foi proposta por outro pensador alemão, Edmund Husserl (1859-1938). Em Husserl, a Filosofia teria a possibilidade de se tornar um conhecimento rigoroso, à maneira de uma ciência, ao esclarecer a consciência ou o modo como os fenômenos se doam a quem os conhece.

BIOGRAFIA

Edmund Husserl (1859-1938)

Filósofo e matemático alemão, Husserl fundou a fenomenologia como nova corrente filosófica, entendendo a consciência como coautora dos dados vindos da experiência sensível. Suas principais obras são Investigações lógicas, Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica e A crise da humanidade europeia e a Filosofia, originalmente publicadas em 1900, 1913 e 1954, respectivamente.

REPRODUÇÃO/COLEÇÃO

A análise do conhecimento feita por Husserl leva-o a concluir que, mais do que uma “aparelhagem” humana, a consciência é, ela mesma, uma relação ou uma atividade: a atividade de estar na presença daquilo que é conhecido, reagindo ativamente a ele. Os fenômenos, por sua vez, em vez de serem marcas ou impressões deixadas pelas coisas na consciência de quem as conhece, são as próprias coisas conhecidas e em cuja presença está a atividade da consciência.

Diferentemente de Wittgenstein, Husserl considera possível investigar o dinamismo da consciência entendida como capacidade, pois, embora ela seja o encontro de uma pessoa com a presença das coisas conhecidas, tal pessoa é dotada de possibilidades naturais. Dizer isso, porém, não faz de Husserl um kantiano, pois ele não entende a consciência como uma estrutura que representa as coisas e se relaciona com elas por meio da representação, mas como um conjunto de possibilidades que permitem estar na presença das coisas mesmas e relacionar-se com elas diretamente. Por outro lado, Husserl também não entende o conhecimento como um retrato da realidade. O conhecimento, sendo uma relação, implica que a consciência participa ativamente dele. Husserl rejeita, ainda, o empirismo ou a compreensão do intelecto como uma tabula rasa ou uma folha em branco na qual as impressões inscrevem dados. Segundo Husserl, nem mesmo um empirista convicto poderia entender de fato o pensamento empirista, pois, embora se possa crer que a experiência baseada nos cinco sentidos seja a única fonte de conhecimento seguro, deve-se notar que essa crença é impossível de ser comprovada pela própria experiência empírica. Por meio dos cinco sentidos só se captam experiências singulares (esta cor, este odor, este som etc.), nunca regras gerais como aquela segundo a qual todo conhecimento seguro baseia-se nos dados captados pelos

► Discípulos de Edmund Husserl, entre eles, em primeiro plano, a filósofa e cientista Hedwig Conrad-Martius (1888-1966). Alemanha, 1911.

cinco sentidos. Em outras palavras, o mundo físico dá fatos, não regras. O empirismo, portanto, acreditando provar uma “lei empírica”, sem, contudo, poder provar empiricamente essa lei, mostra-se contraditório. Por conseguinte, para Husserl, mesmo o ceticismo é contraditório, pois também tem uma base empirista.

Husserl compreende o ser humano como um corpo consciente, uma realidade complexa ou uma realidade psicofísica composta de corpo (materialidade), alma (vitalidade e capacidade de ter emoções) e espírito (consciência). Tais dimensões existem em estreita habitação mútua (um habita o outro), de modo que a consciência, mais do que uma atividade de uma “alma” ou de um “espírito” que se serve de um corpo (assim como o piloto de um avião ou o motorista de um automóvel), revela-se como a atividade do ser humano inteiro, em um acionamento íntimo de sua dimensão física (corpo), psíquica (alma) e cognitivo-livre (espírito).

Para Husserl, não basta dar explicações para o funcionamento da consciência, é preciso investigar o modo como as coisas aparecem para quem as conhece. A razão mais clara para o projeto husserliano vem da sua observação de que nunca há consciência “vazia” ou consciência sem conteúdo. Consciência é sempre consciência de alguma coisa . Ter consciência é estar sempre em uma relação com algo. Seria sem sentido, portanto, pretender que a razão se analise a si mesma, em sua estrutura íntima, porque a consciência só pode ser investigada enquanto está em ação. Ora, para estar em ação, ela precisa ter algum conteúdo diferente dela mesma (ser consciência de alguma coisa).

Assim, Husserl passa a dar sentidos novos a palavras antigas, como experiência, que deixa de ser a captação de coisas para ser a vivência de uma relação com as coisas. Aliás, de modo geral, em fenomenologia, experiência pode ser sinônimo de consciência e vivência (ou vivido).

Ao discorrer mais diretamente sobre a consciência, Husserl identifica três funções conscientes: 1) cada uma das vivências; 2) o conjunto ou “tecido” formado pelas vivências na unidade de seu fluxo, como na correnteza de um rio; 3) a percepção interna das vivências ou a “vivência das vivências” (consciência de si ou autoconsciência).

As vivências, por sua vez, são percepções, imaginações, ficções, pensamentos conceituais, dúvidas, hipóteses, suposições, alegrias, sofrimentos, esperanças, temores etc. As vivências são tudo o que as pessoas percebem.

► Homem idoso observa o horizonte em praia. Para Husserl, a consciência está sempre dirigida para algo, nunca vazia, e representa a relação ativa entre o sujeito e um objeto presente ou presentificado pela memória. A vastidão do horizonte ilustra o conceito de consciência como uma abertura para as coisas que aparecem.

Originariedade: que está na origem de algo. Sui generis: peculiar, singular, exclusivo.

Husserl entende que o hábito de dar nomes às vivências depende dos usos linguísticos e dos costumes construídos socialmente, mas defende que uma pessoa que nunca tenha tido dor de dente, por exemplo, pode entender em primeira pessoa a frase “tenho dor de dente”, pois essa pessoa pode muito bem associar a ideia de dor com a ideia de dente e obter compreensão da frase “tenho dor de dente”. A essa possibilidade, Husserl chamava empatia ou intropatia, isto é, um “sentir dentro (de outra pessoa)”, um “perceber algo dentro de nós” que é vivido “dentro de outrem”. No limite, ninguém precisa necessariamente estar triste para entender a tristeza de alguém. Somos todos habitados pela ideia de tristeza, o que se confirma quando todos se põem a falar a mesma língua e entendem suas experiências, apesar de cada experiência ser única e irrepetível. A empatia, assim, diferentemente da simpatia ou da compaixão, consiste na compreensão da vivência alheia sem viver exatamente aquilo mesmo que a outra pessoa vive. Trata-se, como dirá a filósofa Edith Stein (1891-1942), do ato de consciência da consciência alheia.

A empatia

Quando vivo na alegria de outrem, não sinto uma alegria originária, ela não brota viva de meu eu, ela sequer possui o caráter de ter-sido-então-viva como uma alegria da qual nos lembramos. Mas ela nada tem que ver com uma alegria simplesmente imaginada e sem vida real. Em revanche, é o outro sujeito que possui a originariedade, embora eu mesma não a possua. A alegria que nele jorra é uma alegria originária, embora eu não a viva como originária. […] É assim que temos na empatia uma espécie de atos de experiência sui generis […].

STEIN, Edith. Zum problem der einfühlung. Haia: Buchdruckerei des Waisenhauses, 1917. p. 7. Tradução nossa.

BIOGRAFIA

Edith Stein (1891-1942)

Filósofa e teóloga alemã, discípula e assistente de Edmund Husserl, contribuiu para o aprofundamento do conceito de empatia e para a busca de fundamentação filosófica para a Psicologia e as Ciências Humanas. Suas principais obras são O problema da empatia (1917), Contribuições para a fundamentação f ilosófica da psicologia e das ciências do espírito (1922), Estrutura da pessoa humana (1932) e Ser finito e ser eterno (1941).

► Edith Stein, conhecida como a “filósofa da empatia”, fotografada na Alemanha, c. 1912.

A empatia é a chave para explicar como é possível que somos capazes de compreender os outros, mesmo não tendo nenhuma garantia de que aquilo que percebemos corresponde ao que eles realmente vivem. Embora cada pessoa tenha sua percepção individual do mundo, é possível constatar, pela comunicação, que o conteúdo percebido é o mesmo para pessoas diferentes. Por conseguinte, constata-se também que as coisas percebidas existem por si mesmas e “fora” da consciência das pessoas que as percebem. Mesmo nas vivências ou nas experiências mais simples do cotidiano, quando duas ou mais pessoas dizem perceber uma cor, elas se dão conta de que têm uma percepção comum, embora essa percepção seja vivida apenas individualmente. Ora, como elas podem perceber individualmente a cor e perceber, ao mesmo tempo, que suas percepções coincidem? Em Husserl, isso é possível porque os seres humanos possuem um modo comum de ser conscientes. Esse modo de ser consciente manifesta-se e desenvolve-se na intersubjetividade. É no encontro de sujeitos que se dá a percepção do que há de comum.

É também a intersubjetividade que permite afirmar que o mundo não é uma simples “invenção” da consciência e que o modo comum de ser consciente é mais do que o mero resultado da educação ou do trabalho social. A educação pode variar de cultura para cultura (de jogo de linguagem para jogo de linguagem, como diria Wittgenstein), mas vivências como dor, alegria etc. permanecem fundamentalmente as mesmas para todos. Há, então, segundo Husserl, um modo de ser, que é também um modo de se relacionar com tudo o que existe. Numa palavra, há consciência.

► A intersubjetividade é a atividade cognitiva realizada com base na reciprocidade, no encontro de sujeitos.

MIRELLA SPINELLI/ACERVO DA ARTISTA

Para Husserl, é de extrema importância a atividade filosófica de investigar a consciência. Seu trabalho pessoal foi esclarecer o modo de ser consciente, independentemente dos conteúdos específicos de cada ato consciente. Era o que ele chamava de consciência pura (pura ou destituída de conteúdos) ou eu puro (o “eu” que é comum a todos os “eus” empíricos, individuais).

Entretanto, a análise da consciência pura só pode ser feita com base nos fenômenos, ou seja, no modo como tudo aparece para a consciência. Em outras palavras, se tomarmos a palavra objeto como sinônimo dos conteúdos ou fenômenos que se doam à consciência (revelando, portanto, um sentido), será possível dizer que, para Husserl, a análise da consciência é uma análise também dos objetos em seu modo de aparecer.

Husserl mostra que a percepção humana opera de um modo próprio. Esse modo é constante e, em certa medida, independe da formação social. Quando se diz, por exemplo, que uma parede é amarela, há uma série de modos de percepção implicados nessa afirmação. Para identificar tais modos, pode-se praticar a variação , ou seja, a atividade de imaginar mudanças na percepção, até chegar a dados sem os quais a percepção deixaria de fazer sentido. Focando a atenção na parede, pode-se imaginá-la vermelha, branca, verde etc. Não se requer uma cor específica para se referir à parede. No entanto, focando a atenção na cor, pode-se imaginá-la fora da parede. Ela pode ser associada ao chão, a um papel, a um carro etc. Assim, segundo Husserl, a prática da variação leva a entender que “cor” é algo existente sempre em unidade com uma superfície.

Para tudo o que existe é possível pensar na sua essência. No caso de um som, por exemplo, é impossível imaginá-lo sem uma duração. A variação chega, assim, a limites que devem ser respeitados por tudo aquilo que existe. Em outras palavras, tudo o que existe revela sempre um modo próprio de se apresentar à consciência. Esse modo próprio é o que Husserl chama de essência ou ideia. Em sentido husserliano, a essência ou ideia é diferente da Essência ou Ideia platônica e da essência ou ideia entendida como construção no uso moderno do termo. Ela é o modo de ser das coisas em sua autodoação à consciência. Esse modo de as coisas se apresentarem à consciência determina, por sua vez, o modo de acontecer da própria consciência, que, em vez de construir representações das coisas, relaciona-se com elas e na presença delas. Por isso, a filosofia husserliana ficou conhecida pela proposição de voltar às coisas mesmas.

A unidade radical entre consciência e objeto é chamada por Husserl de intencionalidade. Trata-se do direcionamento (rumo ao objeto) no ato da intenção, conceito que Husserl aprende com seu mestre Franz Brentano (1838-1917) e com os filósofos medievais. A intenção, porém, tem mais do que um sentido ético (o motor de uma ação); ela consiste na tensão em torno de um objeto que dá o modo de ser consciente, assim como a tensão que se aplica à corda de um instrumento musical.

A intencionalidade da consciência

Na percepção, sempre há algo percebido: na fabricação de imagens, há algo representado em imagens; na enunciação, há algo enunciado; no amor, algo amado; no ódio, algo odiado; no desejo, algo desejado; e assim por diante. É isso que se deve reter de todos esses exemplos usados por Brentano quando declarava: ‘Todo fenômeno […] é caracterizado por aquilo que os escolásticos, na Idade Média, chamavam inexistência intencional (ou mesmo mental) de um objeto; é o que nós chamaremos – embora tenhamos de usar expressões equívocas – de relação a um conteúdo, orientação para um objeto’. […] Há variedades essenciais e específicas na relação intencional. Em suma: há variedades na intenção (que, para fazer apenas uma descrição, consiste sempre em um ‘ato’).

[…]

Não resta dúvida de que a maior parte dos atos psíquicos, senão todos, é composta de vivências complexas [compostas de várias vivências]. Intenções que envolvem emoções sobrepõem-se a intenções de imagens ou de juízos nos atos psíquicos; neles há ainda outras combinações do mesmo gênero. Mas parece estar fora de dúvida que, se analisarmos esses complexos [de vivências], chegaremos sempre a unidades intencionais primitivas, as quais não se deixam reduzir, segundo sua essência obtida de modo descritivo, a vivências psíquicas de outro tipo.

HUSSERL, Edmund. Logische untersuchungen. Tübingen: M. Niemeyer, 1968. v. II, p. 366-369. Tradução nossa.

Segundo Husserl, a tarefa de investigar a consciência pura de conteúdos é possível quando se põe o mundo real entre parênteses, à maneira da epoché cética. Isso significa que, assim como o cético escolhia conter o seu juízo ou o seu julgamento diante de filosofias dogmáticas, para analisar a consciência pura, o fenomenólogo deve conter a preocupação com os acontecimentos singulares, existentes em si mesmos, e procurar investigar o modo de aparecimento dos fenômenos à consciência, esclarecendo a própria consciência em seu modo de estar presente aos fenômenos.

Enunciação: expressão oral ou escrita.

Inexistência: no texto, significa “existir em (in)”, “existir dentro”.

Equívoco: no texto, significa “com vários sentidos”.

► Vista de Manhattan através de uma lente de câmera. Nova York (Estados Unidos). Assim como uma câmera foca em um objeto específico, a intencionalidade em Husserl se refere à capacidade da consciência de se direcionar para objetos, ideias ou experiências.

ELOI_OMELLA/GETTY

Essa regra metodológica valeu a Husserl a acusação de ser um idealista estrito, ou seja, um defensor da teoria segundo a qual não se pode conhecer nada sobre a realidade em si mesma, mas apenas sobre a realidade construída pela consciência. No limite, talvez a realidade sequer exista; só há certeza sobre os conteúdos da consciência. Reagindo a essa acusação, Husserl insistia que a árvore em chamas na realidade é a mesma árvore em chamas na consciência, com a diferença de que, na consciência, ela não precisa queimar. Essa maneira de se exprimir permitia a Husserl explicar que há duas orientações, ou dois direcionamentos, na consciência humana: uma que se dirige às coisas e procura explicá-las fisicamente; e outra que se dirige às coisas tal como elas estão presentes à consciência (a relação de consciência estabelecida com elas). A primeira orientação seria natural, comum e mesmo ingênua (despreocupada com questões filosóficas relativas ao funcionamento da consciência); ela corresponde ao olhar dirigido ao mundo e equivale à percepção sensível, fundamentando o trabalho da Ciência. A segunda orientação seria filosófica ou fenomenológica, pois busca entender o modo mesmo de ocorrer da consciência. Como o objetivo da segunda orientação é conhecer a atividade da consciência na relação com os fenômenos, ela deixa de se concentrar sobre as coisas empíricas e as põe entre parênteses, fixando sua atenção no fluxo da consciência.

As duas orientações, no entanto, compõem a atividade humana de conhecer. Ao colocar entre parênteses o mundo ou os conteúdos particulares das experiências, Husserl não deixa o mundo “para trás”, como se, depois de investigar a consciência, precisasse recuperá-lo em algum momento. Ao contrário, a orientação em direção ao mundo (típica da Ciência) é paralela à orientação rumo à consciência (típica da fenomenologia).

► Incêndio em área de floresta amazônica. Porto Velho (Rondônia), 2020. Para Husserl, uma árvore em chamas na realidade é a mesma árvore em chamas na consciência, porém sem queimar.
ANDRE DIB/PULSAR IMAGENS

A proposta de uma filosofia fenomenológica ainda permitiu a Husserl preservar o papel do indivíduo como produtor de conhecimento, sem conceber as pessoas como meros resultados de estruturas linguísticas ou culturais, biológicas, sociais ou outras. No seu entendimento, é “este” indivíduo que conhece e, embora ele participe de um modo comum de ser consciente, seu modo é radicalmente “seu”. No encontro com outros sujeitos, o indivíduo percebe-se como único e sem igual, muito além de um mero receptor de informações exteriores que o “enformam” ou de um ser dominado por estruturas linguísticas que “pensam” por ele.

Dessa maneira, Husserl une subjetividade (consciência individual) e objetividade (os fenômenos comprovados pela intersubjetividade), relativizando a ideia de que o conhecimento independe dos indivíduos. Para ele, o saber como conjunto de informações registradas nos livros e documentos de laboratórios é simplesmente inerte até que um indivíduo o ative em um ato pessoal de saber. É só quando um indivíduo lê um livro ou refaz um experimento de laboratório que se pode dizer que o “saber existe”.

► Jovem lê um livro em uma biblioteca de Seul (Coreia do Sul), 2019. O saber só existe quando um individuo lê um livro ou refaz um experimento.

Consultar orientações no Manual do Professor

1. É correto classificar Husserl como um filósofo da representação? Justifique sua resposta servindo-se da palavra presença

2. Apresente resumidamente a concepção husserliana de consciência utilizando as expressões aparelho cognitivo e presença

3. Explique como Husserl analisaria o exemplo wittgensteiniano da dor de dente, usando as palavras empatia e intersubjetividade .

Não escreva no livro.
Inerte: sem vida.

VAN GOGH, Vincent.

O caminho de terra em Auvers. 1890. Óleo sobre tela, 73 cm x 92 cm. Museu de Orsay, Paris (França).

Neste cenário com múltiplos caminhos retratado por Van Gogh, podemos refletir sobre as decisões que moldam nossas vidas. Cada trajetória representa uma experiência única, com a visão de Agostinho, que considera a busca pela verdade como uma jornada pessoal.

R ealidade e consciência na tradição patrística e medieval

Embora original, o trabalho de Husserl não deixa de ter semelhanças com uma tradição mais antiga, iniciada com alguns autores patrísticos e desenvolvida em diferentes filosofias medievais. A principal semelhança reside na afirmação da consciência como atividade que participa da produção do conhecimento. Contudo, de modo geral, os pensadores patrísticos e medievais não empregavam o termo consciência no sentido da fenomenologia, mas davam-lhe um significado primordialmente ético. Para se referir ao que depois os fenomenólogos chamarão de consciência, eles se serviam de expressões como pensamento, atividade racional e atividade intelectual.

Um exemplo é o modo como Agostinho de Hipona (354-430) reagia ao ceticismo e considerava a existência do pensamento como algo de que não é possível duvidar. Na obra Confissões, ao narrar as dúvidas e as dificuldades filosóficas nas quais tinha se envolvido em sua busca da verdade, Agostinho chegou a considerar o ceticismo como a filosofia mais prudente. Duvidar de todas as opiniões e não se iludir com a esperança de conhecer a verdade sobre o modo de ser das coisas, confiando, em vez disso, nos fenômenos, pareceu-lhe algo que realmente evitava a perturbação.

No entanto, Agostinho também constatava que a perturbação evitada pelos céticos nascia da comparação entre opiniões e interpretações

MUSEU DE ORSAY, PARIS, FRANÇA

sobre o mundo. De fato, se a busca filosófica se concentrar apenas na análise de proposições ou frases sobre a realidade, permanecerá incapaz de ultrapassar a dúvida e evitar o erro. Será, então, mais prudente tornar-se cético. Um dado, porém, marcou a reflexão de Agostinho: apesar da variedade de opiniões e interpretações sobre a realidade, das quais se pode duvidar com base nos motivos levantados pelos céticos, é impossível duvidar do fato de que essas opiniões e interpretações nascem de uma experiência individual da mesma realidade. Ainda que essa experiência chegue a formular frases inadequadas, contraditórias ou mesmo contrárias sobre a realidade, ninguém poderá duvidar que elas nascem de um indivíduo que experiencia a realidade.

Agostinho chamou a atenção para esse fato analisando a possibilidade do erro. Na obra O livre-arbítrio, redigida entre 388 e 395, ele esclarece que o próprio ato de duvidar e de errar confirma que a pessoa existe.

Agostinho faz a reflexão passar do nível das simples frases sobre o mundo para o nível da experiência interior pela qual cada indivíduo vivencia o mundo e se sente como algo singular. Agostinho exerceu grande influência sobre numerosos pensadores. Um de seus leitores, Boécio de Roma (480-524), esclarece em sua obra A consolação da filosofia, como muitas dificuldades filosóficas nascem da crença segundo a qual o conhecimento depende daquilo que é conhecido, quando, na verdade, depende de quem pratica a atividade de conhecer. Como continuador da linhagem agostiniano-boeciana, Tomás de Aquino (1225-1274) elabora uma teoria do conhecimento marcada por fortes semelhanças com a “filosofia da consciência” fenomenológica. Tomás se serviu repetidas vezes de um ditado filosófico bastante conhecido na Idade Média: “Nada pode estar no intelecto sem antes ter estado nos sentidos”. No entanto, em vez de entender o conhecimento como um simples retrato do mundo, resultante de um processo em que as coisas físicas produziriam os conteúdos do intelecto, Tomás defende que o intelecto participa da produção do conhecimento. Embora seja inegável a necessidade humana dos dados captados por meio dos cinco sentidos para desenvolver a capacidade cognitiva, Tomás esclarece que esses mesmos dados são incapazes de produzir conhecimento sem a ação conjunta do intelecto. O papel do intelecto seria colher as semelhanças entre as coisas singulares, interpretando-as de acordo com gêneros e espécies universais que estruturam a Natureza. A observação de tais gêneros e espécies permitiria conhecer a essência de cada coisa, em uma atividade muito semelhante à que Husserl chama de variação.

BIOGRAFIA

Boécio de Roma (480-525)

Filósofo, político e teólogo que traduziu para o latim obras de Aristóteles, além de comentar alguns textos clássicos, o que contribuiu para a formação do vocabulário filosófico em língua latina. Suas principais obras são

A consolação da Filosofia e Escritos teológicos.

► THEVET, André. Boécio. 1584. Impressão em relevo sobre papel, 14,2 cm x 16,8 cm.

A verdade no intelecto e nos sentidos

A verdade está no intelecto e no sentido, porém não do mesmo modo. No intelecto, a verdade está como aquilo que resulta do ato do próprio intelecto e como conhecida por meio do intelecto. Ela segue, portanto, a operação do intelecto; e, de acordo com essa operação, um juízo do intelecto versa sobre a coisa [conhecida] como algo que existe. Mas a verdade é conhecida pelo intelecto enquanto o intelecto reflete sobre seu próprio ato: não apenas enquanto conhece seu próprio ato, mas enquanto conhece a diferença ou a proporção entre ele e a coisa [conhecida], diferença essa que não pode ser conhecida a não ser que se conheça a natureza mesma do próprio ato de conhecer. Por sua vez, a natureza do ato de conhecer só pode ser conhecida quando se conhece a natureza do seu princípio ativo, que é o próprio intelecto, em cuja natureza está a possibilidade de se conformar às coisas. Daí que o intelecto conhece a verdade enquanto reflete sobre si mesmo.

TOMÁS DE AQUINO. Quaestiones disputatae de veritate. [S. l.]: Fundación Tomás de Aquino, c2011. Tradução nossa. Disponível em: https://www.corpusthomisticum.org/qdv01.html. Acesso em: 4 out. 2024.

BIOGRAFIA

► SADIGHI, Abolhassan. Retrato de Avicena 1945.

Avicena (980-1037)

Filósofo e cientista persa, exerceu grande influência na Filosofia e em outros saberes, especialmente na Medicina.

Relacionando o patrimônio filosófico grego com elementos religiosos islâmicos, desenvolveu intuições bastante originais. Suas principais obras são Livro da alma e A origem e o retorno.

Embora a concepção tomasiana aqui sintetizada possa dar a impressão de que o conhecimento seria o resultado de uma recepção passiva de informações do mundo, o intelecto é ativo no ato de conhecer, pois, segundo Tomás, sequer há conhecimento se o intelecto não se debruça sobre si mesmo e não percebe sua diferença com o mundo. Um conhecimento verdadeiro, desse ponto de vista, não seria uma simples adequação do intelecto à coisa conhecida, mas a atividade refletida de se pronunciar sobre o mundo com base na percepção da diferença entre aquilo que o mundo é e aquilo que se pensa sobre ele. Para bem entender Tomás de Aquino, é preciso libertar sua filosofia da interpretação dos modernos, principalmente Descartes. De acordo com a visão moderna, Tomás de Aquino acreditava que o conhecimento se inicia pela captação simples e direta do modo de ser das coisas, ingenuamente tomado como evidente. Ele, porém, defendia que o conhecimento tem início quando alguém percebe as coisas como realidades “existentes para o intelecto” (para a consciência), ou seja, quando as coisas são percebidas em sua diferença com relação a quem as percebe. Torna-se compreensível, assim, que o pensamento tomasiano tenha despertado o interesse de Husserl, embora o filósofo austro-alemão considerasse os medievais, de modo geral, como “ingênuos”, despreocupados com o papel da consciência na atividade de conhecer.

Também pensadores judeus e muçulmanos da Idade Média contribuíram com linhas de pensamento que poderiam ser chamadas de “filosofias da consciência”. Avicena (980-1037), por exemplo, exerceu grande influência, inclusive sobre Tomás de Aquino. Ele afirmava que a autopercepção de cada indivíduo como um “eu”, que se conhece e conhece o mundo, independe da ativação dos cinco sentidos. Para

ilustrar seu pensamento, Avicena imagina uma situação hipotética em que um homem estaria suspenso no espaço, sem utilizar nenhum dos cinco sentidos, e, no entanto, não seria vazio de conhecimento: ele conheceria sua alma, sede da sua singularidade, e concluiria que ela é diferente do corpo.

Observe que a hipótese do “homem voador” ou do homem suspenso no espaço permite a Avicena defender que nem todo conhecimento depende da contraposição com coisas sensíveis. Isso não significa que Avicena concebia o conhecimento como independente das coisas sensíveis. Ao contrário, a compreensão da própria existência, no seu entender, só é alcançada por meio da interrogação constante e do contato dos sentidos físicos com coisas singulares. O objetivo, porém, da hipótese do “homem voador” é mostrar que a afirmação da própria existência independe do conhecimento desenvolvido pelo contato físico com coisas singulares; é de outra ordem e, por isso, conserva ao menos uma mínima possibilidade de acontecer por si mesma.

O 'eu' é diferente do corpo

Dizemos, então: é preciso que cada um de nós se imagine como se tivesse sido criado instantaneamente e perfeito, mas que sua vista tenha sido impedida de ter qualquer visão das coisas exteriores; e que cada um se imagine como criado e posto no ar ou no vazio, de maneira tal que a consistência do ar não o toque e não o leve a experimentar uma sensação; por fim, que seus membros fiquem bem separados e assim ele não os aproxime nem se toque.

Depois, que cada um considere atentamente se irá afirmar a existência de sua essência ou seu 'eu'. Certamente não duvidará de que seu 'eu' existe, mesmo sem afirmar, com isso, qualquer um de seus membros nem nenhum de seus órgãos internos, nem um coração nem um cérebro, nem nenhuma das coisas exteriores. Ele afirmará seu 'eu' sem afirmar nenhuma extensão, nem largura, nem profundidade. E se lhe fosse possível, nessa situação, imaginar um braço ou outro membro, ele não o imaginaria como parte de seu 'eu' nem como condição de seu 'eu'.

AVICENA. Sifā’: de anima I. Tradução: Georges. C. Anawati e Souheil. Zayed. Cairo: Institut Français d’Archéologie Orientale, 1974. p. 13. Tradução nossa.

Consultar orientações no Manual do Professor

1. O que fez Agostinho de Hipona chamar o ceticismo de “a mais prudente das filosofias”?

2. O que permitiu a Agostinho superar o ceticismo?

3. Explique por que, segundo Tomás de Aquino, o conhecimento não é um retrato direto da realidade.

EXERCICIO Não escreva no livro. D

O conhecimento nas Ciências Naturais

Desde o século XIX, por causa do trabalho de quem se dedicou à Filosofia, Sociologia, Antropologia, Matemática e de representantes das ciências ditas “naturais” (Física, Biologia e Química), tomou-se consciência de que as teorias científicas dependem, em grande parte, do modo de pensar individual de cientistas, e não apenas dos dados naturais, como se estes levassem por si mesmos a um conhecimento “objetivo”. Os cientistas Albert Einstein (1879-1955) e Leopold Infeld (1898-1968) escreveram um texto esclarecedor a esse respeito.

A verdade objetiva é uma criação

Os conceitos físicos são criações livres do espírito humano; eles não são, como se poderia acreditar, determinados unicamente pelo mundo exterior. No esforço que fazemos para compreender o mundo, nós parecemos um pouco com uma pessoa que tenta compreender o mecanismo de um relógio completamente fechado: ela vê o mostrador e os ponteiros em movimento, ouve o tique-taque, mas não tem nenhum meio de abrir o relógio. Se ela for criativa, poderá construir uma imagem do mecanismo, considerando-o responsável por tudo o que ela observa; mas ela nunca estará segura de que a sua imagem é a única capaz de explicar suas observações. […] Assim, o pesquisador também crê certamente que, à medida que seus conhecimentos aumentarão, sua imagem da realidade irá se tornar cada vez mais simples e explicará campos de impressões sensíveis sempre mais amplos. Ele poderá, assim, crer na existência de um limite ideal do conhecimento, que o espírito humano pode alcançar. Ele poderá chamar esse limite ideal de verdade objetiva.

EINSTEIN, Albert; INFELD, Leopold. L’évolution des idées

Maurice Solovine. Paris: Payot, 1978. p. 34-35. Tradução nossa.

Einstein e Infeld invertem o uso da metáfora do relógio, tão valorizada a partir do Renascimento e da Idade Moderna, quando muitos filósofos passaram a adotar como modelo de conhecimento o procedimento mecanicista. Eles constroem a imagem de um relógio impossível de abrir e comparam o conhecimento científico com a atividade criativa de alguém que imagina o funcionamento do mecanismo desse relógio, ou seja, conhecer cientificamente significa elaborar um modo de unificar os dados observados em uma construção que permita explicar esses mesmos dados. O observador, portanto, é também autor.

O limite ideal ou padrão máximo que pode ser atingido pelo conhecimento passa a ser considerado como a verdade objetiva, aquela que é tomada como critério para a avaliação de tudo o que se conhece durante o processo de investigação. A objetividade da verdade científica, portanto, consiste, segundo Einstein e Infeld, em uma construção do espírito humano em sua relação com a Natureza. O físico e filósofo da ciência Thomas Kuhn (1922-1996) dedicou-se a compreender o comportamento científico como um processo de construção de teorias

en physique. Tradução:

(e não de retratos da Natureza), chamando a atenção para o fato de que as ciências revelam, por sua história, um desenvolvimento descontínuo, ou seja, marcado por interrupções nas maneiras de explicar a realidade. Mais do que acumular informações correlacionadas, as ciências realizam rupturas com modos anteriores de explicar a realidade. Kuhn denomina tais rupturas de revoluções, de onde vem o título de seu livro mais conhecido, A estrutura das revoluções científicas, publicado originalmente em 1962.

Kuhn recorre ao exemplo do pato-coelho de Wittgenstein e o aplica ao próprio comportamento dos cientistas: a mesma realidade pode despertar diferentes percepções, pois todo olhar é um “olhar como”. Assim, de acordo com o modo como um cientista considera a realidade, surge uma teoria correspondente, e os fatores que influenciam a percepção são as vivências e crenças sociais. Dado que a vida social está em constante mudança, é compreensível que as teorias científicas também mudem, rompendo com concepções anteriores. Os modelos científicos do passado entram em crise quando se percebe algum dado anômalo e dão lugar a novos modelos de explicação, que Thomas Kuhn chama de paradigmas.

Ciência normalizante

Ruptura com o modelo explicativo

Tentativa de compreensão da anomalia

► Esquema ilustra o processo de surgimento de modelos científicos segundo o filósofo Thomas Kuhn.

Karl Popper (1902-1994) também compreende o desenvolvimento da Ciência como um processo com o entendimento voltado para o passado, mas considera que uma verdadeira teoria científica, além de considerar o passado, deve ser elaborada de modo a poder ser refutada no futuro. No seu entendimento, uma teoria realmente científica deve ser feita de modo a poder ser revista ou mesmo abandonada, caso fatos novos revelem sua insuficiência explicativa.

BIOGRAFIA

Thomas Kuhn (1922-1996)

► THOMAS Samuel Kuhn. 2018. Ilustração. Filósofo e historiador da ciência estadunidense, retomou do francês Alexandre Koyré (1892-1964) o conceito de revolução científica e desenvolveu sua própria teoria das mudanças de modelo ou paradigma científico. Sua principal obra é A estrutura das revoluções científicas, publicada originalmente em 1962.

Anômalo: algo que escapa a um modo estabelecido de pensar.

Refutado: contradito; descartado.

BIOGRAFIA

► O filósofo Karl Popper década de 1980.

Karl Popper (1902-1994)

Filósofo austríaco, naturalizado britânico, defensor da tese de que todo conhecimento científico é sempre conjectural e provisório, Popper foi também defensor da democracia liberal e um oponente do totalitarismo. Suas principais obras são Lógica da pesquisa científica (1934), Conjecturas e refutações (1963) e A sociedade aberta, universo aberto (1976).

Leucístico: referente a leucismo (do grego leykos, "branco"), consiste em uma particularidade genética, causada por um gene recessivo, que confere a cor branca a animais caracteristicamente de outra cor.

Defensável: que pode ser defendido, sustentado.

Popper colocou no centro do debate o fato de que a maior parte dos enunciados ou frases científicas é formada com base na indução. Por meio de certos dados conhecidos, tiram-se conclusões que nem sempre são garantidas por esses dados. A indução pode tornar frágil a crença científica de que uma teoria é sempre verdadeira por ser confirmada por fatos.

Para Popper, crer na verificação de um enunciado equivale a pensar que as infinitas possibilidades naturais são pré-conhecidas nesse enunciado “verificado” e permanecerão as mesmas em todos os tempos. É fácil, porém, constatar a fragilidade dessa crença. Uma frase aparentemente óbvia, como “todo ser humano é mortal”, requer, para ser verificada, esperar o tempo necessário para o desaparecimento de todos os seres humanos, a fim de poder pretender que seu conteúdo seja realmente considerado verdadeiro. Enquanto houver um ser humano vivo, será impossível verificar essa frase, pois nunca se saberá se esse ser humano morrerá ou não.

segundo Karl Popper, o enunciado “todos os corvos são pretos”.

Popper declara sua descrença na indução como método científico, salvo no caso da indução matemática (campo do saber em que a regularidade é mais facilmente defensável). Por essa razão, ele propõe outra compreensão das teorias científicas, promovendo, de certo modo, uma concepção mais humilde da Ciência. Em vez de defender a verificação, o autor defende a falseabilidade ou a possibilidade de que um enunciado venha a ser considerado falso: um enunciado realmente científico é construído de modo que possa ser comparado com a experiência sensível e refutado por ela. Esse modo de construção depende do que o filósofo chama de forma lógica.

► Corvo típico e corvo leucístico. Chilliwack (Canadá). O fato de ser possível encontrar um corvo não preto torna científico,
ANNA WEISE/AKG-IMAGES/ ALBUM/FOTOARENA

A forma lógica de um enunciado verificado pela realidade (criticado por Popper) seria, no máximo, algo como “amanhã choverá ou não choverá aqui”. É apenas nessa forma que o enunciado verificado pode ser de fato verdadeiro. Todavia, enunciados desse tipo são destituídos de interesse científico, pois são verdadeiros antes mesmo do confronto com a realidade. Já o enunciado “amanhã choverá aqui” é um enunciado científico, segundo Popper, pois é formulado de modo que a experiência pode refutá-lo. Trata-se de um enunciado falseável.

Por outro lado, se “todo ser humano é mortal” não é um enunciado científico, o enunciado “todos os corvos são pretos” é científico, pois sua formulação permite que ele seja refutado. Basta encontrar um corvo não preto para refutá-lo. Isso não significa que o enunciado falseado deva ser abandonado, pois um caso de corvo não preto pode ser uma absoluta exceção. Contudo, se a teoria contida nesse enunciado começar a perder força para outra teoria, a primeira pode ser considerada inteiramente falseada em benefício da segunda, que explica melhor os fenômenos.

Em Matemática, a falseabilidade tem um impacto ainda maior, pois um caso que contrarie um enunciado basta para obter a verdade do enunciado contrário. Quando se diz, por exemplo, “para todo objeto A, verifica-se a propriedade X”; e quando se pode dizer, ao mesmo tempo, que “há ao menos um objeto A que não verifica X”, obtém-se a falsidade da primeira proposição e a veracidade da proposição contraditória: “algum objeto A não verifica X”. Em termos lógicos, essa operação corresponde ao quadrado das oposições.

A verificabilidade não é científica; a falseabilidade sim

O critério de demarcação inerente à Lógica Indutiva – isto é, o dogma positivista do significado – equivale ao requisito de que todos os enunciados da ciência empírica (ou todos os enunciados ‘significativos’) devem ser suscetíveis de serem, afinal, julgados com respeito à sua verdade e falsidade; diremos que eles devem ser ‘conclusivamente julgáveis’. […]

Ora, a meu ver, não existe a chamada indução. Nestes termos, inferências que levam a teorias, partindo-se de enunciados singulares ‘verificados por experiência’ (não importa o que isso possa significar) são logicamente inadmissíveis. Consequentemente, as teorias nunca são empiricamente verificáveis. Se quisermos evitar o erro positivista de eliminar, por força de um critério de demarcação que estabeleçamos, os sistemas teóricos de ciência natural, deveremos eleger um critério que nos permita incluir, no domínio da ciência empírica, até mesmo enunciados insuscetíveis de verificação.

Contudo, só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação não a verificabilidade, mas a falseabilidade de um sistema. Em outras palavras, não exigirei que um sistema

POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica . Tradução: Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 41-43.

O comportamento das regras matemáticas permite ilustrar a razão pela qual Popper afirma que, no limite, mesmo o procedimento indutivo só poderia se aplicar à falseabilidade, nunca à verificação. Com efeito, recorrer a fatos singulares serve apenas para contrariar leis universais por um procedimento lógico muito simples: o modus tollens, mas a refutação seria praticada por dedução, procedimento que lida com a verdade de certos enunciados e obtém conclusões necessariamente verdadeiras, independentemente do recurso à experiência.

A concepção popperiana da falseabilidade parece entrar em choque com a percepção desenvolvida por Thomas Kuhn e a ideia de que os cientistas trabalham sempre no interior de um modelo ou paradigma que influencia sua percepção sobre os fatos. Em resumo, o que levaria a aceitar ou recusar uma teoria seria a decisão dos cientistas, não a forma lógica pretensamente objetiva dos enunciados, como queria Popper.

No entanto, o também filósofo da ciência Imre Lakatos (1922-1974) explica que o trabalho de Kuhn consistia em mostrar que a ciência progride por refutação de projetos de pesquisa. Nesse sentido, sua compreensão do procedimento científico preserva o princípio da falseabilidade, embora o tire de certa “ingenuidade”, como se sua aplicação dependesse da objetividade dos enunciados, sem a interferência do olhar dos grupos de cientistas.

EXERCICIO Não escreva no livro. E Consultar orientações no Manual do Professor. científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo por meio do recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, um sistema científico empírico. [...] Minha posição está alicerçada numa assimetria entre verificabilidade e falseabilidade, assimetria que decorre da forma lógica dos enunciados universais. Esses enunciados nunca são deriváveis de enunciados singulares, mas podem ser contraditados pelos enunciados singulares. Consequentemente, é possível, por meio de recurso a inferências puramente dedutivas (com auxílio do modus tollens da lógica tradicional) concluir acerca da falsidade de enunciados universais a partir da verdade de enunciados singulares. [...]

1. Explique como a metáfora do relógio impossível de abrir permitiu a Einstein e Infeld apresentarem a objetividade científica como uma criação.

2. De acordo com Thomas Kuhn, como a objetividade científica é construída?

3. Por que Karl Popper recusa a ideia de verificação dos enunciados científicos?

O conhecimento nas

Ciências Humanas

Os debates em torno da objetividade do conhecimento científico ou da “verdade objetiva” ganham nova direção quando se trata de entender as Ciências Humanas (História, Sociologia, Antropologia, Psicologia etc.), pois o objeto dessa área do saber é o que mais resiste a explicações rígidas ou interpretações baseadas em “leis naturais”. Esse objeto é nada menos do que o ser humano, visto agora como um ser que produz cultura, ser em constante formação de si mesmo e de suas relações com os outros e com o mundo, mais do que um simples conjunto de aspectos biológicos, físicos e químicos.

Como grande parte dos cientistas naturais ainda opera com a ideia de que a Natureza segue leis fixas e imutáveis, torna-se claro como as Ciências Naturais são insuficientes para investigar o ser humano, uma vez que ele revela a possibilidade de dar sentido à sua própria existência, superando, em alguma medida, os próprios condicionamentos naturais. Dessa constatação nasceram as Ciências Humanas.

No século XIX, percebeu-se que os fenômenos tipicamente humanos exigiam um tratamento específico. Dois dos pensadores mais influentes nessa linha de pensamento foram Wilhelm Dilthey (1833-1911) e Georg Simmel (1858-1918). Ambos tinham forte interesse pelo ramo do saber que hoje é chamado de Sociologia, mas recusavam abertamente os modelos de Auguste Comte (1798-1857) e de Herbert Spencer (1820-1903), considerados fundadores da ciência sociológica e adeptos de uma concepção do ser humano construída ao modo das ciências positivas ou ciências naturais.

Dilthey e Simmel não podiam aceitar a ideia comtiana e spenceriana de que as realidades sociais obedecem a uma lei evolutiva semelhante à evolução das espécies defendida por Charles Darwin (1809-1882). Acreditar nisso significava abrir mão da infinita criatividade que permite aos seres humanos interferir nos aspectos naturais de seu modo de viver e participar da construção do sentido da própria existência.

► Georg Simmel, 1901.
► Wilhelm Dilthey, 1907.

Hermenêutica: ramo do conhecimento que se dedica a estudar o que contribui para a produção e a percepção de sentido nas diferentes visões de mundo.

Dilthey, em particular, inspirou-se nos trabalhos de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), sobretudo em sua tentativa de combinar os elementos históricos usados na interpretação da Bíblia com elementos interpretativos aplicados na leitura dos autores clássicos (filósofos e literatos). Com base nessa prática hermenêutica, Dilthey elaborou a diferença entre compreender e explicar. Dessas duas noções nascerá sua distinção entre ciências naturais e ciências do espírito Segundo as práticas científicas observadas por Dilthey no fim do século XIX e início do século XX, a atividade de explicar consistia em analisar os elementos que compõem as realidades estudadas e em identificar as causas que levam esses elementos a produzirem seus efeitos correspondentes. Tais causas eram explicadas em termos de leis ou regularidades. Em vez de se concentrar em elementos e causas determinadas por leis, a atividade de compreender trata dos fenômenos em seus conjuntos, isto é, em unidades maiores e produtoras de novos sentidos exatamente como conjuntos. Esse método considera a experiência da vida como um todo, identificando inter-relações e valores que orientam os costumes. Em outras palavras, considera a realidade sob a perspectiva de sua construção pelo espírito humano (pensamento e liberdade).

A atividade de explicar exprime o método típico das ciências naturais, como dizia Dilthey em referência às áreas do saber que se concentram nos aspectos físicos, químicos e biológicos da realidade, ao passo que compreender equivale ao método das ciências do espírito. Com o passar do tempo, as ciências do espírito receberam o nome de Ciências Humanas.

► A atividade de compreender, para Dilthey, considera a experiência da vida como um todo e a realidade sob a perspectiva de sua construção pelo espírito humano. Estudantes em sala de aula em Fortaleza (CE), 2022.

A Psicologia é um bom exemplo para perceber a distinção entre explicar e compreender. Ela pode se concentrar apenas nos aspectos causais das experiências humanas, buscando mostrar por que elas ocorrem, baseando-se em um modelo explicativo segundo o qual uma experiência gera sempre determinadas consequências. Nesse modelo de causa e efeito, a Psicologia será uma ciência explicativa e natural. Contudo, também pode ser descritiva e analítica ao tratar o ser humano como um conjunto de fatores bioquímico-físicos (constituição corpórea), psíquicos (vivências perceptivas e emocionais) e espirituais (vivências de pensamento reflexivo e de liberdade). Nesse caso, o trabalho do psicólogo será encontrar ligações entre as experiências. Ela pode considerar ainda as influências naturais e sociais e descrever as conexões espontâneas que aparecem na experiência das pessoas como fontes de sentido não necessariamente preestabelecidas. Trata-se da visão da pessoa como ser que pode operar com seus condicionamentos e participar do sentido dado à própria existência. Segundo esse modelo, a Psicologia será uma ciência humana. No século XX, um grupo de filósofos e sociólogos reunidos no Instituto para a Pesquisa Social, em Frankfurt (Alemanha), tornou-se um dos principais atores na reflexão sobre as Ciências Humanas. Dele participaram, destacadamente, Max Horkheimer (1895-1973), Herbert Marcuse (18981979), Theodor Adorno (1903-1969), Walter Benjamin (1892-1940) e Jürgen Habermas (1929-). O impacto de seus trabalhos foi tão grande que eles passaram a ser conhecidos como Escola de Frankfurt

Interessados em compreender o ser humano em sua complexidade, os frankfurtianos dedicaram-se às várias áreas da experiência humana, mostrando como elas se inter-relacionam e revelando motivos que, embora causem a ação humana, nem sempre são percebidos. Eles trouxeram à tona, por exemplo, o modo como a organização da vida humana em torno do consumo de mercadorias transformou-se na fonte de sentido para os indivíduos e grupos sociais. Até mesmo o mundo das artes foi afetado por esse modo de viver.

► ARAÚJO, Gabriel Nardelli. [Sem título]. 2008. A indústria cultural produz cultura como um conjunto de artigos de consumo. Atrofiando as capacidades humanas, ela paralisa a criatividade e torna os consumidores indivíduos passivos.

No livro Dialética do esclarecimento, publicado originalmente em 1947, Adorno e Horkheimer criaram o conceito de indústria cultural: a cultura produzida como artigo de consumo. Nesse contexto, os indivíduos são dissolvidos nas tendências da sociedade sem refletir, deixando-se formar passivamente por influências sociais, políticas e econômicas. Adorno aponta a música popular como um exemplo desse fenômeno, em especial o jazz, estilo musical que se fortalecia na época em que ele viveu. O sucesso do jazz, na análise de Adorno, devia-se ao fato de ele explorar sonoridades já conhecidas, promovendo uma repetição que tornava os ouvintes passivos. Imediatamente, os controladores do mercado se serviram desse estilo para vendê-lo e obter lucro, administrando o gosto das pessoas por meio de suas estratégias de “incentivo à cultura”.

Herbert Marcuse explorou essa transformação da concepção do indivíduo como unidade básica da experiência humana, mostrando que suas raízes estão na própria ideia de razão ou conhecimento racional que se impôs durante os séculos XVI-XIX.

DiCA

• Concentrando suas reflexões no fenômeno do entretenimento de massa, o autor estuda os meandros da indústria cultural, relacionando-a com o funcionamento dos meios de comunicação.

► DUARTE, Rodrigo. Indústria cultural e meios de comunicação. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. (Coleção Filosofia: o prazer do pensar). Reprodução da capa.

Apresentação do grupo Preservation Hall Jazz. Nova Orleans (Estados Unidos), 2022.
ERIKA GOLDRING/COLABORADOR/GETTY IMAGES
ERIKA

Marcuse representa bem o modo como a Escola de Frankfurt se relaciona com o Iluminismo dos séculos XVII e XVIII e com as filosofias que decorreram dele. É inegável que as luzes do pensamento moderno trouxeram ganhos à humanidade, como, por exemplo, as ideias do uso individual da razão, do valor universal do ser humano, da universalidade da experiência, da capacidade de sempre melhorar etc. Paralelamente, porém, também trouxeram sombras, como a manipulação dos indivíduos em massa, a perda da paixão como algo essencialmente ligado à razão, a transformação do prazer em apenas um aspecto secundário da vida e em motor do consumo de bens materiais.

No livro Cultura e sociedade, publicado em 1964, Marcuse retoma o projeto filosófico dos hedonistas, pensadores que insistiam na importância do prazer como princípio estruturante da existência (o termo hedonista vem da palavra grega hedoné, “prazer”). Segundo Marcuse, defender apenas a importância da razão significa conservar a estrutura social, econômica e política que o mundo moderno produziu.

Nessa concepção, os sentidos, o corpo e a materialidade humana permanecem como dimensões inferiores e desprezíveis. O ser humano é valorizado apenas pelo que realiza socialmente, sobretudo por seu trabalho, e o lazer passa a ser entendido como algo menos importante, quase uma ocasião de culpabilidade. De um ponto de vista hedonista, porém, o prazer é uma necessidade que constitui o indivíduo tanto quanto seu pensamento reflexivo ou seu trabalho. O desafio que se apresenta hoje é identificar os modos como as sociedades estruturadas em torno da produção e do consumo tomam posse do prazer e do lazer, transformando-os em mercadoria e dando a ilusão de que o indivíduo é valorizado, quando, na verdade, o que se mantém é o controle das práticas sociais por grupos detentores de poder e movidos por interesses de dominação econômica.

► BINGEN, Hildegarda de. O ser humano universal 1165. Iluminura. Biblioteca Estadual de Lucca (Itália). Diferentemente da universalidade esmagadora do indivíduo, o ser humano universal é indivíduo e é universal como centro do mundo, tendo responsabilidade por si mesmo, pelos outros e pelo cuidado do mundo.

Empírico: no texto, significa algo físico, corpóreo.

Antítese: tese contrária.

A filosofia da razão se concentra na universalidade e, ao promover o desenvolvimento das forças produtivas, a elaboração livre e racional das condições de vida e a dominação da Natureza, concebe os indivíduos somente como seres socializados, entendidos apenas como membros da sociedade. Já o hedonismo, na defesa de uma visão centrada na felicidade, baseia-se na individualidade, na experiência dos indivíduos como unidades em que se cruzam possibilidades e necessidades específicas, para além da perspectiva social.

Cada indivíduo é um polo em que se tensionam a universalidade e aquilo que só ele vive, a sua individualidade. É por isso que Marcuse lembra que enfatizar o hedonismo é algo parecido com o individualismo, principalmente porque, no hedonismo, a felicidade é entendida sempre como subjetiva. O individualismo, por sua vez, significa a crença de que só o indivíduo tem valor. Nesse sentido, o individualismo é tão perverso quanto a ênfase exagerada na universalidade.

O texto de Marcuse, a seguir, apresenta a distinção básica entre universalidade e individualidade, e contrapõe filosofia da razão e hedonismo.

Filosofia da razão e hedonismo

A filosofia idealista da época burguesa tentou apreender sob o nome de razão o conceito universal que devia realizar-se nos indivíduos. O indivíduo aparece como um Eu isolado dos outros em seus desejos, pensamentos e interesses. […] Na medida em que o indivíduo só pode participar dessa universalidade enquanto ser dotado de razão, e não com a multiplicidade empírica de suas necessidades e faculdades, uma tal ideia de razão já implica o sacrifício do indivíduo. […] O progresso da razão se faz contra a felicidade dos indivíduos […].

O hedonismo é a antítese da filosofia da razão. A filosofia da razão conserva o desenvolvimento das forças de produção, a elaboração livre e racional das condições de vida, a dominação da natureza, a autonomia crítica dos indivíduos socializados; quanto ao hedonismo, ele conserva o desabrochar e a satisfação das necessidades humanas, a liberação de um processo de trabalho desumano, a disponibilidade do mundo para o prazer. A ideia da razão visa a uma universalidade na qual os interesses antagônicos dos indivíduos ‘empíricos’ são suprimidos; mas, nessa universalidade, a verdadeira satisfação dos indivíduos, sua felicidade, permanece um elemento estranho, exterior, que deve ser sacrificado. Não há harmonia possível entre o interesse

geral e os interesses particulares, entre a razão e a felicidade: o indivíduo é vítima de uma ilusão quando acredita perceber uma correspondência entre os dois gêneros de interesse: a razão desconsidera os indivíduos. O verdadeiro interesse, o da universalidade, objetiva-se para os indivíduos e toma a forma de uma potência que os domina. Com a ideia de felicidade, o hedonismo procura manter o desabrochar e a satisfação do indivíduo como um fim oposto à realidade anárquica e miserável. Mas o protesto contra a universalidade reificada e os sacrifícios desprovidos de sentido que ela exige só pode nos fazer penetrar ainda mais no isolamento e antagonismo entre os indivíduos enquanto não forem formadas e concebidas as forças históricas que poderão transformar a sociedade existente em uma verdadeira universalidade. A felicidade permanece para o hedonismo essencialmente subjetiva; coloca o interesse particular do indivíduo, tal como aparece, como o verdadeiro interesse e toma sua defesa contra toda forma de universalidade. Tal é o limite do hedonismo, aquilo que o aparenta ao individualismo, produto da concorrência.

MARCUSE apud MATOS, Olgária C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993. (Coleção Logos, p. 105-107).

O hedonismo ou a “filosofia da felicidade” – expressão que Marcuse não usa, mas que parece adequada como referência à sua análise –não recai necessariamente no individualismo. Marcuse aponta para a possibilidade de associar o hedonismo ou a atenção à individualidade com a universalidade. Para tanto, é preciso conceber e formar forças históricas que permitam construir uma “verdadeira universalidade”, aquela que considere e faça justiça à base individual (subjetiva) de toda visão geral (objetiva) sobre o ser humano. Caso essa nova universalidade não seja encontrada, mesmo a crítica da universalidade que hoje se encontra estabelecida (reificada ou transformada em coisa, como se ela fosse objetiva) só fará com que os indivíduos caiam ainda mais no isolamento e no aprofundamento do que os desune.

Da perspectiva do trabalho de filósofos como Marcuse, dos demais membros da Escola de Frankfurt, de Dilthey e de tantos outros, a reflexão filosófica permanece como testemunha da importância de questionar conceitos como “conhecimento objetivo” ou “conhecimento natural” por oposição à cultura. A realidade humana é de tal modo complexa que apenas uma abordagem atenta aos seus vários aspectos pode ser menos inadequada.

Anárquico: sem um princípio explícito de organização.

Reificado: transformado em coisa.

#jovensemação

O

conhecimento

Consultar orientações no Manual do Professor

nas universidades

Conforme os passos a seguir, vocês vão elaborar um projeto para conhecer uma faculdade ou universidade.

PASSO 1 P esquisa

Identifiquem as instituições da região. Busquem nos sites delas informações sobre a estrutura administrativa e os cursos oferecidos.

PASSO 2 Mapear a realidade

Após a pesquisa, cada grupo escolhe uma universidade e, com a coordenação do(a) professor(a), planeja uma visita. Nas universidades há as faculdades, sempre com uma secretaria. Telefonem, expliquem seus objetivos e peçam uma visita guiada nas bibliotecas, laboratórios e outras dependências. Tentem entrevistar estudantes, professores ou funcionários da faculdade escolhida.

Façam registros sobre o ambiente da faculdade; os transportes disponíveis; as condições de permanência; a existência de machismo, discriminações e preconceitos; as iniciativas positivas, assistências, o trabalho das instituições estudantis etc. Conforme as habilidades de cada membro do grupo, vocês podem fotografar ou filmar os locais e os entrevistados. Não esqueçam de pedir autorização de uso de imagem. Os roteiros das entrevistas podem ser elaborados de acordo com os interesses dos membros do grupo. Leiam, a seguir, algumas sugestões de dados ou questões que podem ser levantadas.

A o número de estudantes e a porcentagem de mulheres, pessoas negras, indígenas e oriundos de escolas públicas;

B a taxa de permanência e a dedicação dos estudantes beneficiários de cotas e de políticas de financiamento estudantil;

C a grade curricular e as linhas de pesquisa acadêmica;

D se a biblioteca e laboratórios estão atualizados e quem seriam os responsáveis por melhorar suas estruturas.

PASSO 3 Atuar na sociedade

Reflitam individualmente sobre a visita. Vocês se sentiram em um espaço que pode ser de vocês em um futuro próximo?

Nesta etapa da atividade, vocês construirão uma apresentação para a classe usando o material recolhido, desde as informações até as imagens.

PASSO 4 Compartilhar o trabalho com a comunidade

Caso seus professores considerem conveniente, apresentem o trabalho a toda a escola. Registrem o resultado nas redes sociais da escola com a hashtag #JovensEmAção.

Não escreva no livro.

1. Husserl foi um idealista estrito? Justifique sua resposta servindo-se da expressão dupla orientação

2. Empatia é sinônimo de simpatia e compaixão?

3. O que pretendia Avicena com a hipótese do “homem voador”?

4. Explique por que um enunciado como “todos os seres humanos são mortais” não é falseável, segundo Popper, ao passo que é falseável um enunciado como “todos os corvos são pretos”.

5. Explique por que Marcuse pode representar o modo como a Escola de Frankfurt se relaciona com o Iluminismo ou a razão iluminista.

6. O que levou historicamente à diferenciação entre Ciências Naturais e Ciências Humanas?

7. Esclareça a diferença entre explicar e compreender, segundo Dilthey.

8. Comente o caso da Psicologia como exemplo que elucida a diferença entre explicar e compreender.

Consultar orientações no Manual do Professor.

DISSERTAÇÃO Problematização e síntese filosófica

1. Componha uma dissertação de problematização para apresentar as concepções racionalista e empirista do conhecimento. Nos três passos da dissertação, considere o pensamento de Descartes como tese, o de Hume como antítese e o de Kant como síntese.

2. Elabore uma dissertação de síntese filosófica para apresentar as concepções de conhecimento segundo Wittgenstein e Husserl.

3. Redija uma dissertação de síntese filosófica para apresentar a filosofia transcendental de Kant com base em sua tentativa de combinar elementos do pensamento de Descartes e de Hume.

4. Produza uma dissertação de problematização para apresentar as concepções de conhecimento científico segundo Thomas Kuhn e Karl Popper. Nos três passos da dissertação, considere o pensamento de Kuhn como tese, o de Popper como antítese e o de Lakatos como síntese.

ReToManDO Não escreva no livro.

5 SENTIDO DA EXISTÊNCIA

Por que existimos? Muitos de nós, em algum momento, fazemos essa pergunta. Talvez você já a tenha feito… Ela pode se desdobrar em outras, como: de onde vem o ser humano e para onde ele vai? Existimos para ser felizes? Para sofrer? Existimos por que Deus quer? Ou existimos por que somos obra do acaso?

► Por que passamos nossa vida a desejar formas melhores de viver e a buscar maneiras de nos sentirmos realizados?

A Filosofia tem muito a dizer sobre o tema do sentido da existência. Porém, ela não oferece apenas mais uma opinião; menos ainda uma resposta definitiva. Em vez disso, a Filosofia desconstrói percepções já existentes, a fim de compreendê-las e de contribuir para eventualmente aceitá-las, melhorá-las ou, então, abandoná-las.

Por que existimos?

O diretor de cinema estadunidense Roger Nygard (1962-) conta que, por ter nascido em uma família evangélica, em sua casa falava-se de um sentido religioso para a existência. Tudo mudou em sua maneira de ver a realidade quando Nygard tinha 13 anos e foi surpreendido pela morte de seu pai. A vida parecia não ter sentido nenhum. Mais tarde, com 39 anos, ele ficou chocado com outro acontecimento absurdo: o ataque, em 11 de setembro de 2001, às Torres Gêmeas de Nova York (Estados Unidos). A morte de tantas pessoas inocentes só confirmava sua impressão de que a vida era absurda.

A partir desse momento, Roger Nygard viajou pelo planeta e levou essas interrogações a pessoas muito diferentes, registrando as respostas em seu documentário A natureza da existência, de 2009.

Ao serem questionadas sobre o sentido da existência, algumas pessoas mencionavam Deus; outras declaravam que somos “poeira cósmica”. Para outras, ainda, existimos para nos divertir, amar, trabalhar, praticar esportes etc. Por fim, havia quem afirmasse não ter o menor interesse nesse tipo de pergunta; preferiam “simplesmente viver”. Mas Nygard notou que os entrevistados e entrevistadas tinham alguns pensamentos em comum: apreciavam o amor, a paz e o prazer.

Nygard entrevistou tanto pessoas simples como grandes personalidades públicas. Entre estas, Sri Sri Ravi Shankar (1956-), da Fundação Arte de Viver; Richard Dawkins (1941-), biólogo evolucionista ateu; Leonard Susskind (1940-), físico e cocriador da teoria das cordas; Rob Adonis, lutador de luta livre; e o cineasta Irvin Kershner (1923-2010), que dirigiu filmes como Star Wars: o império contra-ataca , de 1980, e Robocop 2 , de 1990.

Dispondo de respostas bastante variadas, Roger Nygard declarou, em seu documentário A natureza da existência, de 2009: “Depois de encontrar tantos especialistas e gurus, uma nova parte de mim despertou com cada pessoa que conheci. Quanto mais eu aprendia sobre elas, mais gostava delas e menos crítico eu ficava. Tornei-me menos temeroso de nossas diferenças. Percebi o quanto somos parecidos. Todos querem amor, paz e algumas respostas que ajudem a vida a ser mais fácil”. E concluiu: “Enquanto estivermos aqui, como devemos continuar a viver nossas vidas? Por que fomos colocados neste planeta? Para nos esforçarmos, sofrermos e termos êxito apenas para morrer? […] A única coisa garantida é este momento, aqui e agora. Como eu irei vivê-lo? Continuarei buscando, pois você e eu estamos numa jornada e, quando pararmos de aprender e crescer, começaremos a morrer”.

Resposta pessoal.

• Você já se questionou sobre o porquê de sua existência? DiAlOGANDO

► Roger Nygard com Sri Sri Ravi Shankar, durante o período de gravação do documentário A natureza da existência , lançado em 2009.

Guru: guia religioso; mentor; conselheiro. No hinduísmo, o termo guru designa um líder espiritual.

Temeroso: quem tem medo ou receio de algo ou alguém.

Jornada: viagem; aventura.

ROGER NYGARD/THE NATURE OF EXISTENCE/REPRODUÇÃO

Sentido e significado

A primeira atitude filosófica para desconstruir o tema do sentido da existência consiste em perguntar: do que se trata quando falamos de sentido?

Em nosso modo cotidiano de pensar e falar, costumamos chamar de sentido o “significado” de alguma coisa. Por exemplo, ao ver as placas de trânsito a seguir, podemos questionar o “sentido” delas.

Ao observá-las, percebemos o que elas exprimem. A primeira é facilmente compreendida quando identificamos o desenho de uma buzina e notamos a tarja sobre ela. Estamos acostumados a entender essa marca como sinal de proibição. Então, os elementos que compõem a placa são rapidamente interpretados, e concluímos que é proibido buzinar. Entendemos também que estamos em uma região onde é necessário evitar o barulho (por exemplo, perto de um hospital).

A segunda e a terceira placas podem apresentar certa dificuldade se não conhecemos as regras de seu uso no trânsito. No caso da segunda, já sabemos que a tarja representa “proibição”. Resta saber o que significa o símbolo E . Ao entendermos que ele significa “estacionar”, concluímos que é proibido estacionar em determinado local. Compreendemos também que há uma razão para essa proibição. Por exemplo, pode haver uma garagem, pode ser uma rua de grande circulação (onde carros estacionados dificultam o tráfego).

► Representação de placas de trânsito, conforme o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Da esquerda para a direita: “Proibido buzinar”; “Proibido estacionar”; “Dê a preferência”.

Quanto à placa com o triângulo invertido (a base em cima), precisamos saber que, ao ver esse símbolo, devemos esperar passar o carro que já está no caminho que desejamos percorrer. É como se estivéssemos na ponta estreita do triângulo e nos dirigíssemos para a sua abertura, percebendo, porém, que essa abertura tem um limite (a base do triângulo): esse limite representa o fato de que devemos observar se algum carro já está no caminho e dar a ele a preferência para continuar seu trajeto. Entendemos facilmente também o porquê ou o sentido dessa placa: ela resolve a dificuldade de saber qual dos carros deve avançar quando se encontram ao mesmo tempo em um determinado local; evita-se que essa decisão seja tomada pelos próprios motoristas, pois isso seria muito arriscado.

O exemplo do uso das placas permite melhorar nossa maneira cotidiana de tratar de significado e de sentido. Quando sabemos o que significam os elementos de um símbolo, entendemos o seu significado (ao ver a imagem de uma buzina cortada, entendemos que é proibido buzinar, por exemplo). Além disso, somos capazes de também entender algo maior do que o próprio símbolo: o seu sentido (sua razão, seu porquê). Assim, ao observarmos a imagem da buzina cortada, concluímos que talvez haja um hospital no entorno (o hospital é o porquê da placa).

O significado, então, é o conteúdo básico da identidade de algo. Vemos um animal que tem quatro patas, late e balança o rabo e entendemos o seu significado: é um ser que pertence à espécie dos cachorros.

O sentido, por sua vez, é um conjunto de significados que exprime uma ideia mais ampla. Por exemplo, no caso da primeira placa, os desenhos conduzem o pensamento para além deles mesmos, permitindo entender algo mais amplo, como a existência de um hospital nas redondezas.

Ao considerar a existência, entendemos que ela é a experiência de estarmos no mundo e de estabelecermos relações com tudo e todos. Esse é o significado da existência. Olhamos para coisas, pessoas, acontecimentos etc. e os identificamos; entendemos o que são (sabemos diferenciar um cachorro de um gato, a raiva da alegria etc.).

Porém, também podemos olhar para o conjunto de tudo o que existe e pensar que um motivo talvez os tenha feito existir e os mantenha na existência. Questionar esse porquê, motivo ou razão significa perguntar o sentido da existência

Falar do sentido de algo equivale a falar de, pelo menos, duas coisas: a origem e a finalidade. A origem consiste no de onde vem algo; a finalidade, por sua vez, indica o para onde algo vai, aquilo que ele busca alcançar. Considerando que a existência é a nossa estada no mundo, em relação com tudo e todos que nos cercam, torna-se visível a dificuldade de falar de sua origem. Afinal, não temos nenhuma experiência dessa origem; não podemos observá-la.

No entanto, resta a possibilidade de refletir sobre o sentido da existência entendido como finalidade. Nesse campo, o debate filosófico é amplo e intenso. Para alguns pensadores e pensadoras, é possível entender a finalidade da existência, pois a própria existência daria sinais de sua finalidade. Segundo outros, não é possível falar de finalidade da existência, pois sequer temos condições de saber o que é “a” existência. Outros filósofos, ainda, afirmam que a existência simplesmente não tem qualquer finalidade. Neste capítulo, apresentaremos essas três posturas filosóficas, a fim de sintetizar as principais linhas do debate. EXERCICIO

Consultar orientações no Manual do Professor

1. Com base no exemplo das placas de trânsito, diferencie os termos significado e sentido

2. Quais são as duas maneiras básicas de exprimir o sentido de algo?

Critério: algo que serve de medida ou parâmetro para avaliar alguma coisa.

BIOGRAFIA

► Ludwig Wittgenstein, 1930.

Ludwig Wittgenstein (1889-1951), o filósofo austríaco, de grande destaque no pensamento contemporâneo, foi responsável pela revolução linguística que fez a Filosofia concentrar-se na relação entre linguagem e pensamento. Seu trabalho costuma ser dividido em duas fases, marcadas respectivamente pelas obras Tractatus logico-philosophicus e Investigações filosóficas.

Não é possível falar sobre o sentido da existência

Comecemos por uma posição filosófica bastante estimulante: havendo ou não um sentido para a existência, não podemos nos pronunciar sobre ele, pois não temos condições racionais para dar um tratamento adequado a esse tema. Questionar o sentido da existência seria propor uma pergunta que não pode ser respondida, o que equivaleria a uma falsa pergunta .

Um tratamento adequado ao tema da finalidade requereria saber o que é a existência como um todo, além de alguma observação que funcionasse como critério para orientar a compreensão de sua finalidade. Sem poder observar racionalmente o que é a existência em sua totalidade, não podemos saber a sua finalidade.

Pode-se associar essa postura filosófica ao pensamento do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. Leia, a seguir, o trecho da obra intitulada Tractatus logico-philosophicus, em que ele apresentou seu posicionamento a respeito do que considerava falsos problemas.

O sentido do “mundo” e da vida está fora do “mundo”

1.1 O mundo é a totalidade dos fatos, e não das coisas.

[…]

2. O que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas. 2.01 O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas).

[…]

3.22 O nome substitui, na proposição, o objeto.

[…]

4. O pensamento é a proposição com sentido.

4.001 A totalidade das proposições é a linguagem.

[…]

5.6 Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo.

[…]

6.41 O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece; […].

[…]

6.4312 […] A solução do enigma da vida no espaço e no tempo está fora do espaço e do tempo.

[…]

7. Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução: Luiz Henrique Lopes dos Santos. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. p. 135-281.

Observe a insistência de Wittgenstein em apontar para “fora” do “mundo”, do espaço e do tempo. Acompanhando as proposições tiradas do Tractatus, entendemos por que ele aponta para “fora” do “mundo”: se considerarmos como “mundo” o conjunto dos fatos (frase 1), quer dizer, dos estados de coisas (frase 2), ou as ligações que existem entre as coisas (frase 3), veremos que, nas frases ou proposições que construímos sobre o “mundo”, os nomes das coisas substituem as próprias coisas (frase 4).

O pensamento, então, como atividade racional compreensível pelos interlocutores, equivale a apresentar frases ou proposições com sentido ( frase 5 ); e isso, por sua vez, equivale a apresentar frases que representem estados de coisas ou relações entre coisas. A totalidade dessas proposições é a linguagem (frase 6 ); a linguagem, portanto, representa o “mundo”. Por fim, aquilo que não puder ser dito na linguagem passa a ser considerado como não pertencente ao “mundo” (frase 7 ).

O sentido do “mundo” ou tudo o que se refere ao seu porquê é algo que não cabe à linguagem, uma vez que não corresponde a nenhuma coisa representada por ela. Assim, ainda que haja algum sentido para o “mundo”, ele está fora do “mundo” (frase 8 ) porque está fora da linguagem.

Wittgenstein não afirmou nem negou que fora do “mundo” há um sentido. Se assim procedesse, não respeitaria sua própria visão e produziria uma “cãibra mental”, pretendendo pronunciar-se sobre algo que não corresponde a nenhuma coisa exprimível pela linguagem. Mas, ao falar de um “fora” do “mundo”, Wittgenstein também não pretendeu negar que o “mundo” tenha algum sentido. Se o negasse, produziria outra “cãibra”, porque também se pronunciaria sobre algo que simplesmente não faz parte da descrição do “mundo”.

Sem cair nessa armadilha, Wittgenstein não se comprometeu com um lado de “fora” da linguagem ou do “mundo”. Afirmar que o sentido do “mundo” está “fora” dele significa indicar que algo como um “sentido do mundo” (sua finalidade e mesmo sua origem) simplesmente não pode ser pensado com nossa aparelhagem mental e linguística. Mais coerente, então, é calar-se sobre aquilo de que não se pode falar (frase 10).

► Mural no Museu da Língua Portuguesa. São Paulo (SP), 2021.

DiCA

• Neste livro, Clarice Lispector (19201977) explora a relação entre a vida e a morte, bem como o tema do sentido. Só se deve valorizar aquilo que tem sentido? O que parece não ter sentido também faz parte da vida? De que maneira se pode viver aquilo cujo sentido não é compreensível, como a morte? Como morrer se não aprendemos isso?

► LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida Rio de Janeiro: Rocco, 1999. Reprodução da capa.

É possível falar sobre o sentido da existência

Alguns filósofos e filósofas consideram possível pronunciar-se sobre o sentido da existência justamente porque não tomam a existência como um bloco único de coisas interligadas ou como “um todo”; antes, chamam de existência a experiência de que estamos no “mundo” e podemos nos relacionar com tudo o que nos cerca. Mais do que “uma” coisa a ser conhecida em sua totalidade, a existência é sentida ou experimentada como ato, o ato de existir, quer dizer, de se perceber em relação a outros seres. Mesmo que estejamos sonhando ou que o que chamamos de existência não passe de um delírio pessoal e coletivo, não há dúvida de que esse “sonho” ou “delírio” possui um conjunto de significados e pode conduzir a um sentido. Esse sentido pode ser imanente ou transcendente, como estudaremos a seguir.

CONCEITOS ESTRATEGICOS

IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA

• Imanência: característica de algo que, ao ser explicado, permanece no mesmo nível de realidade considerado, sem apontar para além desse nível. Exemplos: ao fazer os humanos arcarem com as consequências de seus atos, a vida revela uma justiça imanente. O sentido do fluxo da existência é imanente ao próprio fluxo.

• Transcendência: característica de algo que, ao ser explicado, ultrapassa o nível de realidade considerado, revelando-se maior do que esse nível. Não necessariamente significa estar fora ou acima desse nível, mas ser superior ou maior do que ele. Exemplos: a beleza é transcendente às coisas belas. O país transcende seus habitantes.

► MOHAMMED, Mansouri Idrissi Sidi. [Sem título]. 2013. Óleo sobre tela, 115 cm × 115 cm. Obra apresentada na exposição “Imanência e transcendência”, Casablanca (Marrocos), 2013.

O s entido imanente da existência

É pela análise dos significados contidos no próprio ato de existir que filósofos, como o quebequense Jean Grondin, defendem a possibilidade de falar do sentido da existência entendido como finalidade. O ato de existir já tem por si só um significado: existir significa tender a continuar existindo. Já em termos de finalidade, podemos dizer que tudo existe porque visa sua conservação.

Esse dinamismo pode ser observado mesmo em seres irracionais; afinal, sem precisar refletir sobre o sentido da existência e sem estipular finalidades a alcançar, eles seguem o movimento ou o fluxo do próprio existir, comprovando, assim, que há uma direção seguida por todos: a autoconservação e o adiamento da morte tanto quanto for possível .

O sentido da vida independe de nós

O sentido é algo que sentimos e que, por isso, existe “independentemente” de nós. Eis alguns exemplos: o sentido de uma corrente ou das águas de um rio, o sentido do vento, o sentido do grito de um bebê, o sentido no qual se dirigem em conjunto as coisas (o crescimento de uma planta, a evolução de uma doença). Minha primeira evidência é que esse sentido, que poderíamos chamar de sentido de direção, não é construído por nós (afinal, ninguém inventou o sentido do rio); minha segunda evidência é que esse sentido pode “ser sentido” (para saber o que significa “sentir o sentido”, basta entrar em um rio, em um vendaval, sentir o cheiro de um alimento ou ouvir um grito de dor). Nos dois casos, fala-se de “sentido”; nossos cinco sentidos são nossas capacidades de sentir o sentido; o “sentido sentido” é a direção ou a finalidade das coisas mesmas. Nesse nível elementar, o sentido não depende, de modo algum, das nossas construções. A prova está em que nós, os humanos, não somos os únicos a sentir esse sentido. Os animais são perfeitamente capazes de senti-lo. Um animal “sente” se alguma coisa o ameaça, mas também sente quando alguma coisa é “sensata”: isto é comestível; este é um bom lugar para repousar; um bom parceiro etc. Toda vida é, assim, guiada por uma expectativa de sentido, embora essa expectativa possa ser decepcionada.

GRONDIN, Jean. À l’écoute du sens [À escuta do sentido]. Quebec: Bellarmin, 2011. p. 77-78. Tradução nossa.

Note que o texto de Jean Grondin começa pela conclusão: o sentido é algo que sentimos e que, por isso, existe independentemente de nós. O filósofo chama esse “sentido que se sente” de sentido de direção. Sua primeira evidência é o fato de que não somos nós que inventamos a direção das coisas, mas essa direção se impõe a nós.

BIOGRAFIA

Jean Grondin (1955-) é um filósofo e professor canadense reconhecido por suas contribuições no campo da hermenêutica, conhecida também como atividade da interpretação. Defende a existência de uma linguagem interior universal.

Principais obras: A universalidade da hermenêutica e O sentido da vida.

► Jean Grondin na Universidade de Montreal (Canadá), 2022.

► A correnteza de um rio, segundo Jean Grondin, indica a direção de um sentido que não depende de nós.

É muito difícil discordar de Grondin e considerar possível duvidar da direção do rio, do vento e do choro do bebê ou, ainda, imaginar como válido o contrário dessa direção. Ela é, portanto, uma evidência; e o pensamento de Grondin a esse respeito mostra-se bem justificado. É coerente com nossa experiência de “mundo” dizer que há uma direção em tudo o que existe.

Um segundo aspecto do ponto de partida do autor, chamado por ele de segunda evidência, está em dizer que o sentido de direção pode ser simplesmente “sentido”, isto é, captado por meio dos cinco sentidos. Para constatar isso, basta observar que, mesmo sem refletir, as pessoas percebem o que significa entrar em um rio ou em um vendaval, ouvir um grito de dor ou sentir o aroma de um alimento. Pelos cinco sentidos, percebemos, então, a direção ou a finalidade das coisas.

• Considerado a primeira obra de ficção científica, publicado originalmente em 1666 e única obra do século XVII sobre um mundo ideal imaginado por uma mulher, o livro de Margaret Cavendish é a história de uma jovem que desembarca em um mundo chamado Blazing World (em tradução livre, "mundo resplandecente ou glorioso"), tornando-se a imperatriz de um conjunto de espécies de animais falantes e podendo dar vazão a seus interesses filosóficos e científicos. Por sua confrontação com as normas de seu tempo, seu romance foi considerado um texto “hermafrodita”.

► CAVENDISH, Margaret. O mundo resplandecente. Tradução: Milene Cristina da Silva Baldo. [S. I.]: Plutão Livros, 2019. Reprodução da capa.

DiCA

Pode-se dizer que o sentido identificado por Jean Grondin como a finalidade da existência é imanente a ela mesma. O filósofo não aponta para um nível externo à existência nem se baseia em uma teoria sobre ela. Em sua análise, o ato de existir é o que revela sua própria finalidade ou o seu sentido.

Alguns filósofos trataram a imanência e a transcendência como duas alternativas excludentes. O “mundo” seria explicável por si só e tornaria desnecessário apontar para alguma dimensão maior do que ele. É o caso da posição filosófica conhecida como materialismo : a matéria de que são feitas todas as coisas é portadora de suas próprias possibilidades de desenvolvimento e é suficiente para explicar o “mundo”. Ela daria o seu sentido imanente tanto como finalidade (o desenvolvimento da matéria é o seu próprio objetivo) quanto como origem (tudo provém da matéria).

A filósofa britânica Margaret Cavendish é um exemplo de pensadora materialista. Para ela, a vitalidade da matéria não provinha de uma fonte externa, era uma característica inerente à própria matéria. Ela defendia uma concepção de natureza em que todas as partes da matéria possuem algum tipo de vida ou agência própria. O francês Paul-Henri Thiry (1723-1789), conhecido como barão d’Holbach, foi também um filósofo materialista. Para ele, o dinamismo da matéria (movimento) se realiza sem nenhuma causa externa a ela mesma ao mesmo tempo que a finalidade de tudo é realizar esse dinamismo.

BIOGRAFIA

► Margaret Cavendish (1623-1673).

Margaret Cavendish (1623-1673) foi uma filósofa naturalista que questionou as noções de ciência e filosofia dominantes em sua época. Em suas obras, ela discutiu a natureza do Universo, a matéria e a mente, propondo uma visão monista do mundo, o que antecipou debates modernos sobre o materialismo. Algumas de suas principais obras: Observações sobre a filosofia experimental, de 1666, e Fundamentos da filosofia natural, de 1668. Margaret Cavendish debateu com autores considerados os mais modernos de sua época, como Thomas Hobbes (15881679) e René Descartes (1596-1650). Ela entendia a natureza como um conjunto de seres corpóreos, o que significava não se comprometer mais com afirmações a respeito de realidades incorpóreas (como alma, Deus, espírito, bem, mal...), uma vez que, não possuindo corpos, não poderiam ser observáveis. Mas ela mesma mostraria que a dificuldade de falar de seres incorpóreos não significa dizer que eles não existam. Aliás, seu pensamento maduro entenderia a natureza como um conjunto de seres materiais (corpóreos), porém animados por uma vitalidade inerente a eles mesmos. Incognoscível em si mesma, essa vitalidade só pode ser investigada por seus efeitos nos seres materiais. Tais efeitos permitiriam, segundo Margaret, hierarquizar a matéria: a mais nobre é a matéria racional, que pensa em si mesma e que é animada tanto como a matéria sensível, que por sua vez é inferior; por fim, a matéria mais baixa é aquela que parece inerte, não dotada de nenhuma inteligência. Cavendish identificava o que se chama de espírito com a atividade cerebral, sendo uma das precursoras do materialismo em neurociência.

PICTORIAL

Alguns filósofos, porém, percebiam que o estudo da matéria era mais complexo, sobretudo porque não observamos nada no “mundo” a que possamos dar o nome de matéria. Só observamos coisas materiais singulares. O conceito seria, então, uma construção do pensamento, e não uma ideia que aponta diretamente para a realidade. Muito antes de Holbach (1723-1789), o filósofo Demócrito de Abdera explorou bastante essa temática. Assim, é possível afirmar que há vários materialismos na história do pensamento filosófico; e eles dependem do modo como cada filósofo entende a matéria. Aliás, nem mesmo na Física contemporânea há um conceito único de matéria.

BIOGRAFIA

Demócrito (c. 460 a.C.- c. 370 a.C.) nasceu em Abdera, na Grécia antiga, e é geralmente conhecido pela relação com seu mestre Leucipo de Mileto (c. 480 a.C.-420 a.C.). Restaram poucas informações históricas sobre ambos. Sabe-se, no entanto, que eles concebiam o Universo ou o “mundo” como um conjunto de átomos e de vazio. Embora haja muitas semelhanças entre a ideia de átomo de Demócrito e a concepção moderna (unidades que compõem os corpos), para o filósofo, o átomo significava aquilo que não pode ser dividido. Ele chegou a esse conceito imaginando que, se pudéssemos dividir a matéria ao máximo, chegaríamos a “pedaços” muitos pequenos, separados pelo vazio (uma ausência de átomo, porém uma ausência que permite a “colagem” de átomos; algo, portanto, que existe e que tem uma função). A natureza faz, então, que os átomos se unam e produzam corpos por colagens e descolagens de átomos.

O sentido transcendente da existência

► DEMÓCRITO. [Séc. I a.C.]. 1 escultura, bronze. Museu Nacional de Arqueologia, Nápoles (Itália).

Outros filósofos e filósofas identificam um sentido transcendente da existência, um horizonte de realização que vai além do próprio ato de existir. É uma reflexão que exige cuidado redobrado, pois, para que a afirmação de um sentido transcendente seja adequada, essa afirmação precisa se enraizar na imanência da experiência do ato de existir. Do contrário, corre o risco de apenas projetar opiniões, ideias ou teorias da existência.

Os pensadores e pensadoras que buscaram esse sentido transcendente perceberam que a observação do “mundo” colhe dados que se mostram incompreensíveis quando o olhar reflexivo se limita ao próprio “mundo”. Por exemplo, é possív el afirmar que há valores que se revelam no “mundo”, mas não se reduzem a ele. Valores são avaliações. Perceber valores no “mundo” significa olhar para as coisas, não se atendo apenas à estrutura física delas, e captar, ao mesmo tempo, o que elas valem por si mesmas. Assim, ao olhar para o “mundo”, podemos não apenas perceber as coisas, mas, também, avaliá-las como belas, boas, justas etc.

Beleza, bondade e justiça são tomadas como sentidos gerais que as coisas têm nelas próprias, independentemente do conteúdo ou do contorno cultural que se dê a esses conceitos. Mesmo os outros animais percebem valores nas coisas, identificando-as, por exemplo, como desejáveis, ameaçadoras, atraentes, repulsivas etc. Esses valores parecem objetivos, pois não dependem de invenção (haveria uma ordem objetiva de valores).

Alguns filósofos e filósofas concebem, assim, uma dimensão que, mesmo agindo no “mundo”, vai além dele e o supera. Identificam, portanto, um sentido transcendente, mas não tratam a transcendência e a imanência como alternativas excludentes, pois a transcendência se deixa perceber por meio de experiências vividas na imanência do “mundo”.

O filósofo grego Platão, por exemplo, observava que, embora os seres humanos reconheçam coisas belas no “mundo”, não faz sentido afirmar que a beleza é apenas o conjunto de coisas belas. A beleza é mais do que esse conjunto; ela vai além dele e é o que atribui sentido a ele. Afinal, tudo no “mundo” surge, desenvolve-se e morre, inclusive as coisas belas.

No entanto, o desaparecimento das coisas belas não faz desaparecer a experiência da beleza. Pelo contrário, outras coisas belas continuam a surgir. Para analisar o “mundo” de modo coerente, Platão concluiu que era necessário ir além do dinamismo da matéria e apontar para uma dimensão que age na matéria e a supera. A Beleza, assim, mais do que uma característica imanente às coisas belas, deve ser entendida como algo transcendente que faz as coisas serem belas, sendo maior do que elas e independente delas. O mesmo ocorre com as coisas verdadeiras e a Verdade, as coisas boas e a Bondade, as coisas numeradas e os Números. Platão chamou essa dimensão transcendente de Ideia, Essência ou Forma

Como tudo o que existe visa obter a máxima realização de si, Platão concluiu que a finalidade de tudo é imitar as ideias e se tornar como elas tanto quanto for possível no “mundo” material.

À objeção de que as Ideias, Essências ou Formas não são realidades observáveis no “mundo”, o pensamento platônico responderia que é o “mundo” mesmo que aponta para elas. Essa dimensão transcendente seria até mais compreensível do que a matéria; afinal, não

► PLATÃO. [ca. 2012]. 1 escultura, bronze.

há experiência direta de algo a que se possa dar o nome de matéria, mas apenas experiência de coisas materiais singulares. Falar, então, de matéria significa usar um conceito, uma elaboração mental com o fim de apontar para uma dimensão imanente que, assim como as Ideias, não é diretamente perceptível.

BIOGRAFIA

Platão (427 a.C.-347 a.C.) nasceu e viveu em Atenas, na Grécia, foi aluno de Sócrates e professor de Aristóteles. Além das reflexões de seu mestre, Platão conheceu em profundidade o pensamento dos primeiros filósofos (conhecidos como pré-socráticos) e dos sofistas. Foi com base nessa formação que ele elaborou o núcleo de sua filosofia, conhecido como Teoria das Formas ou Ideias. Platão escreveu numerosas obras, todas em forma de diálogo, pois esse estilo concretizava o método filosófico que ele aprendera com seu mestre e assumira também como seu: o método dialético. Entre os diálogos platônicos mais conhecidos na história da Filosofia, estão Apologia de Sócrates (sobre a filosofia e sobre o julgamento de seu mestre, que foi condenado à morte), Protágoras (sobre os sofistas), Crátilo (sobre a linguagem), O banquete (sobre o amor), A república (sobre a justiça, a Filosofia, a dialética e as Ideias) e Sofista (sobre o ser).

As coisas belas permitem ver a Beleza

Tenta seguir-me se fores capaz: quem corretamente se encaminha para esse fim [essa formação] deve começar, quando jovem, por dirigir-se aos belos corpos; e, em primeiro lugar, se o seu dirigente o dirige corretamente, deve amar um só corpo e gerar belos discursos. Depois, deve compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã da beleza que está em qualquer outro [corpo] e que, se se deve procurar o belo na Forma, seria muita tolice não considerar uma só e mesma Beleza em todos os corpos.

Ao entender isso, [quem está em formação] deve fazer-se amante de todos os belos corpos e largar o amor violento de um [corpo] só após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho. […]

Mesquinho: limitado; estreito.

Ápice: ponto mais alto, cume.

Súbito: imediatamente; de repente.

Penas: esforços.

Tenta agora prestar-me a máxima atenção possível. Aquele que, nas coisas do amor, tiver sido orientado até esse ponto, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já chegando ao ápice dos graus do amor, súbito perceberá algo de maravilhosamente belo em sua natureza, aquilo mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas anteriores: […] aparecer-lhe-á [o Belo ou a Beleza], aquilo que é por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme, enquanto tudo o mais que é belo dele participa, de um modo tal que, enquanto tudo mais que é belo nasce e perece, em nada [o Belo ou a Beleza] fica maior ou menor, nem nada sofre.

PLATÃO. Os pensadores: diálogos: o banquete: Fédon: sofista: político. Tradução: José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat, João Cruz Costa. São Paulo: Nova Cultural, 1972. p. 44-45.

Filosofia religiosa

Mantendo grande semelhança com o procedimento platônico, mas introduzindo nele uma diferença radical, pensadores religiosos defendem que o sentido da existência ou a sua finalidade é conhecer a Deus. A semelhança com Platão reside em apontar para uma dimensão transcendente que esclarece o “mundo”; a diferença, por sua vez, está em pensar que essa dimensão transcendente é “alguém”, um ser com o qual se pode estabelecer uma relação de amizade e amor recíproco.

Essa postura pode ser chamada de filosofia religiosa, pois os pensadores e pensadoras baseiam-se na experiência de fé para justificar a afirmação de que a finalidade última da existência é o encontro com Deus. Ao longo da história da Filosofia, muitos intelectuais adotaram tal postura. Enraizados na imanência da experiência de fé, apontavam para a transcendência divina e esforçaram-se para preservá-la como uma dimensão que, embora possa ser captada e expressa pelo pensamento, permanece inesgotável como um mistério, o qual pode ser investigado continuamente.

Hoje, no entanto, percebe-se uma fragilidade na forma como algumas pessoas religiosas apresentam o ser divino, principalmente quando participam de debates científicos. Muitas vezes, sem perceber, adotam procedimentos fundados na imanência e não preservam a transcendência divina; falam de Deus como se ele fosse uma peça no “quebra-cabeça” da natureza e perdem de vista a necessidade de tratá-lo como algo que supera o “mundo”.

DiCA

• Drama biográfico de Margarethe von Trotta que retrata a vida monástica de Hildegarda de Bingen.

► HILDEGARDA von Bingen recebe uma visão e a transmite ao seu escriba. [Entre 1151 e 1179]. Iluminura. Bingen am Rhein (Alemanha). Obra extraída da coleção Códice Rupertsberg publicada no livro Scivias.

BIOGRAFIA

Hildegarda de Bingen (1098-1179) foi uma filósofa e monja beneditina alemã, conhecida entre os católicos como santa Hildegarda. Foi também mística, teóloga, médica, poeta, musicista, botânica e dramaturga. Pela sua fé, acreditava que não nascemos do acaso nem para o acaso, mas sim pela vontade de Deus, que deseja sempre o melhor a todos, justos e injustos. Alinhado à vontade divina, o sentido da vida seria o crescimento espiritual e o conhecimento. Sua obra mais conhecida é Scivias: Scito Vias Domini: conhece os caminhos do Senhor.

► VISÃO: sobre a vida de Hildegard von Bingen. Direção: Margarethe von Trotta. Alemanha: Zeitgeist Films, 2009. Streaming (111 min). Pôster do filme.

Refutar: rejeitar algo, mostrando sua incoerência.

Razoável: baseado em boas razões.

• Neste livro, o escritor português Anselmo Borges (1944-) reflete sobre as razões para afirmar e negar a possibilidade de o ser divino ser considerado fonte de sentido para a existência.

► BORGES, Anselmo. Deus e o sentido da existência. Lisboa: Gradiva, 2011. Reprodução da capa.

Alguns cientistas e filósofos religiosos agem equivocadamente; tanto para afirmar como para negar a existência de Deus, o tratam como uma parte do “mundo” ou um dado científico que deve ser defendido ou refutado. É razoável debater e justificar a crença ou a descrença em Deus, mas é um equívoco realizar tal debate de modo a reduzir Deus a algo que se pode explicar, assim como se explicam as outras coisas do “mundo”.

Um caso explícito desse equívoco é a discussão religiosa que ficou conhecida, de modo geral, como debate criacionismo versus evolucionismo . Esquecendo-se do sentido como finalidade e concentrando-se no sentido como origem, de um lado, religiosos defendem a criação do “mundo” e dos seres humanos com base na existência de um primeiro casal; de outro lado, cientistas evolucionistas negam a existência de Deus com base em teorias como a da explosão inicial, ou Big Bang , e do surgimento da vida humana como consequência da evolução dos primatas. Os representantes desse debate ignoram, porém, que o tema da origem do “mundo” escapa a toda possibilidade de prova definitiva e permanece sempre sob a possibilidade da dúvida.

Do lado científico, é exagerada a afirmação de que o “mundo” começou por acaso, pois o acaso não pode ser comprovado. O sentido do acaso é sempre uma interpretação de sinais (significados) encontrados na natureza; não é um significado direto, ou seja, não é algo que independe da construção humana. Além disso, afirmar que o “mundo” não teve um começo (sempre existiu) também não nos impede de pensar que um ser transcendente pode ter desejado que o “mundo” tivesse sempre existido.

Do lado religioso, por sua vez, crer que Deus criou o “mundo” não exclui que ele pode ter se servido dos meios conhecidos pela ciência para fazer o “mundo” ser tal como é. Os livros religiosos (Torá, Bíblia, Alcorão etc.) não são obras científicas, mas registros de visões de fé cujo objetivo é identificar em Deus o sentido de tudo o que existe. Ora, se Deus é transcendente, ele pode ter feito que o “mundo” começasse a existir em determinado momento ou, então, que existisse desde sempre.

No limite, criacionistas e evolucionistas não têm pensamentos que se excluem necessariamente. A raiz de sua discórdia está no fato de que não tratam adequadamente a transcendência divina. Afirmar com coerência que Deus existe exige não o tratar como simples parte do “mundo”; negar com coerência que ele existe significa negar a possibilidade de toda a transcendência, e não apenas negar que ele é uma peça da “engrenagem” natural.

DiCA

A existência não tem sentido; é

absurda

Há filósofos e filósofas que consideram a existência como algo sem sentido, sem finalidade; ela seria, portanto, absurda.

A base dessa percepção é, em geral, a profunda decepção diante do sofrimento e da incapacidade de satisfazer plenamente o desejo de realização. A existência impulsiona os seres vivos a buscar satisfação e a investir energia para obtê-la. No entanto, a mesma existência não permite que essa satisfação seja obtida de maneira completa. Desse ponto de vista, a existência pode parecer uma “piada” de mau gosto.

Essa “piada” pode piorar quando os seres humanos conseguem satisfazer seus desejos e percebem que não ganham nada de extraordinário com isso. Ficam apenas satisfeitos por um tempo e, logo em seguida, voltam a entediar-se, ou seja, a encher-se de tédio, uma sensação de não ter nada que motive ou dê gosto pela vida. Um filósofo que marcou profundamente o pensamento ocidental ao refletir sobre a experiência do tédio foi o alemão Arthur Schopenhauer. Conforme o filósofo, os seres humanos só têm prazer na existência quando lutam por algo, assim como quando estão com fome e procuram alimento. Uma vez alimentados, eles sentem tédio, a sensação que não leva a nada. Quando prestam atenção no próprio ato de existir, percebem que ele é vazio, sem valor por si só.

A vanidade da existência

A vida humana deve ser algum tipo de equívoco. A verdade disso ficará suficientemente óbvia se lembrarmos que o ser humano é composto de carências e necessidades difíceis de satisfazer. Mesmo que sejam satisfeitas, tudo o que o ser humano obtém é uma situação de vida sem dor, quando não resta nada para ele, a não ser um mergulho no tédio. Essa é uma prova direta de que a existência não tem valor real em si mesma. Aliás, o que é o tédio senão o sentimento do vazio da vida? Se a vida […] possuísse algum valor nela mesma, então não deveria haver tédio; a mera existência nos satisfaria e nós não desejaríamos mais nada. Em vez disso, não temos prazer na existência, exceto quando lutamos por alguma coisa.

SCHOPENHAUER, Arthur. Studies in pessimism: the vanity of existence. In : SAUNDERS, T. Bailey (ed.). Essays of Arthur Schopenhauer. Tradução: T. Bailey Saunders. Nova York: A. L. Burt Company, 1902. p. 397-398. Tradução nossa.

BIOGRAFIA

► Arthur Schopenhauer, 1859.

Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi um filósofo alemão. Segundo ele, o ser humano, ao tomar consciência de si, descobre-se como um ser de vontade, tal como a natureza em geral, pois tudo busca sua própria conservação. Obras mais conhecidas: O mundo como vontade e representação, de 1819, e Seis ensaios de Parerga e Paralipomena: pequenos escritos filosóficos, de 1851.

Vanidade: característica daquilo que não tem valor; que é vão, vazio.

BIOGRAFIA

Albert Camus (19131960) foi um escritor e filósofo francoargelino nascido em Mondovi (atual Dréan), na Argélia. O sofrimento pela fome, a miséria, as guerras e as injustiças foram temas de grande importância em seu pensamento. Obras mais conhecidas: O estrangeiro, romance de 1942, e O homem revoltado, ensaio filosófico de 1951.

Outros pensadores concentraram-se na experiência humana do sofrimento, principalmente o dos inocentes, para defender que a existência é absurda. Deram, assim, à experiência do sofrimento dos inocentes o nome de problema do mal: se há um sentido bom na existência (dado por Deus, por exemplo, ou pela bondade do próprio universo), como entender que coisas más acontecem, principalmente com pessoas boas? Leia, a seguir, o trecho do texto em que o escritor franco-argelino Albert Camus ilustrou a revolta contra a falta de coerência da vida.

O absurdo da vida é o absurdo do sofrimento

O protesto contra o mal […] é significativo. Revoltante em si não é o sofrimento da criança, mas o fato de que esse sofrimento não seja justificado. Afinal, a dor, o exílio, o confinamento são às vezes aceitos quando ditados pela medicina ou pelo bom senso. Aos olhos do revoltado, o que falta à dor do mundo, assim como aos seus instantes de felicidade, é um princípio de explicação.

Há uma profunda verdade no “homem revoltado” descrito por Albert Camus: a falta de explicação objetiva tanto para o sofrimento como para a felicidade. A revolta, no entanto, também pode ser entendida como um desejo de que a vida seja melhor.

Concentrando-se nesse mesmo desejo, o filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993) elaborou um pensamento que convida a perceber o lado bom do caráter absurdo da vida: em vez de esperar pela intervenção de um ser transcendente (milagres, graças), cabe aos seres humanos desenvolver a responsabilidade por si mesmos e pelo “mundo”, aceitando como imutável apenas aquilo que realmente não podem mudar.

Em outras palavras, trata de não esperar de Deus (ou de qualquer outra dimensão transcendente) mudanças que cabem aos seres humanos, tampouco o culpar pela falta de mudanças.

► O MENINO e o Mundo. Direção: Alê Abreu. Brasil: Filme de papel, 2013. Streaming (140 min). Frame da animação.
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução: Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017. E-book. Localizável em: cap. Niilismo e história.
► Albert Camus, 1947.

Elie Wiesel (1928-2016), escritor e filósofo judeu, nascido na Romênia e naturalizado estadunidense, refletiu sobre o silêncio de Deus diante dos campos de concentração nazistas. Em 1943, quando tinha 15 anos, Elie foi deportado com sua família para Auschwitz, na Polônia, onde perdeu os pais e as três irmãs. Algum tempo depois da liberação em 1945, Elie narrou sua experiência no livro A noite. Uma das cenas por ele descrita é impressionante e suscita uma reflexão sobre a liberdade humana e a responsabilidade.

Deus enforcado

Havia no campo de concentração um garoto, [...]. Um dia, quando voltávamos do trabalho, vimos três forcas armadas no local onde nos reuníamos quando era feita a Chamada. Fizeram a Chamada. Os SS à nossa volta; as metralhadoras apontadas: cerimônia tradicional. Três condenados estavam acorrentados e, entre eles, o pequeno [garoto]. O chefe do campo leu o veredicto. Todos os olhares estavam fixos sobre o menino. […] Os três condenados subiram ao mesmo tempo nas cadeiras. O pescoço dos três foi introduzido nas cordas.

— Onde está o bom Deus, onde está? — perguntou alguém atrás de mim. A um sinal do chefe do campo, as três cadeiras tombaram. Os dois adultos já não viviam. Mas a terceira corda se movia: o menino era tão leve que ainda estava vivo. Por mais de meia hora, ele ficou assim, lutando entre a vida e a morte, agonizando diante de nossos olhos […].

Ouvi, atrás de mim, a mesma pessoa perguntar:

— Então, onde está Deus?

E eu senti em mim uma voz que respondia:

— Onde está? Está aqui: pendurado nessa forca.

WIESEL, Elie. La nuit . [A noite]. Paris: Éditions de Minuit, 1958. p. 102-105. Tradução nossa.

SS: abreviação da palavra alemã Schutzstaffel (“esquadrão de proteção”), organização ligada ao partido nazista para pôr em prática seus ideais. Veredicto: sentença; decisão de uma autoridade judiciária.

Consultar orientações no Manual do Professor.

Respostas pessoais.

• Você já sentiu revolta? O que motivou esse sentimento? Como você o experienciou? Ele interferiu em seu modo de perceber a vida?

► Crianças presas pelos nazistas no campo de concentração de Auschwitz (Polônia), em 1945.

DiAlOGANDO

CIÊNCIAS DA NATUREZA E SUAS TECNOLOGIAS

Consultar orientações no Manual do Professor.

O sentido da existência segundo os cientistas

Para melhorar sua compreensão das ideias filosóficas apresentadas neste capítulo, é interessante conhecer melhor os dados vindos de outras áreas do conhecimento, tomados como base para a reflexão filosófica sobre a origem e a finalidade da existência.

Sob a orientação do professor de Filosofia, convide os professores de Biologia, de Física e de Química para uma aula conjunta em que você possa refletir sobre os aspectos indicados nas atividades a seguir. Redija uma breve dissertação sobre os temas propostos em cada uma das atividades.

► Fotografia do físico

Stephen Hawking em evento comemorativo do 50o aniversário da Agência Espacial Americana (Nasa). Washington (Estados Unidos), 2008.

1. Aula de Biologia . Com base em pesquisas sobre a genética, compare a visão de cientistas que consideram os genes como “programados” e negam a liberdade humana com a visão de cientistas que, mesmo identificando “programações” nos genes, não negam a liberdade humana; por exemplo, você pode analisar as ideias de Richard Dawkins e Rupert Sheldrake (1942-).

2. Aula de Física . Com base na teoria do Big Bang , compare a visão de cientistas que aceitam essa teoria como forma de negar a existência de um ser divino com a visão de cientistas que, mesmo aceitando essa teoria, não veem nela uma forma de negar a existência do ser divino; por exemplo, você pode analisar as ideias de Stephen Hawking (1942-2018) e de Owen Gingerich (1930-2023).

3. Aula de Química . Com base na teoria de que os compostos orgânicos podem resultar também de elementos não orgânicos, compare a visão de cientistas que consideram a “matéria” como dotada de um dinamismo próprio (sem a necessidade de nenhum fator diferente da própria matéria) com a visão de cientistas para os quais o dinamismo da matéria não pode ser explicado apenas com base na própria matéria; por exemplo, você pode estudar o trabalho de Jöns Jacob Berzelius (1779-1848) e de James Tour (1959-).

Não escreva no livro.

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

Não escreva no livro.

Leia, a seguir, o trecho do texto em que o escultor Auguste Rodin (1840-1917) trata da arte e do sentido da existência.

Existência e arte: Auguste Rodin

Felizmente, as obras de arte não estão entre as coisas úteis, quer dizer, entre aquelas que servem para nos alimentar, nos vestir, nos proteger; numa palavra, para satisfazer nossas necessidades físicas. Bem ao contrário, as obras de arte nos arrancam da escravidão da vida prática e nos abrem o mundo encantado da contemplação e do sonho.

[…] A arte indica aos seres humanos a razão de existir deles. Ela lhes revela o sentido da vida; ela ilumina os humanos em seu destino e, por conseguinte, os orienta na existência.

RODIN, Auguste. L’art: entretiens réunis par Paul Gsell [A arte: coletânea de entrevistas]. Paris: Bernard Grasset, 1911. p. 299-301. Tradução nossa.

► CLAUDEL, Camille. Jeune fille à la gerbe [Jovem com um feixe de trigo]. 1886. Escultura em terracota, 40 cm × 18 cm × 16 cm. Museu Rodin, Paris (França).

► RODIN, Auguste. Galatée [Galateia]. 1889. 1 escultura, mármore. Museu Rodin, Paris (França).

1. De acordo com Auguste Rodin, qual é a função da arte?

Consultar orientações no Manual do Professor.

2. Com base no texto, justifique a afirmação de que a arte não é útil.

3. Alguma vez você refletiu sobre o sentido da existência ao contemplar uma pintura, experienciar uma música ou ler um poema? Descreva essa experiência.

4. Após ter lido o trecho de Rodin, acesse o site do Museu Rodin, disponível em: https://www.museerodin.fr/musee/collections (acesso em: 16 set. 2024), sem se preocupar em entender o que está escrito (em francês), mas apreciando as obras do artista. Basta clicar nas imagens e avançar pelas páginas. Na aba Collections , você pode escolher entre as esculturas, os desenhos, as fotografias etc. Você encontrará também obras da escultora Camille Claudel (1864-1943). Ao explorar o conteúdo do site, reflita sobre o texto em que Rodin afirmou que a arte pode revelar o sentido da existência e colaborar para que o ser humano possa se orientar nela. Escreva suas impressões.

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1. O que leva alguns filósofos e filósofas a considerar falsa a pergunta pelo sentido da existência?

2. Considere a postura filosófica segundo a qual, mesmo se houvesse um sentido para a existência, não seria possível falar sobre ele. Com base nela, explique o que permite que outros filósofos defendam a ideia de que é possível falar sobre esse sentido.

3. O que é o sentido imanente e o que é o sentido transcendente?

4. Por que , segundo Jean Grondin, o comportamento dos animais seria uma prova de que o sentido da existência não é uma construção humana?

5. Falar de algo transcendente significa falar necessariamente de algo que está fora do “mundo”? Justifique.

6. (UFPR) Em determinado momento do diálogo de Hípias Menor, de Platão, Sócrates declara que encontrou dificuldade para responder à pergunta “qual o critério para reconheceres o que é belo e o que é feio?”.

De acordo com Platão, a dificuldade está em que:

a) os juízos de Beleza são subjetivos, sendo relativos a quem os enuncia.

b) o belo e o feio não se distinguem realmente.

c) é preciso conhecer o que é Beleza para que se possam identificar as coisas belas.

d) o critério de Beleza não é acessível aos homens, mas apenas aos deuses.

e) a Beleza é uma mera aparência.

7. Segundo Arthur Schopenhauer, qual é a prova direta de que a existência não tem valor real em si mesma?

8. O que significa o problema do mal segundo autores como Albert Camus?

9. (Unesp)

O mundo seria ordenado demais, harmonioso demais, para que se possa explicá-lo sem supor, na sua origem, uma inteligência benevolente e organizadora. Como o acaso poderia fabricar um mundo tão bonito? Se encontrassem um relógio num planeta qualquer, ninguém poderia acreditar que ele se explicasse unicamente pelas leis da natureza, qualquer um veria nele o resultado de uma ação deliberada e inteligente. Ora, qualquer ser vivo é infinitamente mais complexo do que o relógio mais sofisticado. Não há relógio sem relojoeiro, diziam Voltaire e Rousseau. Mas que relógio ruim o que contém terremotos, furacões, secas, animais carnívoros, um sem-número de doenças – e o homem! A história natural não é nem um pouco edificante. A história humana também não. Que Deus após Darwin? Que Deus após Auschwitz?

(André Comte-Sponville. Apresentação da filosofia , 2002. Adaptado.)

Sobre os argumentos discorridos pelo autor, é correto afirmar que a existência de Deus é:

Consultar orientações no Manual do Professor
6. Alternativa C.
ReToManDO Não escreva no livro.

a) defendida mediante um argumento de natureza estética, em oposição ao caráter ideológico e alienante das crenças religiosas.

b) tratada como um problema sobretudo metafísico e teológico, diante do qual são irrelevantes as questões empíricas e históricas.

c) a bordada sob um ponto de vista bíblico-criacionista, em oposição a uma perspectiva romântica peculiar ao iluminismo filosófico.

d) problematizada mediante um argumento de natureza mecanicista-causal, em oposição ao problema ético da existência do mal.

9. Alternativa D

e) t ratada como uma questão concernente ao livre-arbítrio da consciência, em detrimento de possíveis especulações filosóficas.

DISSERTAÇÃO Dissertação de síntese filosófica

Como forma de rever o conteúdo deste capítulo e articular os principais elementos nele trabalhados, componha uma dissertação de síntese filosófica, conforme a explicação apresentada no capítulo 3 (página 104). Tema da dissertação: é possível falar filosoficamente do sentido da existência?

Para elaborar o texto, você pode se basear nas reflexões apresentadas neste capítulo. Propomos sete passos a seguir.

1O . PASSO Comece mostrando como as pessoas compreendem o “sentido da vida”.

2O . PASSO E xplique por que a Filosofia não oferece apenas mais uma opinião.

3O . PASSO Esclareça o que quer dizer o termo sentido

4O . PASSO Apresente a postura filosófica que não aceita a possibilidade de pensar adequadamente o sentido para a existência.

5O . PASSO A presente a postura filosófica que defende a possibilidade de pensar adequadamente o sentido para a existência e mostre como essa postura pode ser dupla:

(A) postura de quem defende um sentido imanente;

(B) postura de quem sustenta um sentido transcendente.

6O . PASSO Apresente a postura filosófica que afirma a falta de sentido para a existência e a considera absurda.

7O . PASSO Tome uma posição pessoal, aproximando-se de uma das três posturas apresentadas ou mesmo assumindo uma delas. Justifique-se, explanando suas motivações e seus argumentos.

NATUREZA, CULTURA E PESSOA 6

Em nosso modo cotidiano de falar, costumamos nos referir à Natureza como o grande conjunto dos minerais, vegetais, animais e seres humanos. Incluímos o ser humano entre os outros seres, mas, ao mesmo tempo, destacamo-lo do conjunto, tratando-o como diferente. Em outras palavras, tomamos o ser humano como parte da Natureza, porém marcamos sua diferença em meio ao conjunto. Contudo, o ser humano não é um animal? Se ser animal significa ter um corpo vivo, dotado da capacidade de perceber o mundo, expressar emoções e fazer escolhas, então também somos animais. Por outro lado, percebemos que é diferente o modo como vivemos nosso corpo, percebemos o mundo, expressamos emoções e fazemos escolhas, pois fazemos algo de que os outros animais mostram-se incapazes: nós podemos sentir o valor objetivo de tudo, quer dizer, temos a possibilidade de perceber (ou pelo menos de buscar) aquilo que cada ser representa no conjunto dos seres; ainda, refletimos sobre nós mesmos, sobre nosso comportamento e sobre o que pode significar (ou não) o mundo. ► Monge budista alimenta tigre. Kanchanaburi (Tailândia), 2015.

Somos diferentes da Natureza?

À diferença que permite aos humanos sentir o valor objetivo de tudo damos o nome de sentimento; e à diferença que lhes permite refletir sobre si mesmos, seus comportamentos e o mundo, costumamos chamar de razão. Com efeito, os humanos revelam a possibilidade de encontrar maneiras novas de viver, com base no seu sentimento do mundo e adaptando-se às situações de forma refletida e calculada, por um aprendizado e uma construção de sua diferença (razão e sentimento). Já os animais não humanos “nascem sabendo” tudo aquilo de que necessitam para permanecerem vivos. Com o passar do tempo, mostram que apenas desenvolvem o que já têm em seu organismo como instinto.

Há, porém, um risco em descolar os seres humanos do grupo dos outros seres, o risco de encararmos a Natureza como uma casa que é nossa, mas da qual não nos sentimos realmente membros. Afirmamos pertencer a ela, mas, ao mesmo tempo, sentimo-nos separados dela, quase como intrusos. Essa situação estranha parece gerar duas atitudes: passamos a acreditar que realmente somos diferentes da Natureza e a tratamos como algo que está a nosso serviço ou contra nós; ou passamos a acreditar que, para realmente nos sentirmos em casa na Natureza, devemos recuperar nossa “animalidade” e abster-nos de nossas características especificamente humanas.

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

Natureza, ciência e tecnologia

• Em grupo. Organizem-se em trios e leiam os dois trechos de textos a seguir. Ao lê-los, pensem na seguinte problemática: como os seres humanos podem sentir-se plenamente membros da Natureza se a alteram tanto com a tecnologia e o desenvolvimento?

Terra mãe e sentido

[...] estamos tentando abordar o impacto que nós, humanos, causamos neste organismo vivo que é a Terra, que em algumas culturas continua sendo reconhecida como nossa mãe e provedora em amplos sentidos, não só na dimensão da subsistência e na manutenção das nossas vidas, mas também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência. Em diferentes lugares do mundo, nos afastamos de uma maneira tão radical dos lugares de origem que o trânsito dos povos já nem é percebido. Atravessamos continentes como se estivéssemos indo ali ao lado. Se é certo que o desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar para outro, que as comodidades tornaram fácil a nossa movimentação pelo planeta, também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma perda de sentido dos nossos deslocamentos.

KRENAK, Ailton. Do sonho e da terra. In: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 42-43.

Não escreva no livro.

Consultar orientações no Manual do Professor.

Quem somos, enfim, nós?

[...] A pergunta que Ailton Krenak dirige aos leitores neste livro é tão simples quanto inquietante: ‘Somos mesmo uma humanidade?’ Essa pergunta é declinada com duas ênfases distintas. Somos mesmo uma humanidade (e não uma diversidade irredutível de modos humanos de viver em sociedade)? E somos mesmo uma humanidade (e não uma rede inextricável de interdependências do humano e do não humano)? Enquanto procuramos uma resposta, nós nos perguntamos: quem é este ‘nós’ que está na pergunta de Krenak? [...] Quem somos, enfim, nós? ‘Nós’ relativamente a quem? Ao quê? [...]

Depois de ler os textos e refletir juntos, um(a) estudante escreverá um texto de dez linhas para defender que a tecnologia e o progresso são ruins. Na sequência, outro(a) estudante também produzirá um texto de dez linhas para defender que a tecnologia e o desenvolvimento são bons. O trio lê as duas respostas, e o(a) terceiro(a) estudante atuará como avaliador(a), mostrando qual dos dois textos tem melhor argumentação. Se o(a) avaliador(a) discordar dos(as) dois(duas) debatedores(ras), deverá defender sua própria posição, e os(as) três debaterão, então, para escolher quem teve a melhor argumentação.

► Placas de circuito impresso antigas e componentes de dispositivos elétricos. Nova Délhi (Índia), 2023. A relação entre a tecnologia e a natureza pode trazer vantagens e desvantagens. Uma das desvantagens é o lixo eletrônico.

2020. p. 76-77.

S omos partes da Natureza e

a transcendemos

Acreditar que realmente somos diferentes da Natureza e abster-nos de nossas características especificamente humanas são duas atitudes claramente problemáticas.

Atualmente, principalmente por causa do aumento dos investimentos em negócios com animais (compra, venda, tratamentos, cuidados estéticos etc.), há também a tendência de valorizar o papel dos animais não racionais na vida humana e na vida em geral, a ponto de se pretender entender e explicar os seres humanos com base no comportamento dos animais não humanos. Esse é um tema bastante delicado, pois discordar da pretensão aqui descrita pode parecer significar um desprezo pela vida dos animais não humanos, e, a fortiori, pelos outros seres vivos e, obviamente, pelos seres não vivos. No entanto, é realmente necessário desumanizar os humanos para valorizar o que não é humano?

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Posfácio: perguntas inquietantes. In: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,

CUIDADO lOGICO Raciocínio a fortiori

O nome desse tipo de raciocínio vem da expressão latina a fortiori ratione , que significa “por uma razão mais forte”. Consiste em mostrar que algo verdadeiro decorre, por razões ainda mais fortes, de outro algo verdadeiro. Aquilo que é concluído deve estar incluído no que é considerado como dado. Exemplos:

• Se já é difícil prever o que ocorrerá amanhã, mais difícil ainda é saber o que ocorrerá daqui a uma semana.

• Este filme é inadequado para uma criança de 10 anos. Portanto, é também inadequado para uma de 6 anos.

Embora usado com muita frequência, o raciocínio a fortiori pode ser frágil e mesmo inválido. Para ser válido, sua conclusão deve estar necessariamente contida em seus pontos de partida (suas premissas). Declarar, por exemplo, “se toda lei é uma convenção social, então toda convenção social deve ser respeitada como lei” é um exagero, pois nem toda convenção social é lei. Basta pensar que comemorar aniversários é uma convenção social, mas não tem força de lei.

A filósofa alemã de origem judaica, Hannah Arendt (1906-1975), efletiu sobre os equívocos da insistência em querer entender os seres humanos com base na observação dos animais. Em seu livro Sobre a violência, publicado originalmente em 1970, Hannah Arendt estuda, como indica o título, o tema da violência, mas oferece uma chave de compreensão preciosa para analisar uma diferença qualitativa insuperável entre animais não humanos e animais humanos. Busque essa diferença no texto a seguir.

O ser humano não é animal como os outros animais – Hannah Arendt

Embora eu considere fascinante a maior parte do trabalho dos zoólogos, não consigo ver como se pode aplicar esse trabalho ao nosso problema [da violência]. Para entender que o povo lutará por seu espaço, só com muita dificuldade poderíamos falar do instinto de ‘territorialismo grupal’ de formigas, peixes e macacos; ou, para aprender que a superpopulação resulta em irritação e agressividade, não precisaríamos de experiências com ratos. Um dia numa favela de uma grande cidade já bastaria.

Fico espantada, e na maioria das vezes feliz, quando vejo que alguns animais comportam-se como humanos, mas não entendo como isso poderia justificar ou condenar o comportamento humano. Não consigo entender por que nos pedem para ‘reconhecer que o ser humano comporta-se claramente como uma espécie grupal e territorialista’, em vez de dizer que são certas espécies animais que se comportam claramente como os humanos. [...]

► Folha envolta por coroas de luz, um processo de fotografia. Reino Unido, 2005. Pesquisadores como Michel Thellier (1933-), membro da Academia de Ciências da França, defendem que as plantas “percebem” e “têm memória”. Outros chegam a afirmar que elas têm uma estrutura parecida com a dos neurônios humanos.

NATASHA SEERY/SSPL/GETTY IMAGES

Antropomorfismo: compreensão de algo não humano com base nos seres humanos; projeção do que é humano ao que é não humano.

Teromorfo: que possui a forma de uma fera, de um animal de grande força.

Herbívoro: que se alimenta de plantas.

Por que nós, depois de termos libertado a psicologia animal de todos os antropomorfismos (se conseguimos ou não, essa é outra questão), deveríamos agora tentar saber o quanto teromorfo é o ser humano?

Além disso, se definimos que o ser humano faz parte do gênero animal, por que deveríamos pedir a ele que adote padrões de comportamento de outras espécies animais? A resposta, infelizmente, é simples: é mais f ácil fazer experiências com animais [...]; não é bonito pôr seres humanos em jaulas.

Mas há um elemento de perturbação nisso tudo: o ser humano pode trapacear!

ARENDT, Hannah. On violence. Nova York: Harcourt, Brage & World, 1969. p. 59-60. Tradução nossa.

Tratar a Natureza como estranha pode simplesmente levar a considerá-la como uma mera reserva de materiais para a satisfação das necessidades humanas. As consequências ecológicas dessa atitude são evidentes para todos verem. Hoje, não precisamos de guerras para destruir nossa própria casa. Já a atitude de nos unirmos à Natureza a ponto de abrir mão de nossas características específicas (a razão e o sentimento) só reforça a ideia de que somos separados dela, fazendo-nos crer que, para sermos “naturais”, devemos deixar de ser quem somos. No limite, teríamos de abandonar aquilo que a própria Natureza nos deu, isto é, a capacidade de desenvolver a razão e o sentimento. Teríamos de abafar algumas de nossas possibilidades a fim de privilegiar outras.

Essas duas atitudes instalam igualmente uma cisão entre o reino da Natureza e o reino humano, como se nada parecido com consciência humana existisse nos seres não humanos. É verdade que não temos base para afirmar que os minerais, as plantas e os animais “pensam”. Mas isso também não permite concluir que os outros seres vivos, principalmente os animais, não têm nenhum tipo de percepção de si mesmos, dos outros e do mundo, ou algo como a possibilidade de realizar boas escolhas.

Para espanto nosso, pesquisas científicas mostram que, mesmo sem uma estrutura nervosa e sem cérebro, as plantas são capazes de “perceber” a si mesmas e o mundo, bem como de ter certa “memória”. Elas podem, inclusive, comunicar-se umas com as outras por sinais químicos, a fim, por exemplo, de se defenderem contra animais herbívoros. Algumas até reagem ao carinho humano e à música. Hoje, mais do que nunca, somos solicitados a rever nossa maneira de encarar a Natureza. Repensá-la significa repensar a nossa própria morada e o tipo de relação que estabelecemos com nossos companheiros de jornada: os minerais, as plantas e os animais não humanos.

C oncorrência e colaboração na Natureza

Em 1869, o biólogo inglês Charles Darwin (1809-1882) publicou um dos livros mais revolucionários na história do pensamento: A origem das espécies. Sua tese principal defendia que a unidade e a diversidade dos seres são o resultado de um processo pelo qual, ao longo de milhares de anos, eles se adaptaram às circunstâncias para sobreviver. Esse processo consistiu basicamente na seleção natural, quer dizer, um dinamismo em que os indivíduos mais bem adaptados às circunstâncias sobreviveram e deram a configuração atual das espécies, tal como nós as conhecemos. Embora Darwin não tenha empregado o termo evolução , sua teoria foi amplamente divulgada como teoria da evolução das espécies; e, justamente na versão mais divulgada, ela gerou a seguinte interpretação: a lei da evolução é a lei “do mais forte”. Por corolário, a concorrência ou a tendência a dominar e vencer na luta pela sobrevivência seria a lei da Natureza.

Dada a importância cultural dessa visão simplificada do trabalho de Darwin, alguns cientistas têm procurado corrigi-la, a fim de melhorar a compreensão da Natureza. Embora concordem que a concorrência se manifesta de maneira inquestionável em alguns seres vivos (que, aliás, podem ser altamente violentos), esses cientistas observam que também existe colaboração na Natureza. Mais do que isso, a colaboração seria até mais importante do que a lei do mais forte.

Nessa direção, os biólogos Larissa Conradt e Tim Roper têm se dedicado a observar diferentes grupos de animais (principalmente gorilas, búfalos, veados, cisnes, peixes, estorninhos e elefantes), testando a tese “evolucionista” segundo a qual, nos grupos animais, há sempre um indivíduo que detém o comando (chamado de alfa, primeira letra do alfabeto grego) e pelo qual os outros manifestam respeito. Essa tese explicaria até mesmo o comportamento humano de sempre contar com líderes (reis, presidentes, governadores, representantes, chefes e assim por diante), pois a Natureza colocaria sempre no alto da hierarquia aqueles que têm mais força.

► BOEHM, Joseph Edgar. Estátua de Charles Darwin. 1885. Museu de História Natural de Londres (Reino Unido). Fotografia de 2024.

Corolário: afirmação ou negação que decorre imediatamente de uma conclusão anterior.

Hierarquia: organização de um grupo por meio da classificação que identifica indivíduos ou funções mais importantes e que lhes subordina os outros indivíduos ou as outras funções.

MIKE KEMP/IN PICTURES/GETTY IMAGES

Desfalecer: perder as forças até cair.

Gregário: que vive em grupo.

Conradt e Roper instalaram, por exemplo, câmeras em árvores numa região onde vivia um rebanho de veados. Em determinado momento, os animais precisavam ir até uma poça para beber água, mas tinham de permanecer em grupo, a fim de evitar o ataque de predadores. A decisão de como e quando beber água não era simples, pois havia três poças naquela região. A distância e o tempo eram fatores importantes: se fossem cedo demais, alguns deles não teriam se alimentado o bastante e poderiam ficar para trás ou desfalecer no trajeto; se fossem tarde demais, teriam problemas de desidratação; se fossem com a velocidade errada, poderiam ser vítimas dos predadores; se escolhessem a poça errada, também perderiam vantagem. Qual dos indivíduos devia, então, escolher a melhor poça, o melhor momento e a melhor velocidade? Os cientistas esperavam que fosse o indivíduo alfa, dotado de “autoridade” por se confrontar todos os anos com outros indivíduos do grupo, mantendo sua liderança. Mas não foi o que observaram! Enquanto o grupo todo pastava junto, alguns indivíduos começaram a apontar com suas orelhas e com seus olhares para uma das três poças. Quando pouco mais da metade dos animais havia apontado para uma poça, todo o rebanho dirigiu-se até ela. Mais de uma vez, o indivíduo alfa ficou curiosamente para trás e se juntou rapidamente ao grupo. Essa observação foi feita repetidamente durante um longo tempo, levando os cientistas a afirmarem que os membros daquele rebanho tinham uma atitude semelhante à dos grupos humanos que votam. Quando mais da metade havia “votado”, apontando para uma poça, todos se dirigiam para ela. Comportamentos parecidos foram observados em praticamente todos os grupos de animais gregários. Alguns bandos de pássaros, quando filmados em câmera lenta, permitiam perceber que eles “votam” com um tipo específico de batida da asa ou com um movimento preciso do papo. Além disso, “votam” centenas de vezes por minuto!

DiCAs

• História do jovem Chris McCandless, que decide viver na estrada até chegar ao Alasca. O livro inspirou um longa-metragem, com o mesmo título, dirigido por Sean Penn e lançado no Brasil em 2008.

► KRAKAUER, Jon. Na natureza selvagem. Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Reprodução da capa.

• Victor foi encontrado na região francesa do Aveyron, em 1800, quando tinha 10 anos de idade, e logo ficou conhecido como o garoto que cresceu sozinho na floresta. Terá ele conseguido sobreviver nesses dez anos sem nenhum contato com a vida urbana?

► O GAROTO selvagem. Direção: Fran ço is Truffaut. Fran ç a: Les Films du Carrosse, 1970. 1 DVD (83 min). Pôster do filme.

InTEGranDO COm...

CIÊNCIAS DA NATUREZA E SUAS TECNOLOGIAS

A “democracia” animal: a colaboração na Natureza

Larissa Conradt e Tim Roper, da Universidade de Sussex (Inglaterra), ficaram conhecidos como os cientistas da “democracia” animal por terem defendido que, na Natureza, a concorrência ocorre em menor escala do que a colaboração. Mostraram, também, que os indivíduos mais adaptados nem sempre são os mais fortes.

Entretanto, se as pesquisas de Conradt e Roper são uma novidade no tocante aos animais não humanos, conclusões parecidas já foram registradas ao longo do século XX com estudos sobre os seres humanos. Sabe-se que em diferentes partes do planeta há comunidades organizadas por colaboração, e não por competição. Por exemplo, alguns grupos indígenas das Américas, da África e da Oceania consideram doentes os indivíduos que manifestam um comportamento dominador e concorrencial. Sem os excluir, as comunidades encontram, porém, maneiras de limitar sua influência e conservar a mentalidade aprendida com os antepassados.

O encontro dessas pesquisas antropológicas e sociológicas com os trabalhos de biólogos como Conradt e Roper tem permitido a diferentes pensadores alertar para os prejuízos humanos da concepção da concorrência como lei natural.

Consultar orientações no Manual do Professor.

• Apresente a crença na concorrência como lei da Natureza e explique sua crítica pela teoria da “democracia animal”.

► As atletas estadunidenses

Simone Biles (à esquerda) e Jordan Chiles (à direita), durante a entrega de medalhas, reverenciam a atleta brasileira Rebeca Andrade pela conquista do ouro no solo, uma das modalidades da ginástica artística. Paris (França), 2024. A imagem foi amplamente difundida e se tornou um símbolo de cooperação e gentileza no âmbito das práticas esportivas.

Não escreva no livro.

Resposta pessoal.

A Natureza

O debate em torno da concorrência ou da colaboração entendidas como leis da Natureza dá ocasião para a reflexão filosófica sobre o que se entende pela Natureza mesma. Mais do que explicar o seu funcionamento (tarefa das ciências), interessa à Filosofia investigar o modo como se fala dela.

Por que falamos sobre a Natureza, descolando-nos dela como se pudéssemos analisá-la na qualidade de “observadores”? Por que simplesmente não “nos sentimos Natureza”, entendendo-a como o nosso modo de estar no mundo junto com os outros seres? Se todos concordam que ela é a nossa morada, o que impede de dar um passo adiante e dizer que, em vez de estar “na” Natureza, “somos” Natureza?

A resposta para perguntas como essas depende do nosso modo de perceber o mundo e das imagens ou metáforas que elaboramos para exprimir aquilo que é observado. Assim, segundo alguns pensadores contemporâneos, o hábito de tratar a Natureza como algo do qual os seres humanos se descolam vem da compreensão da Natureza como uma máquina: por seu funcionamento mecânico e independente, ela seria uma máquina em si mesma, além de ser uma máquina à disposição dos seres humanos.

DiAlOGANDO

• Por que costumamos considerar como não naturais as produções humanas (o resultado do trabalho, a tecnologia, as obras artísticas, os conhecimentos científicos etc.)?

Dizer que a Natureza é uma máquina significa afirmar que ela funciona como uma máquina, ou seja, com um movimento repetitivo e constante. Essa imagem da Natureza começou a ser construída nos séculos XVI e XVII, quando as mudanças trazidas pela ciência moderna levaram a enfatizar os aspectos da Natureza que podiam ser claramente medidos, testados, controlados e reproduzidos. Constatando que os acontecimentos naturais podiam ser entendidos e retratados com procedimentos matemáticos (relações expressas numericamente), filósofos e cientistas passaram a pensar

Relógio Cretin Lange, de 1880. O mecanismo dos relógios foi considerado um importante modelo para refletir sobre o funcionamento da Natureza. Galileu Galilei (1564-1642), Johannes Kepler (15711630) e René Descartes (1596-1650) foram três dos principais responsáveis pela consagração dessa metáfora.

O mecanismo dos relógios mostrava-se filosoficamente interessante, porque permitia pensar que, como o funcionamento das suas partes (também mecânicas) faz funcionar o conjunto (o relógio), assim também as partes da Natureza produziriam o seu dinamismo. No modelo dos mecanismos ou das máquinas, chamava a atenção, sobretudo, o fato de eles poderem ser montados e desmontados. Para cientistas e filósofos que buscavam conhecer o Universo com base apenas em dados claramente observáveis e testáveis, a prática de montar e desmontar mecanismos como os do relógio significava a possibilidade de fazer o mesmo com a Natureza: era possível observar suas partes e controlar e reproduzir os acontecimentos naturais. Nascia o modelo de conhecimento por reconstrução: um “aprender fazendo”. Considerando a Natureza como se ela fosse uma máquina, esse modelo ficou conhecido como mecanicismo ou visão mecanicista. Com a Revolução Industrial, no século XVIII, o modelo mecanicista se impôs definitivamente. O ser humano passava a ser entendido como o operador da grande máquina da Natureza, descolando-se dela e encarando-a como uma grande reserva de materiais destinados às suas necessidades.

Não há dúvida de que esse modelo de conhecimento trouxe melhorias consideráveis para a vida na Terra. A tecnologia e seus benefícios estão aí para serem desfrutados com tudo o que têm de bom. No entanto, é também verdade que o fato de o ser humano se entender como “operador” da máquina natural teve consequências também negativas. Basta observar os problemas ecológicos provocados pela corrida do desenvolvimento e do consumo, como as queimadas e os desmatamentos.

Algumas críticas previam, já no século XVIII, consequências obscuras do mecanicismo. Os românticos, nesse sentido, foram contundentes, chegando a recuperar a metáfora anterior ao século XVII, segundo a qual a Natureza seria como um grande organismo, ao modo de um corpo vivo. O renascentista Leonardo da Vinci (1452-1519) já havia falado da “vida” da Terra: sua “carne” seria o solo; seus “ossos”, a estrutura das rochas; sua “respiração”, o fluxo do mar. Contra o mecanicismo, essa percepção reaparece, por exemplo, na obra do romântico Friedrich Schelling (1775-1854) e do filósofo e matemático Alfred North Whitehead (1861-1947).

Durante o século XX, a concepção mecânica da Natureza e a consequente transformação da capacidade técnica dos seres humanos em mera atividade de “maquinização” e produção de objetos de consumo tornaram-se um tema filosófico privilegiado, tendo em Martin Heidegger (1889-1976) um de seus mais fortes representantes.

BIOGRAFIA

Martin Heidegger (1889-1976)

Foi um filósofo alemão cujo pensamento se formou em dois momentos: uma crítica ao pensamento ocidental sobre o ser e um convite à superação do próprio pensamento. Embora tenha simpatizado com o nacional-socialismo alemão, tornou-se um forte crítico dessa ideologia. Obras mais conhecidas: Ser e tempo, de 1927, Carta sobre o humanismo, de 1947.

► O filósofo alemão Martin Heidegger, em 1958.

Na atualidade, pensadores, cientistas, ecologistas e outros agentes culturais têm chamado a atenção para a necessidade de superar a metáfora da Natureza-máquina.

Nessa mesma direção segue o trabalho do biólogo e bioquímico inglês Rupert Sheldrake (1942-), que põe em questão o núcleo da metáfora mecanicista: a crença de que a Natureza obedece a leis imutáveis.

No livro The science delusion: feeling the spirit of enquiry (em tradução livre, A ilusão da ciência: sentindo o espírito investigativo), publicado originalmente em 2012, Sheldrake insiste em um dado bastante simples, porém desestabilizador da crença em leis naturais imutáveis: é verdade que a Ciência opera com constantes, quer dizer, medidas que não variam (ou variam pouco) e que servem para exprimir acontecimentos naturais; porém, é também verdade que a própria Ciência altera essas constantes de tempos em tempos, quando comitês internacionais de especialistas, em vários pontos do planeta, percebem a necessidade de adequar as constantes a mudanças naturais. Ora, se há mudanças naturais significativas a ponto de os especialistas solicitarem a revisão das constantes, então as leis da Natureza não são fixas nem imutáveis. Há provas de variações mesmo em acontecimentos antes considerados totalmente estáveis, como a gravitação universal e a velocidade da luz.

Seria, então, a Natureza um grande organismo, como um corpo vivo? Talvez. Mas o que interessa realmente, de um ponto de vista filosófico, não é simplesmente trocar uma metáfora por outra, e sim analisar, em primeiro lugar, as razões oferecidas para justificar tais metáforas. Um dado cultural de grande relevância para tal análise é também levantado por Sheldrake em seu livro: muitos cientistas e pensadores já deixaram de crer no mecanicismo; contudo, não podem adotar outro modelo ou ainda lhes falta coragem para fazê-lo, porque se encontram profissionalmente submetidos às exigências de industriais, comerciantes, investidores e políticos que financiam partes importantes das pesquisas. Para que o lucro desses grupos continue a existir, interessa manter a imagem da Natureza como máquina e como simples reserva de material para o consumo humano.

EXERCICIO Não escreva no livro. A

1. Defina o mecanicismo.

Consultar orientações no Manual do Professor

2. Comparando a teoria da “democracia animal” com o mecanicismo, qual alternativa lhe parece correta?

a) A “democracia animal” confirma o entendimento mecanicista da Natureza.

b) A “democracia animal” dificulta o entendimento mecanicista da Natureza.

2. Alternativa B.

c) A “democracia animal” é indiferente ao entendimento mecanicista da Natureza.

3. Justifique a resposta dada ao exercício anterior e explique por que as demais alternativas lhe parecem falsas.

4. Além dos problemas sociais e ecológicos, haveria dificuldades teóricas que indicassem a incoerência do mecanicismo?

Fotografia de Rupert Sheldrake. Oxford, Reino Unido, 2009.
DAVID LEVENSON/GETTY IMAGES

A Cultura

A percepção da Natureza como morada dos seres e, portanto, também como modo de ser humano não anula a diferença humana com relação aos outros seres. Uma forma de apontar para essa diferença é o conceito de Cultura. Esse termo foi tomado do vocabulário cotidiano com o sentido básico de cultivo: assim como se cultiva a terra, também o ser humano é capaz de cultivar a si mesmo e desenvolver as capacidades dadas pela Natureza.

Tudo indica que o primeiro autor a usar o termo Cultura, em contexto científico-filosófico, foi o antropólogo Edward Burnett Tylor (18321917), que descrevia a Cultura como o conjunto de conhecimentos, crenças, arte, Direito, moral, enfim, dos costumes e habilidades que o ser humano adquire como membro de uma sociedade, sendo esta, por sua vez, uma reunião de grupos sociais com costumes comuns. O ser humano aprende e produz Cultura ao conviver com outros seres humanos, e não apenas seguindo suas características “naturais” ou “animais”. Esse aprendizado exige, portanto, educação e transmissão de informações. Não é por acaso que, aos poucos, passou-se a usar o termo Cultura também como sinônimo de tudo o que significa um enriquecimento intelectual dos seres humanos em termos artísticos, éticos, cognitivos etc. Há até mesmo quem fale de “cultura erudita” e “cultura popular” como forma de diferenciar práticas que, na "cultura erudita", exigem iniciação e treinamento, em contraste com práticas da "cultura popular", que muitas vezes se desenvolvem no cotidiano e podem não passar por uma reflexão crítica tão sistemática sobre seus métodos.

É possível notar que o conceito de Cultura remete ao modo específico de os seres humanos “serem Natureza”. A Cultura seria, então, a Natureza habitada ou transformada humanamente. Contudo, se for recordado o dado científico de que também outros seres vivos reagem de modo criativo às circunstâncias naturais (como no caso da “percepção” vegetal e da “democracia” animal), será mesmo razoável ver traços de Cultura entre tais animais? Dessa forma, em relação ao seres humanos, haveria apenas uma diferença de grau? É muito difícil extrair essa conclusão. Na Idade Média, por exemplo, vários autores identificaram que animais não humanos também possuem a assim chamada estimativa, isto é, a capacidade de perceber instintivamente a utilidade ou a nocividade de uma situação. No entanto, eles não consideravam adequado concluir que, nos animais, há uma reflexão intelectual, ou seja, a capacidade de pensar sobre si mesmo e de analisar o modo como se dá o próprio pensamento.

• O álbum de Gilberto Gil celebra a diversidade da cultura brasileira, mesclando ritmos como samba e reggae. Com letras que exploram identidade e vida nas favelas, Gil oferece uma reflexão sobre suas raízes. O álbum é um marco da música popular e uma afirmação da pluralidade cultural do Brasil.

► GIL, Gilberto. Refavela. São Paulo: Polygram, 1977. Spotify. Disponível em: https://open. spotify.com/intl-pt/ album/5upQfINue 8OQDfeoRQKyTq. Acesso em: 25 out. 2024. Reprodução da capa.

DiCA

A reflexão intelectual vai além da simples percepção de causas e efeitos (algo que a capacidade estimativa permite); ela é da ordem do “pensamento do pensamento” e, como tal, leva a identificar uma diferença de qualidade, e não apenas de grau, entre os humanos e os não humanos. Essa reflexão coincide inteiramente com a de Hannah Arendt, apresentada anteriormente.

Marcada a diferença humana, ela se torna o elemento que distingue a Cultura como modo de “ser humanamente Natureza”. Separar rigidamente Natureza e Cultura, porém, seria uma forma de voltar ao mecanicismo ou a certos preconceitos racionalistas. A fim de evitar essa volta, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) observa que, no ser humano, tudo é fabricado (Cultura) e tudo é natural (Natureza).

Mímica: expressão de pensamentos, sentimentos e emoções por meio de gestos.

Contingente: variável.

Enrubescer: ficar vermelho.

Empalidecer: ficar pálido ou sem cor.

Sibilante: que lembra um assovio; voz fraca que é emitida como se resultasse de um atrito.

Psicofisiológico: composto de uma dimensão psíquica e uma dimensão fisiológica (material).

Transcendente: algo que supera outro, que vai além.

No ser humano, tudo é fabricado e tudo é natural […] a mímica da cólera ou a do amor não é a mesma para um japonês e para um ocidental. Mais precisamente, a diferença das mímicas esconde uma diferença das próprias emoções. Não é apenas o gesto que é contingente em relação à organização corporal, é a própria maneira de acolher a situação e de vivê-la. O japonês encolerizado sorri, o ocidental enrubesce e bate o pé, ou então empalidece e fala com uma voz sibilante. Não basta que dois sujeitos conscientes tenham os mesmos órgãos e o mesmo sistema nervoso para que em ambos as mesmas emoções se representem pelos mesmos signos. [...] O equipamento psicofisiológico deixa abertas múltiplas possibilidades e aqui não há mais, como no domínio dos instintos, uma natureza humana dada de uma vez por todas. O uso que um ser humano fará de seu corpo é transcendente em relação a esse corpo enquanto ser simplesmente biológico. Gritar na cólera ou abraçar no amor não é mais natural ou menos convencional do que chamar uma mesa de mesa. Os sentimentos e as condutas passionais são inventados, assim como as palavras. Mesmo aqueles sentimentos que, como a paternidade, parecem inscritos no corpo humano são, na realidade, instituições. É impossível sobrepor, no ser humano, uma primeira camada de comportamentos que chamaríamos de ‘naturais’ e um mundo cultural ou espiritual fabricado. No ser humano, tudo é natural e tudo é fabricado […].

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 256-257.

Observe como Merleau-Ponty considera que o ser humano é dotado de um “aparelho” ou um organismo psicofisiológico, quer dizer, de uma constituição composta de elementos físicos (a matéria), biológicos (a vitalidade que anima essa matéria) e psíquicos (as emoções e a capacidade de produzir sentido). Essa constituição corresponde ao que outros filósofos chamam de unidade corpo-alma, mas sem pressupor uma separação entre eles. Corpo e alma (psicofisiologia), em vez de serem “misturados”, permanecendo cada qual com suas características (como quando se mistura água e óleo), formam uma unidade (como quando se mistura água e leite).

Assim, se o “material” do qual os seres humanos são feitos é animado por uma vitalidade que possibilita produzir e/ou captar sentido, então, Natureza e Cultura, embora possam ser distinguidas pelo pensamento, são unidas na realidade humana.

A pessoa

Precisamente para entender os seres humanos em função de seu modo próprio de ser, muitos filósofos empregaram o termo pessoa para indicar que, se os seres humanos já se distinguem entre os animais, também os indivíduos humanos se distinguem entre si no interior da espécie humana.

Indivíduo é todo membro de uma espécie; portanto, cada mineral, cada planta e cada animal irracional também é chamado de indivíduo Quando, porém, analisam-se os seres humanos, percebe-se que eles não são meros indivíduos dentro da espécie humana, porque cada um deles se mostra capaz de viver de modo inteiramente singular aquilo que recebe da espécie. Cada indivíduo humano tem um modo único de ser, vivenciado de maneira própria e operando com os condicionamentos físicos, biológicos e sociais de seu grupo. O conceito de pessoa indica, então, o indivíduo humano como um ser singular que concretiza, de modo irrepetível, tudo aquilo que tem em comum com seus companheiros de espécie.

C orpo e alma segundo o pensamento clássico

Essa concepção é bastante antiga na História da Filosofia. Agostinho de Hipona (354-430), por exemplo, identificava a especificidade humana no ato de conhecer e de poder realizar escolhas refletidas. Ele observava que os minerais apenas existem; as plantas, por sua vez, existem e vivem ; os animais existem , vivem e sentem ; por fim, os humanos existem , vivem , sentem , pensam e escolhem refletidamente .

Agostinho concluía que, se esses atos humanos ocorrem, então é legítimo pensar que eles nascem de possibilidades inscritas nos próprios humanos. Por conseguinte, é preciso também supor que a constituição do ser humano é mais complexa do que a dos outros seres (dotados de menos possibilidades). Agostinho descreve, então, a constituição humana, identificando corpo (existência material, dado comum a todos os seres naturais), alma (vitalidade, dado comum aos seres vivos) e espírito (pensamento e escolha refletida, dado exclusivo do ser humano).

Irrepetível: algo que não pode ser repetido.

A noção de alma visa marcar a diferença entre minerais e seres vivos. Ela é a vitalidade responsável por nutrir as ► CHAMPAIGNE, Philippe de. Santo Agostinho [Agostinho de Hipona]. [Entre 1645 e 1650]. Óleo sobre tela, 78,7 cm x 62,2 cm. Los Angeles County Museum of Art, Estados Unidos.

MUSEU DE ARTE DA CIDADE DE LOS ANGELES, CALIFÓRNIA, EUA/CARLO BOLLO/ALAMY/FOTOARENA

plantas (alma vegetativa), nutrir também os animais e permitir que eles tenham sensações e emoções (alma sensitiva), bem como nutrir os humanos, permitir que eles tenham sensações e emoções, além de exercitar o pensamento e a capacidade de escolha (alma racional ou espiritual).

Os filósofos gregos e romanos já haviam nomeado a vitalidade dos seres vivos com o termo alma (psique, em grego; anima, em latim). Na raiz dessa palavra está a ideia de movimento, vento, sopro, quer dizer, dinamismo, vida.

A base da reflexão sobre a alma, no entanto, é a observação de diferentes atos nos diferentes seres. Especificamente no caso dos seres humanos, seus atos revelam uma complexidade não observada no restante. Por isso, Agostinho conclui que, ao chamar de alma a vitalidade que anima os corpos, a alma humana tem três funções: a vegetabilidade (nutrição, doação de vida), a sensibilidade (percepção por meio dos cinco sentidos) e a racionalidade (capacidade de refletir e escolher). A terceira função, exclusivamente humana, ele também chamava de espírito

Funções da alma

► Ilustração das funções da alma, segundo Agostinho de Hipona.

ALMA ESPIRITUAL

SENSITIVA

ALMAVEGETATIVA

sensibilidade razão e vontade

Note que Agostinho se concentra nas funções da alma. O ser humano não tem “três almas”. Por sua vez, as funções da alma só podem ser descritas por meio de seus efeitos e de um contraponto com aqueles observados nos outros seres vivos, uma vez que, não sendo material, ela não pode ser captada pelos cinco sentidos. Tudo o que se fala sobre a alma é, portanto, aproximativo e indireto, assim como se fala do Sol com base nos efeitos vividos na Terra sem que jamais alguém tenha ido até ele. Agostinho sabia, por isso, que as pessoas têm a tendência a “imaginar” a alma, ou seja, pensar nela com base em imagens, uma vez que todos os conteúdos de pensamento são formados com alguma referência ao que é percebido por meio dos cinco sentidos. Ele sabia também que esse esforço de imaginação leva a representar a alma como um “fantasma” aprisionado dentro

ALMA
nutrição
EDITORIA DE ARTE

de um corpo. Para contrariar essa imagem, Agostinho propõe uma outra: a alma é como uma tensão, assim como a tensão elétrica presente em um cabo de força ou como o retesamento da corda de um instrumento musical. Retesar uma corda musical significa esticá-la até o grau em que ela pode produzir o som para o qual foi feita. Uma corda de violão frouxa não emitirá o seu som próprio; em vez disso, quando é esticada no grau certo, torna-se realmente aquilo que ela pode ser, ou seja, uma verdadeira corda de violão. A alma seria para o corpo aquilo que o retesamento é para a corda de violão. O retesamento não é uma “coisa” que entra na corda, não é uma “parte” dela, mas é a força que lhe permite vibrar e emitir sua nota singular. Assim também a alma seria o “retesamento” do corpo, a “força” que lhe permite desempenhar suas funções. A diferença básica da alma, entretanto, está no fato de sua “força” brotar dela mesma, sem vir de fora, como é o caso do retesamento da corda de violão.

A alma é tensão vital –

Agostinho de Hipona

Estou convencido de que a alma é incorpórea, mesmo se é difícil convencer os mais resistentes. [...] Se todas as substâncias ou essências – ou aquilo que se diz ser [existir] de algum modo por si mesmo – fossem corpo, então a alma também seria um corpo. Ainda, se chamássemos de incorpóreo apenas aquilo que é perfeitamente imutável e que se encontra inteiramente por toda parte, então a alma seria um corpo [ela não seria incorpórea], pois a alma não é dessa maneira [perfeitamente imutável e inteiramente em toda parte]. Mas, por outro lado, se um corpo é aquilo que se situa ou se move em um local do espaço, com algum comprimento, alguma largura e alguma altura, de modo que uma parte maior ocupa um lugar também maior, enquanto uma parte menor ocupa um lugar também menor, então a alma não é corpo [pois ela não ocupa o espaço assim como o corpo o ocupa]. A alma não está no corpo que ela anima como se ela se espalhasse em um local; ela se irradia pelo corpo como certa tensão vital.

AGOSTINHO DE HIPONA. Epistola 166: de origine animae hominis liber. [S. l.]: Sant’Agostino, [2024]. Reprodução da carta original escrita em 415, tradução nossa. Disponível em: https://www.augustinus.it/latino/lettere/index2.htm. Acesso em: 3 out. 2024.

Da perspectiva da imagem agostiniana, a relação entre a alma e o corpo não seria a de um dualismo, ou seja, de dois elementos separados e independentes que precisam encontrar um ponto de união. Mais do que isso, é uma relação de copertencimento (um pertence ao outro e um habita o outro). Há uma dualidade (alma e corpo não se confundem, como revelou a contraposição dos seres), mas o ser humano mostra-se unitário: cada indivíduo é uma unidade harmonicamente formada por dois componentes que não existem separadamente. A fim de apontar para a complexidade que constitui o ser humano (revelada por seus atos), Agostinho empregou o termo pessoa.

Incorpóreo: que não possui corpo. Substância ou essência: Agostinho toma essas palavras no significado de tudo o que existe. Imutável: que não muda; não se altera.

Fotografia de John R. Searle, 2012.

C orpo e alma segundo o pensamento contemporâneo

• O f ilme narra a história real do jornalista francês JeanDominique Bauby. Aos 43 anos, ele sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) que paralisou seu corpo, com exceção do olho esquerdo, que passou a usar para se comunicar.

► O ESCAFANDRO e a borboleta. Direção: Julian Schnabel.

Estados Unidos: Cannes Produções S/A, 2007. DVD (112 min). Pôster do filme.

No pensamento contemporâneo, a clássica distinção entre corpo e alma tem sido geralmente tratada, no caso dos seres humanos, como uma diferença entre corpo e mente ou entre corpo e consciência. Alguns filósofos, porém, defendem que, além de não fazer mais sentido usar a noção de alma (pois a consideram uma ilusão que não pode ser observada pelos cinco sentidos), a própria mente ou consciência não passaria de uma operação inteiramente física. A mente e a consciência seriam qualidades do corpo; não se distinguiriam dele senão como a diferença existente entre quem corre e o seu ato de correr. Nessa direção segue, por exemplo, o trabalho de John R. Searle (1932-), pensador estadunidense, autor das obras A redescoberta da mente e Intencionalidade, publicadas pela primeira vez em 1992 e 1993. No entender de Searle, a mente é um mero processo biológico. Quando a Ciência explicar, de modo integral, o funcionamento do cérebro, deixará claro o processo da consciência. Junto com a consciência, será explicado como o ser humano produz a realidade social e a Cultura, tornando desnecessário pensar em alma ou espírito. Outros pensadores, no entanto, embora levem adiante o projeto de explicar a “biologia da consciência”, quer dizer, a relação profunda entre o corpo físico e o corpo que sente a si mesmo como algo singular e que deseja ser reconhecido como tal, continuam a falar de consciência e mesmo de alma ou espírito (entendendo por alma e espírito a força do próprio corpo ou o dinamismo que o vivifica e torna capaz de captar e construir sentidos). Mais do que um fantasma preso “dentro” de um corpo, a alma ou o espírito é o próprio corpo qualificado como “capaz de sentido” e “capaz de Cultura”. Nessa direção segue o trabalho do médico, físico e filósofo francês Michel Bitbol (1954-), que, em obras como A consciência tem uma origem: das neurociências à plena consciência, publicada originalmente em 2014, insiste em dois dados fundamentais:

• não é adequado fazer teorias científicas sobre a consciência em geral, uma vez que cada pessoa só tem acesso à sua própria consciência; esse fato é de extrema importância, pois, mesmo quando é possível medir as reações conscientes de alguém (por meio de aparelhos, da reação a estímulos externos etc.), nada garante rigorosamente que não há nenhuma consciência em quem parece estar inconsciente; só é possível falar de consciência em primeira pessoa;

• explicar a base físico-química da consciência (o corpo em geral ou apenas o cérebro) não justifica afirmar que a consciência é um mero

DiCA

processo físico-químico nem concluir que a base físico-química é a causa da consciência. Como se dizia na Idade Média, o fato de o fogo ocorrer na madeira não permite dizer que o fogo é a madeira. Independentemente do nome que se dê à diferença humana em meio ao reino animal (chamando-a de pensamento, alma, consciência ou mente), parece razoável entendê-la como o elemento pelo qual os humanos revelam sua especificidade perante os outros seres, produzindo a Cultura como seu modo próprio de ser.

EXERCICIO Não escreva no livro. B

Consultar orientações no Manual do Professor

1. Qual a diferença entre o conceito de pessoa e o de indivíduo?

2. Em que se baseou Agostinho de Hipona para identificar a especificidade do ser humano?

3. Quais as funções da alma humana, segundo Agostinho?

4. Explique a metáfora agostiniana da alma como tensão vital do corpo, servindo-se do exemplo da corda de um instrumento musical.

5. Por que, segundo alguns filósofos contemporâneos, não faz sentido a distinção clássica entre corpo e alma?

DiCA

• O autor analisa a desconcertante situação de os seres humanos estarem longe de decifrar a mente humana.

► HORGAN, John. A mente desconhecida: por que a ciência não consegue replicar, medicar e explicar o cérebro humano. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Reprodução da capa.

► Paciente durante exame de eletroencefalograma (EEG), 2024. Exames como esse auxiliam médicos e cientistas a diagnosticar estados de consciência com base na atividade de células cerebrais.

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InTEGranDO COm...

SOCIOLOGIA, GEOGRAFIA E ARTE

Natureza e Cultura

Modulado: com diferentes modos; variado.

Apetrechado: aparelhado; munido; dotado.

Propenso: inclinado; dotado de uma tendência.

De uma perspectiva bastante semelhante à adotada neste capítulo, Pierre Sanchis (1928-2018), antropólogo e sociólogo francês radicado no Brasil, resume o conceito de Cultura como o modo próprio de ser humano, e não mais como aquilo que separa o ser humano da Natureza.

PASSO 1 Leitura e reflexão

Em dupla. Leiam o trecho de texto a seguir e, com seu conteúdo em mente, sigam para o passo 2.

Cultura é o que faz que um grupo seja um grupo de gente – Pierre Sanchis

O que é a Cultura? É exatamente isso que faz com que o grupo seja grupo ‘de gente’. Que homens e mulheres sejam gente, quer dizer, precisamente, seres humanos. Um ser universal, então, com a mesma “Cultura” para todos? Não. Esse universal seria um universal modulado, que define a maneira particular de exercer a qualidade humana. Cultura será, então, essa maneira de ser humano de certo jeito, de certo modo, essa maneira particular de encarnar a Humanidade. Hoje, a Etologia é mais complexa e reconhece traços de Cultura também no mundo animal. Mas, globalmente falando, [...] o animal nasce apetrechado com tudo aquilo de que precisa. A abelha nasce sabendo fazer tudo o que ela faz, por mais sofisticado que seja; ela não passa propriamente por um processo de aprendizagem e de aperfeiçoamento. O ser humano não nasce feito, mas propenso, dotado de uma potencialidade. Num meio social criativo, esse meio o leva, como indivíduo, “até lá”, e, como indivíduo, “além de lá”. Leva-o, ainda, como membro de grupos múltiplos, em direções e para resultados diferentes.

SANCHIS, Pierre. O “som Brasil”: uma realidade sincrética? In: MASSIMI, Marina (org.). Psicologia, cultura e história: perspectivas em diálogo. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2012. p. 20.

PASSO 2 Diálogo com a Sociologia

A Sociologia destaca um dado de forte significação filosófica: em geral, quem reflete sobre os diferentes grupos humanos tem a tendência de valorizar sua cultura e de avaliar as outras com base na sua própria. Essa prática é chamada de etnocentrismo, e, contra ela, antropólogos, sociólogos, historiadores e filósofos passaram a defender a

Não escreva no livro.

ideia de relativismo cultural, quer dizer, a valorização de cada cultura pelo que ela é, independentemente da comparação com outras. Além disso, constata-se que as culturas são abertas e podem influenciar-se mutuamente, dando origem a novas formas culturais ou mesmo preservando-se diante do contato com outras culturas. Consulte seu(sua) professor(a) de Sociologia sobre a possibilidade de ele(a) preparar uma breve apresentação para comparar o etnocentrismo e o relativismo cultural da perspectiva da Sociologia. Havendo ou não essa apresentação, sigam para o passo 3 na aula de Filosofia!

PASSO 3 Filosofia, Geografia e Arte

Em dupla. Apreciem as fotografias e leiam o comentário a seguir.

O fotógrafo estadunidense Man Ray (1890-1976) exprimiu de maneira artística a mudança de visão da Cultura, operada pela Filosofia e pelas Ciências Humanas e Sociais, concebendo-a não mais de uma perspectiva etnocêntrica, mas segundo o relativismo cultural. Fotografando máscaras e estatuetas produzidas por povos da África Subsaariana juntamente com uma mulher branca, Man Ray mostrava que, em sua época, essas obras eram tomadas apenas para divulgação da “cultura negra”, como se fossem simplesmente peças de “outros povos”. Nas fotografias de Man Ray, ao contrário, há interação direta entre as peças e as atitudes da mulher branca, considerada “típica” da cultura estadunidense do começo do século XX. É o caso das fotografias Preta e branca e Preta e branca (variações), ambas de 1926: as máscaras passam a ter vida e dão sentido novo às atitudes da mulher branca, atitudes de repouso, ternura, confiança. Com a coordenação de seu(sua) professor(a) de Filosofia, peçam ao(à) seu (sua) professor(a) de Geografia um breve esclarecimento do que significa falar de África subsaariana. Além disso, peçam ao(à) seu(sua) professor(a) de Arte um comentário sobre as fotografias de Man Ray. Por fim, voltando à aula de Filosofia, resolvam, em dupla, as atividades a seguir.

1. Em dupla . Diferenciem Natureza e Cultura com base na necessidade humana de aprendizado. Vocês podem se inspirar no texto de Pierre Sanchis.

2. A continuidade entre Natureza e Cultura anula a diferença entre animais humanos e animais não humanos?

Consultar orientações no Manual do Professor

► RAY, Man. Preta e branca. 1926. Impressão em gelatina e prata , 17,1 cm x 22,5 cm. Museu Oscar Niemeyer, Curitiba (PR).
► RAY, Man. Preta e branca (variações). 1926.

1. (Enem)

TEXTO I

Os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.

PESSOA, F. O guardador de rebanhos – IX. In: GALHOZ, M. A. (Org.). Obras poéticas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999 (fragmento).

TEXTO II

Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ci ê ncia, eu o sei a partir de uma vis ã o minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepç ão. São Paulo: Martins Fontes, 1999 (adaptado).

Os textos mostram-se alinhados a um entendimento acerca da ideia de conhecimento, numa perspectiva que ampara a

a) anterioridade da razão no domínio cognitivo.

b) confirmação da existência de saberes inatos.

1. Alternativa C.

c) v aloriza ç ã o d o corpo na apreens ã o da realidade.

d) verificabilidade de proposi çõ e s no campo da lógica.

e) possibilidade de contemplação de verdades atemporais.

2. (Enem)

TEXTO I

Gerineldo dorme porque já está conformado com o seu mundo. Porque já sabe tudo o que lhe pode acontecer após haver submetido todos os objetos que o rodeiam a um minucioso inventário de possibilidades. Seu apartamento, mais que um apartamento, é uma teoria de sorte e de azar. Melhor que ninguém, Gerineldo conhece o coeficiente da

dilatação de suas janelas e mantém marcado no termômetro, com uma linha vermelha, o ponto em que se quebrarão os vidros, despedaçados em estilhaços de morte. Sabe que os arquitetos e os engenheiros já previram tudo, menos o que nunca já aconteceu.

MÁRQUEZ, G. G. O pessimista. In: Textos do Caribe. Rio de Janeiro: Record, 1981.

TEXTO

II

A situação é o sujeito inteiro (ele não é nada a não ser a sua situação) e é também a coisa inteira (nunca há mais nada senão as coisas). É o sujeito a elucidar as coisas pela sua própria superação, se assim quisermos; ou são as coisas a reenviar ao sujeito a imagem dele. É a total facticidade, a contingência absoluta do mundo, do meu nascimento, do meu lugar, do meu passado, dos meus redores — e é a minha liberdade sem limites que faz com que haja para mim uma facticidade.

SARTRE, J.-P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1997 (adaptado).

A postura determinista adotada pelo personagem Gerineldo contrasta com a ideia existencialista contida no pensamento filosófico de Sartre porque

a) evidencia a manifestação do inconsciente.

2. Alternativa B.

b) nega a possibilidade de transcendência.

c) contraria o conhecimento difuso.

d) sustenta a fugacidade da vida.

e) refuta a evolução biológica.

3. Admitindo ao menos como hipótese a continuidade entre Natureza e Cultura, analise as frases seguintes e argumente se você concorda com elas ou discorda delas: “todo brasileiro ama futebol”; “italiano fala com as mãos”; “brasileiros e argentinos não se gostam”.

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ReToManDO Não escreva no livro.

DISSERTAÇÃO

• Em grupo. Organizem-se em grupos de cinco componentes, analisem jun tos o trecho de texto escrito pela filósofa alemã de origem judaica Edith Stein (1891-1942) e respondam às questões.

O cerne da alma – Edith Stein

Neste momento reflito sobre um problema; ao mesmo tempo, ouço um barulho vindo da rua e vejo a folha de papel que se encontra diante de mim; vejo também minha mesa e outras coisas ao meu redor. Mas me concentro no problema. Aquilo que vejo e ouço passa por mim e me toca apenas de modo periférico. Em sentido próprio, eu estou virada para o problema; estou perante ele e o encaro com meu olhar espiritual. Pode haver em mim ainda outras coisas às quais não quero dar lugar, para as quais não quero me virar e às quais impeço de virem à tona. Por exemplo, uma preocupação ou uma inquietação. A preocupação está aí; sou consciente dela e pode ser mesmo o caso de que ela tenha surgido já há algum tempo. Mas, neste momento, ela está ‘embaixo’ de tudo o que se passa na superfície; ela se encontra no ‘fundo da minha alma’. Continuo fixada em meu problema e não naquilo que vejo ou ouço. Essa situação espiritual tem um paralelo no mundo exterior, pois, assim como o olho só pode ver uma pequena parte de seu campo visual e assim como o restante desse campo só o afeta secundariamente, assim também há um campo de visão espiritual formado, de um lado, por uma atenção que delimita seu próprio foco e, de outro, por uma percepção periférica. [...] A atenção ‘central’ e a percepção ‘periférica’, ambas praticadas pelo ‘eu’, são modos de consciência diferentes. [...] O mais importante, aqui, é o contraste entre ‘superfície’ e ‘profundidade’. [...] Na alma, tenho meu ‘lar’ de modo muito diferente como tenho meu ‘lar’ em meu corpo. [...] No ‘espaço’ da alma, há um lugar próprio do ‘eu’, lugar de sua intimidade, que ele deve procurar até encontrar e para onde deve voltar a cada vez que daí for tirado. É o ponto mais profundo da alma. [...] É somente a partir desse ponto que ela pode tomar decisões sérias, comprometer-se com algum ideal, entregar-se e se dar. São todos atos da pessoa. Sou eu que tomo decisões e me comprometo. É um ‘eu’ pessoal.

STEIN, Edith. Der Aufbau der menschlichen Person. Friburgo na Brisgóvia: Herder, 2004. p. 85-86. Tradução nossa.

Consultar orientações no Manual do Professor.

a) Cada componente responde à pergunta: Edith Stein, assim como fez Agostinho de Hipona, usa metáforas espaço-temporais para quê? Desenvolva brevemente sua resposta.

b) Comparem as respostas e as complementem trocando informações entre colegas.

c) C ada componente, reunindo todos os elementos que pôde correlacionar, reescreve sua resposta em forma de uma dissertação de síntese sobre a questão da alma no texto de Edith Stein. Lembre-se de que a dissertação de síntese apresenta as principais ideias de um autor sobre uma questão. Por isso, é necessário que a dissertação apresente: título, argumentos e exemplos fundamentados na obra do autor e conclusão. É importante que os argumentos sintetizem os principais pontos do texto de Edith Stein.

d) Por fim, cada qual lê sua produção textual para os colegas de classe.

► A filósofa Edith Stein.

SOCIEDADE, INDIVÍDUO E LIBERDADE 7

Em nosso modo cotidiano de pensar, referimo-nos muitas vezes à sociedade como um conjunto de indivíduos organizados para permitir que a vida humana continue e seja melhor.

Diz-se, por exemplo, que a sociedade permite a troca entre os indivíduos: uma pessoa oferece o que tem para dar (seu trabalho, sua arte, seu pensamento etc.) e recebe em troca aquilo de que necessita (o trabalho dos outros, a arte deles, seu pensamento e assim por diante). Desse ponto de vista, mesmo a vida dos animais é entendida como uma “vida social”: falamos de sociedades animais ou sociedade das abelhas, das formigas, dos elefantes...

Os seres humanos seriam, então, levados pela Natureza a viver em sociedade? Eles são levados por um impulso natural a se associar, assim como fazem outros animais?

► PARATODOS. Intérprete: Chico Buarque. São Paulo: BMG, 1993. 1 disco de vinil. Reprodução da capa. A canção "Paratodos", que compõe o disco de mesmo nome, celebra a diversidade musical e cultural do Brasil. Diante da imensa variedade de seres humanos, é inevitável perguntar o que os faz reunirem-se em grupos. Por que nossa vida se estrutura em comunidades e sociedades, entre outras formas de associação?

Associação animal e associação humana

Como alertava a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), é praticamente impossível justificar a projeção pura e simples de comportamentos animais para entender os seres humanos. No máximo, talvez seja justificável projetar características humanas sobre os animais, pois conhecemos os comportamentos humanos e podemos interpretar os animais identificando neles características semelhantes às nossas. Todavia, mesmo esse procedimento não é inteiramente seguro. Embora pareça adequado afirmar que meu gato tem fome como eu também tenho fome, por exemplo, não posso dizer que ele quer se vingar de mim quando urina no meu sofá. Seria um exagero acreditar que foi um comportamento calculado.

Em meio ao reino animal, a diferença específica dos seres humanos está em sua possibilidade de refletir sobre suas próprias experiências e participar da construção do sentido dado a elas. Por isso, talvez, a sociedade tenha raízes determinadas pela Natureza, mas os humanos a constroem de maneira especificamente humana.

Costuma-se dizer em Filosofia que os seres humanos podem se comportar com base em causas (refletidas) de suas ações e estabelecer objetivos (também refletidos) para elas. Em outras palavras, os seres humanos são dotados de liberdade. A sociedade, dessa perspectiva, aparece como uma livre associação entre indivíduos , com o objetivo de realizar trocas que permitam organizar a vida humana e dar continuidade a ela.

No entanto, não é uma tarefa simples entender essa associação. Se a Natureza os leva a reunir-se em sociedade, então não são eles que estão na causa dessa associação nem são eles que a escolhem como objetivo. Além disso, a própria sociedade antecede os seus membros e influencia seu modo de viver, fazendo-os repetir padrões de comportamentos já existentes. Ela aparece, assim, como algo maior do que a simples soma de indivíduos. Mas, se a liberdade dos indivíduos consiste em ser causa e objetivo de suas ações, então a sociedade anula a liberdade?

Levantar perguntas desse tipo é uma forma de iniciar a desconstrução das imagens da sociedade e dos indivíduos aceitas e transmitidas muitas vezes sem reflexão crítica. Convém analisar, portanto, o que é a vida social e o que se entende por liberdade.

► Colmeia de abelhas jataí, 2024. Na construção da colmeia, o trabalho das abelhas é realizado com organização e complexidade notáveis. No entanto, de acordo com o filósofo Karl Marx (18181883), o que diferencia a “melhor” abelha do “pior” arquiteto é a liberdade que o arquiteto tem, como ser humano, de projetar e de modificar a construção antes mesmo do processo de elaboração. Nisso consiste a especificidade dos seres humanos em termos de trabalho.

Conciliável: que pode ser combinado com algo aparentemente oposto.

Sociedade: algo natural ou construção histórica?

Na História da Filosofia, a tentativa de entender o que é a sociedade se concentrou, de modo geral, em perguntar por que os seres humanos se associam.

Duas respostas costumam ser dadas: a) os seres humanos possuem uma tendência natural a se reunir; b) os seres humanos se reúnem por motivos históricos, ou seja, motivados por diferentes circunstâncias, surgidas em momentos específicos de sua existência.

Percebeu-se que entender a sociedade como uma construção histórica não era contraditório com a opinião segundo a qual a sociedade resulta de uma tendência natural. Mesmo havendo tendência natural, essa tendência não é vivida como algo que submete completamente os seres humanos, mas como algo que pode ser modelado por eles, assim como um escultor modela a argila de suas obras.

Os filósofos Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) e Immanuel Kant (17241804) podem ser tomados como representantes dessas duas linhas interpretativas. É possível analisar suas posições separadamente e em conjunto, a fim de observar que elas são conciliáveis. Iniciando pelo pensamento de Aristóteles, duas observações são importantes. A primeira se refere à expressão “esquentar-se com o mesmo fogo”. Trata-se de uma referência ao fogo que se acendia nas casas da Grécia antiga para cozinhar e em torno do qual os moradores se reuniam para se aquecer durante o inverno. A segunda observação se refere ao termo cidade: no tempo de Aristóteles, era o nome de um grupo de famílias que, precisamente como grupo, tinha algumas

► Acrópole de Atenas (Grécia), antiga cidade-Estado grega. Fotografia de 2015.

características parecidas com as características do que hoje se chama de país. Era um grupo independente, com governo próprio, administração própria, atividade econômica também própria e mesmos elementos culturais típicos. Daí se falar de cidades-Estados (“cidades-países”).

Feitos esses esclarecimentos prévios, analisemos um trecho do texto de Aristóteles na forma de um exercício com alternativas de múltipla escolha. Depois de lê-lo, identifiquemos a alternativa que exprime corretamente o pensamento aristotélico.

A Sociedade é formada naturalmente

Desígnio: orientação; objetivo; finalidade; princípio estruturante.

Perfeito: dotado de todas as condições naturais para existir.

[…] a família é a sociedade cotidiana formada pela natureza e composta de pessoas que comem [...] o mesmo pão e se esquentam [...] com o mesmo fogo.

A sociedade que em seguida se formou de várias casas chama-se aldeia e se assemelha perfeitamente à primeira sociedade natural [a família], com a diferença de não ser de todos os momentos, nem de uma frequentação tão contínua. [...] [...]

A sociedade que se formou da reunião de várias aldeias constitui a Cidade, que tem a faculdade de se bastar a si mesma, sendo organizada não apenas para conservar a existência, mas também para buscar o bem-estar. Esta sociedade [a cidade], portanto, também está nos desígnios da natureza, como todas as outras que são seus elementos. Ora, a natureza de cada coisa é precisamente seu fim. Assim, quando um ser é perfeito, de qualquer espécie que ele seja – homem, cavalo, família –, dizemos que ele está na natureza. Além disso, a coisa que, pela mesma razão, ultrapassa as outras e se aproxima mais do objetivo proposto deve ser considerada a melhor. Bastar-se a si mesma é uma meta a que tende toda a produção da natureza e é também o mais perfeito estado. É, portanto, evidente que toda Cidade está na natureza e que o homem é naturalmente feito para a sociedade [...].

A) Algo perfeito é algo que está na Natureza. Nos desígnios da Natureza, está incluída a concorrência, pois ultrapassar as outras coisas significa ser o melhor. Como a cidade é o lugar do melhor, pois nela vence o mais forte, então o ser humano vive naturalmente na sociedade chamada cidade.

B) Algo perfeito é algo que está na Natureza. Tudo o que está na Natureza também busca o melhor. Buscar o melhor significa tentar bastar-se a si mesmo. Como a cidade é a sociedade que se basta a si mesma, e como tudo na Natureza busca o melhor, então os seres humanos vivem naturalmente na cidade, pois essa é a melhor sociedade.

C) Algo perfeito é algo que está na Natureza. Como o ser humano é perfeito, uma vez que ele vive em família, então ele também está na Natureza. Se ele está na Natureza, é evidente que ele vive naturalmente na sociedade chamada cidade.

ARISTÓTELES. A política. Tradução: Roberto Leal Ferreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 3-4.

DiAlOGANDO

• Para Aristóteles, a organização social ideal, na qual os seres humanos se realizam plenamente, é a cidade. Retome o conceito de cidade utilizado por Aristóteles e pense em outras formas de organização social. Você concorda com a posição do filósofo?

Resposta pessoal.

Para identificar a alternativa que exprime corretamente o texto de Aristóteles, você deve analisar cada uma das opções, comparando-a sempre com o que o filósofo de fato escreveu. Preste bastante atenção aos detalhes das alternativas, pois eles podem fazer você errar.

A alternativa A interpreta como concorrência e como lei do mais forte aquilo que Aristóteles chama de “melhor”, ou seja, aquilo que, na sua espécie, ultrapassa os outros. Mas o filósofo não dá base para associar “melhor” com “concorrência” ou “lei do mais forte”. Ultrapassar as outras coisas significa, no texto, aproximar-se mais do objetivo proposto dentro da espécie (aproximar-se do que é o melhor). Assim, de acordo com Aristóteles, o ser humano, sem a cidade, não atinge o seu melhor. Dizer isso, porém, não tem qualquer sentido de concorrência. Então, a alternativa A não é correta.

A alternativa B afirma que Aristóteles observa, na Natureza, uma tendência a buscar sempre o melhor. Ora, aquilo que basta a si mesmo é melhor do que aquilo que não basta a si. A cidade (cidade-Estado) oferece condições para uma vida que basta a si mesma (não depende de outras cidades). Se é assim, a cidade é o lugar natural para o ser humano viver, pois, bastando a si mesma, ela é melhor do que qualquer outra forma de organização. Portanto, a alternativa B parece exprimir corretamente o texto de Aristóteles.

A alternativa C contém ideias que aparecem no texto de Aristóteles. No entanto, ela não articula essas frases do mesmo modo como faz o filósofo. Note como conjunções e expressões conjuntivas ( como , então , se , também , é evidente que ) foram introduzidas na alternativa entre as frases de Aristóteles, conduzindo a conclusões que seu texto não autoriza. Ele não diz, por exemplo, que ser perfeito é viver em família nem passa da Natureza à cidade, pois nem tudo o que está na Natureza está também na cidade. Portanto, a alternativa C não é uma resposta correta.

Não resta dúvida, agora, de que a alternativa que exprime o pensamento de Aristóteles é a B .

► Manada de elefantes africanos, 2024. Como ocorre com os animais gregários, o ser humano, segundo Aristóteles, tem uma tendência natural a viver em sociedade.

Analisemos, a seguir, o trecho de um texto de Kant. Dois esclarecimentos são convenientes, aqui, a respeito do vocabulário de Kant. Em primeiro lugar, note que, no início do texto, o termo natureza está escrito com inicial minúscula, pois se refere à natureza humana, não à Natureza como conjunto de todos os seres. A natureza humana, segundo Kant, é o conjunto de leis naturais (dadas, portanto, pela Natureza) que orientam a ação dos indivíduos e dos grupos de acordo com finalidades. A natureza humana, então, obedece, segundo Kant, às leis comuns aos outros seres e às leis que lhe são específicas. Além disso, princípios práticos determinados são motivações que levam o ser humano a agir bem, mesmo quando não recebe em troca nenhum benefício; são motivações morais desinteressadas.

A Sociedade nasce também da contradição

O meio de que a natureza se serve para obter o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo destas na sociedade, na medida em que ele [o antagonismo] se torna, finalmente, causa de uma ordem legal das mesmas disposições. Entendo aqui por antagonismo a sociabilidade insociável dos homens, isto é, a sua tendência para entrar em sociedade; essa tendência, porém, está unida a uma resistência universal que, incessantemente, ameaça dissolver a sociedade. Esta disposição reside manifestamente na natureza humana. O homem tem uma inclinação para entrar em sociedade, porque em semelhante estado se sente mais como homem, isto é, sente o desenvolvimento das suas disposições naturais. Mas tem também uma grande propensão para se isolar , porque depara ao mesmo tempo em si com a propriedade insocial de querer dispor de tudo a seu gosto e, por conseguinte, espera resistência de todos os lados, tal como sabe por si mesmo que, da sua parte, sente inclinação para exercer a resistência contra os outros. Ora, esta resistência é que desperta todas as forças do homem e o induz a vencer a inclinação para a preguiça e, movido pela ânsia das honras, do poder ou da posse, a obter uma posição entre os seus congêneres, que ele não pode suportar , mas dos quais também não pode prescindir. Surgem assim os primeiros passos verdadeiros desde a brutalidade para a cultura, que consiste propriamente no valor social do homem; desenvolvem-se a pouco e pouco todos os talentos, forma-se o gosto e, através de uma incessante ilustração, o começo transforma-se na fundação de um modo de pensar que, com o tempo, pode mudar a grosseira disposição natural em diferenciação moral relativa a princípios práticos determinados e, por fim, transmutar ainda, deste modo, num todo moral uma consonância para formar sociedade, patologicamente provocada.

KANT, Immanuel. Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita Tradução: Artur Morão. Covilhã: LusoSofia, [202-]. p. 7-8. Disponível em: https://lusosofia.ubi.pt/textos/ kant_ideia_de_uma_historia_universal.pdf. Acesso em: 25 set. 2024.

Disposição: arranjo; ordem; tendência; inclinação.

Antagonismo: oposição; conflito. Prescindir: ficar sem; dispensar; liberar-se.

Brutalidade: estado do que é bruto; grosseiro, sem refinamento.

Ilustração: no sentido kantiano, significa possuir conhecimentos fundamentados na razão.

Grosseiro: bruto; rude. Diferenciação moral: capacidade de identificar e distinguir o que é bom e o que é mau do ponto de vista dos costumes.

Patológico: doentio; não natural.

RAUCH, Christian Daniel. Monumento a Immanuel Kant . [ca. 1800].

Escultura de bronze.

Kaliningrado (Rússia). Fotografia de 2017.

Identifique, a seguir, a alternativa mais adequada ao texto de Kant.

A) Se, por hipótese, um indivíduo pudesse permanecer sozinho, então assim permaneceria, pois nele não há impulso natural a viver em sociedade. O antagonismo o leva não apenas a se isolar, mas também a tentar dominar os outros. Como todos os indivíduos tentam dominar, não há acordo possível. Portanto, a natureza humana introduz antagonismos nos indivíduos para que eles se desentendam e tenham de ser controlados pela sociedade.

B) Se, por hipótese, um indivíduo pudesse permanecer sozinho, então assim permaneceria, porque, embora tenha uma tendência a viver em sociedade, ele também é marcado de insociabilidade, quer dizer, sente uma oposição à socialização. No entanto, ele percebe que, mesmo não suportando os outros, precisa deles. Estabelece com eles, então, uma relação de oposição, tentando dominá-los e entendendo que é capaz de fazê-lo se conseguir reunir os indivíduos em sociedade. Assim, para se manter no domínio das pessoas, esse indivíduo procura sair da brutalidade e elaborar princípios práticos determinados.

C) Se, por hipótese, um indivíduo pudesse permanecer sozinho, então assim permaneceria, porque, embora tenha uma tendência a viver em sociedade, ele também é marcado de insociabilidade, quer dizer, sente uma oposição à socialização. No entanto, ele percebe que, mesmo não suportando os outros, precisa deles. Estabelece com eles, então, uma relação de oposição, tentando dominá-los e entendendo que os outros também tentam dominar, o que os obriga a fazer um acordo que inicialmente é doentio, mas que permite deixar a grosseria para formar um pensamento racional capaz de levar à elaboração de princípios práticos determinados.

Analisando as três alternativas, tem-se que a alternativa A interpreta a ideia de antagonismo e oposição de modo contrário ao de Kant, pois ignora que o filósofo observa, ao mesmo tempo, uma tendência à socialização e uma oposição a ela. Além disso, enquanto o filósofo discute um primeiro acordo patológico e um segundo acordo racional, a alternativa A entende que não há acordo possível. É, portanto, uma alternativa falsa.

Ao dizer que um indivíduo entende ser capaz de dominar os outros em sociedade, a alternativa B afirma algo que extrapola o texto e não combina com ele. Também é uma alternativa falsa.

A alternativa C contém afirmações que reproduzem fielmente o texto de Kant: da relação de oposição e do acordo forçado, que ocorre quando o indivíduo percebe que precisa dos outros, passa-se ao acordo racional e à elaboração de princípios práticos determinados. É, portanto, a alternativa correta.

Analisando as ideias de Aristóteles e de Kant, nota-se que elas contêm algo parecido e, ao mesmo tempo, distinto: ambas afirmam uma tendência natural a viver em sociedade, mas cada uma declara isso de modo diferente. A diferença entre elas está no fato de Kant afirmar, além da tendência natural, também a existência de outra tendência, a da insociabilidade. As posições dos filósofos são formuladas, então, de modo que seria possível aceitá-las como verdadeiras ao mesmo tempo, pois elas não se excluem. Em vez disso, podem até mesmo ser complementares.

A correlação entre as ideias de Aristóteles e de Kant permite concluir que, de uma perspectiva filosófica, nada leva necessariamente a opor a origem natural e a origem histórica ou cultural da sociedade; é possível mesmo combiná-las. Aristóteles, aliás, ao defender a origem natural da sociedade, não pensava que ela fosse totalmente independente da construção histórica. Por essa razão, ele escreveu, no século IV a.C., A política e Ética nicomaqueia, algumas das obras mais conhecidas a respeito da formação dos cidadãos na pólis.

Esse exercício de “contraposição sem exclusão” permite enfatizar, ainda, um procedimento de grande importância para a atividade da argumentação: trata-se de perceber que nem sempre são contraditórias duas afirmações ou duas negações (duas teses). Elas podem ser distintas sem se excluir. Podem até combinar entre si, como ocorreu com as teses de Aristóteles e Kant. Por outro lado, duas teses também podem ser distintas sem que nenhuma delas seja verdadeira. Nesse caso, elas nem sequer se excluem, porque não se relacionam com algo verdadeiro; ambas são simplesmente falsas.

► Manifestantes vão às ruas no movimento Diretas Já. Minas Gerais, c. 1984. Os movimentos de resistência à ditadura civil-militar no Brasil são exemplos de como a sociedade, para além de tendências naturais, contém aspectos determinados historicamente.

► BRASIL MULHER. [São Paulo: s. n.], 19751980. Capa de uma das edições de 1975 do jornal Brasil Mulher, com referência ao Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) dos presos políticos.

REPRODUÇÃO/BRASIL MULHER
MARCELO PRATES/DIVULGAÇÃO

CUIDADO

lOGICO Contrariedade e contradição

Quando pensamos algo diferente do que pensa outra pessoa, costumamos dizer que nossos pensamentos são contrários ou mesmo contraditórios.

No entanto, é possível melhorar a forma como nos expressamos, pois nem sempre pensamentos diferentes mantêm relações de contrariedade e de contradição.

Tais relações costumam acontecer entre frases e entre termos. Concentrando-se nas primeiras, diz-se que duas frases são contrárias quando ambas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas podem ser ao mesmo tempo falsas. Em outras palavras, são contrárias quando o fato de considerar uma delas verdadeira leva a considerar a outra falsa, sem ser possível que o fato de considerar uma falsa leve a considerar a outra verdadeira (ambas podem ser falsas).

Por sua vez, diz-se que duas frases são contraditórias quando ambas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, nem falsas ao mesmo tempo. Dito de outra maneira, são contraditórias quando o fato de tomar uma como verdadeira leva necessariamente a considerar a outra como falsa, e vice-versa.

Lembrando que as frases podem ser classificadas por quantidade e por qualidade, observe os exemplos.

A – Universal afirmativa

Todo ser humano é racional.

E – Universal negativa

Nenhum ser humano é quadrúpede.

Todo ser humano é egoísta.

VERDADEIRA FALSA

I – Particular afirmativa

Algum ser humano é egoísta.

VERDADEIRA FALSA

Algum ser humano é quadrúpede.

Nenhum ser humano é egoísta.

VERDADEIRA FALSA

O – Particular negativa

Algum ser humano não é egoísta.

VERDADEIRA FALSA

Algum ser humano não é racional.

As letras A , E , I e O foram usadas na Idade Média para nomear os tipos básicos de frases. Era uma forma de memorizar: A e I vêm da palavra afirmo (aplicam-se às frases afirmativas); E e O vêm da palavra nego (aplicam-se às frases negativas).

Assim, se uma frase afirmativa de tipo A for verdadeira, as frases negativas correspondentes (de tipo E e O) serão necessariamente falsas. Mas, se A for falsa, E poderá ser verdadeira ou falsa, ao passo que O será necessariamente verdadeira. Observe os exemplos.

A – Todo ser humano é racional – VERDADEIRA

E – Nenhum ser humano é racional – FALSA

O – Algum ser humano não é racional – FALSA

A – Todo ser humano é egoísta – FALSA

E – Nenhum ser humano é egoísta – FALSA

O – Algum ser humano não é egoísta – VERDADEIRA

A – Todo ser humano é quadrúpede – FALSA

E – Nenhum ser humano é quadrúpede – VERDADEIRA

O – Algum ser humano não é quadrúpede – VERDADEIRA

O último exemplo de frase O, “Algum ser humano não é quadrúpede”, não permite concluir que “Algum ser humano é quadrúpede”. A frase O, no último exemplo, é verdadeira apenas porque declara que não há uma parte de quadrúpedes no conjunto dos humanos. Isso significa que formular uma frase particular não permite afirmar algo automaticamente sobre a sua contrária. Já as frases de tipo E , nos dois últimos exemplos, mostram a possibilidade de serem verdadeiras e falsas quando a frase de tipo A é falsa.

A e O são, portanto, contraditórias; mas A e E são apenas contrárias.

Refutar: mostrar, sem sombra de dúvida, o erro de algum pensamento; excluir; negar definitivamente.

Essa correlação de frases permite aprender que a melhor maneira de refutar uma frase universal não é encontrar uma frase contrária de tipo universal (porque ambas podem ser falsas!). Para refutar uma frase de tipo A , a maneira mais segura é encontrar uma frase de tipo O, não de tipo E; e para refutar uma frase de tipo E , convém encontrar uma frase de tipo I, não de tipo A . Por fim, todas essas relações valem no inverso, ou seja, frases de tipo I são refutadas por frases de tipo E; e frases de tipo O são refutadas por frases de tipo A . Observe os exemplos.

Todo ser humano é honesto (frase A).

Recusa frágil: Nenhum ser humano é honesto (frase E, tão incerta quanto a frase A).

Refutação: Algum ser humano não é honesto (frase O verdadeira; portanto, A é falsa).

Nenhum ser humano é honesto (frase E).

Recusa frágil: Todo ser humano é honesto (frase A, tão incerta quanto a frase E).

Refutação: Algum ser humano é honesto (frase I verdadeira; portanto, E é falsa).

contraditórias

Quadrado das oposições A I E O contrárias

( I é subalterna a A ) (O é subalterna a E )

subcontrárias

Com base nessas observações, cujas raízes estão na obra Da interpretação, de Aristóteles, escrita no século IV a. C., o poeta e filósofo romano Apuleio (c. 124-170) desenhou um quadro didático para representar a relação entre as frases. O desenho ficou conhecido como o quadrado das oposições ou quadrado lógico. Ao chamar as frases particulares de subalternas às universais, Apuleio julgou importante destacar o fato de que, se as universais são verdadeiras, as particulares também são; mas isso não é recíproco, isto é, se as particulares são verdadeiras, nada se pode dizer sobre as universais apenas com base nas particulares. Enfatizar que a verdade das frases particulares não permite afirmar a verdade das universais que lhes correspondem é importante, porque o teste da realidade é tomado como algo tão óbvio que somos tentados a querer decidir rapidamente sobre a verdade ou a falsidade das frases universais com base nas particulares. Mas a obviedade se desfaz quando nos damos conta de que nem sempre podemos comparar diretamente as frases com a realidade. Pense, por exemplo, no caso de um cientista que descobre algo novo, como o comportamento de uma bactéria. Ele não terá base firme para se pronunciar sobre todas as bactérias desse tipo. Se ele observar que algumas bactérias K apreciam o ambiente Z, não poderá afirmar que toda bactéria K aprecia o ambiente Z; e, se observar que algumas bactérias K não apreciam o ambiente Z , não poderá concluir que nenhuma bactéria K aprecia o ambiente Z

Após conhecer o quadrado das oposições, você tem a possibilidade de dar mais atenção ao fato de que nem sempre pensamentos diversos são contrários ou contraditórios. É preciso perceber também que os pensamentos não se exprimem necessariamente na forma das frases aqui apresentadas. Na verdade, poucas vezes os pensamentos são expressos com as palavras quantificadoras todo, nenhum, algum . Em todo caso, para além das formas de expressão, o quadrado das oposições permite prestar atenção na maneira como os pensamentos se constroem. Ele ensina uma análise das atitudes mentais mesmas.

EXERCICIO

Não escreva no livro. A

► APULEIO. Quadrado das oposições. Século II. Consultar

• Analise as frases e diga o tipo completo de cada uma delas, indicando a letra que as representa. Note que, mesmo sem as palavras quantificadoras (todo, algum, nenhum), é possível perceber se a frase é universal ou particular.

a) Algum cão não é peixe.

b) Algum cão é peixe.

c) Certos cães são peixes.

d) Nenhum ser humano é fácil.

e) Ser humano é uma aventura.

Sociedade, indivíduo e liberdade

Conscientes de que nada obriga racionalmente a opor o caráter natural da sociedade ao seu caráter histórico, diferentes filósofos e filósofas procuraram entender a liberdade humana tendo em vista que os indivíduos são determinados tanto pela Natureza como pela própria sociedade.

Se por liberdade se compreende a possibilidade de “fazer o que bem se entende” (ser causa de todas as ações e definir por conta própria o objetivo de todas elas), então os indivíduos não são livres. Uma rápida observação da vida cotidiana basta para perceber que ninguém é dotado dessa liberdade nem no plano histórico ou social nem no plano físico-biológico.

► Ilustração que representa a liberdade através do pensamento. Como compreender a liberdade humana e, ao mesmo tempo, considerar as determinações da Natureza e da sociedade?

Se, ainda, se entende por liberdade a possibilidade de escolher entre uma coisa e outra (ou entre várias coisas), então também os indivíduos talvez não sejam livres; afinal, as opções dadas os tornam limitados (não são eles que criam essas opções) e os obrigam a escolher uma delas. A essa liberdade de escolha dá-se o nome de livre-arbítrio, concepção extremamente frágil e amplamente criticada por diferentes filósofos. Uma das críticas mais contundentes vem do filósofo holandês Baruch de Espinosa (1632-1677).

Espinosa se utiliza de uma imagem esclarecedora: assim como uma pedra, se tiver consciência de seu esforço, acreditará que está em movimento “porque quer”, e não por outras causas, também os seres humanos se vangloriam de sua liberdade; acreditam que são a origem ou o princípio de suas ações, quando, na verdade, só conhecem seus desejos, e não as causas deles. Conhecer seus desejos não significa ser livre nem ser a causa da ação que leva à satisfação dos desejos. Essa causa continua, no limite, a ser os próprios desejos.

BIOGRAFIA

Baruch de Espinosa (ou Bento de Espinosa) (1632-1677)

Foi um filósofo holandês, nascido de uma família judia portuguesa. Herdeiro do pensamento racionalista de René Descartes (1596-1650), Espinosa desenvolveu uma filosofia própria, sobretudo por sua compreensão de Deus como a substância única que se manifesta de diferentes modos na natureza, como ser divino. Para ele, o ser humano torna-se livre quando conhece racionalmente Deus ou a Natureza, pois se liberta da superstição e do medo explorados pelas religiões institucionalizadas. Principais obras: Tratado da emenda do intelecto, Tratado teológico-político e Ética, publicadas pela primeira vez entre 1670 e 1677.

► BARUCH de Espinosa. [ca. 1665]. Óleo sobre tela. Gemäldesammlung, Berlim (Alemanha).

GERD ALTMANN/PIXABAY

Jactar: vangloriar; engrandecer.

Cônscio: consciente.

Apetite: desejo.

Ébrio: embriagado.

No entanto, o filósofo holandês não negava a existência da liberdade. Muito pelo contrário, sua filosofia é um grande elogio da capacidade humana de tomar consciência de seus impulsos, bem como de tudo que condiciona os indivíduos, a fim de poder operar racionalmente com tais impulsos e condicionamentos, lidando com eles e determinando também racionalmente os rumos da existência.

A ilusão do livre-arbítrio

Concebei agora, se quiserdes, que a pedra, enquanto continua a mover-se, saiba e pense que se esforça tanto quanto pode para continuar a mover-se. Seguramente, essa pedra, visto não ser consciente senão de seu esforço, e não ser indiferente, acreditará ser livre e perseverar no movimento apenas porque quer. É essa a tal liberdade humana que todos se jactam de possuir e que consiste apenas em que os seres humanos são cônscios de seus apetites, mas ignorantes das causas que os determinam. É assim que uma criança crê apetecer livremente o leite, um rapazinho, se irritado, querer vingar-se, mas fugir, se intimidado. Um ébrio crê dizer por uma livre decisão de sua mente aquilo que, sóbrio, preferiria ter calado. Assim também, um delirante, um tagarela e tantos outros de mesma farinha acreditam agir por um livre decreto da mente e não por impulso. E como esse preconceito é inato em todos [...], dele não se livram facilmente.

1925 apud CHAUI, Marilena. Sobre a correspondência de Espinosa com Tschirnhaus. Discurso, São Paulo, n. 31, p. 45-88, 2000. p. 67-68.

Espinosa chama a atenção para o fato de que os indivíduos e os grupos são “pontos” em que se manifestam paixões, influências externas aos próprios indivíduos e grupos. Delas não se pode escapar, mas se pode, pelo pensamento, dar-lhes um rumo de maneira ativa, sem apenas as sofrer passivamente.

O livre-arbítrio, portanto, como resultado de uma capacidade de escolher aquilo que se quer viver, parecia uma grande ilusão ao filósofo holandês. Em vez disso, ele concebe um novo significado para a ideia de liberdade, mais amplo e mais real, o da possibilidade de operar racionalmente com as paixões. A esse sentido da liberdade, outros pensadores chamarão de liberdade de autodeterminação: sobre a base do que é determinado pela Natureza e pela sociedade, o ser humano revela-se como um ser que também pode se determinar, sendo coautor da corrente de sentido na qual ele se insere.

► FRIEDRICH, Caspar David. Caminhante sobre o mar de névoa. [ca. 1818]. Óleo sobre tela, 98 cm x 74 cm. Galeria de Arte de Hamburgo, Alemanha.

ESPINOSA,
GALERIA DE ARTE DE HAMBURGO

P oder de equívoco e processo de regulagem

Mais próximo a nós no tempo, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) encontrou uma expressão bastante lúcida para retratar a liberdade de autodeterminação. Ele se refere à capacidade humana de assumir situações de fato (inescapáveis, portanto) e dar a elas um sentido novo e figurado, como numa obra de arte que vai além do sentido factual ou do aspecto bruto do acontecimento em si mesmo.

Merleau-Ponty serve-se de dois conceitos específicos: poder de equívoco e processo de regulagem . Observe no trecho a seguir o esclarecimento de Merleau-Ponty sobre o poder de equívoco.

Se existe um pensamento universal, nós o obtemos retomando o esforço de expressão e de comunicação tal como ele foi tentado por uma língua, assumindo todos os equívocos, todos os deslizamentos de sentido dos quais é feita uma tradição linguística, e que mensuram exatamente sua potência de expressão.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 255.

Note que, no trecho, Merleau-Ponty não trata equívoco como erro, um dos significados da palavra. Na sua compreensão, equívocos são os deslizamentos de sentido dos quais é feita uma tradição linguística e que permitem medir exatamente a potência de expressão dessa tradição.

As tradições linguísticas ou as línguas faladas pelos povos operam, assim, com sentidos que são deslizados, não permanecem fixos e imóveis, mas se alteram, associam-se, aumentam, diminuem, enfim, são dinâmicos. É essa mobilidade que constitui a equivocidade, quer dizer, a característica que torna algo equívoco.

Por fim, se os deslizamentos de sentido revelam o dinamismo de uma língua, então alguém só pode falar essa língua e pensar se assumir tal dinamismo, inclusive os equívocos. Isso permite entender o início do trecho lido: ainda que se afirme a existência de um pensamento universal, quer dizer, de uma atividade de pensar que tenha características comuns para todos os seres humanos, é preciso entender que cada indivíduo só pode realizar essa atividade seguindo uma língua já formada, um esforço de expressão e comunicação já desenvolvido por uma sociedade.

Como característica da liberdade, o poder de equívoco indica que ser livre é produzir novos sentidos para sentidos já existentes.

DiCA Mensurar: identificar a medida de alguma coisa.

• Neste livro, Norbert Elias promove uma compreensão da vida social como pluralidade e unidade. “Indivíduo” e “Sociedade” não seriam mais do que duas maneiras de olhar para a mesma realidade.

► ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. Reprodução da capa.

EDITORA ZAHAR

Incondicionado: sem restrições; sem limites.

• Inspirado em uma história verídica, o filme retrata a vida de um grupo de jovens estudantes estadunidenses cuja liberdade depende do enfrentamento de difíceis condicionamentos sociais.

► ESCRITORES da liberdade. Direção: Richard LaGravenese.

EUA: MTV Films, 2007. Streaming (122 min).

A expressão processo de regulagem é descrita por Merleau-Ponty no mesmo livro, no seguinte trecho.

Tudo aquilo que somos, nós o somos sobre a base de uma situação de fato que fazemos nossa, e que transformamos sem cessar por uma espécie de regulagem que nunca é uma liberdade incondicionada.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 236.

Como esse trecho é bastante denso, convém distinguir os diferentes elementos que o compõem, a fim de obter clareza.

a) Situação de fato: é tudo aquilo que existe e que não é produzido pelos seres humanos, embora possa ser transformado por eles. Pode-se pensar, por exemplo, na base natural que forma os indivíduos, suas capacidades e seus limites, os dados históricos e culturais (sociais) que os precedem etc.

b) Regulagem: esse termo vem do vocabulário cotidiano e tem um sentido de ajuste, assim como se regula um relógio, por exemplo, a fim de chegar ao melhor desempenho possível. Por comparação, a regulagem seria a atividade de chegar ao melhor funcionamento da situação de fato.

c) Liberdade incondicionada: por contraposição com a regulagem, liberdade incondicionada seria uma liberdade sem um ajuste que adapte seu processo a limites dados pela situação de fato, os quais permitem chegar a um bom funcionamento.

Dessa forma, entende-se que, segundo Merleau-Ponty, existir como ser humano significa transformar situações de fato. O indivíduo é um ser situado e dotado da capacidade de ressignificar sua situação por uma regulagem que opera com tudo o que restringe sua liberdade e produz seu melhor “funcionamento”. Segundo o autor, o melhor modelo dessa operação humana é dado pela ação dos artistas e dos filósofos. Os exemplos de Merleau-Ponty são bastante significativos: o filósofo Karl Marx, em vez de viver limitado pelo fato de ser estudante de Filosofia e filho de um advogado, deu novo significado à sua existência, vendo-se como intelectual pequeno-burguês e interpretando-se da perspectiva da luta de classes. Dito de outra maneira, Marx deixou de encarar como natural o fato de ser estudante de Filosofia e filho de um advogado, para entender que sua vida era resultado da pequena burguesia.

A expressão pequena burguesia foi criada no século XIX para identificar a classe social formada pelas famílias que não possuíam riquezas

antigas (como a nobreza ou a aristocracia) e que enriqueceram pelo comércio e outros meios de acumular bens. A pequena burguesia era malvista por pensadores que denunciavam as injustiças sociais, pois os membros dessa nova classe esqueciam frequentemente suas origens pobres e, uma vez ricos, reproduziam os esquemas de dominação econômica e social que eles mesmos haviam sofrido. Esse é um dos aspectos do que também no século XIX começou a se chamar de luta de classes: um processo de tensões sociais, nascidas da sociedade dividida em classes econômicas que lutam entre si, seja para manter seu status (ricos), seja para mudar a ordem e ter acesso à riqueza (pobres). Marx, assim, passou a entender sua situação de fato como resultado do surgimento da pequena burguesia e da luta de classes. Foi um modo de ressignificar ou de dar sentido novo à sua vida, transformando-a.

O outro exemplo dado por Merleau-Ponty é o do poeta e filósofo francês Paul Valéry (1871-1945), que, em vez de apenas sofrer com a solidão, transformou-a em poesia. Em vez de se sentir vítima da solidão, Paul Valéry a assumiu e a transformou, conseguindo tirar dela a energia para produzir poesia.

O pensamento de Merleau-Ponty amplia, assim, os horizontes da filosofia da liberdade, pois permite encarar como vazia a questão que procura estabelecer “onde” termina a influência social e “onde” começa a liberdade individual. As duas coisas estão entrelaçadas de maneira tão íntima que só podem ser separadas num exercício imaginativo. Se é pela consciência de si e pela interpretação de si que o indivíduo exerce sua liberdade, então, mesmo precedido pela sociedade, ele pode assumir os condicionamentos que ela lhe impõe e trabalhar na transformação de si mesmo e das estruturas históricas da própria sociedade.

A sociedade, dessa perspectiva, aparece como algo cujo sentido é aquele que os indivíduos lhe dão. A sociedade é o que fazemos dela.

• Reflita se você já viveu alguma experiência marcada por muitos condicionamentos externos. Você conseguiu dar um sentido realmente seu à maneira de vivê-los?

► Fotografia do poeta Paul Valéry em seu escritório, 1935.

DiAlOGANDO
Consultar orientações no Manual do Professor.

Coletivo: grupo; comunidade.

Ambiguidade: característica do que tem vários sentidos, dificultando identificar o sentido mais adequado.

Omissão: deixar de fazer algo que deve ser feito.

Ocultação: esconder ou encobrir algo.

Sociedade e desigualdade

O caminho que percorremos até aqui mostrou a possibilidade de defender filosoficamente que a sociedade é uma livre associação entre indivíduos, com o objetivo de realizar trocas que permitam organizar a vida humana e dar continuidade a ela. Os indivíduos, por sua vez, aparecem como seres em formação, unidades básicas da sociedade e capazes de operar com limites e condicionamentos, dando sentido à própria existência. Convém, no entanto, evitar uma imagem da sociedade como simples somatória de indivíduos, pois a ação humana sempre é configurada por um agir em grupo. A construção livre da própria individualidade requer, assim, a consciência das influências recebidas dos grupos sociais aos quais cada indivíduo pertence. Um dos estudiosos que melhor exprimiram esse dado foi o sociólogo francês Robert Castel (1933-2013), que tratava da necessidade de “desindividualizar” o indivíduo e de compreendê-lo como membro de grupos sociais.

Indivíduos, grupos, debates e conflitos

Paradoxalmente – mas esse é um ensinamento inegável da História Social – foi necessário desindividualizar os indivíduos para que eles se tornassem indivíduos inteiros. É o pertencimento a coletivos que dá direitos [...]. Por exemplo, o direito à aposentadoria consiste em uma pensão que se torna realmente um direito para o trabalhador idoso e que, em princípio, deve permitir-lhe continuar a se sustentar a si mesmo. A aposentadoria é atribuída pessoalmente ao trabalhador e ele é livre para dispor dela como indivíduo. Mas a aposentadoria como direito é a consequência do fato de que ele pertenceu a um coletivo de trabalhadores e contribuiu com a previdência social durante certo número de anos, a fim de satisfazer às exigências coletivas de seu sistema de aposentadoria, entre outras coisas. A individualidade do trabalhador, então, é garantida à medida que ele é inscrito em um sistema de proteções coletivas. [...] É por isso que insisto na ambiguidade profunda das políticas que tomam como exigência incondicional a responsabilização dos indivíduos. Falar dessa ambiguidade significa mostrar que essas políticas podem ter aspectos positivos – afinal, é positiva, por exemplo, a tentativa de dar responsabilidades a quem ajudamos, uma vez que nunca é bom ser alguém completamente assistido –, mas a generalização da exigência dessa responsabilização repousa sobre uma omissão e mesmo sobre uma ocultação: ela evita a necessidade de nos interrogarmos sobre as condições (ou os suportes) indispensáveis para que um indivíduo possa se encarregar de si mesmo, “ativar-se”, “mobilizar-se” etc. [...] Tomo a liberdade de me exprimir aqui de maneira um pouco brutal: um indivíduo sozinho não para em pé; sem pontos de apoio ele corre o risco da morte social.

CASTEL, Robert. Les ambigüités de la promotion de l’individu. In : BAUDELOT, Christian; BESSONE, Magali; CASTEL Robert. Refaire société. Paris: Seuil, 2011. p. 18-24. Tradução nossa.

Segundo Robert Castel, nas estruturas sociais que conhecemos, o indivíduo só é respeitado quando unido a grupos que obtêm direitos por sua ação social (com debates, reivindicações e mesmo conflitos). O caso específico da aposentadoria é típico, pois consiste em um direito de indivíduos, porém obtido em grupo.

Por sua vez, as políticas que chamam a atenção apenas para os indivíduos, ao tratar do tema da aposentadoria, desviam a atenção do fato de que é apenas como grupo social que se consegue garantir esse direito aos indivíduos. Tais políticas ocultam esse fato e organizam o debate dando a entender que a aposentadoria é um tema que se refere apenas aos indivíduos (por exemplo, como se tudo se resolvesse na fórmula: “pagou, tem direito; não pagou, não tem direito”).

O que essas políticas não trazem à tona é que nem todos têm as mesmas oportunidades, e que nem todos têm condições de “pagar”, embora trabalhem tanto ou mais do que aqueles que “pagam”.

A análise sociológica de Robert Castel reafirma que a sociedade tem o sentido que os indivíduos e grupos lhe dão. Contudo, ela permite levantar outra temática de grande interesse filosófico: se a sociedade é construída para facilitar a vida dos indivíduos, ela também é uma fonte de profundas desigualdades entre eles. O mundo do trabalho é um testemunho desse dado. Pode parecer que cada ser humano tem o trabalho que “merece”, que conquistou por seus esforços e méritos. Mas as oportunidades são as mesmas para todos?

Mundo: renda per capita em dólares (2021)

de refugiados. Berlim (Alemanha), 2015.

► Refugiados chegam a Lesbos (Grécia), em 2015.

OCEANO ATLÂNTICO

Equador OCEANO PACÍFICO

Abaixo de US$ 5.000

Entre US$ 5.000 e US$ 25.000

Entre US$ 25.000 e US$ 100.000

Acima de US$ 100.000

Fronteira internacional

PACÍFICO

OCEANO ÍNDICO

Círculo Polar Antártico

► No mundo contemporâneo, as desigualdades sociais refletem-se também em desigualdades regionais. O mapa revela que a maior parte da renda mundial está concentrada em poucos países, localizados na América do Norte, na Europa e na Oceania.

Fonte: DAVIES, James; LLUBERAS, Rodrigo; SHORROCKS, Anthony. Global wealth report 2022: leading perspectives to navigate the future. Zurique: Credit Suisse, 2022. p. 13.

► Grafite de autoria anônima retrata uma família
ANJO KAN/SHUTTERSTOCK.COM
Círculo Polar Ártico
Trópico de Câncer
Trópico de Capricórnio
OCEANO
OCEANO GLACIAL ÁRTICO
OCEANO GLACIAL ANTÁRTICO

Aspirar: desejar.

Alguns filósofos interpretaram as desigualdades sociais como algo natural, ou seja, como resultado do modo de ser que a Natureza impõe aos indivíduos. Ela daria as mesmas oportunidades para todos, mas também dotaria cada indivíduo de capacidades diferentes, levando cada um a aproveitar de modo diverso as mesmas oportunidades. Outros pensadores, porém, enfatizam que os indivíduos se tornam desiguais por razões construídas por eles mesmos, e não por capacidades naturais diferentes. Ninguém se torna mais rico ou mais pobre por causa de sua constituição “natural”, mas por causa do modo como a vida social está organizada.

A de sigualdade como injustiça

No século XIX, o filósofo e economista Karl Marx, ao refletir justamente sobre o modo como a vida social está organizada, chegou à conclusão de que as desigualdades nascem de um fator bastante preciso: o sentido da vida humana é dado hoje pelo dinheiro, e, na corrida para obter dinheiro, os indivíduos deixam de se preocupar com o bem-estar de todos e passam a entender que cada qual é responsável por si mesmo, devendo simplesmente procurar obter mais dinheiro.

Aquilo que mediante o dinheiro é [existe] para mim, o que posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Minha força é tão grande como a força do dinheiro. As qualidades do dinheiro [...] são minhas, de seu possuidor. O que eu sou e o que eu posso não são determinados de modo algum por minha individualidade. [...] sou um homem mau, sem honra, sem caráter e sem espírito, mas o dinheiro é honrado e, portanto, também [é honrado] o seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, logo, é bom o seu possuidor; o dinheiro poupa-me além disso o trabalho de ser desonesto, logo, presume-se que sou honesto; sou estúpido, mas o dinheiro é o espírito real de todas as coisas, como poderia seu possuidor ser um estúpido? Além disso, seu possuidor pode comprar as pessoas inteligentes e quem tem o poder sobre os inteligentes não é mais inteligente do que o inteligente? Eu, que mediante o dinheiro posso tudo a que o coração humano aspira, não possuo todas as capacidades humanas? Não transforma meu dinheiro, então, todas as minhas incapacidades em seu contrário?

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Tradução: José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os pensadores: história das grandes ideias do mundo ocidental, p. 36).

► Edifícios residenciais e moradias do Morro do Cantagalo no bairro de Ipanema. Rio de Janeiro (RJ), 2024.

Ao ler esse trecho de Marx, é preciso perceber a ironia com que ele é escrito. Marx não considera o dinheiro o verdadeiro sentido da vida humana, mas pretende levar os leitores a entenderem que ele se tornou tal sentido, transformando-se em elemento estruturante da vida atual.

Na história da humanidade, houve períodos em que as trocas eram feitas diretamente com coisas (um boi por dez sacas de sal; uma saca de sal por cinco galinhas etc.). Com o tempo, as sociedades passaram a usar moedas que tinham valor por si mesmas, como moedas de ouro e prata. Elas permitiam fazer trocas mais ou menos adequadas (algumas moedas de ouro por um boi; algumas moedas de prata por uma saca de sal etc.).

Como Karl Marx explicou em seu livro O capital, publicado pela primeira vez em 1867, no processo histórico em que se desenvolveu o capitalismo, as sociedades começaram a produzir intencionalmente coisas e “serviços” a fim de serem trocados. O objetivo da produção, portanto, passou a ser a obtenção de lucro através das trocas, e não o suprimento das necessidades da população em geral. Assim, o valor de troca dos produtos se sobrepõe ao seu valor de uso.

À medida que as sociedades elaboram a simbologia do dinheiro em torno do valor de troca, o dinheiro passa a ser entendido como algo que tem valor em si. Dessa forma, Marx chegará a explicar o fetiche da mercadoria, conceito segundo o qual a mercadoria possui um poder mágico, como num feitiço. O desejo de consumir coisas e “serviços” levam as pessoas a ficarem tão seduzidas que elas organizam suas vidas em torno do dinheiro, para poder obter aquilo que ele permite comprar – as mercadorias.

Segundo Marx, a dinâmica do capital explicaria as desigualdades sociais, pois algumas pessoas detêm os meios de produção (a terra, os instrumentos, as máquinas etc.), ao passo que outras só têm a própria força física para trocar. Sendo assim, quem detém os meios de produção oferece a possibilidade de usá-los aos que só possuem a força de trabalho, pagando-lhes um salário, mas conservando para si os resultados do trabalho e os lucros obtidos na venda desses produtos.

BIOGRAFIA

Karl Marx (1818-1883)

Foi um intelectual alemão que atuou em diferentes áreas, sobretudo Filosofia, Economia e História. Ficou conhecido por sua interpretação de Friedrich Hegel (1770-1831), seu materialismo histórico, sua análise do capitalismo e sua concepção do socialismo. Obras mais conhecidas: O manifesto comunista e O capital, publicadas pela primeira vez em 1848 e 1867, respectivamente; além de A ideologia alemã, escrita entre 1845 e 1846, e publicada pela primeira vez em 1926.

► Escultura em bronze construída na antiga Berlim Oriental (Alemanha), em homenagem a Karl Marx, c. 1983.

Mediação: ligação; intermediação; ponte.

• Mistura de drama, suspense e humor que narra de forma inteligente a história de Marc, trabalhador que decide entrar no mundo financeiro e se torna um dos homens mais importantes do sistema bancário europeu. Quando um fundo de investimentos estadunidense o enfrenta, Marc mostra do que é capaz, revelando até onde vai a influência do sistema econômico na vida social.

► O CAPITAL. Direção: Costa-Gravas. França: KG Productions, 2013. Streaming (114 min). 1 pôster.

Como o dinheiro se torna a mediação das relações humanas, o trabalho, segundo Marx, deixa de ser o simples modo de os seres humanos construírem sua própria existência e se transforma em uma relação econômica ou em um contrato estabelecido entre indivíduos e grupos com base no dinheiro. Marx chega a concluir que, embora pareça uma simples relação de troca, nesse sistema, as mercadorias e, principalmente, o dinheiro, constituem-se no objetivo de vida dos indivíduos e grupos. Cria-se a ilusão de que a felicidade consiste em acumular capital e comprar produtos e “serviços”.

No entanto, o sistema capitalista produz maneiras de pensar que ocultam a gravidade dessa situação desigual, fazendo os indivíduos que vendem sua mão de obra crerem que as desigualdades são “naturais” e que eles merecem trabalhar para receber seu salário e “vencer na vida”.

A propriedade privada ou particular dos meios de produção é tratada como aproveitamento livre das oportunidades oferecidas pela Natureza, quando, na realidade, ela seria resultado de histórias violentas em que alguns indivíduos se apoderaram de terras, coisas e pessoas, deixando-as como heranças a seus descendentes.

Fazer os trabalhadores acreditarem na naturalidade das relações de produção e de trabalho é tarefa, segundo Marx, da ideologia: uma forma de pensar e um tipo de discurso que oculta a verdade histórica, distraindo os indivíduos com o desejo de consumir e fazendo com que eles não percebam o esquema de exploração ao qual são submetidos. Os trabalhadores são “separados de si mesmos”, impedidos de se entenderem como unidades formadas historicamente. Conforme Marx, são vítimas da alienação.

O caminho da libertação dos indivíduos exigiria, ainda segundo Marx, tomar consciência do mecanismo da ideologia e da alienação e participar ativamente da construção de uma vida social que seja representada por um governo ou um Estado que controle os meios de produção e garanta a igualdade de acesso de todos os cidadãos a eles. A essa concepção política e econômica costuma-se chamar de socialismo.

► QUINO. [O que eles pensam que nós somos?]. In: QUINO. Toda Mafalda. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 43.

REPRODUÇÃO/DOMINIQUE SEGALL

A de sigualdade como algo natural

Outras teorias discordam radicalmente do pensamento marxista, porque, no seu dizer, é impossível negar que a Natureza dá a todos os indivíduos certas características das quais eles podem se servir segundo suas diferenças. Essas características, sendo naturais, corresponderiam a direitos inseparáveis dos indivíduos: o mais fundamental deles seria o direito à propriedade privada; e, com ele, associados a ele, viriam o direito à liberdade e o direito de ir e vir.

Entre essas teorias, a mais forte e mais conhecida denomina-se liberalismo. De acordo com os liberais, todo ser humano tem direito a agir como quer, desde que não prejudique seus semelhantes. Dessa perspectiva, as desigualdades existentes no interior de uma sociedade seriam positivas, pois traduziriam as diferentes maneiras como cada indivíduo, por livre-arbítrio, constrói sua vida. Elas não seriam injustas nem más.

Um dos autores centrais para o pensamento liberal foi o inglês John Locke (16321704). Precursor do Iluminismo, Locke dedicou-se a justificar as ideias de que todo ser humano é livre e de que a sociedade é um conjunto de indivíduos organizados por um pacto ou um acordo que favorece a convivência de todos. Ele ficou conhecido por sua teoria dos direitos naturais (liberdade, propriedade etc.), da separação entre o poder civil e o poder religioso, do direito à desobediência dos cidadãos em caso de injustiças praticadas pelos governantes e da liberdade de consciência.

► PARKER, James. The revolution, 1688 [A revolução, 1688]. 1790. Gravura, 49,4 cm × 63,6 cm. Museu Britânico, Londres (Inglaterra). Visando à defesa dos direitos naturais do ser humano e da política como invenção humana, as ideias do filósofo John Locke ajudaram a derrubar o absolutismo na Inglaterra e a questionar o direito divino dos reis. Com a instituição da Bill of Rights ("Declaração de Direitos"), de 1689, o Parlamento passava a ter autoridade e o poder real era limitado. Na gravura, o parlamento apresenta o documento ao rei Guilherme de Orange (1650-1702) e sua esposa Maria (1662-1694).

BIOGRAFIA

John Locke (1632-1704)

Foi um filósofo inglês, conhecido como um dos principais representantes do empirismo. Locke rejeitou a crença de Descartes em ideias que nascem com o ser humano e afirmou que a mente é uma tábula rasa (uma tábua lisa, como uma lousa limpa ou uma folha em branco), na qual se inscrevem dados aprendidos por meio dos cinco sentidos. Sua concepção dos direitos naturais do ser humano e da política como invenção humana ajudaram a derrubar o absolutismo na Inglaterra e a questionar o direito divino dos reis. Obras mais conhecidas: Dois tratados sobre o governo e Ensaio acerca do entendimento humano, publicadas pela primeira vez em 1689 e 1690, respectivamente.

► KNELLER, Godfrey. Portrait of John Locke [Retrato de John Locke]. 1697. Óleo sobre tela, 76 cm x 64 cm. Palácio de Inverno, São Petersburgo (Rússia).

[...] Como, porém, o ouro e a prata, por terem pouca utilidade para a vida humana em comparação com o alimento, as vestimentas e o transporte, derivam o seu valor apenas do consentimento dos homens, [...] vê-se claramente que os homens concordaram com a posse desigual e desproporcional da terra, tendo encontrado, por um consentimento tácito e voluntário, um modo pelo qual alguém pode possuir com justiça mais terra que aquela cujos produtos possa usar, recebendo em troca do excedente ouro e prata que podem ser guardados sem prejuízo de quem quer que seja, uma vez que tais metais não se deterioram nem apodrecem nas mãos de quem os possui. Essa partilha das coisas em uma desigualdade de propriedades particulares foi propiciada pelos homens fora dos limites da sociedade e sem um pacto, apenas se atribuindo um valor ao ouro e à prata e concordando-se tacitamente com o uso do dinheiro. Pois, nos governos, as leis regulamentam o direito de propriedade; e a posse da terra é determinada por legislações positivas.

[...] Desse modo, penso eu, torna-se muito fácil conceber sem a menor dificuldade de que modo pôde o trabalho, no princípio, dar início a um título de propriedade sobre as coisas comuns da natureza; e de que modo o gasto das mesmas [coisas] para nosso uso limitava essa propriedade. De maneira que não podia haver nenhum motivo para controvérsia acerca desse título nem sombra de dúvida quanto à extensão das posses que ele conferia. O direito e a conveniência andavam juntos, pois o homem tinha direito a tudo em que pudesse empregar seu trabalho, e por isso não tinha a tentação de trabalhar para obter além do que pudesse usar. Isso não deixava espaço para controvérsias acerca do título [de propriedade] nem para a violação do direito alheio. A porção que o homem tomava para seu uso era facilmente visível e seria inútil, bem como desonesto, tomar demasiado, ou mais do que o necessário.

Tácito: silencioso; discreto; subentendido; não declarado.

Excedente: aquilo que vai além do necessário; sobra; algo restante.

Propiciado: possibilitado; proporcionado.

Controvérsia: discordância.

Alheio: que é de outra pessoa.

De acordo com esse trecho de Locke, se cada ser humano é livre por um dom da natureza, então sua liberdade é também econômica, podendo ser concretizada por meio da troca e do trabalho realizado segundo o modo como quer cada cidadão. Os governos ou os Estados, por sua vez, não teriam direito de intervir nas liberdades econômicas, pois isso significaria pretender interferir em dons que não são feitos pelos governos, e sim pela Natureza mesma.

LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução: Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 428-429.

Enquanto Marx identificava nas origens da humanidade violências que permitiram a alguns tomar posse de terras, ferramentas etc., Locke interpretava as origens da humanidade c omo um momento em que todos tinham direito a tomar posse do necessário para sobreviver. Então, se nada impedia que alguns seres humanos possuíssem mais coisas do que os outros, todos se mostravam de acordo com tal posse do necessário.

Note como a tese central do texto de Locke pode ser resumida em alguns passos básicos:

a) quem dá valor ao ouro e à prata são os seres humanos;

b) os seres humanos concordaram, de maneira silenciosa, que alguns produzissem mais do que o necessário e recebessem ouro e prata em troca do excedente;

c) o fato de os seres humanos valorizarem o ouro e a prata fez com que a troca por produtos excedentes fosse considerada legítima, pois quem tinha ouro e prata os dava em troca de produtos e não discordava disso (prática que levou ao uso do dinheiro);

d) essa prática de troca surgiu antes mesmo que os seres humanos formassem uma sociedade, quer dizer, não dependeu de um pacto ou de um acordo;

e) como nada impedia que os seres humanos tomassem posse do necessário para trabalhar, todos aceitaram que essa posse era legítima, e não questionaram o direito à propriedade (inclusive porque produzir para trocar por ouro e prata era a forma de trabalho dos proprietários);

f) por fim, os governos dos países elaboraram leis para organizar as relações baseadas no direito de propriedade, a fim de proteger os cidadãos proprietários.

Alguns historiadores marxistas questionariam essa “história ideal” criada por Locke, ou seja, essa imaginação de um início pacífico para a história da humanidade. Assim, ainda que esses mesmos historiadores marxistas também “imaginem”, em grande medida, os inícios da humanidade (pressupondo a existência de violência na obtenção dos meios de produção), eles poderiam recorrer a testemunhos antigos, segundo os quais os indivíduos que passaram a possuir mais terras e ferramentas não o fizeram por meio do trabalho, mas por meio de guerras, de atos enganosos, de práticas religiosas (que levavam as pessoas a dar seus bens a líderes religiosos) etc. Portanto, de um ponto de vista marxista, a teoria liberal seria frágil em seus próprios fundamentos. Mas um liberal poderia defender que, mesmo se nas origens houve violência e engano, tal fato não autoriza a pensar que todo proprietário praticou alguma violência ou enganou alguém. Mesmo quem recebeu heranças de antepassados desonestos não teria culpa nem poderia ser responsabilizado pelos erros de seus antepassados.

• Neste livro, os autores refletem sobre as relações entre justiça, direito e sociedade, explorando dilemas como: devemos ou não obedecer a uma lei que contraria nossa consciência?

► BRAGATO, Fernanda Frizzo; CULLETON, Alfredo. A justiça e o direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015. (Filosofia: o prazer do pensar). Reprodução da capa.

DiCA

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

Hipóteses sobre o mundo e teste do próprio pensamento

A tensão entre marxismo e liberalismo tem levado diferentes pensadores a combinar elementos das duas teorias, na tentativa de conceber tipos de vida social menos injustos e desiguais. Nessa perspectiva, os chamados comunitaristas advogam que a preocupação com o bem comum é a única solução para evitar ao máximo a exploração humana e as desigualdades extremas. O bem comum seria um ideal de sociedade justa, equilibrada pela comparação e pelo debate entre as formas de pensar dos indivíduos e grupos, em busca de práticas refletidas comuns.

Em grupo. Reúnam-se em grupos de três estudantes para ler o trecho do filósofo comunitarista Alasdair MacIntyre (1929-) e relacioná-lo ao conteúdo do capítulo.

É preciso testar o próprio pensamento

► Fotografia de Alasdair MacIntyre na Universidade de Notre Dame, Indiana (Estados Unidos), 2022.

Testar dialeticamente: contraposição de todos os polos de um debate, visando ao aprendizado de algo novo.

O que [o] indivíduo tem de aprender é como testar dialeticamente as teses que lhe forem propostas por cada tradição e, ao mesmo tempo, utilizar essas mesmas teses para testar dialeticamente as convicções e reações que ele próprio trouxe para o encontro. Ele deve envolver-se no diálogo entre as tradições, aprendendo a usar a língua de cada uma delas, a fim de descrever e avaliar as outras através dela [essa mesma língua]. Assim, cada um desses indivíduos será capaz de transformar suas próprias incoerências iniciais em vantagens argumentativas, exigindo de cada tradição que ela lhe forneça uma visão de como essas incoerências podem ser melhor caracterizadas, explicadas e superadas.

MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem?: Qual racionalidade?. Tradução: Marcelo Pimenta Marques. São Paulo: Loyola, 1991. p. 426.

1. Segundo Alasdair MacIntyre, por que é importante testar o próprio pensamento?

2. Distribuam a dois membros do grupo o papel de criadores de hipótese, enquanto o terceiro membro fica com o papel de avaliador do modo como cada criador organiza seu pensamento.

a) Reflitam sobre sua própria experiência e a de suas famílias: as relações que vocês mantêm, o modo como obtêm o próprio sustento, como praticam o lazer, o tipo de serviço de saúde e de educação a que vocês têm acesso etc.

b) Com base nessas reflexões, façam um debate. Um estudante apresenta a hipótese liberal para explicar as experiências levantadas; depois, outro estudante faz o mesmo, mas servindo-se da hipótese marxista. Na sequência, o terceiro estudante analisa o modo como cada colega compôs seus argumentos e, dando uma justificativa clara, analisa se tal modo foi coerente ou não.

c) Individualmente, registrem por escrito suas impressões sobre o debate.

MATT CASHORE/UNIVERSIDADE DE NOTRE DAME, NOTRE DAME, INDIANA, EUA

InTEGranDO COm...

GEOGRAFIA

Globalização, liberdade e desigualdade

O debate filosófico entre a interpretação marxista e a interpretação liberal dos processos socioeconômicos que estruturam a vida em sociedade prevalece como dois polos orientadores do tratamento dessa problemática na atualidade, como se observa, por exemplo, em inúmeros estudos geográficos. Leia, a seguir, um trecho do texto do geógrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001) e responda às atividades.

O sistema da perversidade

Assim elaborado, o sistema da perversidade [na globalização] legitima a preeminência de uma ação hegemônica mas sem responsabilidade, e a instalação sem contrapartida de uma ordem entrópica, com a produção ‘natural’ da desordem.

Para tudo isso, também contribui o estabelecimento do império do consumo, dentro do qual se instalam consumidores mais que perfeitos [...], levados à negligência em relação à cidadania e seu corolário , isto é, o menosprezo quanto à liberdade, cujo culto é substituído pela preocupação com a incolumidade . Esta reacende egoísmos e é um dos fermentos da quebra da solidariedade entre pessoas, classes e regiões. Incluam-se também, nessa lista dos processos característicos da instalação do sistema da perversidade, a ampliação das desigualdades de todo gênero: interpessoais, de classes, regionais, internacionais. Às antigas desigualdades, somam-se novas.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 60-61.

do geógrafo Milton Santos, em São Paulo (SP), 1996.

Preeminência: prioridade; superioridade.

Hegemônico: detentor do controle de um processo ou de um grupo social.

Entrópico: grau de desordem, sobretudo por conta do não fornecimento de informações claras.

Negligência: descuido; abandono.

Corolário: consequência natural.

Incolumidade: autoconservação; característica do que não sofre alteração.

1. Observe que Milton Santos não emprega os termos marxista nem liberal. No entanto, seu vocabulário deixa entrever que sua posição é marxista, como crítico do sistema liberal que estrutura o mundo globalizado. Identifique palavras e expressões que caracterizam a posição de Milton Santos.

2 . Em sua opinião, o vocabulário de Milton Santos é adequado para descrever o processo liberal que estrutura a vida no mundo globalizado? Argumente.

► Fotografia
MOACYR LOPES JÚNIOR/FOLHAPRESS
Não escreva no livro.

#jovensemação

Os movimentos sociais e a liberdade como uma luta constante

PASSO 1

Pensar sobre a liberdade

A filósofa estadunidense Angela Davis (1944-) escreveu uma obra de grande relevância para pensar o que a liberdade sempre foi e nunca deixará de ser, sobretudo nos tempos atuais: uma luta constante. Descrita dessa maneira, a liberdade é entendida como um direito frequentemente ameaçado por muitos fatores sociais, de modo que precisa ser defendida a cada instante e a cada transformação da vida em sociedade.

Angela Davis explora a ideia de que a liberdade não é um estado permanente ou uma conquista isolada, mas um processo contínuo de luta contra as formas de opressão que se manifestam de diversas maneiras ao longo do tempo e em diferentes contextos. Além disso, a filósofa enfatiza a importância de reconhecermos os verdadeiros sujeitos históricos dessas lutas. Leia, a seguir, o texto em que Davis comenta sobre as lutas contra o regime de segregação racial nos Estados Unidos.

E me pergunto: algum dia reconheceremos de fato o sujeito coletivo da história, ele mesmo produzido pela mobilização radical?

[...]

Como podemos agir contra a representação de agentes da história como [...] indivíduos poderosos do sexo masculino, a fim de revelar o papel desempenhado no movimento pela liberdade negra, por exemplo, por mulheres negras que eram trabalhadoras domésticas?

Os regimes de segregação racial não foram destituídos pelo trabalho de líderes, presidentes e legisladores, e sim pelo fato de que pessoas comuns adotaram um posicionamento crítico na compreensão que tinham de sua relação com a realidade. [...] Essa consciência coletiva emergiu no contexto das lutas sociais.

[ ... ] o próprio conceito de liberdade – que é considerado tão valioso em todo o Ocidente, que inspirou tantas revoluções históricas no mundo – deve ter sido imaginado primeiro por pessoas escravizadas. Na época do movimento pela liberdade negra do século XX, os seres humanos cuja situação mais se aproximava daquela de pessoas escravizadas, de quem descendiam, eram trabalhadoras domésticas negras. Estamos falando de mulheres que limpavam casas, cozinhavam, lavavam roupas.

DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Tradução: Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 68-69.

Fotografia da filósofa Angela Davis (1944-). Brétigny-sur-Orge (França), 2024.
Não escreva no livro.

PASSO 2 Mapear a realidade

Consultar orientações no Manual do Professor.

• Em grupo. Reúnam-se em grupos de cinco estudantes e, com a coordenação de seu(sua) professor(a) de Filosofia, identifiquem movimentos sociais (trabalhadores, feministas, afrodescendentes, pessoas LGBTQIAPN+, ativistas pela habitação de imóveis sem uso etc.) que atuam em sua região. Procurem entrar em contato com algum deles e solicitem uma entrevista com alguns membros do movimento. Antes da entrevista, elaborem um roteiro com uma questão norteadora: o que é liberdade para você e para o seu grupo social?

PASSO 3 Atuar na sociedade

Registrem a entrevista em formato de vídeo e selecionem imagens (fotografias dos entrevistados, dos espaços utilizados pelo movimento, dos projetos que realizam etc.) para incluir na edição. Façam também uma reflexão em conjunto para encerrar o vídeo. Lembrem-se de tomar as medidas de segurança necessárias ao realizarem a entrevista e de solicitar e registrar a autorização de uso de voz e imagem dos entrevistados. Nesse item, a colaboração de seu professor é essencial. Para inspirá-los e enriquecer o trabalho, pesquisem pinturas e instalações artísticas de artistas que exploram temas semelhantes. Observem os exemplos.

► KAHLO, Frida. As duas Fridas. 1939. Óleo sobre tela, 173,5 cm x 173 cm. Museu de Arte Moderna, Cidade do México. Frida Kahlo (1907-1954) oferece uma visão introspectiva sobre identidade e dualidade, tocando sutilmente em questões de escolha pessoal, em contraste com constrangimentos sociais.

► KILOMBA, Grada. O barco. 2021. Instalação em madeira e impressão a laser. Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, Lisboa (Portugal). A obra da filósofa e artista Grada Kilomba (1968-) é uma instalação artística poderosa, que aborda temas de diáspora, memória e trauma colonial. Kilomba cria uma narrativa visual que desafia os(as) espectadores(as) a confrontarem a persistência do passado colonial no presente, incentivando uma reflexão profunda sobre identidade, resistência e liberdade.

PASSO 4 C ompartilhar o trabalho com a comunidade

Publiquem o resultado deste trabalho nas redes sociais e canais oficiais da escola com a hashtag #JovensEmAção

ARTWORKS.PT/GRADA KILOMBA

8. Alternativa D.

1. Com base no que você aprendeu sobre recusa frágil e refutação, elabore frases que refutem as seguintes.

a) Algum brasileiro não é latino-americano.

b) Algum brasileiro é asiático.

c) Nenhum brasileiro é corrupto.

d) Todo brasileiro é corrupto.

2. Monte um quadrado de oposições com o sujeito brasileiro e o predicativo simpático e diga se cada frase do quadrado é verdadeira ou falsa.

3. Por que Espinosa considerava o livre-arbítrio uma ilusão?

4. Como a insistência de Merleau-Ponty no poder do equívoco e no processo de regulagem permite pensar a liberdade?

5. Comente os exemplos do filósofo e do artista dados por Merleau-Ponty como provas da existência da liberdade.

6. O que significa falar de desindividualização do indivíduo, segundo Robert Castel?

7. O que significa, segundo a análise de Marx, afirmar que o dinheiro se tornou a mediação entre as pessoas e pode desumanizá-las?

8. (Enem)

Sendo os homens, por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela.

LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo civil. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1978.

Segundo a Teoria da Formação do Estado, de John Locke, para viver em sociedade, cada cidadão deve

a) manter a liberdade do estado de natureza, direito inalienável.

b) abrir mão de seus direitos individuais em prol do bem comum.

c) abdicar de sua propriedade e submeter-se ao poder do mais forte.

d) concordar com as normas estabelecidas para a vida em sociedade.

e) renunciar à posse jurídica de seus bens, mas não à sua independência.

9. Quais são as razões de John Locke para afirmar que as desigualdades sociais são boas?

10. Como um pensador marxista pode reagir à interpretação liberal do início da história da humanidade e como um pensador liberal pode responder à reação marxista?

Consultar orientações no Manual do Professor.

ReToManDO Não escreva no livro.

DISSERTAÇÃO Dissertação de contradição

Elabore uma dissertação de contradição, tendo por tema a afirmação seguinte.

Tudo o que o ser humano vive é determinado pela natureza. A própria desigualdade econômica é uma prova disso, pois todos os seres vivem em concorrência.

Uma dissertação de contradição mostra que uma forma de pensamento pode ser recusada por não corresponder a algo considerado verdadeiro.

Há pelo menos duas maneiras de escrever uma dissertação de contradição:

1. analisar um pensamento e contradizê-lo por comparação com a experiência;

2. mostrar que dois pensamentos se contradizem entre si e se excluem (quer dizer, se um for aceito como verdadeiro, o outro tem necessariamente de ser tomado como falso). Essa maneira de considerar dois pensamentos distingue a dissertação de contradição da dissertação de problematização, pois não permite combinar os dois pensamentos analisados.

Nas duas maneiras, uma boa estratégia consiste em se apoiar no funcionamento do quadrado das oposições. Observe os exemplos.

(A) C ontradizer o pensamento: “Nenhum político é honesto”.

1O . PASSO (1o - PARÁGRAFO): apresentar as razões pelas quais alguém poderia afirmar que nenhum político é honesto.

2O . PASSO (2o - PARÁGRAFO): citar pelo menos um caso de político honesto.

3O . PASSO (3o - PARÁGRAFO): concluir que, diante do caso de político honesto, é um erro afirmar que nenhum político é honesto. Esse pensamento está, portanto, contradito.

(B) A nalisar os dois pensamentos contraditórios:

Pensamento X – O dinheiro é o único sentido da vida . Pensamento Y – O dinheiro não é o único sentido da vida.

1O . PASSO (1o - PARÁGRAFO): apresentar razões que permitam defender o pensamento X e exprimir com clareza que esse pensamento pode ser expresso da seguinte maneira: “todo o sentido da vida é o dinheiro”.

2O . PASSO (2o - PARÁGRAFO): encontrar uma forma de defender o pensamento Y; a mais adequada e firme é encontrar pelo menos um caso em que dinheiro não é o sentido da vida (por exemplo, em alguns lugares do mundo, até hoje, as relações de troca são feitas sem dinheiro; ou, ainda, o sentido da vida para muitas pessoas pode estar não no dinheiro, mas nas relações de amizade e em práticas que não visam o lucro. Se o pensamento Y indicar pelo menos um caso, ele pode ser expresso da seguinte maneira: “existe pelo menos um caso em que o sentido da vida não é o dinheiro: [...]”.

3O . PASSO (3o - PARÁGRAFO): concluir que o pensamento Y, levantando uma verdade inquestionável, exclui o pensamento X .

Lembre-se de que é possível defender o pensamento X contra o pensamento Y. Você pode começar pelos exemplos dados em favor de Y, mostrar que são todos falsos e concluir com X . Tenha o cuidado de realmente provar que os exemplos de Y são falsos. Do contrário, sua defesa de X será fraca.

Consultar orientações no Manual do Professor.

A PRÁTICA ÉTICA

Inscrição na Avenida Brasil, Rio de Janeiro (RJ), c. 1980, feita pelo Profeta Gentileza.

A imagem que abre este capítulo retrata uma frase que foi inscrita na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, por um senhor que ficou conhecido como Profeta Gentileza. Seu nome era José Datrino (1917-1996).

Aos 44 anos, Datrino, que até então era empresário, adotou um estilo de vida completamente diferente, depois de ter ficado impressionado com a tragédia que matou cerca de 500 pessoas em um incêndio de um circo na cidade de Niterói (Rio de Janeiro).

O Profeta Gentileza viveu quatro anos no local onde ocorreu o incêndio. Lá plantou flores e cultivou uma horta, anunciando a quem oobservava que o mundo “já tinha acabado” e que era preciso cultivar a gratidão e a gentileza.

A ideia de que um ato pode despertar reações semelhantes abre um campo de hipóteses e pesquisas filosóficas bastante fértil. Esse campo pode ser sintetizado na seguinte pergunta: os atos podem tornar-se hábitos individuais e sociais?

Atos e hábitos

Uma das primeiras reflexões sistematizadas sobre a ação humana em termos de atos e hábitos vem de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). Se analisados apenas sob a perspectiva de sua constituição física, os seres humanos têm tudo em comum com os outros seres (os minerais, as plantas e os animais em geral). Porém, analisados da perspectiva dos atos que só eles realizam, é possível colher a diferença que os caracteriza: os seres humanos são racionais, quer dizer, podem refletir e agir livremente.

A palavra ato e outras semelhantes (ação, agir, atividade etc.) são empregadas em um sentido específico quando se referem aos seres humanos. Embora se diga, por exemplo, que o animal realiza o ato de correr tanto quanto o ser humano, é preciso saber que o ato humano de correr é diferente do ato animal de correr, uma vez que o ser humano pode refletir sobre os motivos e o modo dessa ação. O animal, mesmo tendo certa “percepção” das coisas e de seus atos, não reflete sobre eles; no caso, corre ao sentir um perigo. Já o ser humano pode refletir sobre a melhor ação em cada circunstância: correr ou ficar parado? Sua ação se mostra mediada por uma reflexão sobre causas e conse quências. Aristóteles usava a palavra grega práxis (prática; ação) para designar a ação humana de reagir a estímulos e construir o sentido da própria ação.

Ele observava, porém, que os seres humanos vivem certas expe riências que não dependem deles, mas brotam ou nascem neles sem que possam controlar o surgimento delas. Estas experiên cias, Aristóteles chamou de paixões. Em português, paixão traduz o termo latino passio, que, por sua vez, correspondia ao termo grego páthos: “sofrer uma ação”, “receber uma ação”, assim como sofremos ou recebemos a batida de uma bola ou como somos tomados pelo desejo que nos leva a amar alguém. Hoje é possível trocar a palavra paixão pela palavra emoção. Exemplos de paixão ou emoção são a alegria, a raiva, o desejo, o medo etc.

► BUSTO de Aristóteles. [ca. Século I ou II d.C.]. 1 escultura, mármore, 21,5 cm × 33 cm × 23

Museu do Louvre, Paris (França).

• Estudos de Leonardo Guelman, pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF), sobre o Profeta Gentileza que, no seu dizer, voltava-se para um sentido de humanização da vida na cidade contemporânea, marcada por violência e desapego de seus habitantes.

► GUELMAN, Leonardo. Univvverrsso Gentileza. Rio de Janeiro: Editora Mundo das Ideias, 2009.

• O f ilme apresenta uma entrevista com o Profeta Gentileza, além de imagens de suas intervenções nas ruas do Rio de Janeiro.

► GENTILEZA. Direção: Dado Amaral e Vinícius Reis. Brasil: produção independente, 1994. Documentário em curta-metragem (9 min). DiCAs

cm.
MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA

Aristóteles observava, ainda, que o ser humano pode interferir no modo de vivenciar suas paixões. É impossível impedir que o medo nasça em nós; no entanto, é possível elaborar refletidamente a maneira de reagir a ele. Esta possibilidade, Aristóteles designou como disposição ou capacidade de dispor de si mesmo. Assim, o medo surge no indivíduo quando ele percebe uma ameaça, o que é natural. Porém, a intensidade com que ele o vive depende de como dispõe refletidamente de si mesmo. Sentir medo em excesso é ruim, tanto quanto é ruim sentir menos medo do que seria adequado. Em outras palavras, se a paixão do medo é uma reação imediata, então ela merece ser sentida, mas sem falta nem excesso. A falta leva a enfrentar a ameaça sem calcular a sua força; o excesso, por sua vez, identificando a ameaça como maior do que ela realmente é, leva à paralisia.

A melhor situação é aquela em que se reconhece o medo, se avalia adequadamente a força da ameaça e se encaminha o medo proporcionalmente ao que a ameaça realmente é, sem mais nem menos. Por meio dessa dinâmica que envolve emoção e reflexão, o indivíduo pode reagir com coragem, sentindo medo na medida adequada e enfrentando a ameaça também de maneira adequada.

Da perspectiva dessa melhor situação, pode-se dizer que, segundo Aristóteles, a repetição de atos de mesmo tipo praticados em situações semelhantes leva à criação de um hábito correspondente a tais atos, quer dizer, uma disposição a reagir sempre de maneira semelhante em situações semelhantes.

No fim da Idade Média, principalmente depois do trabalho de Pedro Abelardo (1079-1142) e de Tomás de Aquino (1225-1274), circulou um ditado filosófico bastante didático para traduzir o pensamento aristotélico: o objeto determina o ato e os atos determinam o hábito. Por objeto, entende-se o alvo de uma ação, aquilo que motiva um ato. Repetindo a identificação do mesmo objeto em situações variadas e reagindo com o mesmo ato, a repetição determina a criação do hábito, a disposição a reagir de maneira semelhante diante de atos e objetos semelhantes.

► Jogadora de tênis em competição nas Paralimpíadas. Paris (França), 2024. A prática de um esporte nos ajuda a entender a ideia de hábito segundo Aristóteles: ao repetirmos uma ação do mesmo tipo e praticá-la várias vezes em situações semelhantes, criamos um hábito correspondente a essa ação.

A v irtude moral

Hábitos ou disposições desenvolvidos de modo irrefletido (sem a moderação que evita o excesso e a falta) são chamados de vícios. Por sua vez, hábitos ou disposições desenvolvidos de modo refletido (moderado, ponderado) são virtudes. A educação ou o treinamento dos indivíduos é o requisito fundamental para levá-los a desenvolver virtudes e evitar vícios, formando-os para identificar o meio-termo entre a falta e o excesso.

A virtude está no meio-termo relativo a nós

Entendo por meio-termo da coisa o que dista igualmente de cada um dos extremos, que justamente é um único e mesmo para todos os casos; por meio-termo relativo a nós, [entendo] o que não excede nem falta, mas isso não é único nem o mesmo para todos os casos. Por exemplo, se dez é muito e dois é pouco, toma-se o seis como meio-termo da coisa [...]; esse meio-termo ocorre segundo a proporção aritmética. O meio-termo relativo a nós não deve ser concebido assim. Com efeito, se a alguém comer dez minas de peso é muito e duas é pouco, não é verdade que o treinador prescreverá seis minas, pois isso talvez seja pouco ou muito para quem as receberá: para Mílon será pouco, para o principiante nos exercícios será muito. O mesmo [vale] para corrida e a luta. Desse modo, todo conhecedor evita o excesso e a falta e procura o meio-termo e o busca, mas o [meio-termo] relativo a nós. Se, então, toda ciência leva a bom termo a função olhando o meio-termo e a ele conduzindo as obras [...]; e se os bons artesãos trabalham tendo o meio-termo em vista; e se a virtude [...] é mais exata e melhor que toda arte; [então] ela terá em mira o meio-termo. Quero dizer a virtude moral, pois ela concerne a ações e emoções, nas quais há excesso, falta e meio-termo. Por exemplo, é possível temer, ter arrojo, ter apetite, encolerizar-se, ter piedade e, em geral, aprazer-se e afligir-se muito e pouco; e ambos de modo não adequado. [Saber identificar] o quando deve, a respeito de quais, relativamente a quem, com que fim e como deve é o meio-termo e o melhor, o que justamente é a marca da virtude. Similarmente, há excesso, falta e meio-termo no tocante às ações. A virtude diz respeito a emoções e ações, nas quais o excesso erra e a falta é censurada, ao passo que o meio-termo acerta e é louvado: acertar e ser louvado pertencem à virtude. Portanto, a virtude é certa mediedade, consistindo em ter em mira o meio-termo.

ARISTÓTELES. Ethica nicomachea I 13 – III 8: tratado da virtude moral. Tradução: Marco Zingano. São Paulo: Odysseus, 2008. p. 50-51. II, 5, 1106a29-1106b30.

Observe que Aristóteles emprega um adjetivo específico ao falar de virtude moral. O adjetivo moral designa tudo o que é relativo aos

Distar: ter distância com relação a um ponto de referência.

Mina: unidade de peso da Grécia Antiga, equivalente a cerca de 300 gramas. Assim, 10 minas correspondem a 3 quilos; 2 minas, a 600 gramas; 6 minas, a 1 quilo e 800 gramas.

Arrojo: ousadia; iniciativa.

Afligir-se: ter aflição, pavor.

O autor se refere a Mílon de Crotona, conhecido na Grécia Antiga como modelo de lutador. Diz a lenda que ele comia o equivalente a um boi por dia.

O termo ciência é empregado aqui no sentido de conhecimento racional justificado, e não no sentido das ciências modernas.

O termo arte é empregado aqui no sentido de produção consciente e refletida de algo, incluindo o sentido das artes modernas (produção artística), mas sem se reduzir a ele.

costumes, e, especificamente no caso dos seres humanos, a virtude relativa aos costumes envolve uma escolha deliberada, decidida a buscar o bem de cada ação, o meio-termo apropriado a cada circunstância e não um ilusório meio-termo geral que pudesse ser aplicado a todos os atos.

► PICHORE, Jean. Virtudes. 1500. Iluminura. Castelo d’Ecouen, Museu Nacional da Renascença, Paris (França). O artista representa as virtudes consideradas centrais no tempo do Renascimento. Do alto e da esquerda para a direita: a humildade vence o orgulho; a liberalidade vence a avareza; o amor ou a caridade vence a inveja; a paciência vence a ira; o equilíbrio sexual ou a castidade vence o desejo desenfreado; a sobriedade vence a gula.

A prática moral termina por constituir a matéria de um conhecimento específico, praticado por quem procura entender como se chega àquilo que é definido como a boa ação . Trata-se da Moral ou Ética, também conhecida como Filosofia Prática . Esse conhecimento se refere tanto ao que cada pessoa precisa desenvolver pela educação, a fim de agir bem, como ao ramo da reflexão filosófica que procura entender por que uma ação pode ser qualificada como boa ou má.

Uma boa ação é identificada, segundo Aristóteles, quando se reproduzem os exemplos de uma pessoa que todos, na vida social, consideram prudente . Identificando um modelo de boa ação, a concepção aristotélica evita um relativismo total em assuntos éticos, mantendo em uma tensão saudável os dados que vêm do modo de viver do grupo e a possibilidade de que o indivíduo permaneça livre em sua adequação a esse modo de viver. Ela permite entender ainda que, com o tempo, a relação entre indivíduo e grupo faz com que os modelos de prudência se alterem.

• Deve-se ou não fazer as honras a um morto considerado traidor? Este é um dos textos fundadores da ética “ocidental”.

► SÓFOCLES. Antígona. Tradução: Domingos Paschoal Cegalla. São Paulo: DIFEL, 2001. Reprodução da capa.

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O meio-termo relativo a nós

Até pouco antes da Modernidade, a prudência (phrónesis, em grego) foi considerada a virtude geral que orientava a prática das outras virtudes: trata-se do hábito de agir bem em tudo o que se refere ao que é bom e mau para o ser humano. Como agir bem é agir segundo a mediedade (visar ao meio-termo), a prudência ficou conhecida como a virtude ou o hábito virtuoso de sempre procurar o meio-termo relativo a nós — e ele depende das circunstâncias particulares de cada ação. Declarar, por exemplo, que todos devem comer 500 gramas de algum alimento pode ser adequado para algumas pessoas e inadequado para outras: os atletas talvez precisem comer 1 quilo; já algumas pessoas com problemas de saúde talvez precisem comer apenas 250 gramas. Entre a falta e o excesso, o meio-termo deve ser determinado a cada situação específica.

► DI BARTOLOMEO, Martino. Alegoria da Prudência . 1406. Escultura em mármore. Catedral de Siena (Itália).

Essa noção de uma mediedade que se aprende a identificar a cada ação singular (relativamente a nós), descrição concreta da virtude da prudência, foi representada, praticamente no início do Renascimento, pelo artista italiano Martino di Bartolomeo (1389-1434). Ele esculpiu no chão de mármore da Catedral de Siena, na Itália, uma metáfora da prudência representada por uma mulher de três faces, cada qual com seu olhar: a face mais velha, à esquerda, representa a memória e olha para o passado; a adulta, no centro, olha para a frente e representa a docilidade; a mais jovem, à direita, olha para a direita e mira o futuro.

O artista inspirou-se nas investigações éticas de Tomás de Aquino e também nas de Cícero (106 a.C.-43 a.C.) segundo o qual a educação na prudência exige o desenvolvimento de outras capacidades, como a da memória (que faz do passado uma fonte de recursos para o presente), a da docilidade (capacidade de aceitar aprender com outra pessoa) e a da providência (antever as consequências de cada ato).

• Neste livro, o autor explora a atualidade do pensamento aristotélico sobre as virtudes e o testa com alguns desafios contemporâneos. Trata também de temas como a amizade, o amor e o altruísmo.

► ZINGANO, Marco. As virtudes morais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. (Filosofias: o prazer do pensar). Reprodução da capa.

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REPRODUÇÃO/CATEDRALDESIENA,

Recôndito: lugar secreto; esconderijo; intimidade.

LAPLANTE, Charles. Educação de Alexandre da Macedônia, por Aristóteles. In: FIGUIER, Louis. Vies des savants illustres: depuis l'antiquité jusqu'au dixneuvième siècle [Vidas de estudiosos famosos: desde a antiguidade até o século XIX]. Paris: [s. n.], 1866.

A visão ética de Aristóteles é bastante atual; não por acaso, alguns estudiosos identificam ecos da moral aristotélica até mesmo na obra de pensadores considerados anti-aristotélicos, como é o caso de Michel Foucault (1926-1984) e de sua concepção do cuidado de si . O cuidado que cada indivíduo merece ter consigo mesmo requer uma atenção ao que se vive tanto no plano da vida social como no recôndito da consciência individual, a fim de poder construir uma vida em primeira pessoa e realizar a melhor ação.

Como também dizia Aristóteles, o “cuidado” e a decisão acertada não são coisas abstratas; elas se concretizam na escolha dos meios para atingir o objetivo de cada ato. Nisso, ele se mantinha muito próximo de seu mestre Platão (c. 427 a.C.-347 a.C.): toda pessoa sempre quer o bem, até mesmo quando não sabe ou quando pratica algo considerado mal. Por isso, não há liberdade quanto ao nosso objetivo, pois este consiste sempre em buscar um bem. Nossa liberdade só pode ser exercida na escolha dos meios para alcançar o bem. Os meios constituem o momento em que os seres humanos mais podem sentir-se à vontade para atuar por força própria e, ainda que os meios sejam limitados, a liberdade não é limitada na mesma medida, visto que ela toma consciência de tais limitações, opera com elas e determina o sentido que pretende para o seu agir.

Aristóteles esclarecia que a liberdade pode gerar um descompasso entre a busca do bem e a boa escolha dos meios para alcançá-lo, justamente porque os seres humanos nem sempre dão a devida atenção às paixões e às disposições que desenvolvem em si mesmos. Nesse contexto, a educação ou a formação na arte de visar ao meio-termo apresenta-se como a solução para tal descompasso.

Ética e razão

Provavelmente você já deve ter ouvido frases como estas: “Falta ética no mundo...” ou “Ah, como seria bom se houvesse mais valores éticos...”.

Muitas pessoas demonstram decepção e lamentam a perda de bons modelos, desejando um resgate deles na vida atual.

Considerando que a ética aristotélica parte do princípio de que é possível saber socialmente o que é melhor para todos (o bem) e observando como esse mesmo “melhor” (o bem) pode ser interpretado de maneiras muito diferentes, alguns filósofos modernos identificaram a necessidade de rever essa ética, mesmo inspirados por Aristóteles. Utilizando termos cotidianos, pode-se dizer que tais filósofos perguntavam: como identificar o que é a virtude se há tantas variações sobre aquilo que se considera bom ou mau? Como agir com prudência se a identificação do meio-termo pode se alterar de acordo com as experiências de diferentes grupos e indivíduos? Como conceber o bem se os indivíduos e os grupos podem discordar a respeito dele?

A F ilosofia Crítica de Kant

► VECELLIO, Ticiano. Alegoria do tempo governado pela Prudência. 1565. Óleo sobre tela, 76 cm x 69 cm. Galeria Nacional, Londres (Reino Unido). O pintor Ticiano reinterpretou a tradição aristotélica e kantiana da Ética, apresentando o jovem (futuro), o adulto (presente) e o idoso (passado), além de alegorias animais: o leão (força), o cachorro (docilidade) e o lobo (solidão para reflexão).

Um dos primeiros filósofos a enfrentar questões desse tipo foi Immanuel Kant (1724-1804). Ele viveu no século XVIII e tinha clara consciência de seu tempo e das profundas mudanças pelas quais o mundo havia passado desde o século XVI, com as navegações, o fortalecimento do comércio, o encontro das novas culturas, o desenvolvimento da ciência moderna e das indústrias, as guerras de religião, o nascimento dos países ou dos Estados modernos etc.

O momento vivido por Kant lembra bastante outros períodos da história da humanidade, especialmente o que acontecera na Grécia, quando os filósofos sofistas perceberam que a lista das virtudes gregas não era a mesma de outros povos. Conhecendo sociedades diferentes, eles se perguntavam o que realmente era a virtude. Kant, de certa maneira, tentou fazer algo semelhante ao que Platão e Aristóteles fizeram diante do questionamento sofista: superar as dificuldades de compreensão e encontrar um modo de formular respostas aceitáveis racionalmente por todos.

GALERIA NACIONAL, LONDRES, REINO UNIDO

CHODOWIECKI, Daniel. Minerva, deusa da sabedoria, espalha sua luz e envolve até as religiões. 1791. Ilustração para o calendário de bolso da Universidade de Gotinga (Alemanha). Kant foi um dos responsáveis pela criação da cultura iluminista que confiava na razão e no entendimento como formas de esclarecer os seres humanos e promover a aceitação das diferenças, inclusive religiosas.

Kant concentrou seu trabalho em três frentes: o conhecimento científico-racional, o agir ético e a experiência da beleza. O que há de comum em todos os seres humanos, segundo Kant, é a razão, dotada, por sua vez, da capacidade do entendimento, quer dizer, de compreender as experiências humanas e fundamentar as afirmações referentes a essas experiências em dados compreensíveis para todos os indivíduos. Tais dados são aqueles provenientes do conhecimento sensível do mundo (obtido por meio dos cinco sentidos e elaborados pela capacidade do entendimento).

Kant, aliás, antes de propor uma interpretação da realidade, chamava a atenção para a necessidade de avaliar nossas possibilidades de conhecer, a fim de evitar ilusões ou tentativas de chamar de conhecimento o que não passaria de opinião. Ele chamou esse procedimento de crítica (análise). Foi com base nisso que sua filosofia passou a ser chamada também de Filosofia Crítica.

O imperativo categórico

Kant percebeu que, em relação à Ética e à Moral, não pode haver certezas como as científicas, fundadas em dados sensíveis. Assim, não é possível entender cientificamente o conteúdo do bem, pois, embora se possa afirmar que o bem e xiste, não há experiência sensível do que ele é. A razão até pode falar com coerência sobre o bem (como também sobre a beleza), mas isso não significa c onhecê-lo do modo como se conhecem os dados investigados pela Física ou pela Matemática, por exemplo.

Dessa perspectiva – a dos limites do que pode ser entendido por todos –, Kant afirma que a própria virtude da prudência era algo que continha variações e ainda demandava esclarecimento. Se ela pode ser considerada como forma de agir moderadamente, em conjunto com outras pessoas e pela escolha dos meios adequados para atingir finalidades éticas, ela não pode, no entanto, permitir que as pessoas sejam tratadas como meios. Ou se garante que cada indivíduo tem um valor a ser respeitado sempre e absolutamente (cada pessoa é um fim em si mesmo) ou se cai no risco de todos se instrumentalizarem entre si, rumo à destruição mútua.

DANIEL NIKOLAUS CHODOWIECKI/COLEÇÃO PARTICULAR

Por outro lado, garantindo-se a autonomia de cada indivíduo, é legítimo pensar que a prudência é também uma forma de obter benefícios pessoais duradouros, desde que se respeite o benefício dos outros. Ao procurar uma visão ética desse tipo (dotada de universalidade racional) e ao observar que as ações se dão sempre em circunstâncias particulares, Kant esforçou-se para formular um princípio ou uma lei que fosse compreensível por todos e orientasse a ação em todas as circunstâncias. Sua estratégia foi discutir se é possível encontrar, pelo entendimento, um princípio a priori, em outras palavras, anterior às experiências e às situações específicas.

Kant percebeu que a preocupação com o “agir bem” é uma preocupação que fornece sua própria lei, independentemente das ocasiões singulares, pois o querer agir bem já contém a possibilidade de levar à boa ação. Ora, se esse querer é a própria lei do agir, então ele pode ser visto como o dever contido na ação humana, o dever de agir bem. Por sua vez, a forma básica desse dever – válida para todas as circunstâncias – pode ser expressa assim: Você deve agir somente segundo uma máxima que lhe permita também querer que a sua própria máxima seja tomada como lei universal

Máxima: princípio básico e incontestável; preceito; lei.

A essa forma universal do agir ético Kant denominou imperativo categórico , algo que obriga (imperativo) a seguir a própria vontade de agir bem em todas as circunstâncias, sem exceção e independentemente dos objetivos visados (categórico).

Segundo Kant, o imperativo categórico é uma expressão racional da Regra de Ouro (também denominada como ética de reciprocidade) defendida por tradições religiosas: “faça aos outros aquilo que você quer que eles façam a você”; ou ainda “não faça aos outros aquilo que você não quer que eles façam a você”. A diferença da reflexão kantiana está no fato de ela propor uma lei moral independente de conselhos vindos de inspirações religiosas, poéticas etc., mas nascida diretamente do funcionamento da própria vontade de querer agir bem.

CONCEITOS ESTRATEGICOS

A PRIORI E A POSTERIORI

• A priori – Modo de fazer uma afirmação que, para ser comprovada, não precisa recorrer à experiência (fundada nos cinco sentidos). Exemplos:

Todo ser humano, a priori, tem valor por si mesmo.

A priori, o dobro é maior do que suas metades.

• A posteriori – Modo de fazer uma afirmação com base na experiência fundada nos cinco sentidos.

Exemplos:

A estrela da tarde é a mesma que a estrela d’alva.

O verde é formado pela mistura de azul e amarelo.

Subterfúgio: justificativa que disfarça a verdadeira razão de algo; escapatória.

Veraz: que possui verdade e vive na verdade.

Receio: temor; medo.

Infalível: que não falha.

No texto de Kant, “conceito da ação” é igual a “agir por dever”. Diante do apuro, bastaria “olhar” para o conceito da ação (olhar para o sentido de agir por dever) e já se saberia qual é a melhor decisão a tomar diante da possibilidade de mentir para escapar de apuros: não se deve mentir.

A outra direção de que fala Kant é uma direção diferente daquela do conceito da ação: em vez de olhar para o conceito da ação (e saber que se deve agir bem), olha-se em “outra direção”, para as consequências que podem surgir do ato praticado não por dever.

São as possíveis consequências do ato que darão o sentido com que ele é praticado, e não o seu conceito mesmo.

Ser veraz por dever ou por medo das consequências?

Seja, por exemplo, a seguinte questão: será que eu não posso, quando estou em apuros, fazer uma promessa com a intenção de não cumpri-la? É fácil distinguir aqui o significado que a questão pode ter: se é prudente ou se é conforme ao dever fazer uma promessa falsa. O primeiro caso pode, sem dúvida, ter lugar muitas vezes. Vejo bem, é verdade, que não basta livrar-me de um embaraço presente por meio desse subterfúgio, mas que é preciso refletir bem se dessa mentira não poderia originar-se depois, para mim, um incômodo muito maior do que aqueles de que estou me livrando agora, e – visto que, apesar de toda a minha pretensa esperteza, não é tão fácil assim prever as consequências de tal sorte que a perda de confiança não venha a se tornar muito mais desvantajosa para mim do que todo o mal que penso evitar agora – é preciso refletir também se não seria uma linha de ação mais prudente proceder aqui segundo uma máxima universal e adotar o hábito de nada prometer senão na intenção de cumpri-lo. [...] Ora, ser veraz por dever é coisa bem diversa de ser veraz por receio das consequências desvantajosas, [...] no primeiro caso, o conceito da ação já contém em si mesmo uma lei para mim; no segundo, tenho primeiro de voltar os olhos numa outra direção a fim de ver a partir daí quais efeitos para mim poderiam porventura estar ligados a isso [quer dizer, ao ser veraz]. Com efeito, se me afasto do princípio do dever, é certíssimo que isso é mau; se renego a minha máxima de prudência, isso pode sim, às vezes, ser muito vantajoso para mim, muito embora, na verdade, seja mais seguro ater-me a ela. Entretanto, para me instruir da maneira mais breve possível, mas infalível,[...] pergunto a mim mesmo: será que eu ficaria contente se a minha máxima (livrar-me de um embaraço por meio de uma promessa falsa) valesse como uma lei universal (tanto para mim quanto para outros), e será que eu poderia dizer, para mim mesmo: que todo o mundo faça uma promessa falsa quando se encontrar num embaraço do qual não possa se livrar de outra maneira? Assim, logo me darei conta de que posso, é verdade, querer a mentira, mas de modo algum uma lei universal de mentir; pois, segundo semelhante lei, não haveria propriamente promessa alguma, porque seria vão alegar minha vontade com respeito a minhas ações futuras a outros que não dão crédito a essa alegação ou que, se precipitadamente o fizessem, me pagariam com certeza na mesma moeda, e, por conseguinte, porque a minha máxima se destruiria a si mesma tão logo se tornasse uma lei universal. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução: Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso & Barcarolla, 2009. p. 135-137.

Ética e paixão

Alguns pensadores identificaram no pensamento kantiano um exagero na confiança no poder do entendimento para orientar a ação humana, uma desvalorização do papel das emoções ou paixões como motores da ação. É o caso de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que chegará a dizer: “Nada se produziu no mundo sem paixão”.

Antes de Hegel e mesmo de Kant, pensadores como o escocês David Hume e o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) haviam chamado a atenção para a influência das emoções na razão. David Hume chegava a afirmar que, diferentemente do que Aristóteles pensava, a racionalidade não é a característica principal e definidora do ser humano em matéria de Ética, porque o conhecimento puramente racional não leva ninguém a agir, mas as emoções, sim.

Hume defende, na obra Tratado da Natureza Humana, de 17391740, que a razão é e deve ser uma serva das emoções. Posteriormente, na obra Investigação Sobre o Entendimento Humano, de 1748, ele diminui a força dessa afirmação, preferindo sustentar que a razão e a emoção contribuem juntas para a prática moral. A Natureza teria posto nos seres humanos algo como um senso moral ou sentimento interno (pensamento) para agir bem.

Curiosamente, embora Hume se dissesse em desacordo com Aristóteles em vários aspectos, há uma concordância entre ele e o pensador grego, pois este também colocava as emoções em primeiro plano. Aristóteles chegava a dizer que a virtude e o vício estão ligados a prazeres e dores. Seu objetivo era elaborar uma ética para seres humanos, “não para deuses”. Por esse motivo, não é exagerado dizer que a presença de Aristóteles na reflexão ética é uma constante no pensamento filosófico.

Simpatia e comparação

[…] devemos recorrer a dois princípios bastante manifestos na natureza humana. O primeiro é a simpatia, ou seja, a comunicação de sentimentos e paixões [...]. Tão estreita e íntima é a correspondência entre as almas dos […] [seres humanos] que, assim que uma pessoa se aproxima de mim, ela me transmite todas as suas opiniões, influenciando meu julgamento em maior ou menor grau. Embora, muitas vezes, minha simpatia por ela não chegue ao ponto de me fazer mudar inteiramente meus sentimentos e modos de pensar, raramente [a simpatia] é tão fraca que não perturbe o tranquilo curso de meu pensamento, dando autoridade à opinião que me é recomendada por seu assentimento e aprovação. [...]

BIOGRAFIA

David Hume (1711-1776)

► RAMSAY, Allan. David Hume, 1711-1776.

Historiador e filósofo 1766. Óleo sobre tela, 76,2 cm × 63,5 cm. Galeria Nacional Escocesa de Retratos, Edimburgo (Escócia).

foi um filósofo, economista e historiador escocês, considerado um dos mais importantes escritores de língua inglesa. Adotando uma inspiração cética em teoria do conhecimento, Hume produziu um pensamento empirista que exerceu grande influência na Modernidade e na Contemporaneidade (em Kant e na fenomenologia, por exemplo). Suas obras mais conhecidas são: Tratado da Natureza Humana e Investigação Sobre o Entendimento Humano

Assentimento: consentimento; aceitação baseada em concordância.

GALERIA NACIONAL ESCOCESA DE RETRATOS, EDIMBURGO, ESCÓCIA

O segundo princípio para o qual chamarei a atenção é o da comparação, ou seja, a variação de nossos juízos acerca dos objetos segundo a proporção entre estes e aqueles com os quais os comparamos. Julgamos os objetos mais por comparação que por seu mérito ou valor intrínseco; […]. Mas nenhuma comparação é mais óbvia que a comparação conosco; por isso, ela tem lugar em todas as ocasiões e influencia a maioria de nossas paixões. Esse tipo de comparação é diretamente contrário à simpatia em seu modo de operar.

• Reflita sobre as relações de influência ou de distanciamento que você já experimentou ao conhecer pessoas novas. Você já se comparou com alguém, a ponto de sentir inveja?

Consultar orientações no Manual do Professor.

COLEÇÃO PARTICULAR

David Hume chama de simpatia a comunicação de sentimentos e paixões. Refere-se a um significado mais geral do que aquele de uma identificação com alguém ou de uma compaixão. A simpatia consiste na experiência em que uma pessoa é influenciada diretamente pelas emoções ou paixões de outra. Isso envolve, obviamente, certa identificação entre as pessoas ou uma abertura entre elas (assentimento). Caso contrário, se houver um fechamento em si, não ocorrerá influência. O fechamento em si é próprio da comparação. Se me identifico com alguém e vejo seu sucesso e alegria, sou contagiado por essa alegria (ocorre uma simpatia entre nós); porém, se não tenho nenhuma afinidade com esse alguém, nenhuma identificação, então me fecho em mim mesmo e tendo a vê-lo e a compará-lo comigo, podendo mesmo sentir inveja diante de seu sucesso e alegria.

Tanto a simpatia como a comparação são modos de reagir à presença alheia e interferem na vivência das virtudes. Agir bem, portanto, não pode ser apenas o resultado de um convencimento intelectual.

Se David Hume tivesse vivido depois de Kant e se pudesse ter lido a obra do pensador alemão, provavelmente diria que a ética do dever é um projeto humanamente impossível de ser realizado. O dever exigiria crer que o ser humano pode controlar as emoções por meio do entendimento, mas as paixões são tão ou mais fortes do que ele.

► LEIGHTON, Frederic. Reconciliação das famílias Montequio e Capuleto na morte de Romeu e Julieta. 1855. Óleo sobre tela. As duas famílias rivais são influenciadas reciprocamente pela experiência da dor e reconciliam-se.

HUME, David. Tratado da natureza humana
Tradução: Déborah Danowski. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 632-633.
DiAlOGANDO

Essa problemática é muito viva no pensamento contemporâneo. Hegel, por exemplo, chamou atenção para a fraqueza de uma ética do dever que considera possível falar de uma lei anterior a toda prática social e interna à própria intenção de agir bem. No seu dizer, todas as crenças éticas e avaliações morais são fundamentadas em instituições sociais, principalmente em um Estado justo. De sua perspectiva, sem experiências históricas de amor, ninguém entenderia a Regra de Ouro traduzida na forma “ama ao próximo como a ti mesmo”. Por isso, nem ela nem o imperativo categórico teriam um fundamento a priori.

BIOGRAFIA

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo alemão, um dos fundadores do Idealismo alemão e do Historicismo. Defendia que a razão passou por um desenvolvimento histórico, chegando a uma consciência da totalidade do mundo (espírito absoluto) por meio da consciência de si mesma, exprimindo-se como Filosofia. Esse desenvolvimento seria um movimento dialético, um choque e uma união de posições contrárias, resultando em uma síntese (progressão na qual o movimento sucessivo surge como solução das contradições inerentes ao movimento anterior). Obras mais conhecidas: Fenomenologia do espírito, Ciência da lógica, Princípios da Filosofia do Direito

Hegel vincula, então, a Ética e a política. Seu trabalho lembra claramente o pensamento de Platão e de Aristóteles, para quem o cidadão é alguém que se realiza apenas na convivência com outros cidadãos. Contudo, o pensamento hegeliano é bastante diferente do pensamento platônico e aristotélico, pois, em vez de recorrer a bases naturais da política e do Estado, enfatiza que eles são instituições ou construções culturais. Hegel partia da esperança de que um dia algum Estado, construído de maneira justa pelos seus próprios membros, permitiria que eles alcançassem uma existência plenamente justa.

Houve, porém, quem denunciasse o “risco” do pensamento hegeliano, pois, ainda que um Estado seja construído de maneira justa (permitindo o desenvolvimento igualitário de seus membros), ele pode sempre converter-se em uma ameaça à individualidade dos cidadãos, principalmente se o grupo de líderes do Estado for considerado como a instância que pode decidir sobre o que é justo para todos. Grande seria o risco de esse grupo definir o “bem” com base em seus próprios interesses.

De todo modo, a contribuição de Hegel foi de grande importância para a reflexão ética e exerce uma influência inegável ainda hoje, principalmente por ter mostrado que as concepções éticas e políticas são, em boa parte, construções históricas. Em seu livro Depois das virtudes, de 2021, o pensador escocês Alasdair MacIntyre (1929-) mesmo discordando de Hegel em vários pontos, reconhece a historicidade do ser humano e afirma que cada indivíduo, sendo membro de uma espécie

► SCHLESINGER, Jakob. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. 1831. Óleo sobre tela, 36 cm x 28 cm. Museus Estatais de Berlim, Berlim (Alemanha).

DiCA

• Rica abordagem antropológica das emoções e das culturas.

► LE BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Tradução: Luis Alberto Salton Peretti. Petrópolis: Vozes, 2009. Reprodução da capa.

Instância: nível; organização.

MUSEUS ESTATAIS DE BERLIM, BERLIM, ALEMANHA

• Um grupo de jovens confronta-se com a autenticidade da prática ética na luta por seus sonhos.

► ENTRE Nós. Direção: Paulo Morelli e Pedro Morelli. Brasil: Globo Filmes, 2007. Streaming (100 min). 1 pôster.

(tendo, portanto, uma dimensão natural inegável), segue finalidades presentes nessa espécie, ao mesmo tempo que tal seguimento é social e culturalmente orientado.

Outras correntes do pensamento contemporâneo também põem em questão a possibilidade de um agir orientado apenas pelo dever ou apenas pelas decisões “racionais”. Alguns exemplos vêm de áreas científicas como a Sociologia e a Antropologia, que insistem nos vínculos sociais como fatores condicionantes da ação e do querer humanos; e da Psicanálise, que chama a atenção para os motores inconscientes do agir, independentemente da interpretação que se dê a eles.

Ética, cidadania e Direitos Humanos

A reflexão filosófica atual sobre a prática ética depara-se com desafios semelhantes aos levantados com relação ao pensamento de Hegel: é possível garantir que as instituições sejam concebidas como meios de organizar a vida social e de respeitar os indivíduos, valorizando-os como alicerce da mesma vida social? Por outro lado, é possível garantir que os próprios indivíduos sejam entendidos como seres livres, sem que isso lhes dê direito de prejudicar a vida em Sociedade?

► ASSIS, Raoni. Artigo 14o. 2018. Ilustração. Obra inspirada no artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que versa sobre o direito de asilo político para as vítimas de perseguição.

Os seres humanos nunca conheceram, como nos dias de hoje, tantas trocas culturais e tantas diferenças entre pessoas e grupos sociais. No mundo globalizado, em que os intercâmbios culturais são facilitados por meios antigos (como as viagens) e novos (como o contato proporcionado pela internet), sente-se a necessidade de que governos, grupos e indivíduos tenham um olhar capaz de compreender e respeitar pensamentos e práticas diferentes, favorecendo o encontro entre culturas distintas.

Curiosamente, porém, há reações que vão na contramão dessa necessidade e endurecem o olhar diante das diferenças, buscando mantê-las a distância ou mesmo eliminá-las. Os governos de alguns países têm reforçado seu poder de controle sobre os cidadãos nativos (por intermédio da força policial, por exemplo) e sobre estrangeiros (por meio do fechamento das fronteiras nacionais). Defendem a ideia de que cada país tem seu povo “natural” e de que é preciso lutar para conservá-lo. É o caso de alguns governos europeus que, diante dos movimentos migratórios, ignoram o

RAONI ASSIS/ACERVO DO ARTISTA

fato de as populações do planeta sempre terem migrado em maior ou menor medida, misturando-se na busca de formas melhores de viver.

Por sua vez, muitos indivíduos e grupos também têm se fechado em si mesmos, defendendo identidades culturais como se elas fossem “naturais” e devessem ser conservadas. É o caso de indivíduos e grupos que afirmam existir padrões como a “brasilianidade” dos brasileiros, a “italianidade” dos italianos, a “africanidade” dos africanos e assim por diante. Pode-se mencionar também os grupos contrários à convivência com estrangeiros, como ocorre com os brasileiros que reprovaram a integração de haitianos em nosso país depois do terremoto de 2010. Atitudes como essas reforçam posições racistas e xenofóbicas, fazendo pensar em formas “naturais” de viver, quando, na verdade, essas formas são construções históricas.

Considerando essas e outras incoerências do nosso tempo, pensadores como Étienne Balibar (1942-) têm feito o esforço de repensar o que significa a cidadania e a formação ética. Balibar elaborou o conceito de cosmopolítica, ou cosmocidadania como uma prática em que os governos, grupos e indivíduos são chamados a compreender a cidadania como algo que vai além de uma identidade dada pela Natureza, pelo território e por costumes aparentemente ancestrais. Dessa forma, a cidadania passa a ser concebida como uma atividade participativa pela qual os indivíduos criam seus direitos em consequência dos novos desafios que a vida apresenta. A cosmopolítica, erguendo o olhar dos indivíduos para as dimensões planetárias da vida atual, permitiria observar e unir o que há de universal nos seres humanos (como o desejo do bem, da felicidade, de uma vida justa etc.) com o que cada indivíduo tem de particular.

Étienne Balibar põe em evidência o fato de que ninguém mais, atualmente, encontra-se necessariamente limitado pela identidade do território em que vive ou dos costumes de seus ancestrais. Ele não quer dizer que cada indivíduo simplesmente “escolhe” sua identidade, pois todos são devedores, em maior ou menor grau, das construções sociais nas quais nascem e crescem. No entanto, ele chama a atenção para a inegável possibilidade de mesclar identidades e inserir-se em um processo contínuo de dar novos sentidos à própria existência e à existência das instituições sociais.

A cidadania, em vez de ser a manutenção de alguma identidade “natural”, é a construção de uma identidade que considera a convivência de todos na mesma casa comum, o planeta Terra; é uma cidadania em rede, muito mais ampla do que as fronteiras erguidas pelas mentalidades e pelos territórios.

Ancestral: relativo aos antepassados; nascido com as gerações passadas.

► Grafite em muro na cidade de Marselha (França), 2010, representa o cosmopolitismo.

GUICHAOUA/ALAMY/FOTOARENA

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

O “público” e o “privado” na reflexão ética

Para alguns filósofos, como Stuart Hampshire (1914-2004), só é racional aquilo que é público, ou seja, compreensível mediante uma linguagem acessível a todos os interlocutores. Contudo, falar de bem, perfeição, amor etc. é falar de concepções que não podem ser analisadas objetivamente; são vivências privadas, circunscritas à vida pessoal, uma vez que não são observáveis pela aparelhagem cognitiva humana, fundada na percepção sensível das coisas. A Ética, se quisesse ser compreensível, deveria buscar o modelo científico, mas, como disso não é capaz (porque seus conteúdos não são perceptíveis sensorialmente), então não é possível tratá-la racionalmente, devendo-se deixá-la para o campo da opinião. A filósofa inglesa Iris Murdoch (1919-1999) concordava com grande parte da concepção de conhecimento racional sustentada por Hampshire; no entanto, discordava dele em algo central: nada obriga a afirmar que tudo o que se passa na dimensão privada também não é público, ou seja, compreensível racionalmente. O amor seria um exemplo.

No texto a seguir, Iris Murdoch imagina uma mãe, chamada de M , um filho e uma nora, chamada de N . A mãe M não consegue ter simpatia por N ; considera-a grosseira, barulhenta e mal-vestida. No entanto, como M é uma mulher honesta e correta, comporta-se bem com N Com o passar do tempo, M começa a fazer uma autoavaliação, perguntando-se se não exagera com N. Então, M percebe que estava enganada, pois descobre que N não era grosseira, mas simples; não era barulhenta, mas alegre. Sua opinião sobre N transforma-se, então, embora sua relação com N não precise mudar, porque M já era honesta e correta com ela. Em duplas, leiam e analisem o texto para responder às atividades.

► Fotografia de Iris Murdoch, filósofa e romancista inglesa, 1987.

Amor e atenção

O que M tenta fazer não é apenas enxergar N com precisão, mas enxergá-la com justiça e amor. [...] A atividade de M é algo progressivo, [...] mas, longe de associar-se a algum tipo de infalibilidade, esse novo quadro foi construído sobre a noção de uma necessária falibilidade. M está engajada em uma tarefa interminável. No instante em que começamos a usar palavras como amor e justiça na caracterização de M, introduzimos em nosso quadro conceitual a ideia de progresso, isto é, a ideia de perfeição. [...] O amor é conhecimento do indivíduo. [...]

Uso a palavra “aten ç ã o”, que tomei de empr é s timo de Simone Weil, para expressar a ideia de um olhar justo e amoroso dirigido a uma realidade individual. [...] Quando M é justa e amorosa, ela vê em N quem N é de verdade. Muitas vezes nos sentimos impulsionados automaticamente pelo que podemos ver. Se ignoramos o trabalho anterior da atenção e notamos apenas o vazio do momento da escolha, tendemos a identificar a liberdade com o movimento exterior, j á que n ã o h á nada mais com que identific á - la. Mas, se levamos em conta como é o trabalho da atenção, como ele se dá de forma contínua, e a maneira imperceptível como ele constrói estruturas de valor à nossa volta, não ficaremos surpresos ao ver que, em momentos cruciais de escolha, a maior parte do processo de escolha já está feita. Isso não implica que não sejamos livres, absolutamente. Mas implica que o exercício de nossa liberdade é algo que se dá aos poucos e de modo fragmentário o tempo inteiro; e n ão num salto grandioso e desimpedido em momentos importantes.

• O que a história de M e N, imaginada por Iris Murdoch, ensina sobre a diferença entre a dimensão pública e a dimensão privada na vida humana?

Infalibilidade: impossibilidade de falhar.

Falibilidade: possibilidade de falhar.

► JONES, Lois Mailou. Mère du Senegal [Mãe do Senegal]. 1985. Acrílico sobre tela, 61 cm x 91,4 cm. Consultar orientações

MURDOCH, Iris. A soberania do bem. Tradução: Julián Fuks. São Paulo: Editora Unesp, 2012. p. 37-38, 44-45, 54-55, 59-60.

InTEGranDO COm... HISTÓRIA

A Declaração Universal dos Direitos Humanos

Diante da dificuldade de chegar a uma visão comum sobre o que é bom para o ser humano em geral, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos , um documento que procura garantir direitos mínimos a todos os indivíduos de todos os lugares do mundo. A Declaração não funciona como lei, já que a ONU não tem propriamente o poder de dar ordens, embora ela possa impor exigências aos países que dela fazem parte.

Entre os direitos mínimos – que os países são convocados a respeitar independentemente de suas concepções éticas ou políticas – estão o direito à vida, à liberdade e à segurança, o direito de não ser torturado, o direito de não ser preso sem motivo, o direito a não ser condenado sem julgamento justo e público, o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião etc.

Em nosso país, há, infelizmente, muitos cidadãos contrários aos direitos humanos. Há até mesmo quem defenda a pena de morte. No entanto, esses cidadãos não percebem como sua opinião é contraditória, uma vez que eles mesmos, se algum dia e depois de algum tropeço ético ou de algum desequilíbrio, cometerem um ato danoso, certamente desejarão um julgamento justo, com respeito e dignidade. A reflexão filosófica contribui para compreender que ou os direitos são respeitados de modo igualitário ou eles deixam de ser realmente direitos e passam a ser privilégios dos mais fortes.

1. Em diálogo com seu(sua) professor(a) de História, peça a ele(a) que faça uma breve apresentação sobre a perspectiva histórica a respeito do que pretende a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

2. Como se pode interpretar historicamente a incoerência de quem é contrário aos direitos humanos?

► Reunião do Conselho de Segurança da Assembleia das Nações Unidas. Paris (França), 1948.
Não escreva no livro.

Consultar orientações no Manual do Professor

1. Por que, segundo Aristóteles, o termo prática só pode ser usado para referir-se a seres humanos?

2. Usando o termo hábito, explique o que é uma virtude e um vício de acordo com o pensamento de Aristóteles.

3. Apresente o pensamento moral de Kant com base em seu projeto de uma filosofia crítica.

4. Por que, segundo Hume, não é adequado enfatizar a racionalidade como característica do ser humano visto como agente moral?

5. Quais são as duas tendências fundamentais do ser humano em matéria de Moral segundo Hume?

6. Por que se pode dizer que Hegel vincula a Ética e a política?

7. O que significa a cosmopolítica defendida por Étienne Balibar?

8. (Enem)

TEXTO I

Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo. Se sou puro produto da determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço no meu mover-me no mundo e, se careço de responsabilidade, não posso falar em ética.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

TEXTO II

Paulo Freire construiu uma pedagogia da esperança. Na sua concepção, a história não é algo pronto e acabado. As estruturas de opressão e as desigualdades, apesar de serem naturalizadas, são sócio e historicamente construídas. Daí a importância de os educandos tomarem consciência da sua realidade para, assim, transformá-la.

DEMARCHI, J. L. Paulo Freire. Disponível em: https://diplomatique.org.br. Acesso em: 6 out. 2021 (adaptado).

Com base no conceito de ética pedagógica presente nos textos, os educandos tornam-se responsáveis pela

8. Alternativa A

a) participação sociopolítica.

b) definição estético-cultural.

c) competição econômica local.

d) manutenção do sistema escolar.

e) capacitação de mobilidade individual.

DISSERTAÇÃO Dissertação

argumentativa

Faça uma dissertação argumentativa tendo como tema a pergunta: “As paixões podem impedir os seres humanos de serem éticos?”.

Aqui se chama de dissertação argumentativa aquela na qual quem escreve apresenta seus próprios argumentos para convencer os leitores. Ela também pode ser construída como dissertação de problematização, mas os argumentos devem ser encontrados pela própria pessoa que escreve.

Para fornecer um exemplo de estrutura de uma dissertação argumentativa, podemos tomar aqui o tema: As paixões impedem os políticos de serem éticos?

1O . PASSO Reflexão sobre o tema e concepção de um modo geral de apresentá-lo.

2O . PASSO Esquema: elaborar um plano apenas com palavras-chaves, ligando-as entre si com outras palavras ou com sinais gráficos (fazer um “esqueleto”), e seguir esse plano no momento de escrever.

Parágrafo 1: apresentar o sentido da pergunta-tema.

Parágrafo 2:

A) o que é uma paixão?

experiências em que somos “tomados” = emoções

B) paixões = obstáculos à prática ética

ações inadequadas reações de ódio, entusiasmo, desrespeito, confiança total, cumplicidade na maldade etc.

Parágrafo 3:

A) t ransição do Parágrafo 2 ao 3:

No entanto, (conjunção adversativa) as paixões não impedem necessariamente a prática ética

B) por quê? Porque seres humanos = seres que podem interferir no modo de viver as paixões

C) políticos = seres humanos = também têm a possibilidade de interferir no modo de viver as paixões

D) confirmação exemplo do político que, diante do abuso policial, não reagiu com raiva, mas com respeito, e tentou convencer os policiais sem recorrer à sua autoridade pessoal.

Parágrafo 4 (Conclusão): p aixões = experiências que não impedem necessariamente a prática ética

Então, paixões = não impedem os políticos de serem éticos.

3O . PASSO Seguir o esquema e transformá-lo em texto dissertativo:

As paixões impedem os políticos de serem éticos?

Perguntar se as paixões impedem os políticos de serem éticos significa pensar na relação entre a vivência das paixões e a prática ética, especificamente a prática ética dos políticos.

As paixões são experiências que tomam o ser humano, sem que ele possa controlar o surgimento delas. Às paixões também se dá o nome de emoções e, por nascerem no indivíduo independentemente de ele querer ou não, elas podem ser intensificadas, caso o mesmo indivíduo não pense em como reagir a elas. Quando isso ocorre, elas podem ser um obstáculo para a prática ética, visto que, não encaminhando bem a vivência das paixões, o indivíduo pode chegar a ações prejudiciais para si mesmo e para seu grupo social.

No entanto, o fato de muitas pessoas também conseguirem reagir às paixões de maneira equilibrada ou refletida mostra que as paixões não são necessariamente um obstáculo à prática ética. Tudo depende do modo como o indivíduo as vive e dos atos que ele pratica. Parece correto dizer, portanto, que, mesmo sem poder controlar o surgimento das paixões, o ser humano tem a possibilidade de interferir no modo de vivê-las. Os políticos, como todo ser humano, são dotados da mesma possibilidade.

Um fato público pode aqui ser tomado como sinal dessa possibilidade: no dia 1o de agosto de 2015, um deputado estadual, no Rio Grande do Norte, foi detido em Caicó (RN) por policiais federais que faziam uma blitz depois de uma festa tradicional da cidade. Segundo os policiais, o deputado teria proibido seu motorista de descer do carro para fazer o teste do bafômetro. Porém, de acordo com o deputado, a abordagem dos policiais foi desrespeitosa e, como ele ficou surpreso diante do desrespeito, os policiais o obrigaram a descer do carro, o jogaram por terra e o algemaram. O deputado, porém, mesmo sentindo raiva, controlou-se, conservou a calma e tentou argumentar com os policiais, dizendo ser um cidadão de bem que não merecia aquele tipo de tratamento. Aliás, ele só revelou que era um deputado depois de ter sido levantado do chão. Além disso, nem seu motorista nem ele estavam alcoolizados, como confirmou o próprio delegado de Caicó, Helder Carvalhal, ao constatar que o deputado não desacatou os policiais nem resistiu à abordagem.

É possível concluir, portanto, que, se as paixões são experiências que não impedem necessariamente a prática ética e se o comportamento de alguns políticos comprova esse dado, então as paixões não impedem necessariamente os políticos de serem éticos.

9 POLÍTICA E PODER

Provavelmente, você já observou que muitas pessoas só se envolvem em política nas épocas de eleições. Quando questionamos as razões desse comportamento, as respostas costumam ser: “não gosto de política”, “os políticos são todos corruptos” etc.

Um estudo elaborado em 2022 pelo Instituto DataSenado, com colaboração da Universidade de Brasília (UnB), revelou que um dos principais motivos do desinteresse das pessoas pela política é a falta de compreensão e de conhecimento sobre o sistema político, além do sentimento de desilusão.

Estudantes em protesto contra o fechamento de escolas em São Paulo (SP), 2015.

Um exemplo de participação ativa na política aconteceu nos movimentos de protestos e ocupações de escolas organizados por estudantes no estado de São Paulo, em 2015, em reação à proposta da Secretaria de Estado da Educação de reorganizar as escolas por ciclos, oque levaria ao fechamento de algumas instituições e à concentração de estudantes em outras.

Interesse e participação política

O caráter político da mobilização estudantil de 2015 era claro. Tratava-se de exercer a política, no verdadeiro sentido da palavra, uma ação que visava mostrar aos ocupantes do poder quais eram os desejos da população que os elegeu, solicitando que eles realmente a representassem. Durante as ocupações, os estudantes fizeram atividades culturais, limparam e pintaram algumas escolas e, sobretudo, trouxeram famílias e movimentos sociais para dentro delas, resgatando o verdadeiro sentido da instituição escolar: mais do que um local de transmissão do saber, ela é um espaço de produção de conhecimento com base na vida concreta de estudantes, professores, funcionários, familiares, enfim, dos membros da comunidade escolar. Ações desse tipo permitem refletir sobre o sentido da política e do poder.

Um dos maiores desafios da reflexão filosófica consiste em compreender o interesse e o desinteresse dos cidadãos pela política. É visível o fato de que o interesse e o desinteresse dependem do que vive a sociedade nos diferentes momentos históricos. Ninguém “gosta” ou “desgosta” naturalmente de política. O envolvimento político depende da experiência dos cidadãos. Uma forma de fazer com que as pessoas se interessem por política é relacioná-la com a vida cotidiana. Quando os indivíduos se sentem diretamente afetados pelas ações de seus representantes, eles costumam se envolver; do contrário, encaram a política como algo alheio. Sobre esse fenômeno, leia a seguir um trecho do filósofo Alexis de Tocqueville.

► Protesto de movimentos sociais contra a reforma da Previdência. São Paulo (SP), 2019.

Cantão: região.

Como fazer os cidadãos interessarem-se pela política

Os negócios gerais de um país só ocupam os cidadãos principais. Estes só se reúnem de longe em longe, nos mesmos lugares; e, como é frequente depois disso eles se perderem de vista, não se estabelecem entre eles vínculos duradouros. Mas, quando se trata de fazer os negócios particulares de um cantão serem resolvidos pelos homens que nele vivem, os mesmos indivíduos estão sempre em contato e, de certa forma, são forçados a se conhecer e a se habituar uns com os outros. É difícil tirar um [indivíduo] de si mesmo para interessá-lo pelo destino de todo o Estado, porque ele compreende mal a influência que o destino do Estado pode ter sobre sua sorte. Mas, se é necessário fazer uma estrada passar nos limites de suas terras, ele perceberá à primeira vista que há uma relação entre esse pequeno negócio público e seus maiores negócios privados e descobrirá, sem que ninguém lhe mostre, o estreito vínculo que une, nesse ponto, o interesse particular ao interesse geral.

Portanto, é encarregando os cidadãos da administração dos pequenos negócios, muito mais do que lhes entregando o governo dos grandes, que se pode levá-los a se interessar pelo bem público e a enxergar a necessidade que têm, sem cessar, uns dos outros para produzi-lo.

TOCQUEVILLE, Alexis de. Como os americanos combatem o individualismo por meio de instituições livres. In: TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: sentimentos e opiniões: de uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Livro II, p. 127, grifo nosso).

Para bem entender o texto de Tocqueville, há três expressões que precisam ser esclarecidas:

• cidadãos principais: não se trata de pensar que há cidadãos mais importantes ou melhores do que outros, mas que, no governo de um país (negócios gerais do país), há cidadãos que são “principais” porque têm funções de liderança na estrutura do governo;

• Estado: esse termo pode significar, em língua portuguesa, o estado de algo (por exemplo, a água e seus estados físicos; o estado civil de alguém), o estado que faz parte da federação, quer dizer, do país (por exemplo, o estado do Amazonas, o estado do Piauí etc.), e ainda o Estado ou o próprio país (o Brasil como um Estado independente entre os outros Estados ou países). Nesse contexto, o termo Estado é usado como sinônimo de país, organismo político e administrativo;

• bem públic o : essa expressão significa o bem de todos cidadãos, incluindo não apenas os interesses particulares, mas também os gerais. Como o bem público é construído pelos cidadãos quando participam do governo (administração), pode-se concluir que a construção do bem público, segundo Tocqueville, é o objetivo da política.

Uma vez esclarecido o vocabulário de Tocqueville, pode-se perguntar: qual é a ideia central do seu texto?

Relendo o texto, percebe-se que todas as afirmações nele feitas têm o objetivo de justificar a afirmação que está no final (a conclusão). Por isso, aquilo que é registrado no final é chamado de ideia central ou tese do texto. Não é central porque está nas linhas da metade do texto, mas porque tudo converge para ela.

A ideia central do texto, portanto, é que, para fazer com que os cidadãos se interessem pela construção do bem público (pela política, segundo Tocqueville), é preciso encarregá-los da administração de pequenos negócios.

► Audiência pública para discutir regras do Marco Civil da Internet. Brasília (DF), 2023.

As ideias que fundamentam a ideia central de Tocqueville são duas.

• Quando os indivíduos cuidam dos interesses da região em que vivem, eles são levados a se conhecerem melhor e a se habituarem uns aos outros.

• Os indivíduos só costumam se dar conta de como os assuntos gerais do Estado (país) têm relação direta com eles próprios quando esses assuntos tocam em seus interesses privados, particulares.

Essas ideias permitem entender a recomendação de Tocqueville: não adianta falar da política ou dos assuntos gerais de um país esperando que as pessoas se interessem e se envolvam. É preciso fazê-las participar dos debates sobre as questões mais imediatas de sua região (bairro, cidade, município, por exemplo), pois apenas assim elas perceberão que suas vidas estão intrinsecamente relacionadas aos assuntos locais e aos assuntos gerais do país.

Os tempos atuais são muito diferentes da época em que viveu Tocqueville. No século XIX, quando ele escreveu o trecho citado, as informações não circulavam de forma tão rápida e abrangente, portanto, era muito mais difícil para os cidadãos tomarem conhecimento dos assuntos gerais. Atualmente, é possível saber em minutos se as decisões dos governantes afetarão ou não os interesses particulares do indivíduo. No entanto, o princípio defendido por Tocqueville continua válido: os cidadãos só se interessam pela política ao perceberem que ela interfere em seus interesses pessoais. Em contrapartida, para gerar desinteresse, a melhor estratégia é impedir que as pessoas se encontrem e convivam entre si, criando a impressão de que a política é algo distante de suas vidas.

BIOGRAFIA

Alexis de Tocqueville (1805-1859)

Filósofo, político, historiador e escritor francês, defensor da liberdade e da democracia. Suas análises da Revolução Francesa (1789-1799) e da democracia estadunidense tornaram-se célebres e contribuíram para o desenvolvimento da teoria da democracia moderna. Suas obras mais conhecidas são A democracia na América e O antigo regime e a revolução, publicadas em 1835 e 1856, respectivamente.

EXERCICIO Não escreva no livro. A

Consultar orientações no Manual do Professor.

1. Resuma o texto de Tocqueville, começando pela ideia central e, em seguida, elaborando justificativas para ela. Você deverá, portanto, seguir a ordem inversa da que foi utilizada por Tocqueville em seu texto. Use duas conjunções em seu resumo: porque e visto que

2 . Pesquise e indique ao menos duas organizações em seu bairro que trabalham pelos interesses locais.

► CHASSÉRIAU, Théodore. Alexis de Tocqueville. 1850. Óleo sobre tela, 131,5 cm x 98,5 cm. Palácio de Versalhes, França.

• Em dupla. Dialogue com o colega de classe a respeito do interesse e da participação política em seus bairros. Há interesse das pessoas por política? Elas se encontram organizadas? Como? Sindicatos? Associações de bairro? Centros culturais? Partidos?

DiAlOGANDO
Respostas pessoais.

Individualista: que tem a tendência exagerada de buscar apenas o próprio benefício. Do ponto de vista sociológico, o individualismo é a tendência de o indivíduo buscar seu benefício mesmo às custas do bem comum ou social.

Alguns pensadores e ativistas que entenderam a política como um serviço ao bem comum, do alto e da esquerda para a direita: Mahatma Gandhi (1869-1948), Karl Marx (1818-1883), Simone Weil (1909-1943), Rosa Luxemburgo (1871-1919), Nelson Mandela (19182013), Martin Luther King (1929-1968), Bertrand Russell (1872-1970), Jürgen Habermas (1929-), Edith Stein (1891-1942), Ailton Krenak (1953-), Wangari Maathai (1940-2011) e Malala Yousafzai (1997-).

A política como serviço ao

bem comum

O tema dos interesses individuais como motor para a participação política leva ao questionamento: a política surge do egoísmo?

Para refletir sobre essa questão, é preciso pontuar, logo de saída, que seria ingênuo acreditar que os seres humanos podem agir sem nenhum interesse. Até mesmo a pessoa mais empática e generosa age com interesse. Ter interesse não é algo ruim em si, pois está relacionado a um objetivo, à busca do bem-estar, da felicidade; é motor básico da vida humana.

A observação do modo de ser dos animais, sejam eles humanos ou não humanos, confirma esse pensamento, pois nem uns nem outros são seres “prontos”. Pelo contrário, são seres em construção, que precisam satisfazer necessidades. Parece natural, portanto, acreditar que os seres humanos agem por interesse. Tanto os animais humanos quanto os não humanos, quando deixam de se interessar, iniciam o processo que os leva à morte. Desse ponto de vista, agir por interesse não significa necessariamente agir de forma egoísta ou individualista. Nem todo interesse implica egoísmo. Há quem seja movido pelo desejo de beneficiar os outros, sentindo-se feliz com a felicidade alheia. Concluir, com base na observação das atitudes de alguns indivíduos egoístas, que todos os seres humanos são egoístas constitui um equívoco filosófico chamado generalização apressada ou generalização indevida

CUIDADO lOGICO A generalização apressada

A generalização apressada consiste em fazer uma afirmação sobre um grupo inteiro tomando como base uma pequena amostra desse grupo. Por exemplo, depois de observar que no bairro X há casos de violência, concluir que no bairro X as pessoas são violentas é uma generalização apressada. Para demonstrar o erro dessa generalização, basta encontrar uma pessoa não violenta no bairro X

As pesquisas de opinião pública apresentam um claro exemplo de generalização apressada. Em 2015, uma pesquisa realizada pelo DataSenado sobre a redução da maioridade penal (redução da idade de 18 para 16 anos para fins de responsabilização por crimes) apontou que 85% dos entrevistados eram favoráveis à redução. No entanto, a pesquisa tinha uma alta margem de erro, já que apenas 1 092 pessoas foram entrevistadas. Ainda assim, algumas emissoras de rádio e de televisão anunciaram que a população brasileira era favorável à redução da maioridade penal. O erro evidente está em considerar que grupos de pouco mais de mil brasileiros representam os mais de 200 milhões de habitantes do Brasil.

Além disso, as pesquisas podem ser manipuladas. Caso a pessoa, a empresa ou outra instituição que encomenda uma pesquisa tenha interesse em determinado resultado, o órgão de pesquisa contratado pode procurar amostras apenas em regiões e em grupos nos quais há mais probabilidade de que a resposta esperada seja encontrada.

A fidelidade de uma pesquisa de opinião depende do esclarecimento de seus métodos, principalmente do critério empregado para passar de uma observação parcial a uma conclusão geral. A esse respeito, é importante refletir sobre a forma do argumento sorites (p. 85).

Por outro lado, o procedimento da generalização pode ser útil, desde que ela não seja apressada. É o caso, por exemplo, do procedimento indutivo, amplamente empregado em nosso conhecimento do mundo.

Tendo desvinculado o interesse do egoísmo, libera-se o campo para a compreensão da política como um tipo de atuação em que as pessoas se movem por interesses, mas não necessariamente visando apenas ao seu próprio benefício. Se a sociedade nasce da vida, a fim de organizá-la, e se a política é uma forma de torná-la mais satisfatória, então é legítimo pensar que a política pode ser entendida como uma forma de tornar a vida mais satisfatória, como busca do bem comum

Do ponto de vista histórico, a busca do bem na vida social nem sempre significou buscar o bem de todos. A democracia grega, por exemplo, embora tenha sido a experiência que deu origem à política, não tratava os indivíduos da mesma maneira. Na sociedade grega, as mulheres, os escravizados, os estrangeiros e as crianças não tinham os mesmos direitos concedidos aos homens gregos adultos e livres. Mesmo na Idade Moderna, apesar dos ideais iluministas e da tentativa de expansão dos direitos dos cidadãos, as mulheres, por exemplo, permaneceram sem direito ao voto.

DiCA

• Nesse clássico do cinema brasileiro, Eldorado, um fictício país da América Latina, é palco de uma convulsão interna desencadeada pela luta em busca do poder.

► TERRA em transe. Direção: Glauber Rocha. Brasil: Difilm, 1967. DVD (108 min). Pôster do filme.

Com efeito, foi longo o processo que levou a entender a política como atividade inclusiva. No entanto, apesar dos tropeços históricos, foi possível associá-la à busca do bem comum ou do benefício do grupo social com suas diferenças internas. O filósofo Platão (427 a.C.-347 a.C.) ofereceu um forte exemplo a esse respeito. Para ele, a prática política envolve a busca de justificativas racionais para as decisões que organizam a vida dos cidadãos, e não um mero exercício do Poder. Em outras palavras, as ações políticas precisam ser baseadas em motivos ou razões que possam ser avaliados pelo conjunto dos cidadãos.

Na filosofia platônica, apresentar razões para a ação significava pôr-se em continuidade com as possibilidades inscritas em cada ser, as quais Platão denominava Formas, Ideias ou Essências. A política consistiria na atividade de organizar e governar o conjunto social de modo que todos pudessem desenvolver o que têm de melhor e chegar à forma de vida mais adequada à sociedade. Como Platão chamava de Bem o ideal da plena realização de todas as coisas, ele concebia a política como um serviço ao Bem. No decorrer dos séculos, passou-se a falar do bem comum justamente para enfatizar que o bem não pode ficar restrito a alguns grupos ou indivíduos, pois isso não corresponde à melhor realização das possibilidades inscritas na Natureza.

Platão não acreditava que todos os seres humanos fossem iguais, mas também não admitia que as diferenças fossem tomadas como justificativas para construir uma vida social injusta. Caberia ao governante promover a justiça (a realização adequada das possibilidades de cada cidadão). Em sua obra mais importante, A República, o filósofo concebeu um sistema ideal de educação no qual mulheres e homens teriam o mesmo valor e passariam pelo mesmo processo educativo.

Entretanto, é preciso destacar que Platão propunha uma mesma educação para mulheres e homens pertencentes à classe dos guardiões, constituída por homens e mulheres mantidos pelo Estado, sem

Segundo o pensamento platônico, historicamente muito anterior a essa representação pictórica, a cidade ideal é aquela que permite a cada membro desenvolver todas as suas possibilidades em harmonia consigo mesmo e com o conjunto da cidade.

► A CIDADE ideal. [Entre 1480 e 1490]. Óleo sobre madeira, 67,7 cm x 239,4 cm. Galleria Nazionale delle Marche, Urbino (Itália).
GALERIA NACIONAL DE ARTE

direito à riqueza e à constituição de família, a fim de que pudessem consagrar-se inteiramente à defesa da cidade. Essa perspectiva torna-se ainda mais interessante quando se tem em vista que A República é um dos primeiros textos na história da humanidade a defender uma igualdade en tre mulheres e homens. Platão chegava a defender que ambos tinham as mesmas condições de praticar as atividades de defesa (aquilo que, em termos atuais, poder-se-ia chamar de força de defesa do país), pois, segundo sua observação, a constituição física da mulher, apesar de alguns aspectos mais delicados, tinha as mesmas possibilidades que a constituição física do homem.

REPRODUÇÃO/PALÁCIO

Em outra de suas obras, As leis, ele denuncia o erro que transforma a atividade política em competição. De acordo com Platão, quando a autoridade é motivo de disputa, não há justiça; portanto, o objetivo da política seria realizar a justiça (favorecer o bem de todos). Em outras palavras, a política é um meio, e não um fim ou uma finalidade em si mesma.

Um dado textual e cultural de grande importância para entender o texto de Platão refere-se à concepção de lei. Não seria correto afirmar que, segundo o pensamento platônico, para fazer justiça basta seguir as leis. Platão tinha clara consciência de que uma lei pode ser injusta, principalmente quando ela não representa o interesse comum dos cidadãos. Uma lei será justa quando conseguir superar tudo o que divide o corpo social e produzir a união dos cidadãos em torno de interesses comuns. Assim, de acordo com o filósofo, a missão da política inclui a produção de leis justas. O objetivo é a justiça, e a política é o meio para isso.

► MACCARI, Cesare. Cícero denuncia Catilina 1889. Afresco. Palazzo Madama, Roma (Itália). Na assembleia dos cidadãos romanos eram tomadas decisões como legislar, nomear autoridades e julgar crimes e delitos.

• A novela de Machado de Assis retrata outra forma de exercício do poder: aquela dos que possuem autoridade para prender outras pessoas, seja em nome da lei, da Ciência ou da segurança pública.

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Ática, 1995.

(Série Bom livro).

• O livro é uma coletânea de textos e palestras do filósofo Michel Foucault, que aborda como o poder se manifesta em microníveis nas relações sociais cotidianas e como isso afeta os indivíduos e suas subjetividades.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2014.

& TERRA

► Reproduções das capas de O alienista, de Machado de Assis, e Microfísica do poder, de Michel Foucault.

MADAMA

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

A política deve visar ao interesse comum

Quando a autoridade torna-se alvo de competição, os vencedores apropriam-se dos assuntos da Cidade de um modo que não deixam o menor espaço nem aos vencidos nem aos seus descendentes. [...]

Nesse caso, são injustas as leis que não foram instituídas para o interesse comum do conjunto da Cidade. Quando as leis são feitas em favor de apenas alguns, chamamos esses alguns de partidários, e não de cidadãos; e quando eles falam de seus direitos, na verdade não dizem nada.

Se afirmo isso, é para significar que, na Cidade, não devemos dar o poder de governar a alguém somente porque é rico ou por que possui alguma vantagem desse tipo sobre os outros (força, destaque, nascimento...). Devemos dá-lo a alguém que sirva às leis na Cidade, ou melhor, a alguém que obedece melhor às leis estabelecidas e é exemplar desse ponto de vista. Assim, o cargo mais elevado no serviço das leis deve ser dado ao mais exemplar; o segundo cargo mais elevado, ao segundo mais exemplar; e assim por diante, propor cionalmente a cada cargo que deve ser distribuído.

Além disso, se dou o nome de servidores das leis àqueles que em geral são chamados de governan tes, não é porque tenho prazer em inventar palavras novas, mas porque, a meu ver, é disso que depende o sucesso ou o fracasso da Cidade.

PLATÃO. Les lois. Paris: Flammarion, 2006. p. 237-238. Versão francesa de Luc Brisson do original grego. Tradução nossa.

► Estátua de Péricles, líder político que aperfeiçoou a democracia ateniense. Atenas (Grécia), 2016.

• Em dupla . Com base na leitura do texto de Platão, respondam às atividades a seguir.

a) Qual é a ideia central do texto platônico?

b) Considerando que, nos tempos de Platão, a cidade era uma cidade-Estado, ou seja, uma cidade com estatuto de país, você concorda com Platão quando ele afirma que disso depende o sucesso da cidade? Justifique.

Consultar orientações no Manual do Professor

A política como fim em si mesma

Outro modelo de pensamento político – considerado o alicerce de muitas teorias políticas modernas e da compreensão da política como um fim em si mesma, e não apenas como meio ou instrumento – foi elaborado por Nicolau Maquiavel. O filósofo italiano dedicou atenção especial à análise da maneira como diferentes sociedades estruturaram a participação dos cidadãos nas decisões que diziam respeito a todos e da relação entre governantes e governados. Essa atenção histórica permitiu a Maquiavel destacar três dados básicos.

Na República de Florença, sociedade em que vivia Maquiavel, os governantes nunca conseguiram orientar-se completamente por ideais como o bem comum, a justiça ou mesmo a vontade de Deus, pois, quando tentavam ser fiéis a esses ideais, a sociedade florentina se enfraquecia. Na prática, ou os governantes se adaptavam às circunstâncias concretas (contrariando, por exemplo, o bem comum) ou a sociedade florentina corria o risco de ser destruída e dominada por outras sociedades.

Na estratégia de se adaptar às circunstâncias históricas e preservar a unidade do grupo social, os governantes aprenderam a lutar para se manter no poder, mesmo quando prejudicavam membros de sua própria sociedade. Segundo Maquiavel, a sociedade florentina

► Vista da Catedral Santa Maria del Fiore, na cidade de Florença (Itália), 2023.

era caracterizada por dois movimentos: o desejo dos mais fortes, que visavam dominar os mais fracos, e o desejo dos mais fracos, que visavam não serem dominados pelos mais fortes. Os governantes, no meio dessa correlação de desejos distintos, ou eram firmes e adotavam estratégias para conservar o poder, preservando a unidade social com o controle dos desejos dos grupos rivais, ou eram envolvidos nesses desejos e acabavam permitindo que a sociedade entrasse no caminho da destruição.

• Nessa dinâmica de conservação do poder, a atividade dos governantes revela-se, de certa maneira, uma finalidade em si mesma. Maquiavel observava que a política talvez nunca tenha sido apenas um meio para realizar uma boa sociedade, mas também uma atividade que precisa conservar a si mesma.

Maquiavel propôs um novo modelo de compreensão da política, considerando-a não apenas um meio mas também um fim, uma forma de chegar ao poder e de nele se manter.

Poderíamos perguntar se a conservação do poder com a finalidade de preservar a unidade social não significaria entender a política como meio, e não propriamente como fim. Essa hipótese nos faria retornar ao modelo platônico de compreensão, uma vez que a unidade social seria tomada como objetivo ou fim, enquanto a política seria apenas um meio ou um instrumento para obtê-lo. Precisamente nesse ponto se revela a originalidade de Maquiavel, porque ele não parte de um ideal de unidade ou de uma concepção de sociedade justa e boa, nem afirma que a política serve para concretizar esse ideal. Ao contrário, Maquiavel prefere pensar que são as circunstâncias históricas que determinam o tipo de unidade que pode ser mantida e como ela deve ser obtida dentro dos limites do possível, permitindo que a sociedade se estruture de acordo com o momento de sua história.

► PINTURICCHIO. Eneias Silvio Piccolomini (futuro papa Pio II) apresenta Leonor de Aragão (rainha de Portugal) a seu futuro marido, Frederico III. [Entre 1503 e 1508]. Afresco. Biblioteca Piccolomini, Siena (Itália). Detalhe da obra.

Nessa perspectiva, o governante não existe para colocar em prática um ideal, mas para se manter no poder, adaptando-se às circunstâncias. De certo modo, estão aqui algumas das raízes da profissionalização dos políticos tal como a conhecemos, bem como da transformação da atividade política de governar em especialidade. O pensamento político de Maquiavel, portanto, desvincula a política de objetivos externos ao próprio jogo político, concebendo-a como exercício do poder por meio da força e das leis, ou seja, como o exercício de governar e de conservar o poder. É importante lembrar que Maquiavel não usa o termo Poder, mas principado, pois emprega o vocabulário do tempo e lugar em que vivia. O governante era o príncipe; seu poder era o principado. Em sua atividade política, o governante ou o príncipe terá de fazer todo o necessário para conservar o Poder.

BIOGRAFIA

Nicolau Maquiavel (1469-1527)

Filósofo, político, historiador, músico, poeta e diplomata italiano do Renascimento, considerado o fundador da teoria política moderna. Buscando estimular uma política de fortalecimento e de unificação da Itália contra seus inimigos estrangeiros por meio do poder absoluto da figura do príncipe, ou do governante, escreveu sua obra mais conhecida e polêmica, O príncipe, publicada postumamente em 1532.

Leia o trecho a seguir.

O governante deve ser leão e raposa

► DI TITO, Santi. Retrato de Nicolau Maquiavel. [ca. 1550]. Óleo sobre madeira, 104 cm x 85 cm. Palazzo Vecchio, Florença (Itália).

[...] existem duas formas de se combater: uma, pelas leis, outra, pela força. A primeira é própria do homem; a segunda, dos animais. Como, porém, muitas vezes a primeira não seja suficiente, é preciso recorrer à segunda. Ao príncipe torna-se necessário, porém, saber empregar convenientemente o [que é próprio do] animal e o [que é próprio do] homem. [...] Sendo, portanto, um príncipe obrigado a bem servir-se da natureza da besta, deve dela tirar as qualidades da raposa e do leão, pois este não tem defesa alguma contra os laços, e a raposa, contra os lobos. [O príncipe] Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Os que se fizerem unicamente de leões não serão bem-sucedidos. Por isso, um príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando as causas que o determinaram [no momento em que deu sua palavra] cessem de existir. Se os homens todos fossem bons, esse preceito seria mau. Mas, dado [que os seres humanos] são pérfidos e que não a observariam [sua palavra] a teu respeito, também não és obrigado a cumpri-la para com eles. [...]

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. In : MAQUIAVEL, Nicolau. Os pensadores. Tradução: Lívio Xavier. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 79-80.

Preceito: pensamento; princípio; regra. Pérfido: desleal, traiçoeiro.

A metáfora do leão e da raposa fornece um quadro básico para a leitura do texto de Maquiavel: o leão é sinônimo de força; a raposa é sinônimo de esperteza. O leão aterroriza os lobos; a raposa reconhece as armadilhas. O governante (o príncipe), por sua vez, deve lutar, por meio das leis, como todo ser humano, servindo-se da força do leão e da esperteza da raposa, pois as leis não são suficientes.

A chave de leitura do texto de Maquiavel está na afirmação de que “um príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando as causas que o determinaram [no momento em que deu sua palavra] cessem de existir”. E ainda: “Se todos os seres humanos fossem bons, esse preceito seria mau. Mas, dado que os seres humanos são pérfidos e que não cumpririam [sua palavra], também não és obrigado a cumpri-la”. Segundo ele, todos os seres humanos são enganadores, traiçoeiros, e não cumprem sua palavra; portanto, o governante também não é obrigado a fazê-lo se isso prejudicar sua conservação no poder, sobretudo quando os motivos que o levaram a dar sua palavra já não existem. O governante deve ser esperto como a raposa e se sair bem nas variadas circunstâncias. Se ele tiver apenas qualidades como piedade, lealdade, integridade etc., poderá sair-se mal, pois em alguns momentos ele terá de não ser bom, com o objetivo de conservar o Poder.

Maquiavel afirma também que é importante para o governante parecer bom, manter as aparências, pois o povo se apega a elas. Em outras palavras, o governante terá mesmo de enganar o povo, se for preciso.

► BARTOLINI, Lourenço. [Estátua de Nicolau Maquiavel]. [Entre 1845 e 1846]. Mármore, 210 cm. Galleria dell'Accademia di Firenze. Florença (Itália), 2016.

O pensamento de Maquiavel foi interpretado por muitos leitores no sentido de que “os fins justificam os meios”, ou seja, se os fins são bons, seriam aceitáveis injustiças para atingi-los. Essa interpretação está na raiz do substantivo maquiavelismo e do adjetivo maquiavélico nas línguas modernas. Segundo essa concepção, para Maquiavel, ser mau (maquiavélico) é justificável, desde que seja para atingir um objetivo.

Todavia, Maquiavel não quis declarar que os fins justificam os meios. Sua afirmação é clara: se não restar nenhum outro recurso, o governante deve se preocupar com o resultado de sua ação. Numa situação extrema, quando não há mais instâncias às quais recorrer, ele mesmo deve decidir, de modo a preservar o poder que garante a unidade social.

Nessa perspectiva, a diferença entre o pensamento político de Maquiavel e de Platão deixa de ser tão profunda, pois haveria um elemento “platônico” continuado por Maquiavel ao apontar para o respeito do povo, que só é obtido quando há uma preocupação com o bem de todos.

Tal atitude explica a ênfase de Maquiavel na sorte e nas circunstâncias. Ele percebia que o exercício do Poder depende do que acontece no momento vivido pela sociedade. Muitas coisas acontecem sem terem sido previstas; aparecem como circunstâncias que não dependem diretamente dos indivíduos (são sorte) e exigem respostas adequadas. Pretender orientar o Poder por ideais, e não pela adaptação às circunstâncias fortuitas , seria um erro de estratégia. O governante deve, então, saber interpretar seu momento histórico e reagir à sorte.

O termo sorte não tem apenas o sentido de “boa sorte” (chance, benefício, condições favoráveis), mas, principalmente, o sentido clássico de acaso, acontecimento fortuito. Em italiano, língua de Maquiavel, o termo sorte é o mesmo da língua latina: fortuna. Em português, embora esse termo esteja hoje mais ligado ao sentido de riqueza, ele também tem o sentido de acaso e sorte. Fala-se, por exemplo, de “boa fortuna”.

► MELONE, Altobello. Retrato de um cavalheiro (César Bórgia). [Entre 1515 e 1520]. Óleo sobre tela, 58,1 cm × 48,2 cm. Accademia Carrara, Bergamo (Itália). César Bórgia era um exemplo de governante que se manteve no Poder por sorte ou fortuna.

Fortuito: que acontece sem ter sido previsto; resultado do acaso.

REPRODUÇÃO/ACCADEMIA CARRARA

No tempo de Maquiavel, o mundo europeu passava por profundas mudanças. Eram os inícios da Idade Moderna, caracterizada pelo fim das sociedades medievais, cuja ordem social era mais fixa e guiada por valores ético-religiosos mais fortes. Na Modernidade, com a era das navegações, o encontro de novos povos, o desenvolvimento do comércio, além de outros fatores, a estabilidade social é abalada e os grupos entram em conflito para buscar seus interesses. Se os comerciantes, por exemplo, formavam uma classe pouco influente na Idade Média, eles têm agora um papel muito ativo na organização social e lutam para ver seus interesses atendidos.

Mudavam, portanto, as regras do jogo político; e o governante tinha de saber jogar. Sua força (sua virtù, como dizia Maquiavel em italiano) não residia mais em suas qualidades éticas ou em sua vida exemplar, nem em um ideal de bem comum ou de vontade divina, mas na capacidade de aproveitar as circunstâncias e mostrar a sua força.

Essa atitude não significava necessariamente falta de ética. Talvez ninguém mais do que Maquiavel tenha falado com tanto desprezo daqueles que se servem de métodos “para obter o Poder, mas não a glória”, isto é, o respeito do seu povo.

Dessa perspectiva, a diferença entre o pensamento político de Maquiavel e de Platão até deixa de ser tão profunda, pois haveria um elemento “platônico” continuado por Maquiavel ao apontar para o respeito do povo. Afinal, o respeito do povo só é obtido quando há uma preocupação com o bem de todos. Ora, tal preocupação não deixa de ser, de certa maneira, uma preocupação com o bem comum, tal como Platão exprimia por meio de Sócrates, personagem de seus diálogos. Com efeito, no livro I de A República , Platão “prevê” um elemento “maquiaveliano” na reflexão política ao apresentar a personagem Trasímaco, comprometido com uma ideia de justiça como “aquilo que mais convém”. A esse modelo, Platão contrapõe a reflexão de Sócrates e sua ênfase na justiça em relação ao bem de todos.

EXERCICIO Não escreva no livro. B

1. Descreva a originalidade da concepção maquiaveliana de política em relação à posição platônica.

2. Qual é o fundamento da afirmação maquiaveliana segundo a qual é legítimo que o governante faça aquilo que é considerado mau?

3. Maquiavel pensava que os fins justificam os meios? Explique.

Consultar orientações no Manual do Professor

O poder e o Estado

A reflexão sobre a política requer uma análise do que se entende por poder, sobretudo porque a compreensão da política a reduz muitas vezes apenas à atividade dos ocupantes do poder. No entanto, se a política diz respeito à vida de todos os cidadãos, não seriam eles a verdadeira base do poder?

Atualmente, um dos vários sentidos do termo é o de autoridade . Outro sentido corresponde ao uso político do termo, o Poder representativo. Nos tempos de Maquiavel, a concepção platônica do poder como meio para alcançar o bem sofreu profundas mudanças. A percepção de que a realidade histórica exige adaptações (que nem sempre permitem manter os olhos fixos no bem comum) leva a entender o poder como uma estrutura necessária para o bom governo da vida social. Assim se fortaleceu, aos poucos, a ideia de que os ocupantes do poder representam os interesses dos cidadãos, ainda que, na época, muitos governantes recebessem o poder por herança.

Seja como for, a ideia de construção do governo mais eficaz para manter o bom funcionamento da sociedade (não mais o ideal do bem comum) conduz à valorização da estrutura que permite tal eficácia: o poder. É a essa concepção que estamos habituados no mundo contemporâneo. Embora os governantes se apresentem com a aparência de servidores de ideais de justiça, bem-estar etc., eles não são escolhidos para realizar um ideal único (como o Bem platônico), mas para realizar o maior bem historicamente possível (quando são honestos no compromisso com esse objetivo).

Coube ao filósofo inglês Thomas Hobbes dar forma a essa ideia, consagrando o poder como condição para o bom funcionamento da vida social e fortalecendo a concepção de que os cidadãos autorizam que os governantes os representem. Diante das diferentes tendências e interesses que caracterizam a sociedade, a política deixa definitivamente de ser compreendida como serviço a um ideal único e passa a ser entendida como a busca de uma forma de vida que reduz ao mínimo os conflitos e evita que os grandes ou mais fortes devorem os pequenos ou mais fracos. Dado que o poder é compreendido como estrutura necessária para governar e obter paz, a política se torna a prática do poder.

Na obra Leviatã, publicada originalmente em 1651, Hobbes apresenta sua concepção sobre o Estado. De acordo com o filósofo, se viverem em estado de natureza, ou seja, seguindo apenas sua constituição física e instintiva, os seres humanos instalariam uma guerra de todos contra todos, pois cada indivíduo é habitado por um desejo duplo: o de ser livre e o de dominar os outros seres, inclusive seus semelhantes.

► Ilustração contemporânea para a ideia do homem sendo lobo do homem, que se associa ao que Hobbes alega.

BIOGRAFIA

Thomas Hobbes (1588-1679)

Filósofo e matemático inglês conhecido por suas críticas ao racionalismo de René Descartes (1596-1650) e por ser um dos principais fundadores do empirismo e da teoria moderna sobre o Estado. Suas obras mais conhecidas são Do cidadão e Leviatã, publicadas originalmente em 1642 e 1651.

► WRIGHT, John Michael. Thomas Hobbes. [Entre 1669 e 1670]. Óleo sobre tela, 75,6 cm x 64,1 cm. National Portrait Gallery, Londres (Inglaterra).

Restrição: limite.

Dano: agressão; ofensa. Labor: esforço; trabalho. Consentimento: concordância; aceitação.

Assim, percebendo que a vida pode ser melhor evitando-se a guerra de todos contra todos, os seres humanos abrem mão de sua liberdade total e aceitam limites e controles, transferindo sua força e seu poder a alguém que passará a representá-los. Esse “alguém”, cuja fonte de poder é o pacto social feito pelos cidadãos, não é um ser humano, mas uma estrutura que se encarna no indivíduo que a ocupa (o soberano). A ela se dá o nome de Estado

Hobbes chamava o Estado, segundo a concepção moderna, de Leviatã ou Grande Leviatã. Leviatã é o nome de um monstro que espalha terror e que tem sentido religioso. Hobbes serve-se dessa figura a fim de representar o Estado como uma instância autorizada a fazer uso da força para evitar a luta de todos contra todos.

O Estado como condição para uma vida mais satisfatória

A causa final [...] dos homens [...] ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver em repúblicas, é a precaução com a sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. [...] A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de os defender das invasões dos estrangeiros e dos danos uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante o seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos – é conferir toda sua força e poder a um homem ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir todas as suas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. [...] Isto é mais do que consentimento ou concórdia; é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens [...]. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama República, [...] daquele grande Leviatã ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus mortal ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, a nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo na república, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. [...]

HOBBES, Thomas. Leviatã . Tradução: João Paulo Monteiro, Maria Beatriz Nizza da Silva e Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Clássicos Cambridge de filosofia política, p. 143, 147-148).

Apesar de ser um Leviatã, o Estado moderno teorizado por Hobbes não dava aos governantes a faculdade de fazer tudo o que bem entendessem. Para indicar limites à força do Estado, alguns pensadores complementaram a filosofia política de Hobbes por meio do conceito de Estado de Direito: um sistema institucional (Estado) no qual tanto os cidadãos como o poder público devem respeitar as leis do país (Direito).

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

Democracia direta

A divisão em três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) é hoje considerada uma forma de proteger o princípio do Estado de Direito, embora não deixe de apresentar fragilidades muitas vezes estruturais. O filósofo Louis Althusser (1918-1990), por exemplo, alertava para o fato de que o sistema dos três Poderes fez com que, ao longo do tempo, alguns cidadãos tivessem privilégios porque são reeleitos e exercem influência excessiva sobre o Legislativo e o Executivo. Mais grave ainda, no dizer de Althusser, é que os três Poderes são uma forma de proteger o Poder Executivo das revoltas populares. Como os cidadãos votam, Althusser, então, bem como Hannah Arendt (1906-1975) e outros pensadores, defendeu uma concepção diferente de democracia: a democracia direta , na qual o povo exerce o poder sem intermediários, e não por meio de representantes. Os modos para exercer diretamente o poder podem variar, como, aliás, já́ ocorreu na história da democracia: em Atenas (Grécia), os cidadãos podiam tomar a palavra na praça pública; em partes do Leste Europeu, eles governavam por meio de plebiscitos (como entre os cossacos, povo de guerreiros instalado no sul da atual Rússia e na Ucrânia); nas comunas da Idade Média, por meio das assembleias populares; ou ainda em partes do México, por meio do sistema de rodízio no poder.

► Atualmente, com a facilidade de comunicação trazida pela revolução da informática e pelas mídias sociais, por meio de aparelhos como computadores e celulares, seria possível consultar amplamente a população, além de acionar as pessoas com mais agilidade, convidando-as a manifestar seus pensamentos.

Em contrapartida, o maior risco presente na democracia direta (mas também na democracia representativa) consiste em organizar a vida pública segundo algo perigoso e para o qual já alertava Tocqueville: a ditadura da maioria, quer dizer, a crença de que, para produzir situações justas, basta votar e obter a maioria dos votos. A democracia, assim, embora se apresente como o governo do povo, pode reduzir-se a uma justificativa para impor ao conjunto da população o desejo da maioria, que nem sempre é necessariamente adequado à vida social.

Por outro lado, a democracia, apesar de suas fragilidades, é um valor construído pelas sociedades ao longo dos séculos e merece ser defendida. Se ela ainda é vivida apenas como o sistema da maioria, isso não impede as sociedades de melhor á-la e torná-la mais inclusiva.

Em grupo. Organizem-se em grupos com três integrantes e respondam às questões a seguir.

1. Com base no que vocês aprenderam, qual é a crítica que Althusser faz à democracia representativa?

2. Reflitam e deem um exemplo de como seria possível exercer hoje a democracia direta.

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SOCIOLOGIA

Sistema político brasileiro: os três Poderes

Nas democracias representativas, o poder do Estado tem por base uma Constituição e se distribui entre três Poderes.

Congresso Nacional na Praça dos Três Poderes. Brasília (DF), [2024].

• Em grupo. Sob a orientação do(a) professor(a), vamos realizar uma atividade prática.

a) Divididos em três grupos, pesquisem a estrutura dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário brasileiros nas esferas municipal, estadual e federal. Cada grupo pesquisará um Poder.

b) Em seguida, verifiquem quantos e quais são os partidos representados na Câmara dos Vereadores da cidade, na Assembleia Legislativa do estado, na Câmara dos Deputados Federais e no Senado Federal.

c) Por último, pesquisem quais setores da sociedade defendem a necessidade de uma reforma política no Brasil.

d) Organizem os resultados das pesquisas em forma de esquemas visuais ou organogramas para apresentação em uma plenária na sala de aula, com a presença do(a) professor(a) de Sociologia, que poderá contribuir com informações complementares ou comentários.

Consultar orientações no Manual do Professor.

Não escreva no livro.

(Enem)

Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens.

ARISTÓTELES. Polít ica. Brasí lia: UnB, 1988. No fragmento, Arist ó teles promove uma reflex ão que associa dois elementos essenciais à discuss ã o s obre a vida em comunidade, a saber:

1. Alternativa A

a) Ética e política, pois conduzem à eudaimonia

b) Retór ica e linguagem, pois cuidam dos discursos na ágora.

c) Metaf ísica e ontologia, pois tratam da filosofia primeira.

d) Democracia e sociedade, pois se referem a relações sociais.

e) Geração e corrupção, pois abarcam o campo da physis .

2 . Identifique, nos raciocínios seguintes, os casos de generalização apressada e os casos de generalização justificada. Fundamente suas respostas.

a) Quando viajei para o Rio Grande do Sul, vi muitas churrascarias. É porque todos os gaúchos comem muita carne.

b) Toda religião é violenta, porque judeus, cristãos, muçulmanos e até budistas praticam guerras religiosas.

c) A s infecções bacterianas podem ser tratadas com penicilina.

DISSERTAÇÃO

d) Ser brasileiro é amar futebol.

e) Se sempre preveni a gripe na minha família com vitamina C, creio que todos deveriam fazer o mesmo.

f) Visto que todo ser humano é mortal e que todo ser mortal precisa alimentar-se para sobreviver, então todo ser humano precisa de alimento.

3. Explique a concepção platônica da política como meio.

4. (Enem)

O princípio básico do Estado de direito é o da eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos, com a consequente garantia de direitos dos indivíduos perante esses poderes. Estado de direito significa que nenhum indivíduo, presidente ou cidadão comum está acima da lei. Os governos democráticos exercem a autoridade por meio da lei e estão eles próprios sujeitos aos constrangimentos impostos pela lei.

CANOTILHO, J. J. G. Estado de direito. Lisboa: Gradiva, 1999 (adaptado).

Nas sociedades contemporâneas, consiste em violação do princípio básico enunciado no texto:

4. Alternativa A

a) Supressão de eleições de representantes políticos.

b) I ntervenção em áreas de vulnerabilidade pela Igreja.

c) D isseminação de projetos sociais em universidades.

d) Ampliação dos processos de concentração de renda.

e) Regulamentação das relações de trabalho pelo Legislativo.

Elabore uma dissertação de síntese filosófica (p. 104) sobre as concepções de política e poder, segundo Platão e Maquiavel.

#jovensemação

Não escreva no livro.

Grêmio Estudantil: um exercício político na escola

PASSO 1

[...]

Conhecer ações inspiradoras realizadas por jovens.

JUVENTUDE – A representação estudantil serve como um canal direto entre os estudantes e a administração escolar. Ao eleger democraticamente uma chapa ativa, os estudantes ganham uma voz unificada para expressar preocupações, propor melhorias e participar do processo de tomada de decisões dentro da escola. Além disso, essa atuação política desempenha um papel crucial na promoção do engajamento dos estudantes ao organizar eventos, atividades e iniciativas que estimulam os seus colegas a se envolverem com a vida escolar de forma significativa.

Um exemplo a ser dado é a Escola de Educação Básica Professora Lilia Ayroso Oechsler, na cidade de Jaraguá do Sul-SC, que foi palco de uma atuação estudantil combativa. Há quatro anos, através da organização de estudantes, foi possível resgatar a essência do movimento estudantil secundarista nesse espaço. Isso só foi possível a partir de uma gestão de Grêmio estudantil, que proporcionou melhorias estruturais na unidade escolar por meio de eventos como o ‘Baile de primavera’ e a adoção de projetos sociais como o ‘Galera Curtição Liayo’. Além disso, o Grêmio também cumpriu um papel fundamental no auxílio de estudantes e funcionários com problemas de convivência, encontrados depois de um longo período de isolamento causado pela pandemia do Covid-19. [...]

JAGIELLO, Lucas. “A união faz a força”: a importância de um Grêmio Estudantil organizado. A Verdade, Florianópolis, 15 abr. 2024. Disponível em: https://averdade.org.br/2024/04/a-uniao-faz-a-forca-a-importancia-de-um-gremio-estudantil-organizado/. Acesso em: 27 set. 2024.

Estudante em cabine de votação para eleição do Grêmio Estudantil na Escola

Estadual Maria Constança de Barros Machado. Campo Grande (MS), 2024.

Com base na experiência que acabamos de conhecer, vamos organizar um Grêmio Estudantil, caso sua escola já não tenha um. O grupo que pretende formar o grêmio deve comunicar a iniciativa à direção da escola, divulgar a proposta entre os estudantes e convidar os interessados e os representantes de classe (se houver) para formar a Comissão Pró-Grêmio. Esse grupo irá elaborar uma proposta de estatuto, que será discutida e aprovada pela Assembleia Geral.

PASSO 2 Mapear a realidade.

A Comissão Pró-Grêmio deve convocar todos os estudantes da escola para participar da Assembleia Geral. Nessa reunião, decide-se o nome do grêmio, o período de campanha das chapas, a data das eleições e a aprovação do Estatuto do Grêmio, além de se organizarem grupos para mapear a realidade da escola, a fim de identificar ações necessárias. Nessa reunião também são definidos os membros da Comissão Eleitoral.

PASSO 3 Atuar na sociedade.

Nessa etapa, os estudantes se reúnem e formam as chapas que concorrerão à eleição. Eles devem apresentar suas ideias e propostas para o ano de gestão no Grêmio Estudantil. A Comissão Eleitoral promove debates entre as chapas, abertos a todos os estudantes e à comunidade local, que pode contribuir com sugestões.

PASSO 4 Compartilhar o trabalho com a comunidade.

Na etapa final, a Comissão Eleitoral organiza a eleição (por voto secreto).

A contagem é feita pelos representantes de classe, acompanhados de dois representantes de cada chapa e, eventualmente, dos coordenadores pedagógicos da escola. No final da apuração, a Comissão Pró-Grêmio deve redigir uma Ata de Eleição para divulgar os resultados.

A Comissão Pró-Grêmio envia uma cópia da Ata de Eleição e do Estatuto para a direção da escola e organiza a cerimônia de posse da diretoria do grêmio, com a presença de toda a comunidade local.

Uma vez ao ano, cada grêmio reinicia o processo eleitoral.

Consulte modelos de documentos relacionados ao Grêmio Estudantil, principalmente estatutos e atas, no site da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes): http://ubes.org.br/gremios (acesso em: 27 set. 2024).

A FELICIDADE 10

MATISSE, Henri. La danse (second version) [A dança (segunda versão)]. 1910. Óleo sobre tela, 260 cm × 391 cm. Museu Hermitage, São Petersburgo (Rússia).

Os dançarinos de Matisse, no quadro reproduzido nesta página, revelam universalidade e singularidade: universal é o fato de serem humanos (representado pela dança de mãos dadas); singular é o modo como concretizam o que há de universal (o modo uno e único como cada um entra na dança). Da mesma forma, a busca da felicidade parece universal, mas o que ela é e como pode ser vivida dependem das maneiras singulares de entendê-la.

Com razoável segurança, é possível dizer que todos os seres humanos desejam ser felizes. Afinal, se ser feliz significa, no mínimo, transcender o cotidiano mais imediato e sentir-se realizado(a) em suas possibilidades, então mesmo as pessoas que não acreditam na felicidade vivem o seu “não acreditar na felicidade” como uma forma de sentir-se realizadas. Em outras palavras, mesmo a negação contém a afirmação. Resta saber: o que permite alcançar a realização que recebe onome de felicidade?

MUSEU HERMITAGE, SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA/ALAN WYLIE/ALAMY/FOTOARENA

Do prazer à felicidade

A e scola cirenaica

Em Filosofia, mais do que apresentar apenas outra opinião, convém analisar o significado contido no que se denomina felicidade. Muitos filósofos e filósofas concentraram-se em um conteúdo comum a todas as concepções de felicidade: o prazer, uma vez que ser feliz implicaria sentir-se realizado(a) e sentir-se realizado(a) envolve prazer.

Um caminho possível para refletir sobre a relação entre felicidade e prazer consiste em considerar a felicidade como a soma dos prazeres Essa concepção foi defendida, entre outros, por um grupo de filósofos antigos conhecidos como cireneus.

O escritor Diógenes Laércio, responsável por reunir e divulgar elementos das reflexões dos pensadores antigos, sintetizou a análise cirenaica. Em seu livro Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, Diógenes registra:

A felicidade é a soma de todos os prazeres

Filosofia cirenaica

[Testemunho de Diógenes Laércio]

Aqueles que seguiram o pensamento de Aristipo foram chamados de cireneus, porque Cirene era a pátria desse filósofo. Eles acreditam que o ser humano está sujeito a duas emoções: o prazer e a dor. Chamam de prazer um movimento agradável que satisfaz a alma; chamam de dor um movimento violento que a oprime. Eles pensam que todos os prazeres são iguais e que nenhum é mais sensível do que outro; todos os seres vivos procuram o prazer e fogem da dor. [...]

Os cireneus, ao falar do prazer, pensam no prazer corporal, que seria a finalidade dos seres humanos; e não apenas a tranquilidade ou a ausência de dor [...]. No entanto, parece que os filósofos cireneus distinguem entre a finalidade dos seres humanos e a felicidade: no dizer deles, a finalidade são os prazeres separadamente, enquanto a felicidade é o conjunto de todos os prazeres, seja os que já passaram como os que podemos ainda receber. Eles dizem que um prazer isolado é desejável por si mesmo, ao passo que a felicidade não é desejável por si mesma, mas por causa dos prazeres particulares que dela resultam.

Eles acrescentam que o sentimento nos prova que o prazer deve ser nossa finalidade, pois a Natureza nos leva a isso desde a infância: sem pensar, nós nos deixamos levar pelo prazer; quando possuímos o prazer, não desejamos outra coisa senão a satisfação dada por ele. Quanto à dor, experimentamos naturalmente uma repugnância que nos leva a evitá-la.

LAÉRCIO, Diógenes. Les vies des plus illustres philosophes de l’Antiquité [Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres]. Tradução: Jacques Georges Chauffepié. Paris: Lefebvre & Charpentier, 1840. p. 91-92. Tradução nossa.

Resposta pessoal.

• Você é feliz? O que você entende por felicidade?

BIOGRAFIA

AristipoEscola Cirenaica

► Aristipo de Cirene. Escola cirenaica é o nome atribuído a um conjunto de filósofos cuja atuação se deu principalmente entre os anos 400 a.C. e 300 a.C. na cidade de Cirene, antiga colônia grega na região da atual Líbia. Foi fundada por Aristipo (c. 435 a.C.-c. 356 a.C.), seu mais conhecido representante, que considerava o prazer como bem supremo e maior objetivo da vida humana. Nada restou de seus escritos. É conhecido pelos testemunhos de outros escritores, sobretudo Diógenes Laércio.

Repugnância: aversão; nojo.

COLEÇÃO

BIOGRAFIA

► Diógenes Laércio.

Diógenes Laércio (c. 180 d.C.-c. 240 d.C.) foi um historiador e biógrafo dos filósofos antigos. Muito pouco se sabe sobre sua vida, tampouco sobre sua origem. Pelos filósofos mais recentes citados em sua obra, estima-se que tenha vivido na primeira metade do século III d.C. É conhecido pela obra Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, escrita por volta da primeira metade do século III d.C.

Analisando o texto, podemos dar cinco passos.

1. O alic erce ou o ponto de partida do pensamento dos cireneus está nas linhas 6-7: todos os seres vivos procuram o prazer e fogem da dor. Os seres humanos, como os seres vivos, possuem duas emoções: o prazer e a dor.

2. Como o texto de Diógenes Laércio mistura as frases sem uma ordem direta, parece difícil entender o papel da frase “todos os prazeres são iguais e nenhum é mais sensível do que outro”, escrita já no início do texto (linhas 5-6), em meio às afirmações sobre a busca do prazer e a fuga da dor. Mas, com um pouco mais de atenção, vê-se que essa frase é importante para o que vem logo na sequência: afirmar que nenhum prazer é mais sensível do que outro significa dizer que todos os prazeres são corporais, ou seja, são experimentados no corpo (são sensíveis). Então, não existiria um prazer mais ligado ao corpo do que outro. Por essa razão, o prazer também não é uma simples ausência de dor; é algo que se sente, ao passo que a ausência de dor não pode ser sentida (a ausência significa que não há nada para ser sentido). O prazer, então, é uma sensação (uma experiência sentida no corpo) agradável (satisfaz a alma). A dor, ao contrário, é uma sensação violenta que oprime a alma. Assim, se a ausência de dor significa apenas não ter opressão da alma, o prazer é mais do que uma simples ausência; é uma experiência sensível que causa satisfação.

3. Se o prazer é uma sensação agradável de satisfação, então ele é desejado por si mesmo, e os seres humanos, em tudo, buscam o prazer: desde a infância, entregam-se a ele a tal ponto que não precisam mais raciocinar para buscá-lo (linhas 18-19).

► MUCHA, Alphonse. Chocolat Masson . 1898. 1 litografia colorida. Detalhe de calendário em propaganda de chocolate mexicano. A propaganda de chocolate apela para sentimentos de leveza e o prazer do paladar.

4. Esse raciocínio permitia aos cireneus diferenciar entre a finalidade buscada por todo ser humano nos diferentes aspectos de sua vida (o prazer) e uma finalidade mais ampla, a de reunir os prazeres separados (vividos nos diferentes aspectos da vida, tanto passados como presentes). Assim, ao mesmo tempo que os seres humanos vivem prazeres separados, eles também podem viver o conjunto desses prazeres, experimentando um novo prazer, o da satisfação dada pelo conjunto. A essa maneira de viver a satisfação com a soma dos prazeres os cireneus chamavam felicidade.

5. Por fim, a comparação entre a dor e o prazer permite esclarecer melhor a felicidade: os seres humanos vivem uma rejeição imediata da dor, tentam sempre evitá-la; ao contrário, são atraídos pelo prazer, são movidos a buscá-lo. Como a felicidade parece-lhe ser a soma dos prazeres, ela dependerá, então, de uma busca ativa. Da reflexão cirenaica pode-se extrair uma primeira concepção:

► GALVÁN, José Luis López. Vomitorium. 2011. Óleo sobre tela, 100,33 cm x 149,86 cm. O “vomitório” exprime o horror que pode tornar-se o ato de alimentar-se.

1. Em dupla . Releia o texto de Diógenes Laércio e mostre o papel das frases a seguir na argumentação que leva a considerar a felicidade como a soma de todos os prazeres.

• Os seres vivos procuram o prazer e fogem da dor.

• O prazer deve ser nossa finalidade porque a natureza nos leva a isso desde a infância.

2. Por que a tranquilidade ou a ausência da dor não são a felicidade, segundo os cireneus?

A felicidade é a satisfação que se busca como posse do conjunto dos prazeres. Consultar orientações no Manual do Professor

BIOGRAFIA

Epicuro de Samos (341 a.C-270 a.C.) foi um filósofo grego do período helenístico. Nascido na ilha de Samos, Epicuro viajou por várias cidades gregas antes de fundar, em 304 a.C., sua própria escola filosófica em Atenas, chamada de Jardim. Exerceu grande influência não apenas por seus ensinamentos centrados na importância do prazer mas também por sua personalidade e por seu modo de vida. De suas obras, restaram apenas três cartas que versam sobre a natureza, meteoros e a moral.

E picuro: prazer e prudência

Cerca de um século depois, o filósofo grego Epicuro afirmará algo semelhante aos cireneus. Porém insistirá na seguinte diferença: uma vida sem tranquilidade não é boa, visto que falta de tranquilidade significa falta de satisfação ou falta de prazer. É possível ter satisfações; mas, como elas não duram, os seres humanos permanecem insatisfeitos. Tal experiência leva a entender que outra experiência é possível, a da tranquilidade no corpo, ou ausência de dor, e a da tranquilidade na alma, como ausência de perturbação.

A alma humana, segundo Epicuro e entendida de maneira muito próxima à de Agostinho de Hipona (354 d.C.-430 d.C), não significa uma “coisa” que está “dentro” do corpo (e que vai para um paraíso ou para uma condenação depois da morte, conforme afirmam algumas concepções religiosas). Ela é a vitalidade do corpo e permite aos humanos realizar sua atividade específica, o pensamento. Por essa razão, segundo Epicuro, a tranquilidade deve ser buscada em duas direções: como ausência de dor no corpo e como paz da alma. De acordo com a análise de Epicuro, os seres humanos possuem a capacidade de pensar, refletir e decidir, bem como um movimento que leva à busca de satisfação (prazer). Esse movimento independe do pensamento e da decisão; é um impulso que habita todos os indivíduos. Epicuro chamou esse impulso de desejo ou paixão. No entanto, embora o impulso de buscar satisfação brote nos indivíduos, cada um pode interferir no modo como o vive.

► Mulher, ao ar livre, aproveita o tempo ensolarado com os olhos fechados, 2021. Para Epicuro, o prazer se relaciona à tranquilidade da alma, que poderia ser expressa pela serenidade da mulher da fotografia.

► Epicuro de Samos.
GERMAN VIZULIS/ SHUTTERSTOCK.COM

Os desejos dividem-se, por sua vez, em úteis e inúteis, de acordo com sua contribuição efetiva para o bem-estar do corpo e para a tranquilidade da alma. A felicidade, por fim, será a satisfação ou a completude vivida no corpo e na alma. Será uma vida de prazer, não de qualquer prazer, mas do conjunto dos prazeres úteis.

Se o objetivo maior dos seres humanos é alcançar uma vida de satisfação completa, Epicuro entende a felicidade, então, como a finalidade suprema da vida humana. Ele inverte a relação estabelecida pelos cireneus entre a felicidade e o prazer, já que não concebe mais a felicidade como simples conjunto de prazeres em vista do prazer obtido com cada prazer separado, mas como experiência de satisfação à qual serve o conjunto de prazeres.

Epicuro acrescenta que, como ensinava Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), a prática da prudência permite avaliar os prazeres e identificar aqueles que proporcionam a felicidade (o bem-estar do corpo e a tranquilidade da alma), pois a prudência é o hábito de escolher o melhor encaminhamento a ser dado a cada vivência particular de prazer. Se os prazeres podem ser classificados como úteis ou inúteis, a correta avaliação mostra-se indispensável para chegar à felicidade. Tal avaliação pode ser feita graças à prudência, condição necessária e suficiente para a felicidade ou para o prazer em seu sentido mais amplo.

Prazer e Prudência

Epicuro

Quando dizemos que o prazer é a finalidade, não queremos falar dos “prazeres de quem é dissoluto” nem dos “prazeres que se encontram no mero desfrutar”, como creem aqueles que, por ignorância, estão em desacordo conosco ou promovem a má recepção de nosso pensamento. Queremos falar da ausência de dor no corpo e de perturbação na alma. Afinal, não são os banquetes e as festas constantes, nem o desfrutar, que são proporcionados por homens e mulheres, nem ainda os peixes e outros alimentos oferecidos por uma mesa rica que geram a vida de prazer, mas o pensamento sóbrio que analisa as causas de toda escolha e de toda recusa, afastando as opiniões pelas quais um grande tumulto se apodera das almas.

De tudo isso, o princípio e o maior bem é a prudência. É por isso que a Filosofia é, no melhor sentido, prudência, da qual nascem todas as outras virtudes: elas nos ensinam que não é possível viver com prazer sem viver com prudência e que não é possível viver de modo bom e justo sem viver com prazer, pois todas as virtudes são naturalmente associadas ao fato de viver com prazer; e viver com prazer é inseparável das virtudes.

EPICURO. Lettre à Ménécée [Carta a Meneceu]. In: EPICURO. Lettres, maximes, sentences [Cartas, máximas, sentenças]. Tradução: Jean-François Balaudé. Paris: Le Livre de Poche, 1994. p. 196-197. Tradução nossa.

Dissoluto: quem tem uma vida sem medida; que dissolve as regras. Sóbrio: moderado; equilibrado.

► POLLAIUOLO, Piero del. Prudência. 1470. Óleo e têmpera sobre madeira, 167 cm x 88 cm.

Galleria degli Uffizi, Florença (Itália).

GALERIA UFFIZI/MUSEUS DE FLORENÇA, FLORENÇA, ITALIA

Pejorativo: que diminui; visão negativa de alguém ou de alguma coisa.

DiCAs

• Para Châtelet, a felicidade é obtida por agir de maneira ponderada.

► CHÂTELET, Madame du. Discurso sobre a felicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Reprodução da capa.

• Documentário sobre autoconhecimento e busca da felicidade.

► EU MAIOR. Fernando Schultz e Paulo Schultz. Brasil: Catalisadora Audiovisual, 2013. Streaming (90 min).

Você provavelmente observou no texto de Epicuro que ele menciona a Filosofia como sinônimo de prudência. De fato, para ele, a Filosofia era uma forma de vida pautada na prudência, levando, assim, à felicidade. Assim, prudência, felicidade e Filosofia seriam equivalentes. Nos dias de hoje, quando se quer dar uma visão pejorativa sobre alguém que valoriza excessivamente o prazer ou que pensa ser bom ter prazer pelo simples fato de ter prazer, chama-se essa pessoa de hedonista (termo que vem de hedoné, “prazer” em grego). Fala-se até de epicurista como sinônimo de hedonista.

Mas você já é capaz de perceber que ser hedonista no sentido de Epicuro (valorizar o prazer) não significa ser hedonista no sentido pejorativo. O hedonismo de Epicuro é ligado à atividade humana de avaliar o melhor para cada situação. Essa atividade, a prudência, seria como uma “cola” que liga os prazeres e faz deles um grande conjunto em vista da felicidade, satisfação obtida com os prazeres do corpo e a tranquilidade da alma.

CONCEITOS ESTRATEGICOS

CONDIÇÃO; CONDIÇÃO NECESSÁRIA; CONDIÇÃO SUFICIENTE; CONDIÇÃO NECESSÁRIA E SUFICIENTE

Condição – aquilo que permite que algo ocorra. Exemplos:

Só pode votar quem tem cidadania brasileira. Havendo uma recompensa, farei este esforço.

Condição necessária – condição indispensável para que algo ocorra: se x é condição necessária de y, isso quer dizer que sem x não ocorre y, ou ainda tudo o que é y também é x, embora nem tudo o que é x seja também y. Exemplos:

É preciso estar na América Latina (x) para estar no Brasil (y). Quem está no Brasil (y) também está necessariamente na América Latina (x).

Condição suficiente – condição para que algo ocorra, porém, essa condição não é indispensável para que o mesmo algo ocorra (ele pode ocorrer por uma outra causa): x é condição suficiente de y, quando y ocorre em função de x mas também pode ocorrer em função de outra causa, ou ainda tudo o que é x é também y, embora nem tudo o que é y seja também x. Exemplos:

Estar no Brasil (x) faz com que alguém esteja na América Latina (y). Para ser aprovado no exame (y), basta tirar a média (x).

Condição necessária e suficiente – caso em que a condição e seu efeito são equivalentes (coincidência entre as duas condições, suficiente e necessária): y só ocorre se ocorrer x, mas x também só ocorre se ocorrer y, ou ainda todo x é y e todo y é x. Exemplos:

Alguém é solteiro (y) se não é casado nem tem união estável (x) Segundo Epicuro, se há prudência (x) há felicidade (y), e vice-versa.

A felicidade e o conjunto dos

prazeres

Utilitarismo

Entre as filosofias contemporâneas, há posições muito parecidas com os pensamentos cirenaico e epicurista. Uma delas ficou conhecida como utilitarismo, criada por Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Bentham e Mill procuravam um modo científico de tratar a felicidade como finalidade dos atos humanos, um critério fundado na razão e na experiência sensível.

Ambos praticamente repetem a ideia antiga de que a finalidade das ações humanas é produzir a felicidade pelo prazer e pela ausência de dor e, como critério científico para afirmar isso, propunham a utilidade do prazer e da ausência de dor. Tudo aquilo que é desejado consiste em mais do que um simples meio de alcançar a felicidade, é parte da felicidade.

A concepção utilitarista é de grande interesse filosófico porque, assim como o cirenaísmo e o epicurismo, situa no coração do ser humano um misto de pensamento e desejo, isto é, uma mescla de possibilidades racionais (atividade do pensamento e da decisão) e possibilidades irracionais (não resultantes de pensamento, mas vividas como impulsos naturais). Além das funções corporais básicas (nutrição, conservação, reprodução, sensação), a vida humana contém uma saudável tensão entre aquilo que se pode conhecer e escolher e aquilo que nela brota como impulso. Porém, ao associar a felicidade com as coisas desejadas e produtoras de prazer ou ausência de dor, a visão utilitarista aproxima-se mais do cirenaísmo do que do epicurismo. Volta-se atrás na inversão realizada por Epicuro e põe-se novamente a felicidade sob a orientação do prazer.

BIOGRAFIA

Jeremy Bentham (1748-1832)

► PICKERSGILL, Henry William. Jeremy Bentham. 1857. Óleo sobre tela, 204,4 cm x 138,4 cm. National Portrait Gallery, Londres, Inglaterra (Reino Unido).

Foi um filósofo e jurista britânico do período iluminista, conhecido como um dos fundadores do utilitarismo, pensamento ético que concebe todas as ações humanas em função de sua capacidade de aumentar ou diminuir o prazer e a felicidade do maior número de pessoas. Obras mais conhecidas: Uma introdução aos princípios da moral e da legislação (1789) e Teoria dos deveres ou A ciência da moral, publicada postumamente em 1834.

► Para os utilitaristas, existem apenas circunstâncias e momentos felizes, como pode ser representado pela imagem de pessoas em um festival de música. Lisboa (Portugal), 2018.

PEDRO GOMES/GETTY IMAGES
GALERIA NACIONAL, LONDRES, REINO UNIDO

BIOGRAFIA

► John Stuart Mill, 1870.

John Stuart Mill (1806-1873) foi um filósofo britânico, filho do filósofo escocês radicado na Inglaterra James Mill. O pai foi um seguidor das ideias de Jeremy Bentham, de quem Stuart recebeu influências diretas desde a infância. Sua vasta e rígida educação o levou a desenvolver o utilitarismo.

Obras mais conhecidas: Princípios de economia política (1848), A liberdade (1859) e O utilitarismo (1861).

Um dos motivos utilitaristas para desfazer a inversão de Epicuro vem do fato de que a felicidade está sempre ligada a momentos passageiros e a ocasiões bastante precisas. Dessa percepção, os utilitaristas concluem que a felicidade não existe; o que existem são circunstâncias e momentos felizes. Eles pretendem denunciar aquilo que consideravam um equívoco, o de falar de “a” felicidade (como se ela fosse uma coisa ou um estado), quando, na verdade, o que existe é uma dispersão de coisas isoladas e de momentos que dão satisfação aos indivíduos. Desse ponto de vista, os utilitaristas diferem até mesmo dos cireneus.

A visão utilitarista pode ser melhor entendida por meio de uma comparação com o seguinte pensamento: não existe “a” humanidade, só existem indivíduos humanos. Se só é possível observar indivíduos, então não há base para dizer que o conjunto formado por eles constitui algo diferente deles ou maior do que eles (“a” humanidade como um universal). Mesmo em afirmações universais como “A humanidade é responsável pela Terra”, isso não significaria que essa responsabilidade é exercida por algum nível superior ao dos indivíduos, mas pelos próprios indivíduos.

Tratando a felicidade com um método de raciocínio parecido ao da consideração da humanidade como somatória de indivíduos, o utilitarismo conclui que

Em si mesma, a felicidade não é nada, ela é apenas o conjunto dos prazeres e a ausência de dor.

Algumas dificuldades, no entanto, surgem quando se analisa a visão utilitarista da felicidade. A primeira delas consiste naquilo que Epicuro já identificava no pensamento cirenaico: se “ser feliz” equivale a apenas sentir satisfação, isso leva à incoerência de ter de aceitar que o que dá satisfação (os prazeres) não dá satisfação completa, mas deixa espaço para a insatisfação.

A segunda dificuldade vem da própria montagem do raciocínio utilitarista. Observe:

1. Todos os indivíduos buscam o prazer;

2. Por ser uma somatória de prazeres, a felicidade não é nada em si mesma;

3. Então, não se pode dizer que as vivências individuais do prazer têm ligação entre si nem que o prazer sentido por um indivíduo tem relação com o prazer sentido por outro indivíduo;

4. Porém, as afirmações 2 e 3 são incoerentes com 1 (“Todos os indivíduos buscam o prazer”), pois, se por prazer se entende algo

inteiramente individual (em si mesmo e no interior de cada indivíduo) e se não há relação nem entre os prazeres vividos por alguém, nem entre os prazeres vividos por diferentes indivíduos, então nada permite afirmar que “todos os indivíduos buscam o prazer”, visto que sequer seria possível entender se o que um indivíduo chama de prazer corresponde ao que outro indivíduo também chama de prazer; 5. Ocorre, no entanto, que os seres humanos compreendem o que querem dizer quando falam de prazer; então a afirmação 1 é aceitável; mas, se ela é aceitável, as afirmações 2 e 3 precisam ser revistas.

O problema dos universais

Um dos debates que mais recebeu atenção dos filósofos desde as origens da Filosofia (sobretudo a partir dos séculos V a VI de nossa Era) até os nossos dias recebe o nome de problema dos universais. Esse debate filosófico investiga se os conceitos gerais existem por si mesmos, para além dos indivíduos que eles designam (pelo menos, se eles podem ser pensados sem referência aos indivíduos), ou se consistem em meras elaborações do pensamento para representar o conjunto dos indivíduos (simples modos de falar deles).

Alguns filósofos contemporâneos dirão que esse tipo de preocupação é ilusória. Friedrich Nietzsche (1844-1900), por exemplo, no livro Crepúsculo dos ídolos, de 1889, vê o problema dos universais como resultado da ingenuidade de “crer na gramática” (como se a vida seguisse regras universais em vez de produzi-las). Outros filósofos consideram que esse problema não é uma simples ilusão nascida do uso da linguagem. Assim, o filósofo e sociólogo Herbert Marcuse (1898-1979), mesmo sem acreditar em regras ou essências, chega a afirmar, no livro O homem unidimensional, de 1964, que o problema dos universais está no núcleo mesmo do pensamento filosófico, uma vez que é a decisão a seu respeito que orienta o trabalho inteiro de cada pensador. No dizer de Marcuse, formas contemporâneas de pensar tentaram libertar o pensamento filosófico dos “fantasmas” universais, mas eles continuam a assombrar, já que ninguém conseguiu explicar de maneira definitiva o que significa, por exemplo, a palavra mulher em uma frase como “Maria é mulher”. Em todas as suas facetas, o pensamento, inclusive poético, parece incapaz de dispensar conceitos gerais como identidade, diferença, eu, mente, vontade, bem, homem, mulher, país, planta, animal etc. Talvez a única forma de pensamento a realizar essa proeza seja aquela proposta por Martin Heidegger (1889-1976) em sua maturidade, quando ele convida a um silêncio ou a uma decisão de não se pronunciar sobre a existência.

► Retrato do filósofo Friedrich Nietzsche, c. 1880.

► Marcuse, na Universidade da Califórnia, San Diego (Estados Unidos), 1968.

MAGRITTE, René. L’Apparition [A aparição]. 1928. Óleo sobre tela, 42 cm × 28,8 cm. Galeria Estadual de Stuttgart (Alemanha). Nessa obra surrealista, formas universais dão nome a diferentes conjuntos de coisas: horizon (horizonte), cheval (cavalo), fauteil (poltrona), fusil (fuzil), nuage (nuvem). Assim, o autor problematiza a ideia de linguagem e representação.

No caso de Herbert Marcuse, ele sabia que “realidades” como identidade, diferença, bem, além de país, nação, lei e tantas outras, são construções históricas variáveis. Contudo, ele pergunta se não é razoável defender que esses conceitos designam algo compreensível por si mesmo e mais amplo do que os elementos designados por ele. Afinal, tais conceitos retratam experiências que os indivíduos, tomados singularmente, não são capazes de originar. Eis o problema dos universais. No limite, ele consiste em procurar o sentido que atribuímos às próprias realidades singulares: elas seriam totalmente distintas entre si ou revelariam possibilidades comuns que as transcenderiam e as uniriam? Quando se pensa, por exemplo, em gêneros e espécies de seres, o que permite unir tais seres em grupos? Uma simples convenção? Características pertencentes a elas? Seria possível pensar os seres individuais como totalmente diferentes e independentes entre si, como se uma gota d’água não tivesse nada em comum com outra gota d’água? Mas pensar em coisas singulares como totalmente diferentes seria possível? Quando se fala de “coisa” e de “coisa singular”, já não se chegou a uma identidade que permite diferenciá-las no modo de viver tal identidade? Seria possível pensar sem estabelecer relações de identidade, alteridade e diferença? Essas são apenas algumas das questões que exemplificam o debate em torno da natureza dos conceitos gerais.

CONCEITOS ESTRATEGICOS

IDENTIDADE/ALTERIDADE – DIFERENÇA/SEMELHANÇA

Identidade – característica específica de algo. Por extensão, é a relação de equivalência entre coisas que têm exatamente as mesmas características. Exemplos:

A identidade da Clara é a sua humanidade, enquanto a do Frajola é a sua felinidade. Duas fotocópias são idênticas.

Alteridade – característica de tudo o que não é idêntico ou o mesmo. Exemplos:

O ser vivo é a alteridade do mineral.

Existe alteridade mesmo entre gêmeos idênticos.

Diferença – relação que leva a distinguir duas ou mais coisas. Exemplos: Os modos de pronunciar são diferentes de acordo com a região do país.

A diferença entre os gêmeos idênticos está na separação de seus corpos e de suas personalidades. Semelhança – relação que identifica pontos comuns em coisas não idênticas. Exemplos:

Apesar de a culinária do Sul ser diferente da culinária do Nordeste, elas são semelhantes no uso da carne seca. Uma das semelhanças entre os animais não humanos e os humanos consiste na capacidade de perceber instintivamente a utilidade e o perigo de cada situação.

© MAGRITTE, RENÉ/AUTVIS, BRASIL, 2024

O problema dos universais remonta às origens da Filosofia, principalmente com Platão (c. 427 a.C.-347 a.C.) e Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). No seu livro Sofista, Platão revela-se um afiado pensador da diferença, pois o que ele chama de identidade não é um ponto de partida para sua filosofia, e sim o resultado do contraponto de diferenças. Contudo, foi da passagem do século V ao VI de nossa Era que o problema foi formulado da maneira como o conhecemos. Ele se deve ao trabalho do pensador romano Boécio (ca. 480 d.C.-525 d.C.), que, ao comentar Platão e Aristóteles por meio da obra Isagoge, de Porfírio (séc. III), chama declaradamente de gêneros e espécies os termos universais. Com base no comentário de Boécio e nos estudos de seu comentário feitos principalmente por Pedro Abelardo e Guilherme de Ockham (1285-1347), o problema chegou até os nossos dias com a seguinte formulação.

Se os gêneros e as espécies existem,

1) eles existem em si mesmos (para além dos indivíduos)? Se sim, então:

1.1) eles são corpóreos?; 1.2) ou incorpóreos? Se são incorpóreos, 1.2.1) eles estão unidos às coisas sensíveis?;

1.2.2) ou são separados das coisas sensíveis?;

2) ou os gêneros e as espécies só existem no pensamento humano? Nesse caso, 2.1) eles apontam para um significado universal?;

2.2) ou eles são apenas um “sopro de voz” ou uma palavra formada por convenção?

Em geral, as respostas a esse problema são divididas em três orientações:

a) o realismo: postura segundo a qual os termos universais indicam a identidade das coisas, identidades que existem antes das coisas;

b) o nominalismo: postura segundo a qual só existem indivíduos e não realidades universais, de modo que os termos universais são formados apenas depois do conhecimento dos indivíduos;

c) o conceitualismo: postura segundo a qual os universais existem, mas não independentemente, e sim nos indivíduos, podendo, portanto, ser identificados neles e representados como conceitos na mente.

► STANLEY, Lee Lawrence. Vitral de Guilherme de Ockham. [Entre 1235 e 1349]. Museu da Igreja de Todos os Santos, Surrey (Inglaterra). Para o filósofo inglês e frade franciscano Guilherme de Ockham (1285-1347 ou 1349), os conceitos não correspondem a realidades universais, mas apenas a modos de referir-se a coisas singulares.

BIOGRAFIA

► HUFFAM, T. W.; HARWOOD, J. F. Abelard. [ca. 1835]. 1 gravura. MUSEU

Pedro Abelardo (1079-1142) foi um filósofo francês, lógico e teólogo conhecido por formular a doutrina do conceitualismo. É um dos responsáveis pela concepção da consciência individual como fonte do sentido ético de cada ação. Em sua obra História das minhas calamidades, de 1131, Abelardo narra as dificuldades que viveu em decorrência de seu romance com Heloísa. Na obra Lógica para principiantes, de 1121, ele registra sua originalidade no tocante à compreensão do conhecimento humano por meio de conceitos.

BIOGRAFIA

George Edward Moore (1873-1958) foi um filósofo britânico que, ao lado de Bertrand Russell (1872-1970), exerceu uma significativa influência na fundação da Filosofia Analítica no início do século XX. Moore é conhecido por sua atitude crítica e questionadora da história da Filosofia, insistindo em técnicas de análise de afirmações do senso comum e dos filósofos. Sua obra mais influente é Principia ethica (Princípios éticos), de 1903.

Naturalismo

Na crítica ao utilitarismo, a felicidade volta a ser concebida como algo universal e encarada como maior do que a simples somatória dos prazeres e da ausência de dor. Dessa perspectiva, a frase a seguir, bem conhecida, mostra-se problemática, pois reduz a felicidade aos prazeres momentâneos.

Não existe felicidade, apenas momentos felizes.

A frase é de fundo utilitarista e recebeu, no vocabulário filosófico, o nome naturalismo: uma visão que, ao conceber a felicidade, permanece no nível das coisas cotidianas e das realidades físicas, imanentes ao mundo, sem nenhum caráter transcendente.

Com efeito, o naturalismo adota como critério de pensamento a exigência de aceitar como verdadeiro apenas aquilo que se observa fisicamente na natureza. Os naturalistas dão, então, um último passo e extraem uma regra geral, afirmando que

A felicidade é a soma dos prazeres físicos.

Ocorre, porém, que esse passo é dificilmente justificável, uma vez que o mundo físico não fornece regras gerais, apenas fatos particulares. Em outras palavras, só se observam acontecimentos particulares, nunca regras gerais; então, regras gerais não podem ser comprovadas fisicamente, contrariando o próprio pensamento naturalista. O naturalismo, assim, seria incompreensível para os próprios naturalistas.

Diante desse quadro, alguns filósofos procurarão falar da felicidade como algo que, embora se manifeste na imanência do mundo físico, permanece transcendente a ele. Mesmo presente na natureza e com efeitos perceptíveis, a felicidade não parece reduzir-se apenas ao que é observável fisicamente, mas supera-o.

Um exemplo desse tipo de tratamento é dado pelo filósofo inglês George Edward Moore. No seu entender, a atitude naturalista erra ao basear-se apenas em estados naturais – em particular, o prazer – para definir aquilo que causa satisfação (o bem, segundo Moore). Moore recupera, então, o modo antigo de falar do bem como aquilo que produz satisfação (sendo alvo do prazer, portanto) e que leva os humanos a valorizarem certas coisas em detrimento de outras. Ora, como os prazeres e a ausência de dor são coisas boas, entender o prazer e a ausência de dor requer entender o que é o Bem.

► Imagem de George Edward Moore, em 1903.

No livro Princípios éticos, G. E. Moore trata do tema do Bem. Leia o trecho a seguir.

O Bem não tem definição – George Edward Moore

Se por Bem entendemos a qualidade que pertence a alguma coisa (como quando dizemos que uma coisa é boa), então o Bem não pode ser definido (no sentido mais importante da palavra definição). O sentido mais importante de definição está no fato de que uma definição declara quais são as partes que invariavelmente compõem um todo. Nesse sentido, o Bem não tem definição, porque é simples e não tem partes. Ele é um desses inúmeros conteúdos de pensamento impossíveis de definir em si mesmos, pois são termos últimos com base nos quais todas as outras coisas definíveis podem ser definidas. [...]

Consideremos o amarelo, por exemplo. Podemos tentar defini-lo, descrevendo seu equivalente físico; podemos declarar quais vibrações luminosas precisam estimular o olho normal para que este as perceba. Mas basta que elas brilhem por um momento para mostrar que suas vibrações luminosas não são o que significamos quando falamos de amarelo. Elas não são o que nós percebemos. Com efeito, nós nunca teríamos descoberto a existência delas se primeiro não tivéssemos sido tocados pela explícita diferença de qualidade entre as diferentes cores. O máximo que somos autorizados a dizer sobre essas vibrações é que elas são o que corresponde, no espaço, ao amarelo que nós percebemos no ato de perceber.

O erro presente nesse simples exemplo costuma ser cometido quando se fala do Bem. Pode ser verdadeiro que todas as coisas que são boas sejam também algo mais; mas isso só é verdadeiro tanto quanto é verdadeiro que todas as coisas amarelas produzem um tipo de vibração na luz. E é um fato, na Ética, a tentativa de descobrir quais são as outras propriedades que pertencem a todas as coisas que são boas. Mas muitos filósofos pensaram que, ao indicar essas outras propriedades, definiam ao mesmo tempo o Bem; e que essas outras propriedades, de fato, simplesmente não eram “outras”, mas absoluta e inteiramente o mesmo que a Bondade.

Para analisar o texto de Moore, pode-se dividi-lo em cinco partes ou momentos. Para perceber esses momentos, releia o texto de Moore segundo a ordem de cores: em primeiro lugar, o que está em fundo lilás; em segundo, o que está em fundo azul; em terceiro, o que está em fundo laranja; em quarto, o que está em fundo verde; em quinto, o que está em fundo amarelo. Observe que a conjunção porque está em vermelho, para mostrar que tipo de relação Moore vê entre as duas frases que ele articula.

MOORE, George Edward. Principia ethica [Princípios éticos]. Cambridge: Cambridge University Press, 1959. p. 9-10. Tradução nossa.

Ao identificar cinco momentos do texto de Moore, observa-se que tais momentos não correspondem à ordem temporal (tempo histórico) em que o autor escreveu seu texto, mas à estrutura que ele adotou na articulação de suas ideias (tempo lógico). Observando as cores, você pode constatar, por exemplo, que o primeiro momento lógico corresponde ao segundo momento redacional e que a conclusão ou quinto momento lógico corresponde ao primeiro momento redacional.

1o Momento (ponto de partida): Moore explica o que é uma definição, baseando-se no dado que, quando definimos uma palavra, mostramos as partes ou as ideias que compõem essa palavra.

2o Momento: Moore faz um contraponto, mostrando que certos conteúdos de pensamento (expressos por palavras) não têm partes; são tão básicos que acabam sendo usados como partes para definir outros conteúdos (outras palavras).

3o Momento: Moore dá um exemplo para ilustrar o contraponto e lembra que não temos como definir o amarelo, pois não é possível analisá-lo (dividi-lo em partes).

4o Momento: o autor aplica o contraponto e seu exemplo à compreensão do Bem.

5o Momento: o autor tira a conclusão de que, como o bem serve para identificar as coisas boas e como ele não tem partes, não é possível defini-lo.

Aplicando a análise do bem à análise dos prazeres e da ausência de dor, pode-se concluir, em continuidade com Moore, que eles são bens particulares ou coisas boas, quer dizer, têm a qualidade recebida do bem (são valorizadas como manifestações do Bem). Por fim, chamando de felicidade o conjunto de prazeres e a ausência de dor, pode-se concluir que

A felicidade transcende os prazeres e a ausência de dor, permanecendo como a fonte do sentido dessas experiências.

Assim, o bem transcende as coisas boas e é o que dá a bondade delas sem identificar-se totalmente com elas mesmas. No limite, o bem e a felicidade são o mesmo.

Essa análise permitirá a Moore rejeitar definitivamente a postura naturalista. No seu dizer, a frase “O prazer é o Bem” só é compreensível se pensarmos que o prazer significa o gozo ou a satisfação dos sentidos. A frase “O prazer é o Bem” poderia, então, ser trocada por “O gozo dos sentidos é o Bem”.

Mas essa troca só seria justificável se a frase “O gozo dos sentidos é o Bem” fosse entendida como “O gozo dos sentidos faz parte do bem”, sem pretender que ela signifique “O bem é o gozo dos sentidos” (ou “O Bem é o conjunto dos gozos dos sentidos”), pois o Bem pode ser mais amplo do que o gozo dos sentidos.

Imagine que alguém tome a frase “As árvores brasileiras fazem parte do Brasil” e a use para concluir que “O Brasil é a soma das árvores brasileiras” ou “O Brasil é um conjunto de árvores”. É evidente o equívoco desse raciocínio, pois o Brasil é muito mais do que suas árvores. Assim também o equívoco utilitarista consiste em reduzir o Bem aos prazeres. Eles tomam uma tautologia e a utilizam como forma de extrair uma conclusão não garantida por essa tautologia.

► KLIMT, Gustav. The Three Ages of Woman [Três idades da mulher]. 1905. Óleo sobre tela, 180 cm x 180 cm. Galeria Nacional de Arte Moderna e Contemporânea, Roma (Itália). Klimt permite ver na imagem da criança, no aconchego dos braços maternos, um retrato das bases da atividade de ser feliz: a confiança na existência (como a confiança em alguém que cuida) permite exercitar a felicidade no momento presente, desfrutando dela, e preparar-se para o futuro.

CUIDADO lOGICO A tautologia

Para entender a tautologia , é preciso partir do fato de que certas frases podem ser verdadeiras ou falsas; outras não podem ser consideradas verdadeiras nem falsas; enquanto outras, ainda, são sempre verdadeiras.

Quando se diz, por exemplo, “Está chovendo!”, essa frase é verdadeira se realmente estiver chovendo; ou é falsa se não estiver chovendo.

Porém, quando se diz “Seja um bom menino!”, essa frase não é verdadeira nem falsa, pois ela não pretende retratar coisas do mundo; apenas dá um conselho.

Quando se diz “Agora está chovendo ou não está chovendo”, essa frase, dita em seu conjunto, é sempre verdadeira, visto que a sua maneira de descrever a realidade é verdadeira em todas as circunstâncias; afinal, segundo o que aprendemos com nossa experiência, só há duas possibilidades: ou está chovendo ou não está chovendo. Enunciar essas duas possibilidades em uma frase é enunciar algo sempre verdadeiro.

GALERIA
NACIONAL DE ARTE MODERNA
CONTEMPORÂNEA, ROMA,

Frases como essa são tautologias , formulações bem-feitas para exprimir algo que já se sabe. O pensamento, porém, não avança para novas conclusões; se ele avançar apenas com base em uma tautologia, comete-se a falácia da tautologia . Conta-se que um cantor, certa vez, disse à sua equipe: “Se não tivéssemos perdido uma hora e quinze minutos com o atraso, já teríamos chegado há uma hora e quinze!”. Não fosse o nervosismo do cantor, todos poderiam ter achado que ele queria provocar uma boa risada...

A análise do equívoco de converter a frase “O prazer é o Bem” em “O bem é o prazer” mostra como Moore preserva a identidade do bem sem, no entanto, definir o Bem. A experiência humana constata coisas que são boas, ou seja, qualificadas pelo Bem, mesmo que isso não signifique “ver” e definir o Bem diretamente. Trocando a palavra bem por felicidade ou por bem supremo, pode-se dizer que, em continuidade com o pensamento de Moore, a felicidade é o que qualifica os prazeres e a ausência de dor, dando-lhes seu sentido. No entanto, ela é mais ampla do que a soma dos prazeres e da ausência de dor; é o absoluto que atrai os seres humanos, movendo-os a buscar prazer e a evitar a dor em situações particulares ou relativas. Bem e felicidade seriam as duas faces da mesma moeda: constituem o polo que magnetiza as ações humanas.

CONCEITOS ESTRATEGICOS

ABSOLUTO E RELATIVO

Absoluto – algo que pode ser pensado por si só, sem precisar de nenhuma referência a outra coisa.

Exemplos:

A justiça é o absoluto pelo qual se orientam nossas ações justas.

Deus, se existe, deve ser absoluto, pois todo o restante é relativo.

Relativo – algo que só pode ser pensado em referência a outra coisa. Por extensão, relativo é também tudo o que depende do ponto de vista de quem o analisa. Exemplos:

O grau de bondade das coisas é relativo ao Bem.

As opiniões são relativas a quem as pronuncia.

EXERCICIO

1. Aponte em que aspectos a filosofia utilitarista da felicidade se aproxima e se distancia dos pensamentos cirenaico e epicurista sobre a felicidade.

2. Descreva o utilitarismo e o naturalismo.

3. Explique as dificuldades que alguns filósofos encontram na definição de felicidade tanto no utilitarismo como no naturalismo.

4. Explique o que significa afirmar que Moore elabora uma filosofia da felicidade transcendente.

Consultar orientações no Manual do Professor

Não escreva no livro. B

A felicidade como atividade e plenitude

O modo geral de falar da felicidade revela a tendência de com preendê-la como um estado psicológico (“sensação de bem-estar”) produzido pela posse de satisfações variadas. Muitos chegam a pensar, aliás, que felicidade e alegria são equivalentes.

No entanto, a possibilidade de conceber um polo que atrai os seres humanos, movendo-os em uma busca ativa, abre caminho para enten der a felicidade como atividade, não como um estado. Trata-se de uma forma de apontar para o caráter ativo na construção de uma vida feliz. Assim, mais do que uma sensação de bem-estar, a felicidade consis tiria em um modo de ser, a atividade de ser feliz

Os epicuristas, por exemplo, chamaram a atenção para a importância da prudência e concluíram que a felicidade é a prática dessa virtude no uso dos prazeres. Eles retomavam, na verdade, o pensamento de Aristóteles, que foi um dos primeiros a entender a felicidade como atividade.

A felicidade é uma atividade – Aristóteles

A felicidade é certa atividade da alma segundo perfeita virtude. [...]

Deve-se evidentemente investigar a virtude humana, pois procurávamos o bem humano e a felicidade humana. Por virtude humana, entendemos não a [virtude] do corpo, mas a da alma, e, por felicidade, entendemos atividade da alma. [...] Uma parte [da alma humana] é não racional; a outra, dotada de razão. [...] Da parte não racional, uma se mostra comum e vegetativa – refiro-me à causa do alimentar e do crescer. [...] Uma outra natureza da alma também se mostra ser não racional, participando, porém, em certa medida, da razão. Com efeito, elogiamos, no homem que se controla e no acrático, a razão e a parte racional da alma, pois ela exorta corretamente às melhores ações. [...]

A parte não racional é dupla: a vegetativa em nada participa da razão, ao passo que a apetitiva e, em geral, desiderativa participa de certo modo da razão, na medida em que é acatadora e obediente, do modo como dizemos prestar atenção à razão do pai e dos amigos, mas não do modo como dizemos ter razão na matemática. [...] Também a virtude é dividida segundo essa diferença, pois dizemos que umas [virtudes] são intelectuais e outras, morais. [...] Sendo dupla a virtude – uma intelectual, a outra moral –, a virtude intelectual tem gênese e aumento em grande parte pelo ensino (por isso requer experiência e tempo), ao passo que a virtude moral resulta do hábito. [...]

► Estátua de Aristóteles na antiga cidade de Estagira, atual Calcídica (Grécia). Fotografia de 2009.

BIOGRAFIA

Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) foi um filósofo grego nascido em Estagira, antiga cidade da Macedônia, hoje situada na Grécia. Foi discípulo de Platão e formador de Alexandre da Macedônia. Em 335 a.C., fundou sua própria escola em Atenas, o Liceu, adotando posições diferentes das de seu mestre Platão, principalmente no tocante à teoria das ideias. Entre suas obras mais conhecidas estão Ética nicomaqueia, Física, De anima ou Tratado sobre a alma e Metafísica.

Acrático: quem não tem controle de si; quem, por falta de treinamento ético, não consegue resistir a um desejo.

Apetitivo: relativo ao apetite, entendido como desejo.

Desiderativo: relativo ao desejo.

Gênese: nascimento; origem.

Engendrar-se: gerar-se; produzir-se.

Citarista: tocador de cítara, instrumento musical de cordas.

Temperante: quem pondera os prós e os contras de suas ações; equilibrado; moderado.

Irascível: quem se deixa dominar pela ira.

Nicomaqueia: o adjetivo presente no título de um dos livros de Aristóteles sobre Ética refere-se ao nome próprio Nicômaco, que pode ter sido o nome do filho de Aristóteles, a quem o filósofo teria dedicado seu livro, ou um aluno que teria tomado anotações das aulas de Aristóteles sobre Ética, com base nas quais teria surgido o livro.

Fica claro a partir disso que nenhuma virtude moral se engendra em nós por natureza, pois nada do que existe por natureza habitua-se a ser diverso [do modo como é]. Por exemplo, a pedra, que por natureza se move para baixo, não se habituaria a mover-se para cima, nem mesmo se alguém tentasse habituá-la lançando-a milhares de vezes para cima; tampouco o fogo se habituaria a mover-se para baixo, nem qualquer outro ser que é naturalmente de um modo se habituaria a ser diferentemente. Por conseguinte, as virtudes não se engendram nem naturalmente nem contra a natureza, mas, porque somos naturalmente aptos a recebê-las, aperfeiçoamo-nos pelo hábito. [...] Os homens tornam-se construtores construindo casas e tornam-se citaristas tocando cítara. Assim também, praticando atos justos, tornamo-nos justos; praticando atos temperantes, [tornamo-nos] temperantes; praticando atos corajosos, corajosos. [...] Ademais, é por meio das mesmas coisas que se engendra e se corrompe toda virtude, assim como a arte: com efeito, do praticar a cítara surgem tanto os bons como os maus citaristas. Os construtores e todos os demais artesãos analogamente: por construir bem, tornar-se-ão bons construtores; por construir mal, maus construtores. Se não fosse assim, ninguém precisaria do mestre, mas todos nasceriam bons ou maus. Assim também se passa com as virtudes: agindo nas transações entre os homens, tornam-se uns justos; outros, injustos; agindo nas situações de perigo e habituando-se a temer ou a ter confiança, tornam-se uns corajosos; outros, covardes. O mesmo ocorre no caso dos apetites, assim como no das iras, pois se tornam uns temperantes e tolerantes; outros, intemperantes e irascíveis, uns por persistirem a agir de um jeito nas mesmas situações, outros por persistirem de outro jeito.

ARISTÓTELES. Ethica nicomachea I 13 – III 8: tratado da virtude moral. Tradução: Marco Zingano. São Paulo: Odysseus, 2008. p. 38-42.

► POLLAIUOLO, Piero del. Temperança 1470. Têmpera sobre painel, 168 cm x 90,5 cm. Galleria degli Uffizi, Florença (Itália).

Observe que Aristóteles, nessa parte do livro Ética nicomaqueia , define a felicidade como atividade segundo perfeita virtude . A compreensão da felicidade requer que se conheça, então, o significado de virtude e de virtude perfeita. Para explicar a virtude, Aristóteles elabora uma concepção do ser humano como alguém dotado de um corpo (sua constituição física) e uma alma (a dimensão da vitalidade que anima o corpo, da capacidade de perceber as

GALERIA UFFIZI/MUSEUS DE FLORENÇA, FLORENÇA, ITALIA

coisas por meio dos cinco sentidos, da capacidade racional ou do pensamento – função intelectual – e da capacidade de escolher a melhor ação a realizar – função moral).

A virtude humana consistirá no bom exercício das funções tipicamente humanas. E, sendo dupla (intelectual e moral), sua realização plena depende do desenvolvimento intelectual e moral. Por conseguinte, a felicidade, como atividade da alma segundo a virtude, consiste na boa realização da alma em sentido intelectual e moral.

Em outros trechos de sua obra, Aristóteles lembra que a boa ação é aquela que imita o exemplo da pessoa prudente (considerada boa por sua comunidade). A felicidade, assim, relaciona-se diretamente à prática da prudência. Ela é, portanto, uma atividade, e não algo que simplesmente se “possui” ou se “sente”. Ser feliz, segundo Aristóteles, significa exercitar a felicidade; e, dessa perspectiva, é mesmo possível ser feliz quando não se tem alegria ou outro estado imediato de bem-estar.

Trata-se de desenvolver as capacidades humanas do pensamento e da boa escolha, principalmente pela prática da prudência.

Segundo Aristóteles, “uma andorinha não faz verão”, isto é, um único ato virtuoso não torna a pessoa feliz. É necessário repetir ações virtuosas e exercitar a felicidade. Na fotografia, um pequeno grupo de andorinhas voa acima da água. Nova York (Estados Unidos), 2018.

• História de uma menina com uma felicidade não legítima, quase uma maldição.

► LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina: contos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Reprodução da capa.

VICKI JAURON, BABYLON AND BEYOND

Aristóteles enfatiza, assim, a qualidade que podemos imprimir em nossas vidas pelo modo como cuidamos de nós mesmos, em vista da possibilidade de sermos sempre melhores em todos os aspectos (físicos, afetivos, intelectuais e morais). Em nossos dias, saber olhar para nós mesmos e refletir sobre a concepção de felicidade com que operamos é um grande desafio. O excesso de trabalho e outras atividades, a corrida pela riqueza, a sede de poder, as relações humanas empobrecidas, as amizades superficiais, a pressa, o consumismo e muitos outros fatores enchem-nos com preocupações que nos fazem desviar o olhar de nós mesmos e considerar a felicidade como o sucesso em meio a essas mesmas preocupações. De certo modo, vivemos em um naturalismo ético inquestionável; e a própria felicidade transformou-se em uma obsessão, embora seu conteúdo seja tão pouco refletido. Nós, que cruzamos as portas da Filosofia, temos, porém, condições de perguntar o que queremos dizer quando falamos de felicidade.

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

Não escreva no livro.

Leia a letra da canção Ditadura da felicidade , da banda paraense Aeroplano:

Ditadura da Felicidade

Letra: Eric Alvarenga

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Essa é a ditadura da felicidade

Todo mundo sorrindo mesmo sem vontade Assim que se faz

Guarde a sua tristeza

Não há mais lugar pra solidão

E pra cada dor haverá proibição

O nosso sofrimento não terá perdão

Assim que se faz

Guarde a sua tristeza

Não há mais lugar pra solidão

Transcrito de: AEROPLANO: ditadura da felicidade. Belém: Estúdio Edgar Proença, 2015. 1 vídeo (3 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XaRqncBtvXw. Acesso em: 15 out. 2024.

• Em dupla . Reflita sobre o modo como, em nossos dias, ao falar de felicidade, muitas pessoas não querem aceitar que o sofrimento faz parte da existência. Você pode ouvir gratuitamente a canção em: https://www.youtube.com/watch?v=XaRqncBtvXw (acesso em: 18 set. 2024). Em sua reflexão, tome como critério a diferença entre a felicidade como soma dos prazeres e ausência de dor e a felicidade como algo que transcende coisas boas momentâneas e como atividade. Registre sua reflexão em uma redação livre.

InTEGranDO COm...

SOCIOLOGIA

A solidão em tempos de

hiperconectividade

É natural que as pessoas procurem companhia, que pode ser amistosa, amorosa ou de menor intimidade, mas o suficiente para compartilhar elementos de suas vidas. Alguns diriam que o ser humano não é feito para a solidão; outros dirão que somos animais gregários; e mesmo as pessoas mais solitárias alegram-se com uma boa conversa, uma gentileza na rua, um gesto educado no supermercado, e assim por diante. Ocorre que, em plena era da urbanização exacerbada e da desertificação do campo, aumenta a experiência da solidão, da sensação de vazio, de desespero.

A imagem a seguir foi retirada do filme Her (Ela), que conta a história de Theodore (Joaquin Phoenix), um escritor solitário que acaba de comprar um novo sistema operacional para seu computador, chamado Samantha. Criado por meio das preferências pessoais do escritor, ele se apaixona por Samantha e, juntos, dão início a uma relação amorosa.

O filme permite refletir, entre outros temas, sobre as relações contemporâneas com a tecnologia e a solidão em tempos de hiperconectividade.

• Com seu(sua) professor(a) de Filosofia, convidem o(a) professor(a) de Sociologia a participar de uma aula em sua classe (ou juntando a classe dele(a) com a sua!), a fim de compartilhar uma visão sociológica sobre a constatação aqui feita. Como ponto de partida, vocês podem tomar a temática abordada pelo filme Her.

► HER. Direção: Spike Jonze. Estados Unidos: Warner Bros Pictures, 2013. Streaming (126 min).

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1. Indique o aspecto em que Epicuro concorda com os cireneus e o ponto em que ele discorda deles.

2. Por que Epicuro tem necessidade de defender a tranquilidade ou a paz da alma?

3. O que significa afirmar que, segundo Epicuro, a prudência é condição necessária e suficiente para a felicidade?

4. (Unicamp-SP)

Excerto 1

Quase todos estão de acordo que a felicidade é o maior de todos os bens que se pode alcançar pela ação; diferem, porém, quanto ao que seja a felicidade. A julgar pela vida que os homens levam em geral, a maioria deles, e os homens de tipo mais vulgar, parecem identificar o bem ou a felicidade com o prazer, e por isso amam a vida dos gozos.

Excerto 2

(Adaptado de: Aristóteles. Ética a Nicomaco, Livro I, seções 4 e 5.)

O conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda a escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que essa é a finalidade da vida feliz. O prazer é o início e o fim de uma vida feliz. Embora o prazer seja nosso primeiro bem inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer.

(Adaptado de: Epicuro. Carta sobre a felicidade. São Paulo: Editora UNESP, p. 35-37, 2002.)

Considerando os excertos dos filósofos gregos Aristóteles e Epicuro, ambos do século IV a.C., é possível afirmar que:

a) Aristóteles e Epicuro sustentam a ideia de que há relação entre a felicidade e o prazer, pois ambos entendem que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz.

b) diferentemente de Aristóteles, Epicuro defende que a felicidade consiste na realização irrestrita dos nossos desejos, uma vez que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz.

c) t anto Aristóteles quanto Epicuro – ainda que com concepções éticas distintas – entendem que não há uma identificação imediata entre felicidade e prazer.

4. Alternativa C

d) A ristóteles e Epicuro concordam entre si e discordam daqueles que pensam que a felicidade seja o maior dos bens que se possa alcançar pela ação.

5. O que motiva algumas pessoas a associar a felicidade apenas a momentos passageiros de alegria e satisfação?

6. O que significa, segundo Aristóteles, dizer que a felicidade é uma atividade?

DISSERTAÇÃO

Dissertação de problematização

Uma dissertação de problematização procura tornar explícito(s) o(s) problema(s) contido(s) em um tema ou em uma questão inicial. O tema ou a questão que podem ser problematizados parecem, em geral, simples, mas contêm elementos que merecem ser refletidos com mais atenção.

Para problematizar, um procedimento bastante eficaz é o método dialético, construído em três passos.

1O . PASSO Analisar uma tese

Refletir sobre o que é defendido por uma afirmação ou por uma negação.

2O . PASSO Encontrar uma antítese

Procurar uma afirmação ou uma negação que sustente ideia(s) diferente(s) daquela defendida na tese. Aqui deve haver um cuidado especial: a antítese não é uma tese contraditória em relação à primeira tese. Se a tese e a antítese forem contraditórias, elas se excluirão.

3O . PASSO Elaborar uma síntese

Tentar compor uma conclusão que una elementos da tese com elementos da antítese, mostrando que elas não se excluem, mas podem ser combinadas.

Em sua redação, você pode escrever três parágrafos, correspondentes aos três passos do método dialético (tese, antítese, síntese). Esses três parágrafos podem corresponder ao que, em geral, se chama de introdução, desenvolvimento e conclusão.

Introdução: exploração da tese. Você pode iniciar esse parágrafo com expressões como: É comum observar a opinião segundo a qual..., Não é difícil encontrar quem pense que..., Muitos defendem que...

Desenvolvimento: apresentação e exploração de uma antítese, mostrando como a tese pode ser problematizada. Você pode iniciar esse parágrafo por uma das seguintes conjunções: Porém, Mas, Contudo, Todavia, Entretanto, No entanto.

Conclusão: síntese que vale como uma recuperação da tese, combinando-a com elementos da antítese. Você pode iniciar esse parágrafo com uma das seguintes conjunções e expressões: Assim, Nesse sentido, Portanto, Tendo dito isso..., Com base nisso...

O tema da relação entre a felicidade e os prazeres é bastante adequado para exercitar a problematização por meio do método dialético, pois a felicidade como algo constante não exclui necessariamente os prazeres momentâneos. Em sua dissertação, porém, você não deve repetir as ideias dos filósofos estudados. Para isso, há outros tipos de redação. Seu texto será melhor se você se concentrar nos conceitos e tratá-los de forma independente, mostrando como combinam entre si. Para auxiliar você nesse exercício dissertativo, propomos um tema em forma de questão:

É preciso satisfazer todos os desejos para ser feliz?

EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E EXPERIÊNCIA ARTÍSTICA 11

CHAGALL, Marc. Snow, Winter in Vitebsk [Neve, Inverno em Vitebsk]. 1911. Aquarela opaca sobre tela, 47.9 cm x 60.5 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova York (Estados Unidos).

As reações das pessoas diante de obras de arte, sobretudo pinturas, costumam ser muito diferentes. Ao contemplar uma obra de Marc Chagall (1887-1985), por exemplo, algumas pessoas podem se encantar com a liberdade de expressão e com a explosão de cores e formas de sua pintura, considerando-a um trabalho de alto valor artístico, enquanto outras podem julgar que parece mais um desenho de criança e que não se trata verdadeiramente de uma obra de arte.

Essas diferentes percepções permitem levantar algumas questões de grande interesse filosófico. Afinal, o que é a arte? Como diferenciar um trabalho artístico de um trabalho não artístico? Por que algumas obras de arte, sobretudo contemporâneas, causam estranheza, ao passo que outras, geralmente as que representam mais fielmente a realidade, são aceitas com maior naturalidade?

A atribuição de valor artístico

Durante muito tempo pensou-se que, para ser considerada artística, uma obra deveria expressar beleza e graça. A beleza de uma obra consistiria na sua capacidade de levar o observador a uma experiência de graça, isto é, de prazer pelo simples fato de estar diante dela.

Esse tipo de julgamento ainda pode acontecer, tanto em relação às artes plásticas quanto em relação a outras expressões artísticas, como a dança, por exemplo. Dificilmente alguém dirá que um balé clássico não tem beleza. No entanto, isso nem sempre ocorre no caso de danças populares. Por exemplo, o breakdance, estilo de dança urbana, parte da cultura do hip-hop, ainda é visto por muitas pessoas como uma dança sem sofisticação, menos bela e improvisada. Dessa perspectiva, considera-se que os dançarinos não têm o preparo técnico de quem dança balé clássico. No entanto, quem conhece bem o breakdance sabe que, mesmo incluindo improvisações, é um estilo que requer técnicas bastante sofisticadas.

Seria, então, o grau de sofisticação aquilo que determina o caráter artístico de uma prática? É verdade que as obras de arte costumam ser vistas como o resultado de um investimento de energia e de trabalho, bem como de domínio dos meios necessários para sua produção (sofisticação). Porém, nem toda obra produzida com sofisticação e investimento de energia e trabalho é necessariamente artística.

Hip-hop: movimento cultural criado por jovens estadunidenses na década de 1970, que se manifesta por meio de diferentes formas artísticas: música, dança, grafite etc.

► O lago dos cisnes (1876), balé de Piotr Tchaikovsky (18401893). Apresentação do Balé Estadual da Geórgia em London Coliseum, Londres (Reino Unido), 2024.

► Fotografia de um dançarino de breakdance. Jogos Olímpicos de Paris, Paris (França), 2024.

Espectadores: quem vê uma obra ou um acontecimento; quem assiste a uma apresentação.

Taxidermizado: submetido à taxidermia, técnica de preservação de corpos de animais mortos.

• Em dupla. Reflita se você sentiu alguma emoção ao contemplar as obras reproduzidas até aqui. Você considera que elas são obras de arte? Por quê?

Consultar orientações no Manual do Professor.

► GOMBRICH, Ernst Hans. A história da arte. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: LTC, 2000. Reprodução da capa.

• Introdução à História da Arte, em linguagem didática.

Assim, o que pensar de obras cujo objetivo parece ser o de surpreender os espectadores , mais do que exprimir beleza e graça? Elas continuam a ser obras de arte? Tomemos como exemplo a obra Untitled, 2007 (“Sem título, 2007”, em tradução livre), do italiano Maurizio Cattelan (1960-). Essa obra surpreendeu duplamente ao ser apresentada, pela primeira vez, no Museu de Arte Moderna de Frankfurt, na Alemanha. Além de causar impacto ao expor um cavalo taxidermizado , de uma perspectiva totalmente inesperada (com a cabeça desaparecendo na parede e o corpo dependurado para fora), a cidade de Frankfurt está localizada em uma região onde muitos habitantes ainda têm o costume de caçar animais e pendurar a cabeça deles como troféu em suas casas.

► CATTELAN, Maurizio. Untitled, 2007 [Sem título,

O choque provocado por essa obra permite questionar se o seu objetivo estaria além da beleza e da graça, ou, ainda, se sua beleza e graça consistem justamente em chocar os espectadores. De fato, Untitled, 2007 provoca uma reação em quem a contempla e leva para além do prazer ou desprazer na presença da obra. Os espectadores são convidados a participar do trabalho artístico, perguntando-se sobre si mesmos, sobre sua maneira de ver o mundo, sobre suas práticas sociais e sobre seu modo de conceber a arte, a beleza e a graça. De modo geral, podemos dizer que, no processo de criação de suas obras, os artistas produzem e vivenciam uma experiência artística. A obra, por sua vez, desperta uma reação em quem a contempla, convidando o observador a participar do trabalho artístico, questionando sua própria maneira de perceber o mundo e seu modo de conceber a arte e a beleza. Trata-se de uma experiência estética. Ambas, portanto, estão estreitamente relacionadas.

DiCA
2007]. Instalação, 300 cm x 170 cm x 80 cm. Coleção François Pinault. Palazzo Grassi – Punta della Dogana. Veneza (Itália), 2009.
DiAlOGANDO

A arte é uma possibilidade para todos

O filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) entendeu a arte como uma das maneiras de produzir sentido para a existência. Segundo ele, os seres humanos sentem prazer em conhecer e em reproduzir aquilo que conhecem. De modo especial, esse prazer é vivido por meio da arte, pois ela consiste, para Aristóteles, em agir assim como a Natureza age ou seja, reproduzir o dinamismo da Natureza. A tendência a imitar a Natureza, portanto, levaria à produção de obras artísticas, aumentando a quantidade de coisas que dão prazer.

No século XX, o crítico de cinema André Bazin (1918-1958), refletindo sobre o prazer de imitar ou de reproduzir, afirmava que a atividade dos artistas nasce de uma necessidade de “parar o tempo”, de escapar da correnteza da vida e de gravar para sempre a imagem, o som ou o toque vivido em algum dos momentos passageiros. No seu entender, os artistas – escultores, pintores, dramaturgos, cineastas, músicos, dançarinos e tantos outros – embalsamam a vida, assim como os antigos egípcios embalsamavam os corpos dos mortos para evitar que desaparecessem.

Para Bazin, a atividade de “parar o tempo” é algo que vai além da imitação da vida ou da Natureza. Seria uma ilusão acreditar que alguém, ao reproduzir algo conhecido, faz uma réplica idêntica, pois, ao reproduzir, sempre se insere um toque particular, a começar do ponto de vista de quem reproduz. A beleza que os artistas imprimem em seus trabalhos está, segundo Bazin, em experimentar e exprimir algo como a eternidade em um instante, a suspensão do tempo que tudo devora.

O ponto comum entre as análises de Aristóteles e de Bazin está em entender que a experiência estética é dada a todos, pois ela consiste na busca do prazer com a beleza expressa pela arte.

A experiência de tentar escapar do tempo seria uma linguagem que todos os seres humanos podem entender, e a arte consistiria em uma produção de liberdade na construção de aspectos novos para a própria existência.

Dramaturgo: autor de peças de teatro.

Embalsamar: introduzir substâncias em cadáveres a fim de impedir a decomposição; mumificar.

► Visitante aprecia exposição biográfica imersiva da pintora mexicana Frida Kahlo (1907-1954). Bogotá (Colômbia), 2023.

Cósmico: relativo ao Universo, ao cosmo.

Embotar: enfraquecer; debilitar; atrofiar.

Mediocremente: de modo medíocre, ou seja, que se satisfaz com a média de alguma coisa, sem buscar níveis melhores.

Excentricidade: extravagância; característica de quem foge do que é considerado normal.

Considerando a arte como produção de liberdade, diferentes pensadores, nos séculos XVIII e XIX, passaram a se referir aos artistas como gênios, quer dizer, pessoas dotadas de extraordinário talento para produzir novos modelos de existência, aumentando a quantidade daqueles já dados pela Natureza. Esse pensamento contém o seguinte risco: pode levar a crer que apenas pessoas “especiais” podem ter prazer com a arte. É verdade que, para produzir obras artísticas, requer-se talento e esforço, mas isso não significa que apenas pessoas especiais podem ter talento; em maior ou menor grau, os talentos podem ser desenvolvidos.

Immanuel Kant (1724-1804), considerando a beleza como aquilo que agrada a todos, defendia que a arte também é para todos. Por sua vez, Friedrich Nietzsche (1844-1900) também insistiu nesse ponto.

O ponto de partida da visão nietzschiana vinha de sua concepção do ser humano como um ser habitado por forças cósmicas que o levam a muitas direções. Se a razão é um dos pontos em que essas forças se manifestam, a paixão ou a emoção são outros. O ser humano encarna esses pontos de modo unitário, sem que razão e paixão sejam divididas nele e sem que a razão seja sua característica específica.

MONDOT, Adrien; BARDAINNE, Claire.

Cinemática . Performance combinando dança, técnicas de circo e recursos digitais. Enghien-lesBains, França, 2010. Uma amostra da performance pode ser vista em: http://www. am-cb.net/projets/ cinematique. Acesso em: 22 set. 2024.

A compreensão da arte como algo reservado a poucos se deve, segundo Nietzsche, à ideia de que a razão é separada da paixão. Habituados a se relacionar com o mundo por meio dessa ideia, os humanos embotaram suas outras possibilidades, valorizando excessivamente a razão e desenvolvendo um amor-próprio exagerado (por causa da “consciência de si”) que levou a acreditar no desenvolvimento racional como forma de realização especificamente humana. Os seres humanos, então, satisfazendo-se mediocremente com a imagem que fazem de si mesmos, acabam por ignorar a importância da paixão. Como os artistas são associados com a paixão, passam a ser vistos como seres de outro mundo, operadores de milagres, gente fora do normal e impossível de ser acompanhada em sua excentricidade . Curiosamente, os não artistas desenvolvem também uma admiração pelos artistas, tomando-os por gênios; mas essa admiração equivale, no limite, a uma forma de manter os artistas à distância, para que sua anormalidade não incomode quem se considera racional.

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

A arte é para poucos?

Não há milagre na arte

[…] Porque pensamos bem de nós [mesmos], mas no entanto não esperamos de nós que possamos alguma vez fazer o esboço de uma pintura de Rafael ou uma cena tal como a de um drama de Shakespeare, persuadimo-nos de que a faculdade para isso é maravilhosa acima de todas as medidas, um raríssimo acaso, ou, se ainda temos sentimento religioso, uma graça do alto. Assim, nossa vaidade, nosso amor-próprio, propiciam o culto do gênio: pois somente quando este é pensado bem longe de nós, como um miraculum [milagre], ele não fere [...]. Mas, sem levar em conta essas insinuações de nossa vaidade, a atividade do gênio não aparece de modo algum como algo fundamentalmente diferente da atividade do inventor mecânico, do erudito em astronomia ou história, do mestre de tática. Todas essas atividades se explicam quando se têm em mente humanos cujo pensar é ativo em uma direção, que utilizam tudo como material, que sempre consideram sua vida interior e a de outros com empenho, que por toda parte veem modelos, estímulos, que nunca se cansam de combinar seus meios. O gênio também nada faz a não ser aprender, primeiro, a pôr pedras, em seguida a edificar, procurar sempre pôr material e sempre modelar nele. Toda atividade do ser humano é complicada até o miraculoso, não somente a do gênio: mas nenhuma é um ‘milagre’. […] Depois: tudo que está pronto, perfeito, é admirado, tudo o que vem a ser é subestimado. Ora, ninguém pode ver, na obra do artista, como ela veio a ser; essa é sua vantagem, pois por toda parte onde se pode ver o vir-a-ser há um certo arrefecimento. A Arte consumada da exposição repele todo pensamento do vir-a-ser; tiraniza como perfeição presente. Por isso os artistas da exposição são considerados geniais por excelência, mas não os homens de ciência. Em verdade, aquela estima e esta subestimação são apenas uma infantilidade da razão.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. In: LEBRUN, Gérard (org.). Friedrich Nietzsche: obras incompletas. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 83-84.

• Muito influenciado pelos autores do Romantismo, que insistiam precisamente no papel das paixões na construção da vida humana, Nietzsche defendia que não há milagres na arte. A partir do trecho lido, explique esse pensamento.

Consultar orientações no Manual do Professor

► MUNCH, Edvard. Friedrich Nietzsche. 1906. Óleo e têmpera sobre tela, 215 cm x 146,5 cm. Museu Munch, Oslo (Noruega).

Faculdade: capacidade.

Erudito: alguém com amplo conhecimento de um assunto; especialista.

Miraculoso: que contém um milagre ou que é parecido com um milagre.

Arrefecimento: enfraquecimento; diminuição.

Repelir: afastar.

Tiranizar: comportar- se como um tirano, ou seja, como alguém que tira a liberdade alheia

MUSEU MUNCH, OSLO, NORUEGA

Fachada do Hotel Unique, projetado pelo arquiteto Ruy Ohtake. São Paulo (SP), 2023.

De um ponto de vista filosófico geral, o pensamento nietzschiano convida a refletir sobre a atividade de produção de sentido e chama a atenção para o fato de que o ser humano não é apenas um ser racional, mas também um ser de paixão. No exercício da razão, já está envolvida a paixão, assim como também no modo como se vivem as paixões está envolvida a razão. Da perspectiva do ser unitário, é possível dizer que todos os indivíduos são abertos à arte, essa ocasião privilegiada de experimentar o que significa realmente ser humano pelo acionamento mais completo de todas as suas possibilidades. A reflexão sobre a arte e a prática artística revelam, assim, uma grande preocupação antropológica: busca-se entender o que significa ser humano.

A beleza

Partindo da concepção geral que associa a arte à beleza, faz-se necessário esclarecer o que é a beleza, a fim de entender melhor o que é a própria arte. Trata-se de uma tarefa de grande importância filosófica, sobretudo porque algumas obras humanas marcadas pela beleza também servem a fins utilitários. Algumas construções projetadas para atender a finalidades específicas, como abrigar um hotel ou uma igreja, por exemplo, não deixam de ser notadas por sua beleza. O mesmo ocorre no caso de objetos como caixas de bombons, estojos de relógios etc. Sendo produzidas em vista de uma aplicação ou utilidade, essas obras perdem quanto à graça que caracteriza o prazer de simplesmente estar na presença de um trabalho artístico. Curiosamente, porém, isso não as impede de manifestar beleza.

Hoje, aliás, surge a problemática da transformação da beleza como forma de obter lucro: estamos ainda diante da beleza quando a finalidade é assumidamente o lucro? Retorna, portanto, de modo inescapável, a pergunta sobre o que diferencia uma obra artística de uma obra não artística. Mais do que isso, torna-se indispensável perguntar o que é a beleza e o tipo de relação existente entre ela e a arte. A construção da noção de beleza é tão antiga quanto a própria filosofia. A seguir, conheceremos alguns elementos centrais dessa construção, em diferentes contextos históricos.

A beleza na filosofia antiga

Platão (427 a.C.-347 a.C.) foi um dos primeiros pensadores a transformar a beleza em tema filosófico. Sua estratégia consistiu em desconstruir, a princípio, as interpretações da beleza que circulavam em sua época. Diante da opinião que associava a beleza à riqueza, às coisas convenientes, à utilidade e à vantagem, Platão lembrava que algo pode ser útil e vantajoso sem ser belo. Assim, não é a beleza que dá a utilidade de alguma coisa. O filósofo também recusava a ideia de que a beleza consiste no “conjunto das coisas belas”. Ele argumentava que coisas belas surgem e desaparecem, transformam-se, perecem... mas, apesar de elas desaparecerem, surgem outras também belas. Os seres humanos continuam a ver beleza no mundo e a falar dela, independentemente do conjunto de coisas belas com que se deparam. Além disso, nenhum ser humano seria capaz de conhecer o conjunto de todas as coisas belas para só depois poder falar de beleza.

Segundo Platão, as coisas belas convidam o olhar humano a ir além delas mesmas . As coisas belas revelam um modo de ser, o modo de ser com beleza. Se as coisas podem ter um modo de ser que não desaparece com elas, então esse modo de ser deve ter uma fonte diferente das coisas mesmas. À fonte do modo de as coisas serem belas Platão chamava de Beleza (que, no seu caso, podemos traduzir com B maiúsculo). Ela é uma Ideia, Forma ou Essência que age nas coisas, mas transcende-as. A Beleza se apresenta como algo que não pode ser definido com precisão, pois supera toda compreensão baseada apenas nas coisas belas, mas pode ser apontada quando se considera belo a algo e se põe a pergunta pela fonte do sentido de tudo que se considera belo.

Em suas obras Filebo, escrita entre 360 a.C.-347 a.C., e As leis , publicada em 437 a.C., Platão enumerou algumas características que tornam belas as coisas materiais: os pontos, as linhas, a proporção nas medidas, a simetria, as cores, o ritmo etc. Influenciado pelo pensamento pitagórico, Platão insistia que a harmonia entre o todo e as partes é o que confere beleza às coisas. Trata-se de uma concepção matemática de harmonia: a repetição de unidades pode ser feita de modo a adaptar e transformar essas unidades em uma unidade de conjunto.

Perecer: acabar-se, extinguir-se. Simetria: correspondência de elementos; semelhança.

► Estátua de Pitágoras em Samos (Grécia), 2013. O monumento representa um triângulo retângulo, fazendo alusão à matemática pitagórica.

PRADIER, James. Sapho 1852. Escultura, mármore, 118 cm × 67 cm × 120 cm. Musée d’Orsay, Paris (França). A obra representa a poeta da Antiguidade grega, Safo (data desconhecida-570 a.C.), e apresenta as características da concepção grega de beleza: harmonia do conjunto e movimento das formas.

► CÓPIA fiel. Direção: Abbas Kiarostami.

Itália: Imovision, 2010. Blu-ray (106 min). Pôster do filme.

• Um filósofo inglês e a dona de uma galeria de arte discutem a questão da cópia na arte.

Dessa perspectiva, mesmo uma ação poderia ser considerada bela, pois, se os seus diferentes momentos forem praticados em harmonia, então se produz uma ação harmônica no conjunto. Todas as coisas do mundo natural também são belas, pois manifestam harmonia entre as partes do cosmo.

Sua maneira de conceber a beleza levou Platão a nutrir certa suspeita em relação aos artistas. Concentrando-se principalmente na beleza visível, o risco dos artistas era não chegar à beleza invisível. No seu entender, se eles não integrassem sua atividade em um processo mais amplo, que levasse o olhar além das próprias obras e além do belo aspecto das coisas, eles aprisionariam os seres humanos em uma visão limitada do mundo, fazendo-os crer que o que existe é apenas aquilo que se capta pelos cinco sentidos, ou seja, coisas materiais ou sensíveis.

Isso não quer dizer que Platão fosse contrário à arte ou ao prazer obtido com as coisas belas. Em sua obra O banquete, escrita por volta de 380 a.C., ele é bastante explícito ao considerar que a percepção da beleza sensível (nas coisas belas) é o início do caminho que faz “subir” pela inteligência até a Beleza inteligível e, por fim, atingir também pela inteligência a Ideia do Bem, fonte inesgotável de tudo o que há de belo, justo e bom no mundo. Inadequado, no seu dizer, era associar a Beleza à arte, pois esta, quando praticada sem os olhos fixos no Bem, pode ser aprisionante. Dito de outra maneira, a arte, para Platão, estava intimamente ligada à Ética e à Política.

A visão platônica exerceu grande influência sobre o modo como os filósofos trataram a relação entre beleza e arte. Cerca de 500 anos depois, o filósofo Plotino (205 d.C.-270 d.C.) resgatou o pensamento de Platão, apresentando uma novidade. Elaborando elementos herdados também de Aristóteles, Plotino, embora continue a entender a beleza como fonte da harmonia dos seres, considera que a arte ou a verdadeira imitação daquilo que se conhece no mundo sensível representa uma ocasião para se chegar ao conhecimento das ideias, formas ou essências.

Para Plotino, a arte constitui um caminho de acesso à Beleza. Mais do que uma simples produção material, a arte se mostra como atividade espiritual que aciona a sensibilidade, o pensamento e o desejo, permitindo ingressar no caminho que conduz ao Bem, sustento de tudo o que existe e fonte de toda unidade e harmonia no cosmo. Por ser fonte de unidade, o Bem ou o Bem Supremo de que falavam Platão e Aristóteles será chamado de Uno por Plotino. Plotino afirmava que tudo contém em si um impulso de retorno ao Uno, um desejo ou movimento amoroso que leva a evitar a dispersão e a reunir-se na unidade, até conhecer a Unidade suprema. O pensamento plotiniano deu origem ao ditado filosófico A beleza atrai por si mesma.

DiCA

Ela não depende da Arte ou do trabalho dos artistas para atrair, embora ela esteja na raiz da Arte e de todas as atividades.

Sem fazer a beleza depender da arte, Plotino também não as separa com a mesma força que separava Platão. A arte verdadeira continua sendo aquela que permite ao ser humano trabalhar a si mesmo, “esculpir-se” em um movimento que vai além do aspecto belo das coisas e permite buscar a raiz da beleza. Uma das condições dessa “escultura de si” era fugir do mundo: longe de significar um desprezo do mundo, do corpo, dos prazeres, das coisas belas etc., essa “fuga” ocorre quando o indivíduo volta-se para “dentro” de si, perguntando-se sobre o porquê do mundo, do corpo, dos prazeres, das coisas belas. A fuga seria obra de um “olho interior”, capaz de enxergar para além das aparências.

Leia o trecho a seguir.

A escultura de si

[…] é necessário ver a alma daqueles que realizam as obras belas. Como se pode ver essa beleza da alma boa? Volta-te a ti mesmo e olha se tu não vês, todavia, a beleza em ti; faze como o escultor de uma estátua, que deve ser bela; toma uma parte, esculpe-a, pole-a e vai ensaiando até que tires linhas belas do mármore. Como aquele [escultor], tira o supérfluo, endireita o que é oblíquo, limpa o que está obscuro para torná-lo brilhante e não cesses de esculpir tua própria estátua, até que o resplendor divino da virtude se manifeste, até que vejas a temperança sentada sobre um trono sagrado. Tu és já isso? É isso que tu vês aí? É isso o que tu viste, um comércio puro, um trato puro, sem nenhum obstáculo à tua unificação, sem que nada estranho esteja mesclado interiormente a ti mesmo? És tu todo inteiro uma luz verdadeira, não uma luz de dimensão ou de formas mensuráveis que pode diminuir ou aumentar indefinidamente em magnitude, senão uma luz que carece em absoluto de medida, porque ela é superior a toda medida e quantidade? Tu te vês nesse estado?

PLOTINO. Sobre o Belo (Enéadas I, 6). In: DUARTE, Rodrigo (org.). O belo autônomo: textos clássicos de estética. Tradução: Ismael Quiles. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica: Crisálida, 2012. p. 57.

BIOGRAFIA

Plotino (205 d.C.-270 d.C.), filósofo nascido em Licópolis (atual Assiut, no Egito), foi o fundador do neoplatonismo. Escreveu 54 tratados, reunidos por seu discípulo Porfírio (c. 232-c. 304) em uma coleção conhecida como Enéadas. Seu pensamento é compreendido como a descrição de um duplo movimento da Natureza: o primeiro narra o surgimento de todas as coisas a partir da unidade do princípio, o Uno; o segundo, o movimento da alma humana, busca retornar da multiplicidade exterior até a unificação com o princípio (a chamada “conversão” ou “retorno”).

► PLOTINO. [ca. 350-370]. Escultura, mármore. Museo Ostiense, Roma (Itália).

Polir: esfregar um material até torná-lo liso; lustrar; aperfeiçoar.

Supérfluo: desnecessário; não essencial.

Oblíquo: inclinado, tortuoso.

Temperança: virtude de calcular os prós e os contras de uma ação; equilíbrio.

Mensurável: que pode ser medido.

Magnitude: dimensão; tamanho.

► ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval . Tradução: Mário Sabino. Rio de Janeiro: Record, 2010. Reprodução da capa.

• Estudo sobre o sentido da arte e sua relação com a beleza na Idade Média.

A beleza na filosofia patrística e medieval

Herdeiros do pensamento de Platão, de Aristóteles, de Plotino, entre outros, os pensadores da Patrística e da Idade Média reforçaram a concepção da beleza como fonte das coisas belas e ampliaram a ideia de que tudo o que pertence ao mundo natural contém beleza porque revela uma harmonia em sua própria constituição e uma função em seu lugar no mundo, desejados por Deus Criador, sede de toda Beleza e de todo Bem.

Para Agostinho de Hipona (354-430), por exemplo, todas as coisas naturais são belas, inclusive aquelas que podem não parecer belas. Em seu livro Confissões, escrito no século IV, Agostinho explica que o escorpião é uma criatura boa e bela. O que o torna aparentemente “mau” e “não belo” é o ato equivocado do ser humano que o pega em sua mão, de modo que o animal provavelmente irá picá-lo. O lugar do escorpião não é a mão humana; portanto, sua bondade e sua beleza só podem ser percebidas se ele estiver lá onde tem sua função, servindo, por exemplo, de alimento para outros animais.

► O JUÍZO final. [1470]. Iluminura. Obra extraída do manuscrito da obra A cidade de Deus, de Agostinho de Hipona.

A novidade trazida pela Patrística e pela Idade Média no que se refere ao conceito de beleza está em conceber o Universo como obra de uma criação divina, bela e boa. Se há um ser divino, ele é bom e belo no grau mais elevado, pois é a fonte da beleza e da bondade de tudo, e se tudo é criado por ele, tudo é belo e bom. Movidos pela experiência de fé, os pensadores da Patrística e da Idade Média identificam em Deus o Bem Supremo ou o Uno de que falavam os pensadores antigos. Por conseguinte, nele (Deus) residem o Bem Supremo e a Beleza Suprema, que formam uma unidade em sua essência. Esses termos passam a ser empregados como diferentes nomes de Deus. No caso específico da Beleza, se Deus é a fonte de todos os seres e se ele é a própria Beleza, reforça-se a ideia platônica de harmonia e afirma-se que todas as coisas são belas porque são criadas harmonicamente por Deus. A beleza natural presente no mundo passa a ser entendida como reflexo da Beleza de seu criador. Esse aspecto leva os autores patrísticos e medievais a recuperar, de certo modo, a suspeita platônica em relação à arte, bem como a separação entre beleza e arte. A fixação na beleza das coisas e no trabalho dos artistas pode produzir uma distração ou uma diversão, com um consequente afastamento de Deus, pois as

coisas belas e o trabalho dos artistas poderiam ser tomados como fins em si mesmos. A boa arte e a verdadeira Beleza seriam apenas aquelas que contribuíssem para a vida ético-religiosa dos indivíduos e grupos. Nesse sentido, Agostinho, embora valorizasse fortemente o prazer despertado pelas coisas belas, dizia temer que os atrativos belos “acorrentassem” a alma. A atitude ideal seria desfrutar do prazer com as coisas belas sem deter o olhar nelas mesmas, mas elevando-o à Beleza, a fim de estabelecer uma relação amorosa com ela.

No século VIII, a suspeita religiosa em relação à Arte foi levada ao extremo, dando origem ao que ficou conhecido como a Crise Iconoclasta: um movimento de destruição de todas as imagens e representações religiosas. Hoje se sabe, porém, que as razões dessa crise foram principalmente políticas e econômicas, pois destruir as imagens era uma forma de diminuir o poder dos religiosos que as fabricavam.

No século XIII, Tomás de Aquino (1225-1274), embora também elogiasse a arte, mostrou-se receoso diante do exagero de sua valorização. Para ele, a arte poderia causar apego à aparência das coisas, iludindo as pessoas e enchendo-as de si mesmas. Uma consequência dessa suspeita em relação às coisas belas na aparência deixou uma herança de grande interesse filosófico e cultural: com a Idade Média cristã passou-se a desenvolver a ideia de que é possível ir além das aparências e ver beleza mesmo em realidades, pessoas, atos e acontecimentos sem aparência atraente. Pode-se também perceber feiura em realidades superficialmente belas, especialmente a feiura das más ações de pessoas fisicamente atraentes. Essa ideia, já presente no pensamento de Platão, tornou-se bastante explorada na Idade Média, potencializada pela visão judaico-cristã e, posteriormente, pela visão islâmica do mundo.

Convém lembrar ainda que, apesar da retomada da suspeita platônica, a Era Patrística e a Idade Média não deixaram de valorizar a Arte.

► Três tipos de notação de canto gregoriano. Da esquerda para a direita, o primeiro foi desenvolvido na época da reforma gregoriana, quando a missa passou a ter momentos de canto. O segundo e o terceiro são composições do músico francês Baude Cordier, cujos formatos de escrita de partitura variavam conforme o tema da música. Os temas do segundo e do terceiro canto são respectivamente a vida, representada pelas voltas, e o amor, representado pelo formato de coração.

BAUDE CORDIER/MANUSCRITO DE CHANTILLY/MUSEU CONDÉ, CHANTILLY, FRANÇA
BAUDE CORDIER/MANUSCRITO DE CHANTILLY/MUSEU CONDÉ, CHANTILLY, FRANÇA

Desde o início da fé cristã, valorizou-se intensamente a produção de pinturas, por exemplo, porque, além de apontar para a Beleza divina, elas serviam para formar as pessoas que não sabiam ler. No período medieval, floresceu a Arte da pintura, da escultura, do canto, da arquitetura, da poesia e da literatura, desenvolvendo-se a prática de aplicar conhecimentos matemáticos e científicos à produção artística.

À esquerda: detalhe do Anjo do Sorriso, entrada da Catedral de Reims, França. À direita: colunas islâmicas (séc. IX) na Catedral-Mesquita de Córdoba (Espanha), 2022.

RODA

XI-XII].

[ca.

dos Poemas de Beuern (Carmina Burana). A roda que faz alguém subir é a mesma que faz um rei descer e perder a coroa.

O julgamento que alguns autores do Renascimento emitiram sobre a Idade Média, chamando-a de “era das trevas”, é historicamente equivocado. Os autores medievais nunca se posicionaram contra a luz trazida pelo pensamento e pela experiência artística. Aliás, o tema da luz (seja como metáfora do conhecimento, seja como dado físico) foi central nos estudos científicos e filosóficos da Idade Média. O teólogo alemão Dietrich de Freiberg (c. 1240-c. 1320) foi o primeiro a oferecer uma explicação cientificamente correta para o arco-íris, baseando-se em experiências com água e em operações geométricas. O muçulmano Al-Farisi (1267-1319) também fazia experimentos parecidos.

A arquitetura das catedrais testemunha o nível técnico atingido nesses estudos. Dessa perspectiva, as catedrais e as mesquitas eram verdadeiros “laboratórios” de estudos da luz, além de autênticos ateliês de arte. Embora a Idade Média tenha ficado conhecida como era religiosa, os temas artísticos do período nem sempre eram ligados à religião. Um exemplo bastante conhecido são os poemas do século XIII, conhecidos como Carmina Burana (Poemas de Beuern), escritos por monges e estudantes para tratar de temas como a passagem rápida do tempo, a precariedade da vida humana, a instabilidade das coisas e os costumes hipócritas de personagens religiosos (bispos e abades beberrões, entre outros). No século XX, o alemão Carl Orff (1895-1982) criou uma versão musical para esses poemas, com ampla difusão.

da fortuna.
séculos
Iluminura. Manuscrito
GAUTIER STEPHANE/ALAMY/FOTOARENA
DAVE G KELLY/GETTY IMAGES

A beleza no Renascimento e na filosofia moderna

A partir do Renascimento, a beleza passa a ser concebida como qualidade das obras artísticas, e não mais como qualidade que dá harmonia aos seres. Essa importante mudança apresenta os primeiros sinais em meados do século XIV e aflora nos séculos XV e XVI, sobretudo com os novos padrões mecanicistas de conhecimento. Desenvolve-se a ideia de Natureza como conjunto de acontecimentos mecânicos e submissos a leis que podem ser conhecidas e reproduzidas, dando ênfase às técnicas de reprodução das leis naturais como forma de conhecimento.

A arte passa a ser entendida como a ação específica de produzir beleza, e a beleza, sob o aspecto de sua produção, passa a ser associada às técnicas de composição das partes de uma obra, com o fim de obter a harmonia que agrada a quem a contempla. Os antigos métodos gregos são revalorizados e desenvolvidos nesse período, daí o nome de “Renascimento” nas artes. A temática religiosa, embora continue presente, passa a submeter-se também aos ideais renascentistas e modernos.

A concepção renascentista de beleza mantém grandes semelhanças com a concepção platônica: a beleza é a fonte das coisas belas. Entretanto, os renascentistas, de modo geral, ao enfatizarem a produção da beleza pela arte, acabam por distinguir beleza natural e beleza artística. A beleza artística, portanto, começa a ser reservada ao mundo das artes.

Aos representantes da filosofia moderna coube terminar o que teve início no Renascimento. Tratava-se, agora, de associar com exclusividade a beleza à arte. Assim, no século XVII, criou-se a expressão Belas Artes, com o objetivo de distingui-las das artes liberais, que, na Idade Média, denominavam as técnicas relacionadas ao conhecimento. As Belas Artes eram, a princípio, a arquitetura, a pintura, a escultura e a gravura. Posteriormente, passaram a incluir todo o conjunto de práticas de produção da arte, incluindo as antigas artes liberais, como a música, em consonância com a concepção renascentista-moderna de beleza artística.

► DA VINCI, Leonardo. Estudos de proporção do rosto e dos olhos . [ca. 1489-1490]. Desenho. Biblioteca Reale, Turim (Itália).

GOUJON, Jean. Diana e o veado. [ca. 1550-1554].

Escultura em mármore, 211 cm × 258 cm × 135 cm. Museu do Louvre, Paris (França).

Considerando que a ideia de Natureza conduziu à elaboração da ideia de Cultura como atividade humana de dispor da Natureza e de transformá-la, a beleza artística e a arte são associadas à Cultura. Pode-se dizer, então, que a ideia de Natureza, de um lado, e as ideias de Cultura, Arte e beleza, de outro, constituirão os eixos centrais do modo moderno de entender a experiência artística e a experiência estética. O filósofo Alexander Baumgarten (1714-1762) publicou um livro decisivo, intitulado Estética, cuja primeira edição data de 1758, fundando uma nova disciplina filosófica, a “ciência da beleza e da arte”. O termo estética, cunhado por Baumgarten com base no termo grego aisthesis (sensação), designa o modo como os pensadores modernos passaram a entender a relação humana com a beleza, uma relação que envolve o prazer dos cinco sentidos na contemplação do que é belo. A experiência artística e a experiência estética desvinculam-se definitivamente de preocupações éticas, políticas, religiosas ou cognitivas. A beleza e a Arte conquistam, então, sua autonomia.

Juízo: ato de afirmar ou negar.

No século XVIII, Immanuel Kant, considerado o primeiro “filósofo da arte” propriamente moderno, embora mantendo a distinção entre beleza natural e beleza artística, concentra sua investigação na experiência estética, no interesse antropológico – ou seja, no que significa ser humano –, e não na arte por si mesma. Kant consagra a Estética como disciplina filosófica e mostra que, segundo os novos padrões de pensamento, interessa destacar que a experiência estética opera com a universalidade das experiências de gosto.

De acordo com a análise kantiana, quando se está de fato diante de algo belo (uma obra de arte), diz-se simplesmente que é belo. Tal julgamento ou juízo dificilmente seria contrariado por alguém. Trata-se de um juízo que exige a concordância de todos, pois se refere a algo comunicado universalmente. No juízo de gosto, mesmo sendo subjetivo, isto é, uma experiência individual, manifesta-se algo universal. Na obra Crítica da faculdade do juízo, de 1790, Kant nega a existência de uma regra objetiva para o gosto ou algum critério que permita definir o que é belo, mas afirma que há algo universal e, nesse sentido, objetivo: a possibilidade subjetiva de pôr em funcionamento as capacidades de conhecer e de representar tudo o que é conhecido, levando essas capacidades a uma relação recíproca que permite identificar a beleza como algo “para todos”, que agrada universalmente.

A beleza na filosofia contemporânea

Coube ao filósofo Friedrich Hegel (1770-1831) instalar a noção de beleza exclusivamente no campo da arte. No seu entendimento, a marca do espírito (o pensamento e a liberdade) é operar por oposição à Natureza e ser superior a ela. Segundo ele, na obra Fenomenologia do espírito, de 1807, o espírito fixado na Natureza é um espírito alienado, que só existe em-si, e não para-si. A arte, ao contrário, seria a primeira etapa do desenvolvimento que permite ao ser humano abandonar a alienação do em-si e ingressar no para-si, ou seja, sair do fechamento na individualidade (espírito subjetivo) e entrar na sociabilidade (espírito objetivo).

Alienado: aquele que não possui a si mesmo e que permanece sob o domínio de um outro.

Com o pensamento hegeliano, estabelece-se de uma vez por todas a associação da beleza exclusivamente à arte. No entanto, Hegel percebia a arte em um movimento de progresso histórico do espírito humano e a considerava uma atividade ainda excessivamente ligada à sensibilidade, portanto ainda muito próxima à natureza ou ao em-si. Dois outros estágios teriam ocorrido nesse progresso: a religião e a Filosofia. A religião deu um passo adiante em relação à arte, pois permitiu que o ser humano superasse a Natureza e voltasse seu olhar para si mesmo, recolhendo-se em sua devoção pessoal. Essa fase também já teria sido superada pelo espírito humano, transformando-se na Filosofia, momento em que o espírito se torna absoluto, porque sai da consciência individual e percebe que é ele mesmo o produtor das formas objetivas da vida: as instituições da família, da moral e do Estado. Por outro lado, a “arte bela”, segundo Hegel, seria também em-si e para-si quando se considera que a beleza artística é produzida pelo espírito. Como arte bela, ela expõe algo superior a si mesma e à sensibilidade: o espírito, possibilidade humana de apontar para os interesses mais urgentes, tais como o sentido da existência individual e social. Dessa perspectiva, a arte revela a sua importância no caminho que leva ao espírito absoluto, pois reconcilia o exterior (captado na sensibilidade) e o interior (a percepção como ato do sujeito), o finito (de cada situação) e o infinito (das intermináveis possibilidades de sentido).

► VAN GOGH, Vicent. Canteiros de flores na Holanda 1883. Óleo sobre tela, 48,9 cm x 66 cm. Galeria Nacional de Arte, Washington, D.C. (Estados Unidos).

CONCEITOS ESTRATEGICOS

EM-SI / PARA-SI / EM-SI-E-PARA-SI

Partindo do princípio de que a realidade é o desabrochar de algo que já estava nela presente, virtualmente, desde o seu início, essas expressões, originadas do pensamento hegeliano, embora sejam empregadas com pequenas variações, podem ser assim resumidas.

• Em-si: realidade ainda desconhecida, sem autoconsciência. A criança é em-si; a Natureza é em-si. No caso da criança, significa que ela é um ser humano ainda não completo, mas em processo de formação, ou seja, ela tem a disposição para tornar-se um ser humano, e não poderia tornar-se tal se já não fosse um ser humano em germe, em-si. O em-si designa, então, um conteúdo real, mas não manifestado. É preciso haver uma mediação, uma “ponte” entre o ser potencial e o ser realizado. Essa mediação é o para-si

• Para-si: momento da tomada de consciência de si. Quando o ser humano reconhece sua verdadeira natureza, pode apropriar-se dela e dela dispor, participando na construção de seu sentido. O para-si, portanto, revela um conteúdo real que estava em-si e torna-o um conteúdo efetivo.

• Em-si-e-para-si: ser consciente e efetivamente aquilo que no início era apenas virtual. É o momento em que aquilo que era contido na Natureza ou na criança, por exemplo, vem à máxima consciência, dando-se conta, inclusive, do processo que levou do em-si ao para-si, processo pelo qual percebe-se a si próprio como construtor de sentido.

► TANGUY, Yves. Je tourne la tête vers moi [Eu giro a cabeça em minha direção]. 1938. Óleo sobre tela, 57,2 cm x 54 cm.

Hegel apostava na esperança de que, na consciência de seu caráter histórico, o ser humano universalizado (concentrado na sociabilidade, e não na singularidade) construiria um Estado justo, no qual os indivíduos também seriam justos. Como declarou o filósofo brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002), se o trabalho de Platão foi introduzir a presença do absoluto transcendente ou do Bem Supremo no mundo, o de Hegel foi tirar toda transcendência desse absoluto, transformando-o em pura imanência.

No tocante à estética, se Kant ainda reservava certo espaço para a Natureza na concepção da beleza, permitindo chegar a uma fonte divina criadora e ordenadora de tudo, Hegel descarta definitivamente Deus do horizonte humano ao anular o interesse na Natureza e concentrá-lo no próprio ser humano.

O pensamento hegeliano provocou várias reações contrárias. O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, o mais anti-hegeliano dos pensadores, embora entenda que é o indivíduo que realmente existe e importa, afirma que Hegel dissolve o indivíduo na vida social, transformando-o em algo passivo ou em um resultado do progresso do espírito que se objetiva.

Segundo Kierkegaard, Hegel elaborou uma filosofia ultrassofisticada para perder o que realmente importa na vida: a individualidade. Na experiência individual, há aspectos que a razão humana não é capaz de dominar nem de transformar em conceitos. Para Kierkegaard, Hegel construiu o belo castelo de sua filosofia do espírito objetivo, mas depois foi morar num quartinho dos fundos, pois, como ser humano em carne e osso, não podia sequer entrar em seu castelo frio e solitário.

A preocupação com o indivíduo e com sua afirmação tornou-se bastante forte no pensamento contemporâneo. Na verdade, para além dos aspectos teóricos ligados ao movimento que leva ao espírito absoluto, a preocupação com o indivíduo se fazia presente no campo das artes ao menos desde o Romantismo. O escritor e pensador Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), por exemplo, defendia a ideia de que cada artista deveria criar os princípios de sua própria arte – uma crítica à prática de “ensinar arte” desenvolvida nas academias criadas no século XVI, responsáveis por transmitir padrões “profissionais” de produção artística.

Ao conceber a arte sob a perspectiva histórica – considerando as esculturas gregas como o ponto mais alto na História da Arte tal como ele a entendia –, Hegel foi criticado por ter racionalizado excessivamente a arte, dissolvendo o fazer artístico em esquemas conceituais distantes da experiência individual. Em outras palavras, assim como o indivíduo pode ser entendido apenas como componente do grupo social e como simples resultado de processos sócio-históricos que não dependem dele, o artista corria o risco de ser encarado, segundo os críticos do pensamento hegeliano, como um ser destituído de liberdade ou de qualquer iniciativa criativa.

BIOGRAFIA

Søren Kierkegaard (1813-1855) foi um filósofo e teólogo dinamarquês, considerado precursor do existencialismo do século XX. Tornou-se conhecido como um existencialista cristão por centrar sua filosofia na experiência individual e por tratar de temas filosóficos e religiosos fundamentalmente do ponto de vista da existência. Suas obras mais conhecidas são Migalhas filosóficas (1844), O conceito de angústia (1844) e O desespero humano (1849).

► STIELER, Joseph Karl. Retrato de Goethe. 1828. Óleo sobre tela, 63 cm x 51 cm. Coleção da Neue Pinakothek, Munique (Alemanha).

► KIERKEGAARD, Niels Christian. Søren Kierkegaard. [ca. 1840]. Desenho. Biblioteca Real, Copenhague (Dinamarca).

COLEÇÃO NOVA PINACOTECA, MUNIQUE, ALEMANHA

• Narrativa inspirada na vida do pintor holandês Johannes Vermeer e no quadro que dá título ao filme.

► MOÇA com brinco de pérola. Direção: Peter Webber. Inglaterra: Imagem Filmes, 2003. Blu-ray (100 min). Pôster do filme.

► MANET, Édouard. Música nos jardins das Tulherias. 1862.

Óleo sobre tela, 76,2 cm x 118,1 cm. National Gallery, Londres (Reino Unido).

Assim, os artistas tomaram como causa a defesa de uma renovada atenção à individualidade. As referências tradicionais da beleza, propagadas pelas academias de arte, foram conscientemente atacadas. Embora permanecesse a ideia de que a beleza não pode ser definida, apenas indicada, como dizia Platão, artistas e pensadores convocaram uma nova mudança no modo de compreender a beleza. Era preciso contrariar os padrões impostos na arte e na experiência estética cotidiana.

Nascia, então, no século XIX, o que se convencionou chamar de arte moderna, principalmente com o Impressionismo. Um de seus fundadores, Édouard Manet (1832-1883), marcou a modernidade na arte com sua pintura Música nos jardins das Tulherias (1862). Além de ter sido um dos primeiros artistas a retratar cenas da vida moderna, inclusive cenas banais, Manet valorizava as impressões causadas pelas “manchas” como forma de figuração – e não os recursos tradicionais, como as linhas. Pensa-se, atualmente, que talvez Manet tenha se baseado em fotografias para compor suas obras, o que seria um claro sinal de sua modernidade.

Segundo as classificações históricas, a arte moderna durou até cerca de 1950. É importante não confundir a periodização da arte com a divisão histórica da Filosofia: enquanto a filosofia moderna corresponde aos séculos XVI-XVII ou XVI-XVIII, a arte moderna corresponde à passagem do século XIX ao XX. Antes da arte moderna, a periodização tradicional identifica a arte neoclássica (séculos XVI-XIX), a arte renascentista (século XV ou séculos XV-XVI), a arte bizantino-medieval (séculos II-XV) e a arte antiga ou clássica (das origens até o século II d.C.).

DiCA
AKG/THE NATIONAL GALLERY, LONDON/ALBUM/FOTOARENA

Uma característica típica da arte moderna consiste em romper com os padrões estipulados pelas academias. Essa ruptura fez com que o interesse da arte moderna deixasse de ser a beleza para ser a própria arte. O artista moderno leva aqueles que contemplam sua obra a questionar o que é a arte e o que define a beleza ou a ausência dela.

Da perspectiva do interesse da Arte pela Arte e relacionando o quadro de Paul Cézanne (1839-1906), ao final desta página, com o quadro de Manet, na página anterior, observa-se também em Cézanne a exploração das manchas e, portanto, uma ruptura com os padrões tradicionais. Assim, ainda que Cézanne pareça, para algumas pessoas, um artista que simplesmente reproduz a Natureza, é possível entender que sua obra é mais do que uma representação. As formas pintadas por Cézanne são objetos típicos do mundo da Arte, e não da Natureza; são recriações de coisas existentes, pois as cores e as linhas são reinventadas pelo olhar do artista, que opera com manchas e explora variações de luz.

Cézanne, ademais, é um dos artistas que estão na origem do que se chama de arte abstrata , da qual Chagall também não deixa de ser um representante. O estilo do abstracionismo rompe de uma vez por todas com a preocupação figurativa ou a busca por exprimir associações com realidades “naturais”. Um artista abstracionista cria suas próprias formas e faz o prazer dos sentidos e a beleza falarem por si mesmos.

Consultar orientações no Manual do Professor

• Comparando as obras de Manet e de Cézanne, o que podemos destacar de comum entre elas?

► CÉZANNE, Paul. The brook [O córrego]. [ca. 1895-1900]. Óleo sobre tela, 59,2 cm x 81 cm. Museu de Arte de Cleveland (Estados Unidos).

HOWARD AGRIESTI, MUSEU DE ARTE DE CLEVELAND, CLEVELAND, EUA

Movimentos semelhantes podem ser identificados na música, com o serialismo ou o minimalismo, e mesmo mais radicais na literatura e na pintura, como o Dadaísmo e o Surrealismo, verdadeiras revoluções nos padrões estéticos do início do século XX.

Manet, Cézanne, Chagall, o Impressionismo, o Dadaísmo, o Surrealismo etc. constituem “momentos” em que a arte passou a tomar a si própria como objeto de reflexão. Eles permitiram à própria arte pensar sobre o fazer artístico. Leia a seguir um poema dadaísta.

Para fazer um poema dadaísta

Pegue um jornal.

Pegue uma tesoura.

Escolha nesse jornal um artigo com o tamanho que [você pretende dar a seu poema.

Recorte o artigo.

Recorte em seguida, com cuidado, cada uma das palavras [que formam esse artigo e coloque-as num saquinho.

Agite suavemente.

Tire em seguida cada palavra recortada, uma por uma.

Copie conscienciosamente na ordem em que elas [saírem do saquinho.

O poema parecerá com você.

E eis que você é um escritor infinitamente original e [de uma sensibilidade cativante, embora [incompreendida pelo público.

TZARA, Tristan. Pour faire un poème dadaïste. In: Œuvres complètes. Tomo I. Paris: Flammarion, 1982. p. 382. Tradução nossa.

Essa postura é levada ao extremo pela arte contemporânea (a partir dos anos 1950 até os dias de hoje), assumindo também a contestação contra os mecanismos de controle da arte, de seu comércio, de sua classificação, de sua exposição etc. A arte, na Idade Contemporânea, torna-se objeto ou suporte para comunicar uma ideia. Desse ponto de vista, é possível compreender a arte produzida por Maurizio Cattelan (como a obra Untitled, 2007, que observamos no início deste capítulo), que choca aqueles que a contemplam.

A arte segundo os próprios artistas

As mudanças no modo contemporâneo de produzir a beleza nas artes fizeram com que muitos pensadores passassem a refletir sobre a arte e a beleza de dentro da própria experiência artística, ou seja, como artistas pensadores, e não apenas como observadores. É o caso, por exemplo, de Georges Didi-Huberman (1953-). Como artista, historiador da arte e filósofo, Didi-Huberman encarna uma necessidade sentida desde o século XIX: a de que os próprios artistas se pronunciem sobre sua experiência e reflitam sobre sua individualidade criadora. Nessa direção, muitos

deles esclarecem que, às vezes, são incompreendidos por quem reflete sobre a arte e projeta sobre ela suas próprias teorias, em vez de fazer com que sua reflexão nasça da experiência artística mesma. Para evitar, então, toda falsa intelectualização da arte, esses artistas pensadores recuperam a vida, quer dizer, mostram como a arte nasce da vida cotidiana e produz sentidos novos para ela. Ainda que a beleza seja vista como algo específico da arte, ela não se separa do dia a dia da existência, e a arte, por sua vez, apresenta-se como uma forma de chamar para a beleza.

Dessa perspectiva, fragiliza-se mesmo a distinção entre uma experiência artística e uma experiência estética geral, a menos que a experiência artística seja entendida como um aprofundamento da experiência estética. Por conseguinte, a possibilidade desse aprofundamento é dada a todos os seres humanos.

Relativiza-se até a separação racionalista entre Natureza e Cultura, pois a Natureza deixa de ser encarada como uma dimensão mecânica da existência ou como um conjunto de coisas (incluindo o próprio corpo humano) dispostas passivamente para serem “transformadas”. O que se chama de Natureza é já uma construção que depende do modo humano de ver as coisas. A Cultura, por sua vez, mais do que um “acréscimo” à Natureza, passa a ser entendida como um modo de habitar o mundo e de criar sentidos para ele por meio da exploração das infinitas possibilidades que ele mesmo oferece.

Leia dois fragmentos sobre o sentido da arte, segundo os escritores Oscar Wilde (1854-1900) e Marcel Proust (1871-1922).

Olhar é diferente de ver

O que é a Natureza? Ela não é a Mãe que nos criou. Ela é nossa criação. […] As coisas existem porque as vemos; o que vemos e como vemos depende das artes que nos influenciaram. Olhar uma coisa e ver uma coisa são dois atos bem diferentes. Não se vê alguma coisa senão quando se vê sua beleza. Então – e somente então! – essa coisa passa a existir. Hoje, as pessoas veem os nevoeiros não porque há nevoeiros e basta; mas porque poetas e pintores ensinaram a misteriosa beleza desses efeitos. […]

WILDE, Oscar. Le déclin du mensonge: une observation. Paris: Allia, 1986. p. 22. Tradução nossa.

A arte é questão de estilo, não de técnica

A verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, a única vida realmente vivida é a literatura. Essa vida que, em certo sentido e em cada instante, habita todos os seres humanos tanto quanto habita o artista. […] Nossa vida; e também a vida dos outros; afinal, o estilo para o escritor, tanto quanto a cor para o pintor, é uma questão de visão, e não de técnica. […] Graças à arte, em vez de ver só um mundo, o nosso, nós vemos o mundo multiplicar-se; tanto quanto há artistas originais, tantos são os mundos que temos à nossa disposição […].

PROUST, Marcel. Le temps retrouvé. Paris: Flammarion, 1986. p. 289-290. Tradução nossa.

Resposta pessoal.

Você concorda com a opinião de Wilde e de Proust em relação à arte? Exponha seus argumentos.

DiAlOGANDO

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GEOGRAFIA

Não escreva no livro.

As desigualdades regionais e o acesso à arte

Da Avenida Paulista, com seus oito museus e centros culturais, seis conjuntos de cinemas e quatro teatros, são quase 20 quilômetros até o bairro Valo Velho, nos limites da cidade. […] […]

Os dados mostram que o total dos valores investidos em cultura até cresce ao longo dos anos, mas abaixo dos índices de inflação. Pior: ao mesmo tempo, a participação do setor dentro dos orçamentos públicos diminui. A pesquisa também revela quem são os maiores prejudicados com isso. “A população de baixa renda, população jovem, pessoas negras, de uma forma geral pessoas que residem em locais menos privilegiados”, disse Jefferson Mariano, analista socioeconômico do IBGE. Na definição usada pelo IBGE, 44% dos pretos e pardos vivem em cidades sem cinemas, contra 34% da população branca; 37%, em cidades sem museus, contra 25% dos brancos. Em cidades sem nenhum teatro ou sala de espetáculo, a diferença é a mesma.

PESQUISA do IBGE mostra como é desigual o acesso à cultura e ao lazer. G1, Rio de Janeiro, 10 dez. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/ jornal-nacional/noticia/2019/12/10/pesquisa-do-ibge-mostra-como-e-desigual-o-acesso-a-cultura-e-ao-lazer.ghtml. Acesso em: 27 set. 2024

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou [em dezembro de 2023] o resultado da pesquisa sobre o Sistema de Informações e Indicadores Culturais (SIIC) 2011-2022, com uma análise detalhada do setor cultural no Brasil ao longo da última década. […] […]

O estudo também destacou a desigualdade no acesso à cultura, revelando que apenas 29,6% dos municípios brasileiros possuem museus, enquanto a presença de teatros e casas de espetáculos (23,3%) e cinemas (9%) é ainda menor. Isso se traduz em 31,4% da população vivendo em cidades sem museus, e percentuais ainda maiores para teatros (30,6%) e cinemas (42,5%).

BRASIL. Ministério da Cultura. Estudo do IBGE sobre setor cultural pode orientar políticas do MinC. Brasília, DF: Ministério da Cultura, 1 dez. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/noticias/estudo-do-ibge-sobre-setor-cultural-pode-orientar-politicas-do-minc. Acesso em: 27 set. 2024

1. Em grupo. Após a leitura dos trechos das reportagens, pesquisem dados de sua cidade: população total, porcentagem de cada etnia na composição populacional e, se possível, dados referentes ao acesso à cultura.

2. Retomem o trecho do texto de Nietzsche “Não há milagre na arte”. Com base nessa leitura e nos dados do IBGE, discutam os seguintes pontos.

• Qual é a realidade da cidade em relação ao acesso à arte e à cultura? Façam um levantamento dos centros culturais, museus, teatros etc.

• De que maneira o acesso desigual à arte e à cultura pode comprometer o desenvolvimento artístico de parcelas da população, incluindo a escolha pela carreira artística?

• Como é possível incentivar novos talentos nas artes?

• De que modo a facilidade ou a dificuldade de acesso à arte e à cultura impactam o indivíduo em termos de desenvolvimento pessoal e intelectual?

3. Proponham soluções para os problemas identificados. Produções pessoais.

Experiência estética e contexto

Mesmo entendendo que a experiência da beleza e da arte é uma possibilidade que caracteriza todos os seres humanos, convém lembrar que a relação com a chamada “grande arte” – o conjunto das obras tomadas como referência – é intermediada por instituições e profissionais especializados. Sua função é apresentar as obras e favorecer uma iniciação à linguagem da arte. É o caso de museus, salas de concerto, críticos de arte, guias de exposições e assim por diante.

Essa prática pode dar a impressão de que só é possível entender a arte depois de muito preparo. Sentimonos, muitas vezes, excluídos do mundo da arte, e essa sensação se intensifica quando ouvimos falar em “grande arte” e “arte popular”. A primeira estaria reservada àqueles que dominam os conteúdos que permitem entendê-la e frequentam museus, concertos etc. A segunda seria acessível a todos, porque é espontânea e fácil de ser encontrada.

► Pessoas observam as obras de uma das salas do Museu Nacional Thyssen-Bornemisza. Madri (Espanha), 2023.

No entanto, é preciso distinguir alguns aspectos. Antes de tudo, é importante ter em mente que, se a arte tem alguma relação com a beleza, o impulso que leva alguém a dançar e a apreciar balé clássico é o mesmo que leva alguém a dançar e a apreciar breakdance. Dessa perspectiva, anula-se a diferença entre “grande arte” e “arte popular”, pois ambas são expressões do mesmo tipo de vivência. Por outro lado, a diferenciação entre elas favorece a transformação da “grande arte” em mercadoria e fonte de lucro.

Sem cair na diferenciação artificial entre “grande arte” e “arte popular”, é importante lembrar que algumas obras exigem do observador ou do leitor o aprendizado da “língua” falada por elas. Quem lê, por exemplo, Macunaíma, de Mário de Andrade (1893-1945), ou Ulisses, de James Joyce (1882-1941), ou quem se depara pela primeira vez com uma pintura ou um vitral de Chagall, ou com uma instalação de Maurizio Cattelan, pode sentir grande estranheza. Essas obras requerem uma certa iniciação. Desse ponto de vista, não parece adequado igualar todas as produções artísticas e dizer que elas têm o mesmo valor estético.

• Documentário sobre a vida e a obra de Arthur Bispo do Rosário e sobre a experiência artística para além das fronteiras entre sanidade e insanidade mental.

► ARTHUR Bispo do Rosário: organizador do caos. Direção: Valdir Rocha. Brasil: [s. n.], 2012. Streaming (33 min). Pôster do filme.

DiCA

WARHOL, Andy. Brillo

Box (Soap Pads). 1964. Instalação, acetato de polivinila e tinta serigráfica sobre madeira. Museu Tate Modern, Londres (Reino Unido), 2020.

DiCA

• Partindo de experiências atuais, o autor reflete sobre a vivência da arte.

► DUARTE, Rodrigo. A arte. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. (Coleção Filosofias: o prazer do pensar, v. 14) Reprodução da capa.

É necessário ressaltar, porém, que o fato de algumas obras “falarem uma língua” própria não significa que, sem conhecer sua “língua”, não é possível ter qualquer experiência estética na sua presença. Assim como ocorre quando estabelecemos algum tipo de comunicação – por meio do olhar, da postura, de gestos etc. – com uma pessoa estrangeira mesmo sem falar o mesmo idioma, o encontro com uma obra singular nunca é vazio. Entretanto, esse encontro com a arte pode ser mais intenso se conhecermos o seu modo de “falar”. Para isso contribuem as instituições e os profissionais especializados, que atuam no sentido de ativar graus mais profundos de nossa percepção. Apenas cabe destacar que eles são de grande importância desde que não se tornem “controladores” da arte, como os dadaístas denunciavam. As pesquisas em História da Arte e outras áreas do saber – Filosofia, Antropologia, Psicologia, Sociologia etc. – revelam os variados contextos de produção artística.

O contexto de produção de uma obra de arte foi tema central nas reflexões de Arthur Danto, que costumava tomar como exemplo a instalação Brillo Boxes (Caixas de Brillo), de Andy Warhol (1928-1987).

Andy Warhol usou diferentes materiais para fabricar cópias idênticas das caixas de esponja de aço da marca Brillo. Em seguida, instalou essas caixas na Stable Gallery, em Nova York (Estados Unidos). Ao mesmo tempo que explorava o aspecto belo e lúdico das inscrições nas caixas, ele chamava a atenção dos espectadores para o modo como somos acostumados a olhar para as coisas e a encará-las como objetos de consumo.

Com base na instalação de Warhol, Danto escreveu um dos mais importantes artigos sobre arte conceitual , a arte que se entende como uma prática relacionada consigo mesma, e não necessariamente com a beleza. Em outras palavras, a arte conceitual se define pelo conceito ou pela ideia que se faz da própria arte, e não pelas suas qualidades estéticas.

Arthur Danto (1924-2013), filósofo e crítico de arte estadunidense, foi professor emérito de Filosofia na Universidade de Columbia, em Nova York, e responsável pela formulação do conceito de “mundo da arte”. Suas obras mais conhecidas são Nietzsche como filósofo (1965) e Após o fim da arte (2006).

Os artistas conceituais pensam a beleza, principalmente, como aquilo que causa prazer aos sentidos e buscam mostrar que um conceito é capaz de causar prazer e, portanto, ser belo. Além disso eles se interessam mais pela composição, pelos materiais utilizados, pela interação com o público e pela crítica social, política e cultural. Segundo Danto, o trabalho da arte conceitual é um dos melhores exemplos para perceber que o contexto da produção artística, ou o mundo da arte, é o que permite captar o seu sentido.

No caso da instalação Brillo Boxes, o contexto é constituído pela galeria onde a obra é exposta e pelo momento histórico da criação artística no local em que foi montada (Estados Unidos, anos 1960). Essas referências, aliadas ao fenômeno do consumismo do mundo contemporâneo, mudaram radicalmente o sentido das próprias caixas, que deixaram de ser meras caixas de esponja de aço e passaram a “falar outra língua” com aqueles que as contemplam, uma língua estética.

O “mundo” da arte

Fora da galeria, elas são caixas de papelão. […]

O que, afinal de contas, faz a diferença entre uma caixa de Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brillo é uma certa teoria da arte. É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de recair na condição de objeto real que ela é […]. É claro que, sem a teoria, é improvável que alguém veja isso como arte e, a fim de vê-lo como parte do mundo da arte, a pessoa deve dominar uma boa dose de teoria artística, assim como uma quantia considerável de história da recente pintura nova-iorquina. Isso poderia não ter sido arte cinquenta anos atrás. Mas, então, não poderia ter havido, se tudo permanece igual, seguro de voos na Idade Média ou borrachas para máquinas de escrever etruscas. O mundo tem de estar pronto para certas coisas – o mundo da arte não menos do que o mundo real. É o papel das teorias artísticas, hoje como sempre, tornar o mundo da arte e a própria arte possíveis. Nunca ocorreria, devo pensar, aos pintores de Lascaux que eles estavam produzindo arte naquelas paredes. A menos que tenham existido estetas no Neolítico.

DANTO, Arthur. O mundo da arte. Artefilosofia, Ouro Preto, v. 1, p. 13-25, jul. 2006. p. 22.

EXERCICIO Não escreva no livro. A

Consistente: no contexto, significa composto de; que consiste em.

Etrusco: povo que viveu na região da atual Itália entre os anos 1200 e 700 a.C. Lascaux: localidade na França, com algumas das mais antigas pinturas da humanidade.

Esteta: especialista em teoria estética.

Neolítica: período da “Pré- História” europeia que vai de cerca do ano 9000 a.C. até 3000 a.C. Danto comete um pequeno deslize histórico ao falar do Neolítico, pois as pinturas da Gruta de Lascaux foram feitas entre os anos 18000 a.C. e 15000 a.C. (portanto, durante o Paleolítico).

1. Comente a distinção entre a “grande arte” e a “arte popular”, considerando que a experiência artística e a experiência estética são possibilidades universais.

2. O que se pode dizer sobre o aspecto do uso financeiro das artes e da importância de um aprendizado da linguagem artística?

3. Explique a ideia de contexto da obra de arte, ou “mundo da arte”.

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InTEGranDO COm... ARTE

A arte em busca de ancestralidade e para além dela

Pintora, poetisa, grafiteira e arte-educadora, Pérola Santos, residente no Rio de Janeiro (RJ), provém de uma família quilombola, ou seja, descendente de escravizados que resistiram à escravidão desde o período colonial. A seguir, observe as imagens e leia o trecho de uma entrevista da artista para o Jornal O Globo

A importância do cultivo [de produtos agrícolas na comunidade] é retratado por Pérola Santos. [...] O Quilombo do Ivaporunduva fica no município de Eldorado, em São Paulo, mas hoje ela também mora no Rio.

— A minha cidade é a cidade da banana. Comecei pintando banana porque, para onde eu olhava, tinha banana. Eu pintava porque era o que eu via. Eu via o Rio Ribeira também, onde nasce tudo, onde nasce a comunidade.

Pérola é filha de quilombola, mas não foi criada na comunidade. Ela passou a criar laços enquanto crescia, e hoje se esforça para não perder esse contato com familiares e com

— Minha família é quilombola. Minha avó, meu pai, minha prima, meus primos. Só que eu não sou quilombola, porque eu não nasci lá. E eu tenho receio de quando meu pai falecer, porque isso vai acontecer, se perder o vínculo com o quilombo e meus filhos não terem vínculo com o quilombo

Daí vem a inspiração dela de pintar as rotinas do quilombo, para transmitir essa herança cultural. [...]

FALCÃO, Arthur. Feira Aquilombar reúne arte de quilombos de 24 estados em Brasília. O Globo, Rio de Janeiro, 16 maio. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/ cultura/noticia/2024/05/16/feira-aquilombar-reune-arte-de-quilombos-de-24-estados -em-brasilia.ghtml. Acesso em: 5 out. 2024.

1. Convidem seu(sua) professor(a) de Arte e solicitem que, de acordo com sua formação específica e suas posições pessoais, responda se o trabalho de Pérola Santos pode ser considerado arte. Se sim, que tipo de Arte? Se não, por quê?

2. A partir das posições do(a) professor(a) de Arte e dos conteúdos trabalhados neste capítulo, exponha os seus argumentos sobre as questões levantadas.

► Grafite de Pérola Santos no município de Eldorado (SP), 2023.

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Fotografia de Pérola Santos, 2024.
LEO MARTINS/AGENCIA O GLOBO
Não escreva no livro.

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1. O que significa, segundo Aristóteles, imitar a vida ou a Natureza, quer dizer, agir como a Natureza age? Por que os seres humanos praticam essa imitação?

2. Tomando por base a metáfora do embalsamento, apresente a visão de André Bazin sobre a arte.

3. Apresente a concepção platônica da Beleza, explicando por que, segundo Platão, a Beleza não pode ser definida.

4. A suspeita lançada por Platão sobre os artistas significava que ele era contrário à arte? Explique.

5. Qual é a principal novidade de Plotino no tocante à concepção da arte?

6. Justifique a associação patrístico-medieval entre a beleza e Deus.

7. Comente o modo como o pensamento medieval desenvolveu a suspeita platônica lançada sobre a criação artística.

8. O que significa afirmar que tanto para o pensamento antigo como para o pensamento patrístico-medieval a beleza era separada da arte?

9. Qual é a grande mudança operada pelo Renascimento em relação ao pensamento anterior sobre a beleza e a arte?

10. Como entender que, segundo Kant, o juízo estético, ou juízo de gosto, seja a um só tempo subjetivo e universal?

11. Por que, segundo Hegel, a reflexão estética deve abandonar a ideia de beleza natural?

12. Qual é o significado da afirmação de Kierkegaard segundo a qual Hegel construiu um castelo, mas foi morar num quartinho dos fundos?

13. Comente o sentido de ruptura da arte moderna e da arte contemporânea.

14. Procure informações sobre o dadaísmo e o surrealismo na literatura brasileira. Em seguida, sob a orientação de seu(sua) professor(a) de Filosofia, entreviste dois professores de Língua e Literatura Brasileira de sua escola (ou de outra escola, se você tiver essa possibilidade), fazendo duas perguntas para cada.

a) Há algum(a) escritor(a) brasileiro(a) dadaísta ou surrealista que mais causa sua admiração?

b) [Caso a resposta seja afirmativa:] Por que esse(a) autor(a) causa sua admiração?

[Caso a resposta seja negativa:] Por que nenhum(a) escritor(a) dadaísta ou surrealista causa sua admiração?

Na sequência, durante a aula de Filosofia, exponha os resultados de sua entrevista, identificando, no conjunto das respostas que forem levantadas, elementos relacionados à concepção de beleza.

ReToManDO Não escreva no livro.

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA 12

PLENSA, Jaume. Spiegel I and II [Espelhos I e II]. 2010. Aço inoxidável pintado, 377 x 235 cm x 245 cm [cada]. Museu de Arte de Toledo, Ohio (Estados Unidos). Escultura pintada com letras de diferentes alfabetos.

No pôr do sol, em um dos jardins do Museu de Arte de Toledo (Estados Unidos), dois gigantes deixam passar luz; mais do que isso, deixam-se atravessar pela luz. Chamam a atenção para si, obviamente, pois são duas obras imensas; no entanto, convidam-nos a ir além. As obras encaminham nosso olhar para o fundo infinito, rumo à luz interminável que a tudo abarca.

Na realidade, é a luz que vence tudo; mesmo que não houvesse as duas obras gigantes, não se deixaria de vê-la. Mais ainda, prestando-se ou não atenção à luz, seria impossível não vê-la. É uma luz transcendente, superior e presente. É com essa experiência em nosso horizonte que vamos tratar filosoficamente da experiência religiosa. Assim, refletiremos sobre a vida individual, a vida social e a luz que se considera divina, prestando-se ou não atenção a ela, ou mesmo negando-se que ela seja divina.

TOMMY KNOTT/TOLEDO MUSEUM OF ART, OHIO, EUA

Esclarecimentos metodológicos: Deus, Transcendência,

Antropomorfismos

Na abertura deste capítulo, mencionamos a ideia de Transcendência. Tendo isso em mente, passamos a falar de Deus: a razão de ser de tudo o que existe e de tudo o que ocorre; um Ser Supremo, Absoluto e superior à Natureza. Fizemos isso porque, na maioria das sociedades, a maior influência religiosa vem de religiões como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, para as quais, principalmente o cristianismo, a Transcendência identifica-se com o Absoluto. Deus é visto como um ser único, infinito, superior a tudo e, ao mesmo tempo, distinto de tudo – não é apenas mais um ser na escala dos seres. Além disso, Deus é totalmente Transcendente, embora atravesse tudo com sua presença, assim como a luz atravessa, sem separar-se em pedaços, a imagem da fotografia que abre este capítulo.

Já em algumas sabedorias de matriz oriental (o budismo, o taoísmo, o confucionismo…) ou em religiões de matriz africana, acredita-se em diversos seres divinos, regidos ou não por um ser divino único, o que torna difícil saber se o consideram Absoluto. Além disso, algumas dessas crenças encaram as “divindades” não como seres propriamente divinos, mas como seres “naturais”, grandificados, pertencentes a uma escala ainda desconhecida da Natureza – o que também torna difícil afirmar que eles são Transcendentes, já que possuem todas as características de seres pertencentes à Natureza. Outro dado inicial importante a esclarecer é que nosso procedimento, ao falar de seres divinos, é um Antropomorfismo, isto é, uma tendência não apenas de imaginá-los como se fossem seres humanos “ampliados”, mas sobretudo de projetar neles características humanas, imaginá-los como “grandes humanos”. Se tais seres são divinos, eles podem ser semelhantes a nós, mas também são necessariamente diferentes, a menos que nos tomemos a nós mesmos por divinos, com nossas incompletudes, erros, maldades etc., o que cria uma contradição insuperável.

► Monges budistas no templo Wat Pak Khan Khammungkhun, Luang Prabang (Laos), 2023.

► BARAKA: um mundo além das palavras. Direção: Ron Fricke. Estados Unidos: Magidson Films, 1992. 1 DVD (96 min). Pôster do filme.

• Filme surpreendente pela riqueza de imagens e sons de diversas culturas, percorre uma série de cenários, desde ritos religiosos até maravilhas da Natureza, passando por linhas de produção industrial e abatedouros.

O fator essencial nesse debate é que ser antropomórficos é a nossa única possibilidade de investigar e falar do que quer que seja; afinal, somos humanos; não temos, portanto, como renunciar à nossa natureza para vermos o mundo e inventarmos teorias com perspectivas não humanas. Quais seriam tais perspectivas? Robóticas? São invenções humanas. Interestelares? São invenções humanas. Animais? São projeções humanas… Aliás, há muitos povos ameríndios que entendem os outros seres (vegetais, minerais e animais) como dotados de visões “humanas” em suas visões sobre o mundo e sobre eles mesmos. Esse estudo, em Antropologia e Filosofia, encontra-se em plena efervescência, em parte em razão do trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (1951-).

Mesmo diante da complexidade e ambiguidade que contém a crítica ou até a reprovação de todo antropomorfismo no ato de conhecer, acabamos por ser antropomorfistas, pois, mesmo quando dizemos para não ser antropomorfistas, nós primeiro o somos (porque automaticamente adotamos nosso modo de ver e de projetar nossos hábitos cognitivos em tudo), para, em apenas um segundo momento, fazermos um esforço para liberar-nos das imagens formadas humanamente (antropomórficas) e chegar a imagens de outra ordem.

Assim, convém afastar uma crítica radical que recusa tratar do antropomorfismo por considerá-lo ingênuo ou desonesto. A melhor resposta a esse tipo de crítica é que o fundamento de todo antropomorfismo legítimo (não de nenhum antropomorfismo mirabolante, como os de filmes de extraterrestres) reside no fato de que o ser humano é o único ser no qual a Natureza toma consciência dela mesma.

Ameríndio: indígena das Américas.

► INCENSÁRIO Chen Mul. [ca. 1200-1550]. Cerâmica, 32 cm × 33,7 cm × 3 cm. Museu Nacional de Antropologia, Cidade do México (México). Artefato maia que representa o Deus Descendente, associado à agricultura e ao milho.

MUSEU NACIONAL DE ANTROPOLOGIA, CIDADE DO MÉXICO, MÉXICO REPRODUÇÃO/VERSÁTIL

CONCEITOS ESTRATEGICOS

ANTROPOMORFISMO NATURAL E FRAGILIDADE

DA CRÍTICA MODERNA DA IDEIA DE CAUSA

Alguns filósofos modernos perceberam claramente que a ideia de causa corresponde a um antropomorfismo, ou seja, a uma forma de pensar que não considera as coisas não humanas em si mesmas, mas projeta sempre nelas dados de conhecimento do ser humano sobre si mesmo.

Em outras palavras, segundo o conhecimento antropomórfico, só posso conhecer com segurança (permanecendo no dado “bruto” da consciência do que se passa comigo, anterior a qualquer tipo de interpretação) aquilo que experimento em primeira pessoa, por mim mesmo, sem “ouvir dizer” e sem poder “entrar” no ser do que é conhecido. Dando-se conta desse fato, alguns pensadores modernos passaram a dizer que a ideia de causa ou de causalidade não corresponde a nenhum fenômeno, isto é, a nada observável em si por meio dos cinco sentidos dos observadores, e, portanto, não passa de uma projeção de conteúdo de experiências vividas em primeira pessoa, algo sem valor cognitivo científico.

David Hume (1711-1776), por exemplo, fez do combate à ideia de causa uma espécie de questão de honra, pois dizia que não temos percepção nenhuma para afirmar uma relação de causalidade entre duas coisas, dois atos, dois seres. Mas, como estamos, por nossa vida pessoal, acostumados a correlacionar emoções, sentimentos, pensamentos, em termos de causa e efeito (A é causa de B), projetamos na Natureza esse mesmo tipo de correlação, quando, na verdade, não observamos rigorosamente nada a que possamos denominar causa. Observamos A e B, mas não alguma coisa chamada causa, assim como, entre duas bolas de bilhar, observamos que a bola A bate na bola B, mas, com base na observação, não se constata nada que tenha passado de A a B para fazê-la mover-se. Como em nossa vida psíquica conseguimos estabelecer algumas relações de causalidade, projetamos essa experiência na Natureza e dizemos que ela opera como nós, mas sem nenhuma base empírica.

O filósofo Étienne Gilson (1884-1978), em O espírito da filosofia medieval, de 1932, propõe uma questão: mas, afinal, o que, no conhecimento, não é antropomorfismo? Acaso seria possível adotar uma eventual visão de mundo de um tronco de árvore para poder não ser antropomórfico, e sim arboriforme? Acaso seria possível adotar a perspectiva de um cão para não ser antropomórfico, e sim cinoforme? Em outras palavras, nossa aparelhagem cognitiva simplesmente determina que conhecemos como humanos, e é natural projetar a visão humana em tudo. Não somos multiformes nem amorfos. Portanto, seria necessário que Hume também explicasse por que fala como humano se seu próprio modo de falar, sendo humano, é inadequado e sem valor cognitivo-científico. Por coerência, ele deveria encontrar outra condição ou, sobretudo, outra natureza para não cometer antropomorfismo.

O antropomorfismo que no pensamento de Hume justifica sua crítica da causalidade é, porém, aquilo que, no pensamento de Maine de Biran (1766-1824), justifica sua doutrina positiva da causalidade eficiente real na Natureza, porque nós captamos em nós a força hiperorgânica da vontade e sua eficácia. Poder-se-ia citar ainda a filosofia bergsoniana, pois a evolução criativa supõe a extens ão ao Universo da experiência humana da liberdade. Se Hume foi genial em alguns aspectos, ele foi bastante ingênuo em outros, de acordo com Étienne Gilson.

Hiperorgânico: um organismo que supera todo organismo naturalmente conhecido.

Bergsoniano: referente ao filósofo Henri Bergson (1859-1941).

► GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020. Reprodução da capa.

• O autor trata de temas como os seres e sua contingência; analogia, causalidade e finalidade; filosofia cristã etc.

InTEGranDO

ANTROPOLOGIA

Um mito é uma história do tempo em que os animais falavam

Leia o trecho de uma entrevista com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Em seguida, responda às atividades.

[…] Trata-se da noção de que o mundo é povoado por um número indefinidamente indeterminado de espécies de seres dotadas de consciência e cultura. Isso está associado à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é uma “roupa” que oculta uma forma interna humanoide, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Até aqui, nada de muito característico: a ideia de que a espécie humana não é um caso à parte dentro da criação, e de que há mais gente, mais pessoas no céu e na terra do que sonham nossas antropologias, é muito difundida entre as culturas tradicionais de todo o planeta.

O que distingue as cosmologias ameríndias é um desenvolvimento sui generis dessa ideia, a saber, a afirmação de que cada uma dessas espécies é dotada de um ponto de vista singular, ou melhor, é constituída como um ponto de vista singular. Assim, o modo como os seres humanos veem os animais e outras gentes do universo – deuses, espíritos, mortos, plantas, objetos e artefatos – é diferente do modo como esses seres veem os humanos e veem a si mesmos. Cada espécie de ser, a começar pela nossa própria espécie, vê-se a si mesma como humana. Assim, as onças, por exemplo, se veem como

Humanoide: que possui características humanas.

Sui generis: expressão de origem latina que significa “de seu próprio gênero”, em tradução livre. Refere-se a algo que é único ou específico.

► Vista de drone da dança Tawarawanã na Aldeia Aiha, da etnia Kalapalo, um dos quatro grupos de língua karib. Querência (MT), 2022.

ANDRE DIB/PULSAR IMAGENS
Não escreva no livro.

gente: cada onça individual vê a si mesma e a seus semelhantes como seres humanos, organismos anatômica e funcionalmente idênticos aos nossos. Além disso, cada tipo de ser vê certos elementos-chave de seu ambiente como se fossem objetos culturalmente elaborados: o sangue dos animais que matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca, o barreiro em que se espojam as antas é visto como uma grande casa cerimonial, os grilos que os espectros dos mortos comem são vistos por estes como peixes assados etc. Em contrapartida, os animais não veem os humanos como humanos. As onças, assim, nos veem como animais de caça: porcos selvagens, por exemplo. É por isso que as onças nos atacam e devoram, pois todo ser humano que se preza aprecia a carne de porco selvagem. Quanto aos porcos selvagens (isto é, aqueles seres que vemos como porcos selvagens), estes também se veem como humanos, vendo, por exemplo, as frutas silvestres que comem como se fossem plantas cultivadas, enquanto veem a nós humanos como se fôssemos espíritos canibais – pois os matamos e comemos.

E o que é o humano?

É essa capacidade de socialidade. Antes, tudo era transparente a tudo, os futuros animais e os futuros humanos, vamos chamar assim, se entendiam, todos se banhavam num mesmo universo de comunicabilidade recíproca. Lévi-Strauss tem uma definição muito boa, dada numa entrevista. O entrevistador pergunta: ‘O que é um mito?’. Lévi-Strauss responde: ‘Bom, se você perguntasse a um indígena das Américas, é provável que ele respondesse: ‘Um mito é uma história do tempo em que os animais falavam’’. Essa definição, que parece banal, na verdade é muito profunda. O que ele está querendo dizer é que o mito é uma história do tempo em que os homens e os animais estavam em continuidade, se comunicavam entre si. Na verdade a humanidade nunca se conformou por ter perdido essa transparência com as demais formas de vida, e os mitos são uma espécie de nostalgia da comunicação perdida.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Antropologia renovada. Cult , São Paulo, 13 dez. 2010. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/antropologia-renovada/. Acesso em: 20 set. 2024.

1. De acordo com a perspectiva ameríndia narrada por Viveiros de Castro, explique como cada espécie enxerga a si mesma e as outras espécies.

2. Em que consiste o mito na visão ameríndia? Explique a relação entre o humano e o mito.

3. Qual é a implicação dessa perspectiva na relação dos povos ameríndios com a Natureza?

Consultar orientações no Manual do Professor

► Eduardo Viveiros de Castro, em 2021.
JULIANA
CHALITA/ACERVO SELVAGEM, CICLOS DE ESTUDO SOBRE A VIDA

O nome “Deus”

Sem a possibilidade de entrar em todos os detalhes histórico-teóricos que um tema complexo como a análise da investigação religiosa exige, empregaremos o termo Deus como a divindade de cada religião . Mesmo as religiões politeístas podem sentir-se contempladas aqui, porque o que dissermos sobre Deus pode ser aplicado a suas divindades, ou porque, mesmo sendo politeístas, muitas acabam tendo uma divindade prioritária, reinante ou orientadora sobre as outras. Além disso, Deus é uma das palavras mais antigas de que dispomos. Seus correspondentes datam de aproximadamente 6000 anos, com o significado de ser superior, ordenador, responsável pelo mundo etc. Falar de Deus, então, é, em um primeiro nível, falar de um ser Transcendente, no qual seus fiéis confiam como mantenedor da vida e do Universo.

A experiência religiosa

As pessoas religiosas interpretam todos os aspectos de suas vidas com base no mistério divino. Seu gosto de viver é aumentado e mesmo renovado (com sentimentos de paz interior, alegria e consolação), de modo que o mistério divino se torna a chave de sua visão de mundo.

É certo que uma pessoa religiosa esclarecida considera também outras explicações para a vida. Por exemplo, ela aceita as teorias da Física para entender o funcionamento da Natureza, ou os trabalhos de História para entender as causas e as consequências dos acontecimentos culturais. No entanto, ela vai além do horizonte da Física e da História e o complementa com o mistério divino ao qual dá-se um rosto, chamando-o de Deus , ser divino , Transcendente , ou outra palavra que aponte para uma dimensão que supera o horizonte do mundo. A vida humana é entendida, assim, como um dom concedido por esse ser superior, e não apenas como um acontecimento do acaso.

Esse dom, por sua vez, é vivido como algo que solicita uma resposta amorosa e responsável. Encontra-se um sentido transcendente para a existência porque as pessoas religiosas, ainda que não rejeitem a experiência de vida no mundo, consideram que ele é insuficiente para satisfazer o desejo humano de sentido.

Para explicitar o que a experiência religiosa parece conter, alguns elementos podem ser destacados:

Comunhão: unidade de pensamento, sentimento e ação; partilha do mesmo destino.

a) tudo começa pelo gosto de viver;

b) por sua vez, o gosto de viver leva a uma abertura aos outros seres, vendo-os como portadores de um sentido que os torna membros de um grande conjunto;

c) a abertura ao “mundo” (conjunto de tudo o que existe) produz o sentimento de que tudo compartilha o mesmo horizonte de sentido e faz estabelecer uma relação ou uma comunhão com tudo e todos;

d) a experiência de uma solidariedade universal leva a perceber valores como o amor, a bondade, a compaixão, a aceitação das diferenças, a tolerância etc. como valores universais que levam a uma maior realização pessoal, independentemente de serem escolhidos; e) no entanto, percebe-se também que tudo o que existe é incapaz de oferecer um horizonte de satisfação estável e definitiva, embora se deseje algo com essas características. É então que o contraste entre o desejo do infinito e a limitação de tudo o que existe aponta para a dimensão transcendente como possibilidade de satisfação plena do desejo (desejo este que se revela, ele mesmo, “infinito”).

Na realidade, uma vivência religiosa não acontece necessariamente na ordem em que esses elementos foram apresentados aqui. Aliás, uma pessoa não religiosa também pode experimentá-los, com exceção do quinto passo, que parece ser a característica específica da vivência religiosa. Além disso, uma pessoa religiosa talvez diga que foi o quinto passo a causa dos quatro primeiros, pois os efeitos vividos no encontro de um sentido transcendente (paz interior, alegria e consolação) fazem mudar a visão de mundo e aumentar o gosto de viver. A indicação desses elementos é, portanto, apenas didática, a fim de chamar a atenção para a descoberta do horizonte misterioso como fonte de sentido na vida das pessoas religiosas.

O termo mistério , por sua vez, não significa algo impossível de conhecer, mas uma dimensão da realidade que, mesmo sendo percebida, é conhecida apenas parcialmente, nunca esgotada ou dominada inteiramente pelo pensamento; algo que sempre convida a ser melhor compreendido.

Também é provável que as pessoas falem do mistério divino sem ter consciência do que ele significa. Para muitas, a vivência religiosa equivale a adotar normas morais ou a frequentar uma igreja, um terreiro, uma sinagoga, uma mesquita, um centro etc. Talvez elas sequer se questionem sobre o sentido da vida. Outras, ainda,

2013. Óleo sobre tela, 50 cm × 40 cm. Como explica a pintora e poetisa marroquina Khadija Sadek Moudafi, a arte é um dos caminhos mais adequados para experimentar o mistério que envolve o mundo e as infinitas possibilidades que são dadas a cada ser humano na produção de sentido para sua existência.

► MOUDAFI, Khadija Sadek. Mystère d’un monde [Mistério de um mundo].

Autêntico: aquilo que é vivido de modo consciente e com o máximo de esforço para evitar erros e ilusões.

Consultar orientações no Manual do Professor

DiAlOGANDO

• Se você tem uma prática religiosa, reflita sobre essa prática. Ela dá sinais de uma experiência religiosa autêntica?

atribuem ao ser divino coisas facilmente explicáveis pelas Ciências, pela Psicologia ou mesmo pela Filosofia.

No entanto, de uma perspectiva filosófica, o mistério divino ou o sentido transcendente é a única possibilidade de identificar uma experiência religiosa autêntica e distingui-la de vivências simplesmente “humanas”. É por isso que, neste capítulo, a palavra religião e a expressão experiência religiosa não significam a simples prática de uma religião determinada. Elas são tomadas como sinônimos da percepção de um horizonte misterioso e da adesão a ele, de forma livre, inteligente e amorosa.

Convencionando chamar de Deus a esse mistério (por ser o nome mais comum), pode-se dizer que viver uma experiência religiosa autêntica significa experienciar Deus. Mas, sendo Deus transcendente, como é possível experienciá-lo?

Terreiro Ilê Axé Alá Obatalandê. Lauro de Freitas (BA), 2019. ► Missa na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Ouro Preto (MG), 2021.
► Festival judaico (Sucot) em Jerusalém, 2021. ► Muçulmanos na Mesquita Nacional Baitul Mukarram. Daca (Bangladesh), 2024.

CONCEITOS ESTRATEGICOS

EXPERIMENTAR E EXPERIENCIAR

Você certamente notou que usamos os verbos experimentar e experienciar. Há diferença entre eles. Tudo depende do conteúdo da experiência. Dizemos, por exemplo, que temos experiência da cor verde, do sabor doce ou salgado, da dor, da alegria, mas também da beleza de uma melodia ou de um quadro, do desejo de fazer o bem, da presença divina etc. S ã o experiências claramente diferentes; afinal, o verde n ã o é experimentado da mesma forma que a beleza de uma melodia. Como o verde pode ser captado por um dos cinco sentidos, podemos dizer que o experimentamos. Quanto à beleza de uma melodia, ela n ã o “passa” por nenhum dos cinco sentidos; embora a melodia seja captada pela audiç ã o, sua beleza depende do modo de ser do indivíduo que a ouve. Podemos, ent ã o, afirmar que experienciamos a beleza da melodia.

► COSSIERS, Jan. Os cinco sentidos. [ca. 1630-1640]. Óleo sobre tela, 118 cm x 159 cm. Museu Nacional de Bellas Artes de Cuba, Havana (Cuba).

Tanto o verde como a beleza s ã o “objetos” ou “fenômenos”, ou seja, conteúdos da consciência. Ambos geram um sentimento de certeza; e o fazem de maneiras muito diferentes. Então, para distinguir esses tipos de experiência em função dos diferentes conteúdos, muitos filósofos têm usado de maneira distinta os verbos experimentar e experienciar.

• E xperimentar: ato em que a consciência de um indivíduo tem certeza sobre algo com base na captação de informações por meio dos cinco sentidos, de maneira que outros indivíduos podem avaliar essa certeza também com base nos cinco sentidos. Exemplos:

Todos, em princípio, podem experimentar o sabor doce do açúcar.

O cientista tem experiência de reações químicas.

• E xperienciar: ato em que a consciência de um indivíduo tem certeza sobre algo, mesmo sem baseá-la diretamente nos cinco sentidos, de maneira que outros seres humanos só podem avaliar essa certeza se procurarem entendê-la segundo a descrição dada por quem a tem. Exemplos:

O poeta experiencia um impulso que o obriga a escrever.

O budista experiencia o todo formado pelas coisas do Universo.

EXERCICIO Não escreva no livro. A

Consultar orientações no Manual do Professor.

1. Apresente os cinco elementos identificados na experiência religiosa.

2. Qual é, em resumo, o sentido fundamental da experiência religiosa?

3. Considerando-se o sentido fundamental da religião, é possível pensar que ela pode não ser autêntica? Explique.

InTEGranDO COm...

LÍNGUA PORTUGUESA

Paul Claudel e o “desejo de horizonte”

Leiam o poema de Paul Claudel (1868-1955), dando asas à imaginação e à emoção.

Quando Deus toca flauta

Quem tirará do coração da ovelha o desejo da erva fresca?

Quem tirará do coração dos anciãos o desejo de Deus?

E quem tirará do coração dos jovens esse outro desejo que não é o desejo de riqueza?

– Qual desejo?

– O desejo de horizonte!

– E do que há por trás do horizonte!

Quando Deus toca flauta, não há cerca que possa reter o rebanho.

Quando Deus toca flauta, não há barreira que possa reter o coração de carne…

Quando Deus toca flauta, as montanhas se põem a dançar!

CLAUDEL, Paul. Lorsque Dieu joue de la flûte [Quando Deus toca flauta]. In: ASSOCIATION DES ÉCRIVAINS CROYANTS D'EXPRESSION FRANÇAISE. Dire Dieu. Paris: Univers Média, 1978. p. 68. Tradução nossa.

HARLINGUE/ROGER VIOLLET/GETTY IMAGES

1. Em trios . Conversem a respeito do que esse tema despertou em vocês. Se precisarem, leiam o poema novamente. Assim que tiverem imaginado ou sentido algo, compartilhem entre vocês. Em seguida, cada integrante do grupo responde às atividades a seguir.

a) Você tem uma religião? Se sim, o poema de Paul Claudel fez você pensar em sua relação com a divindade em que você acredita?

b) C aso não tenha religião, poderia explicar por quê? Ainda que não acredite em alguma divindade, sentiu algo ao ler o poema de Paul Claudel?

2. Elaborem uma interpretação do poema “Quando Deus toca flauta”. Para isso, vocês podem fazer uma pesquisa sobre a vida e a obra de Paul Claudel e buscar outras análises do poema.

Consultar orientações no Manual do Professor

► Paul Claudel, filósofo, escritor e diplomata francês. Fotografia de 1919.

PARA REFlETIR E ARGUMENTAR

As “imagens” de Deus

Leiam o texto a seguir, escrito pelo teólogo Francisco Catão (1927-2020), e respondam às atividades.

A maior dificuldade, para falar de Deus, encontra-se no ponto de partida, ou seja, nas “imagens” de Deus que circulam no meio cultural em que vivemos.

Falamos de Deus como se essa palavra se referisse a uma realidade ou pessoa por nós conhecida, como quando dizemos Antonio ou Maria. Mesmo que não se saiba exprimir exatamente quem são [a realidade ou a pessoa], temos uma ideia de quem possam ser: vemo-los, ouvimo-los, tocamo-los, sentimos sua presença.

► Lanternas do Festival Yi Peng. Chiang Mai (Tailândia), 2022. A simbologia da luz da fé na escuridão do mistério da vida é comum a praticamente todas as religiões.

Ora, quando se trata de Deus, isso não é verdade. A “imagem” que formamos quando dizemos Deus não corresponde a nada de conhecido, ou melhor, é um recurso precário que só tem valor provisório e limitado, substituindo um puro dado subjetivo nosso, pois, na realidade, não vemos, não ouvimos, não tocamos nem temos sensação de Deus. A palavra que empregamos só tem valor como uma Realidade Transcendente a ser conhecida dentro dos limites de um discurso, de um raciocínio.

[…]

A educação religiosa numa sociedade como a nossa, pluralista e democrática, enfrenta o grande desafio de ter de buscar um novo ponto de partida do discurso sobre Deus, de ter que ir atrás de uma nova “imagem” de Deus.

A consciência desse desafio é que nos leva a preferir falar, na educação religiosa, de Transcendente, em lugar de empregar a palavra Deus. Quando dizemos Deus, podemos alimentar a ilusão de que sabem já quem ele é, ser supremo, espiritual, infinito e Todo Poderoso. Dizendo Transcendente, reconhecemos a situação precária de nossa fala a respeito de Deus, que não se pode jamais limitar ao que nos parece dado, mas deve construir, por intermédio da crítica e da superação desse dado.

CATÃO, Francisco. Em busca do sentido da vida: temática da educação religiosa. São Paulo: Paulinas, 1993. p. 75-79.

1. Em grupo. Dialoguem sobre a maneira como, no ensinamento religioso, costuma-se dizer que se encontrou a Deus ou mesmo justifica-se a fé na existência de Deus, uma vez que dele não pode haver experiência mediante os cinco sentidos. Vocês podem convidar um representante religioso para participar da atividade: um sacerdote católico, uma freira, um(a) pastor(a), um pai ou uma mãe de santo etc. Após o debate, registrem individualmente suas conclusões, justificando-as com argumentos válidos.

2. De acordo com o texto do teólogo Francisco Catão, expliquem qual é o ponto de partida mais aceitável para falar a respeito de Deus.

Consultar orientações no Manual do Professor

Fotografia da Catedral de Burgos (Espanha), 2018. A arquitetura gótica, própria do período medieval, visava proporcionar uma relação com o sagrado através de elementos como as torres verticais e pontiagudas, que apontavam para o céu, ou a rosácea, ornamento circular, preenchido com vitrais coloridos, que permite maior entrada de luz.

A experiência religiosa é uma experiência de quê?

Ao falar de experiência religiosa, religião ou experiência de Deus, surge uma dificuldade de grande interesse filosófico: se o ser divino é um ser transcendente (portanto, impossível de ser percebido por meio dos cinco sentidos), como justificar que a pessoa religiosa afirme percebê-lo?

Sem uma resposta satisfatória, a experiência religiosa pode parecer absurda. Nesse sentido, alguns pensadores (inclusive não religiosos, mas interessados na religião como tema filosófico) têm desenvolvido reflexões que defendem a necessidade de ampliar o conceito de percepção, fazendo-o transcender a atividade dos cinco sentidos.

Mesmo nas experiências mais cotidianas, há casos que não podem ser explicados apenas pelo recurso aos cinco sentidos, pois pode haver percepção (captação de dados que produzem certeza) sem conteúdos que “passam” por eles. Um exemplo bastante simples é o caso das mães e dos pais que percebem a chegada dos filhos mesmo antes de eles entrarem em casa. Outras pessoas percebem que alguém está mal sem que haja qualquer sinal de mal-estar. Casos como esses permitem pensar a percepção em jogo na experiência religiosa, como foi feito, por exemplo, pelo filósofo estadunidense Keith Yandell (1938-2020), em seu

A epistemologia da experiência religiosa, de 1994, e pelo filósofo também estadunidense Charles Taliaferro (1952-), em sua obra Consciência e a mente de Deus, de 1994.

Obviamente, há um risco na compreensão de Deus como conteúdo de uma percepção, pois justamente a falta de critério sensível para avaliar tal experiência abre a possibilidade de que as pessoas chamem de Deus algo que pode não passar de uma realidade natural ou mesmo de um delírio.

A dificuldade de esclarecer o conteúdo da experiência religiosa despertou a curiosidade de diferentes filósofos na passagem da Idade Moderna à Idade Contemporânea, principalmente autores ligados ao Romantismo. Valorizando o papel da religião (junto com as artes) como fonte de saber e de orientação, alguns deles esclareciam que o ser divino não é percebido como “algo” que aparece no horizonte humano, mas exatamente como o próprio horizonte infinito que se abre ao ser humano quando ele se dá conta de que não pode dominar a existência por meio do pensamento.

MARIA GALAN/ALAMY/FOTOARENA

Assim, mais do que “algo” chamado Deus, o conteúdo de uma experiência religiosa são os efeitos produzidos na vida de uma pessoa quando ela reconhece um mistério transcendente e adere a ele. O conteúdo de sua consciência ou percepção são esses efeitos, os quais ela vivencia quando se põe em relação com o que ela chama de Deus, mesmo não o dominando conceitualmente. Numa palavra, a experiência de Deus é a experiência que a pessoa faz de si mesma na relação com o ser divino. Por sua vez, a análise filosófica da religião só é possível quando se debruça sobre a pessoa humana vista da perspectiva dessa experiência. Ela até pode ampliar-se para as ações das pessoas religiosas, o aspecto social de sua vivência, seu engajamento na transformação do mundo ou seu isolamento etc., mas o alvo fundamental da filosofia da religião é a consciência pessoal.

Deus, religião e consciência pessoal

Como Deus é o nome que se dá para o horizonte misterioso de realização do desejo humano de sentido, há um risco enorme de equivocar-se sobre ele e mesmo de manipular esse nome, falando dele segundo interesses particulares. O filósofo grego Xenófanes de Colofon (570 a.C.-475 a.C.), segundo consta, afirmava que, se os bois e os cavalos tivessem deuses, eles os representariam sob a forma de bois e cavalos. Xenófanes acreditava nos deuses gregos, mas também defendia a necessidade de evitar abusos no modo de falar sobre eles.

A dificuldade de avaliar o conteúdo da experiência religiosa levou ainda outros pensadores a enfatizar o risco de as religiões oferecerem aos humanos não propriamente um sentido transcendente, mas apenas aquilo que eles esperam encontrar. Chamando a atenção para esse grave risco, o escritor libanês Khalil Gibran (1883-1931) criou a seguinte fábula.

Deus faz chover ratos e ossos

Pregador: quem faz ensinamentos em um discurso público. Tutano: substância gelatinosa que se encontra no interior de alguns ossos.

Certo dia, um cachorro que era considerado sábio no mundo dos cachorros passou por um local onde estava reunida uma assembleia de gatos. Todos estavam tão concentrados, ouvindo religiosamente um pregador gato, que nem perceberam a presença do cachorro. Então, o cachorro sábio decidiu ouvir a pregação. Viu que aquele que falava era um gato grande, sério e muito respeitado. Ele tinha ares de quem conhece o assunto: – Meus irmãos, orem e orem sempre. Em verdade vos digo: se vocês orarem com muita fé, Deus fará chover muitos ratos do céu.

Esse discurso fez o sábio cachorro rir muito. Distanciando-se da assembleia dos gatos, disse para si mesmo: – Como podem ser tão iludidos e estúpidos esses gatos! Não é isso que está escrito no livro sagrado. Eu, porém, conheço a verdade. Aprendi no livro sagrado e meus antepassados aprenderam antes de mim. Se nós orarmos com bastante fé, não é rato que Deus fará chover, mas grandes ossos cheios de tutano!

GIBRAN, Khalil. Le sage chien [O cão s ábio]. In: PIQUEMAL, Michel. Les philo-fables. Paris: Albin Michel, 2008. p. 146-147. Tradução nossa.

REPRODUÇÃO/EDITORA

► HILST, Hilda. Do desejo. São Paulo: Globo, 2004.

Reprodução da capa.

• Obra poética em que a escritora brasileira explora o tema do desejo como experiência carnal marcada pela busca da eternidade.

Em razão do trabalho de pensadores como Friedrich Schleiermacher (1768-1834), a experiência religiosa deixou de ser incompreensível para o pensamento filosófico contemporâneo, uma vez que ele percebeu o equívoco da abordagem filosófica que, na análise da religião, pretendia começar por Deus, e não pela consciência pessoal.

Começar pela análise de Deus levava, segundo Schleiermacher, a reduzir a experiência religiosa a um tema de Metafísica, visão sobre o ser das coisas, ou de Ética, reflexão sobre as boas ações. Em vez disso, começar pela atitude de considerar a consciência da pessoa religiosa permite conhecer a especificidade de sua experiência, à qual o filósofo chamava de sentimento .

O sentimento é diferente da emoção; trata-se da percepção que envolve tanto a capacidade de pensar como a capacidade de identificar um valor naquilo que é percebido e aderir a ele. Em virtude do trabalho de Schleiermacher, passou-se a falar, em Filosofia, de sentimento religioso, experiência específica, relativa à percepção do mistério divino, que não convém reduzir nem à reflexão metafísica nem à elaboração de regras de conduta.

Stonehenge, em Wiltshire (Inglaterra), 2024. Alguns lugares do mundo, como Stonehenge, são conhecidos por despertarem em seus visitantes o senso do mistério e contribuírem para o sentimento de dependência de que falava Schleiermacher.

Para explicar o conteúdo específico do sentimento religioso, Schleiermacher identifica a experiência de uma dependência total do ser humano com relação aos outros seres e, principalmente, com o mistério infinito que produz uma aceitação amorosa. No seu dizer, o sentimento religioso se fundamenta em uma intuição, uma percepção direta que origina um profundo respeito por tudo o que existe, diante da impossibilidade de oferecer uma explicação total. O ser humano vê-se pequeno diante das coisas, finito, limitado, e reconhece que a realidade segue movimentos sem fim, deixando-se tomar por um amor desse mistério. Assim como a criança não precisa raciocinar para confiar no mundo e nos outros, a pessoa religiosa, com a simplicidade das crianças, aceita a vida e a ama, aceitando e amando também o mistério que permanece sempre no horizonte dessa mesma vida. A esse mistério se dá o nome Deus

DiCA

A religião não se reduz nem à Metafísica nem à Moral

Para tomar posse de sua propriedade, a religião renuncia a toda pretensão sobre tudo o que pertença [à Metafísica e à Moral] e devolve tudo o que lhe tem sido imposto pela força. Ela não pretende, como a Metafísica, explicar e determinar o Universo de acordo com sua natureza; ela não pretende aperfeiçoá-lo e consumá-lo, como a Moral, a partir da força da liberdade e do arbítrio divino no ser humano. A essência da religião não é pensamento nem ação, [mas] intuição e sentimento. Ela quer intuir o Universo, quer observá-lo piedosamente em suas próprias manifestações e ações; quer ser impressionada e plenificada, na passividade infantil, por seus influxos imediatos.

Desse modo, a religião se opõe a ambas [tanto à Metafísica como à Moral] em tudo o que constitui sua essência e em tudo o que caracteriza seus efeitos. A Metafísica e a Moral não veem em todo o Universo nada mais do que o ser humano como ponto central de todas as relações, como condição de todo [tipo de] ser e causa de todo devir; [em vez disso,] a religião quer ver no ser humano, não menos que em todo outro ser particular e finito, o Infinito, seu relevo, sua manifestação. A Metafísica parte da natureza finita do ser humano e quer determinar conscientemente, a partir de seu conceito mais simples e do conjunto de suas forças e de sua receptividade, o que pode ser o Universo para ele. A religião também desenvolve toda a sua vida na Natureza; porém se trata da natureza infinita do conjunto, do Uno e do Todo. […] A Moral parte da consciência da liberdade, cujo reino quer expandir até o infinito, procurando fazer com que fique submetido à liberdade; [já] a religião respira ali onde a liberdade mesma já se tenha convertido em Natureza. […] A religião se revela como o terceiro elemento necessário e imprescindível em relação à Metafísica e à Moral; ela é a contrapartida natural, não inferior em dignidade e excelência a qualquer das outras duas, seja qual for. Abandonar-se à especulação e a praxes, sem dar vez à religião, constitui uma arrogância temerária, uma desavergonhada hostilidade para com os deuses; tal é o ânimo ímpio de Prometeu, que roubou covardemente o que houvera podido exigir e esperar com tranquila segurança. O ser humano só tem roubado o sentimento de sua infinitude e de sua semelhança com Deus; e, como bem ilegítimo, não lhe pode ser proveitoso se ele não toma consciência, por sua vez, de sua limitação, do seu caráter contingente de toda a sua forma, da desaparição silenciosa de toda a sua existência no incomensurável.

SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião. Tradução: Daniel Costa. São Paulo: Novo Século, 2000. p. 33-34.

BIOGRAFIA

Friedrich Schleiermacher (1768-1834) foi um filósofo e teólogo alemão. Buscou estabelecer um conhecimento geral sobre a arte da interpretação dos textos e discursos, chamando a atenção para o papel dos indivíduos na construção do sentido dos mesmos textos e discursos. Dedicou-se também a identificar a religião como uma área específica entre os saberes. Obras mais conhecidas: Hermenêutica (c. 1805-1833) e Sobre a religião: discursos aos seus menosprezadores cultos (1799).

Natureza: no contexto empregado, significa o ser das coisas.

Essência: no contexto empregado, tem o significado geral de especificidade.

Piedosamente: com profundo respeito e reconhecimento, nascidos da percepção de algo superior.

Influxo: influência, estímulo.

Devir: vir a ser; dinamismo de transformação.

Especulação: elaboração de raciocínios.

Praxe: costume; prática.

Temerário: algo ou alguém imprudente, que não calcula os riscos de uma ação. Ímpio: sem piedade (respeito devido ao divino).

Contingente: variável. Incomensurável: aquilo que não pode ser medido.

► Retrato do filósofo Friedrich Schleiermacher. Século XIX.

PROMETEU acorrentado. Século XVIII. Escultura em terracota.

Observe como Schleiermacher compara a Prometeu quem não considera a especificidade da religião e dá ao seu conteúdo um tratamento próprio de outros saberes. Com efeito, Prometeu é um personagem da mitologia grega, intermediário entre os deuses e os humanos, e responsável por um ato de violência contra os deuses. Junto de Epimeteu, seu irmão, Prometeu havia recebido dos deuses a tarefa de produzir os animais e os seres humanos. Epimeteu se ocupou dos animais e deu a eles vários dons, como a força, a velocidade, as asas, as garras etc. Quando quis produzir o ser humano, já não tinha mais recursos para dar. É por isso que ele se chamava Epimeteu, que, em grego, significa “aquele que reflete depois de ter agido”.

Prometeu, então, roubou o saber divino, simbolizado pelo fogo sagrado do Olimpo (residência dos deuses) e o deu aos humanos. Por direito, o fogo era reservado aos deuses, e Prometeu sabia disso (seu nome significa “aquele que vê e reflete antes de agir”). Como castigo, Zeus, o maior dos deuses, condenou Prometeu a ser acorrentado no alto do monte Cáucaso, onde todos os dias vinha uma ave devorar seu fígado. Para seu sofrimento ser ainda mais forte, seu fígado se refazia todos os dias. A condenação previa que ele sofresse por 30 mil anos, mas Hércules o libertou, oferecendo, em troca de Prometeu, o centauro (um ser que era metade homem, metade cavalo) de nome Quíron.

O mito de Prometeu representa o orgulho humano e sua vontade de ignorar os deuses, ou, mais do que isso, de querer igualar-se a eles ou até superá-los. Por essa razão, Schleiermacher o associa às tentativas filosóficas de ignorar a especificidade da experiência religiosa ou de explicá-la com base em outros saberes.

EXERCICIO

B

Não escreva no livro.

1. Qual o conteúdo do sentimento religioso segundo Schleiermacher?

2. Observando sua própria vida, você considera que possui sentimento religioso? Justifique sua resposta.

Consultar orientações no Manual do Professor.

O Sagrado ou o Numinoso

Alguns pensadores, mesmo colocando-se em continuidade com a filosofia da religião de Friedrich Schleiermacher, identificaram nela uma fragilidade: ela abria espaço para pensar que a experiência religiosa é algo totalmente pessoal, restrito à consciência dos indivíduos, sem nenhuma garantia de que o conteúdo experimentado (a relação com Deus) possa ser mais do que uma fantasia ou uma projeção de ilusões (como a de “Todo”, “Uno”, “infinito”, “amor” etc.).

Procurando resolver essa dificuldade (conhecida como subjetivismo ), Rudolf Otto (1869-1937) procurou saber se seria possível identificar características do ser divino tal como ele se apresenta na relação com as pessoas religiosas. Para além do sentimento religioso ou da dependência total de que falava Schleiermacher, Otto buscava elementos que permitissem distinguir o objeto (conteúdo) divino da experiência em meio a outros objetos da consciência.

Rudolf Otto estudou, então, diversas religiões (além das religiões mais conhecidas em sua época, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, também o vedismo, o hinduísmo, o taoísmo, religiões africanas etc.), a fim de observar se a vivência dos seus praticantes revelaria traços comuns no modo de ver o mistério divino. O resultado foi surpreendente, pois Otto constatou que, independentemente dos rostos dados ao mistério divino pelas diferentes religiões, ele é visto de maneira muito parecida em todas elas.

Por essa razão, Otto defendeu a criação de um novo conceito para referir-se ao conteúdo específico que se apresenta como polo da relação religiosa: trata-se do conceito de Sagrado ou Numinoso.

Em seu livro, cujo título é exatamente O sagrado, publicado pela primeira vez em 1917, Otto justifica seu procedimento de estudo afirmando que, quando se observam semelhanças em diversas experiências, parece legítimo concluir que o seu objeto ou o seu conteúdo (o mistério divino) também é o mesmo nas diferentes religiões ou, pelo menos, aparece com características semelhantes em todas elas. Identificar essas características permitiria encontrar um critério que leva a distinguir a experiência especificamente religiosa.

Subjetivismo: concepção segundo a qual toda forma de pensamento depende sempre de um sujeito (indivíduo) e é válida pelo simples fato de esse sujeito a afirmar.

Numinoso: algo que tem as características de um nume, ser superior que eleva e inspira.

► TORDJMAN, Yoel. Let me fly [Deixe-me voar]. 2012. Pintura acrílica sobre alumínio, 180 cm x 110 cm. Saatchi Gallery, Londres (Inglaterra). Como ocorre com o voo dos pássaros, a experiência religiosa pode constituir-se em uma das formas mais intensas de exercício da liberdade.

YOEL TORDJMAN/ACERVO DO ARTISTA

KIRCHER, Athanasius.

Diagram of the names of God [Diagrama dos 72 nomes de Deus].

Séc. XVII. In: KIRCHER, Athanasius. Oedipus Aegyptiacus. [S l.: s n.], 1652 -1654. Desenho que mescla elementos da cultura judaica, cristã e egípcia.

De acordo com a observação de Rudolf Otto, as características comuns ao Sagrado, tal como experienciado nas diferentes religiões, são:

a) o Sagrado é encontrado como algo que provoca um sentimento do estado de criatura: quando a pessoa percebe o Sagrado, sente que a vida é recebida e que nada no mundo é suficiente para explicar esse sentimento;

b) o Sagrado é encontrado como mistério tremendo ou mistério que causa espanto: ao perceber o Sagrado, a pessoa tem certeza de que está diante de algo maior do que ela e do que tudo o que existe; na contrapartida, essa experiência faz com que a pessoa tenha noção também de sua pequenez;

c) o Sagrado é encontrado como mistério fascinante: a pessoa não sente medo diante do Sagrado, mas fascinação, sente-se fortemente atraída por ele, desejando conhecê-lo;

d) o Sagrado é enc ontrado como algo que produz uma força ou energia nova: a pessoa religiosa sente um impulso ou uma vitalidade nova quando estabelece uma relação com o ser divino. Dessa perspectiva, entende-se que as diferentes concepções de Deus ou do mistério divino (os “rostos” dados a ele) são maneiras de interpretar o Sagrado que se manifestam no horizonte humano. Essas interpretações correspondem ao que as religiões chamam de revelação (o Primeiro Testamento para os judeus; o Primeiro e o Segundo Testamento para os cristãos; o Alcorão para os muçulmanos; o Bhagavad-Gita para os hindus; e assim por diante). No entanto, a leitura desses textos, para ter um sentido propriamente religioso (e não apenas histórico, sociológico ou mesmo de manipulação ideológica), requer a experiência de se pôr em relação com o mistério divino.

A consciência de que os livros revelados são apenas expressões do Sagrado é fundamental para preservar e garantir o caráter misterioso do próprio Sagrado. Assim, ainda que uma religião considere seu texto revelado como um retrato fiel do ser divino, ela não respeitará a transcendência divina se afirmar que Deus se reduz somente àquilo que está escrito no texto revelado.

O cuidado com o caráter misterioso do ser divino levou também diferentes filósofos a concluir que o ser

divino só pode ser percebido por meio de seus efeitos . Conhecê-lo diretamente significaria dominá-lo pelo pensamento, ao modo como se dominam outros objetos da consciência; e ele deixaria de ser um mistério ou um objeto de conhecimento inesgotável. Dessa perspectiva, seria impossível fazer u m discurso sobre Deus começando por ele mesmo. Resta apenas a possibilidade de partir dos efeitos atribuídos a ele e, assim, construir um discurso indireto sobre essa divindade. O recurso elementar para construir esse discurso indireto é a analogia. Se há bondade no mundo, afirma-se que Deus, sendo a origem de tudo, também deve ser bom de algum modo; se há beleza, então Deus deve ser belo; e assim por diante. Assim também, quando se afirma que o ser divino é “pai”, “amoroso”, “fonte de equilíbrio” etc., isso quer dizer que ele é “como um pai” (pressupondo que todo pai deveria ser bom), mas ele não é exatamente um “pai” (se ele fosse um pai, teria também um pai, um avô etc.), nem é “amoroso” ao modo do amor imperfeito que percebemos no mundo, nem uma “fonte” que pode se esgotar. Aliás, Deus também pode ser visto como “mãe” (pressupondo que toda mãe deveria ser boa), já que ele não é nem “pai” nem “mãe”, pois não tem sexo ou gênero.

Independentemente do rosto que se dê ao mistério divino ou a Deus, resta um desafio à filosofia da religião: analisar as razões oferecidas para afirmar que o mistério divino existe. Não se trata de “provar” sua existência por si mesmo, como se ele fosse uma “coisa” para a qual se pudesse apontar com o dedo. Trata-se de justificar que o horizonte misterioso de sentido da vida humana seja chamado de divino (diferente do mundo ou da Natureza).

Nessa frente de trabalho reflexivo, o diálogo com os que negam a existência de Deus é uma atitude bastante esclarecedora.

EXERCICIO

• Com base no uso da analogia, explique a seguinte frase: “Uma pessoa religiosa pode crer que conhece Deus, mas não pode ter a pretensão de dizer que Deus é só aquilo que ela pensa que ele é”.

Consultar orientações no Manual do Professor

► DUBOIS, François. Le massacre de la Saint-Barthélemy [Massacre da noite de São Bartolomeu] ca. 1572-1584. Óleo sobre madeira, 93,5 cm x 151,4 cm. Musée Cantonal des Beaux-Arts, Lausanne (Suíça). O autor retrata o sangrento combate entre cristãos católicos e protestantes no episódio conhecido como Noite de São Bartolomeu. A Reforma Protestante e a Contrarreforma (ou Reforma Católica) debateram intensamente o papel da liberdade humana no ato de fé, além da autoridade dos textos sagrados e de seus intérpretes institucionais.

CUIDADO lOGICO Ônus da prova?

O Princípio de Clifford e o Outro Princípio de Clifford

Evidência: característica de algo inquestionável; de algo cujo contrário é absurdo.

Tem se tornado comum, em debates filosóficos sobre a existência de Deus, afirmar que cabe a quem tem fé o “ônus da prova”, isto é, a obrigação de provar a existência de Deus, assim como em um tribunal cabe ao acusador apresentar a prova que torna alguém culpado. Nessa linha de pensamento, o matemático e filósofo inglês William K. Clifford (1845-1879), grande combatente da ignorância promovida por certas pessoas religiosas, defendia que é sempre uma desonestidade e um erro crer em algo sem evidência . Por exemplo, seria racionalmente errado e moralmente desonesto aconselhar alguém a sair sem guarda-chuva quando a meteorologia anuncia que provavelmente vai chover. O caráter “provável” da chuva (falta de evidência) não permite crer que não vai chover. Essa maneira de raciocinar ficou conhecida como Princípio de Clifford .

Outros pensadores, porém, enfatizam que nossas crenças (mesmo científicas) nem sempre são baseadas em evidência. No caso da crença na existência de Deus, seria mesmo contraditório pretender prová-la, pois qualquer “prova” anularia o caráter misterioso do ser divino. Nesse sentido, o filósofo norte-americano Peter van Inwagen (1942-) formulou o Outro Princípio de Clifford: é sempre uma desonestidade e um erro rejeitar sem base em evidência aquilo que é contrário às nossas crenças. Dessa perspectiva, é racionalmente legítimo crer naquilo que a razão não obriga a rejeitar: a própria razão reconhece que, se ela não pode provar o absurdo de algo, ela mesma pode aceitar crer nesse algo, embora ela também tenha consciência de que nada a obriga a crer. Por exemplo, alguém pode crer que comer doces faz mal à saúde. Ora, a evidência de que os doces fazem mal à saúde é frágil, porque se baseia apenas em pesquisas parciais (feitas somente com pessoas que ficaram doentes comendo doces). A rigor, não haveria propriamente uma evidência, em sentido forte, de que doces fazem mal a todas as pessoas. No entanto, se alguém crê que comer doces faz mal, seria uma desonestidade para consigo mesmo(a) deixar de seguir sua crença apenas porque ela não é baseada em uma evidência definitiva. Sua razão, mesmo percebendo a fragilidade da evidência, aceita que não é possível provar definitivamente o prejuízo de comer doces, mas compromete-se com a crença nesse prejuízo por motivos válidos para a pessoa em questão (ela sente que, no seu caso, comer doces faz mal).

Aplicado à crença em Deus, o Outro Princípio de Clifford mostra que a própria razão, percebendo o caráter misterioso do ser divino, pode crer nele, dado ser impossível provar que ele não existe. Nesse sentido, é a própria razão que crê; e, de certo modo, o Outro Princípio de Clifford devolve o “ônus da prova” a quem nega a existência de Deus.

Da perspectiva do Outro Princípio de Clifford torna-se compreensível a afirmação do filósofo Søren Kierkegaard (1813-1855), que considerava a fé ou a crença em Deus como um “salto” no escuro do mistério divino. Tal “salto”, mais do que representar um ato irracional ou de renúncia à inteligência, consiste numa atitude em que a razão mesma, aliada ao sentimento, percebe que algo talvez a ultrapasse e aceita entrar nesse mistério. A fé religiosa autêntica resulta, assim, de um ato da pessoa em sua unidade, incluindo a razão.

► COLLIER, John. William Kingdon Clifford. 1878. Óleo sobre tela, 59,7 cm x 47,6 cm. National Portrait Gallery, Londres (Reino Unido).

Irreligiosidade e ateísmo

A crença na existência de Deus foi questionada por diferentes filósofos.

Em alguns casos, porém, o alvo da crítica não é propriamente o mistério divino, e sim as práticas das pessoas e grupos religiosos que produzem formas de vida autoritárias, obscurantistas, escravizadoras das mentes e violentas. A esse tipo de crítica se costuma denominar irreligiosidade, quer dizer, uma atitude contrária às religiões.

Outros pensadores, por não compreenderem ou por não terem experienciado o sentimento religioso, optam honestamente pelo agnosticismo, atitude de não comprometimento nem com a afirmação nem com a negação da existência de Deus.

Dois dos autores mais conhecidos por sua crítica à religião foram Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Baruch de Espinosa (1632-1677).

O primeiro ataca não apenas a religião, mas também Deus; o segundo denuncia a religião, mas continua a falar sobre Deus.

Na análise de Nietzsche, a prática religiosa contraria o que há de mais autêntico no ser humano: sua força e os impulsos naturais que o levam a querer viver, afirmar-se e dominar tudo o que representa obstáculo. A prática religiosa levaria ao enfraquecimento, à negação do mundo e da vida, à hipocrisia, construindo a fantasia de que é melhor ser fraco, humilde e confiar em um ser maior e diferente do mundo, o ser divino.

Essa mentalidade, segundo Nietzsche, é traiçoeira, enganadora e prejudicial, pois, na verdade, fazendo-se passar por pessoas fracas e humildes, os religiosos, no fundo, desejam dominar. No entanto, com a preguiça e a má vontade para lutar, inventam um mecanismo doentio pelo qual se vingam das pessoas mais fortes.

No texto a seguir, Nietzsche refere-se aos cristãos. Por isso, aparecem noções como “além” (o Céu), “vida eterna” e “pecado”.

Mentiras religiosas

[…] essas pequenas coisas – alimentação, lugar, clima, recreação, a inteira casuística do amor-próprio – são, para além de todos os conceitos, mais importantes do que tudo a que se deu importância até agora. Aqui precisamente é necessário começar a reaprender. Aquilo que até agora a Humanidade ponderou seriamente nem sequer são realidades, são meras imaginações ou, dito mais rigorosamente, mentiras provenientes dos piores instintos de naturezas doentes, perniciosas no sentido mais profundo: todos os conceitos “Deus”, “alma”, “virtude”, “pecado”, “além”, “verdade”, “vida eterna”… Mas procurou-se neles a grandeza da natureza humana, sua “divindade”… Todas as questões, da política, da ordem social, da educação foram falsificadas pela base e pelo fundamento por se

Autoritário: quem procura convencer pela autoridade que acredita ter, e não por argumentos.

Obscurantista: que diminui a “luz” do pensamento.

Casuística: reflexão moral repleta de detalhes e sutilezas.

Ponderar: refletir; pesar; avaliar.

Pernicioso: algo que pode causar danos.

Funesto: que produz morte.

Finura: delicadeza.

► AS FITAS do ateísmo.

Direção: Jonathan Miller, Richard Denton: Estados Unidos/Inglaterra BBC, 2005. Streaming (180 min).

• Entrevistas com cientistas e filósofos que explicam as razões de sua negação da existência de Deus.

tomarem os homens mais perniciosos por grandes homens – por aprenderem a despertar as “pequenas” coisas, quer dizer, as disposições fundamentais da própria vida… E, se me comparo com os homens que até agora foram honrados como os primeiros dos homens, a diferença é palpável. Nem sequer tenho esses pretensos “primeiros” em conta de homens em geral são para mim o vômito da humanidade, aborto de doença e instintos vingativos: são apenas funestos, no fundo incuráveis monstros inumanos, que tomam vingança da vida… Disso quero ser o oposto: minha prerrogativa é ter a suprema finura para todos os signos de instintos sadios. […] A vida se tornou leve para mim, levíssima, quando reclamava de mim o mais pesado. […]

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. In: LEBRUN, Gérard (org.). Obras incompletas. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. (Coleção Os pensadores, p. 421-422).

Observe como esse texto de Nietzsche, marcado de grande força e elaboração literária, é um exemplo de irreligiosidade, ou seja, de combate à religião. Sem conter necessariamente um argumento que negue a existência de Deus, o filósofo levanta-se contra as pessoas que, dizendo-se religiosas, vão contra a vida, vingam-se e fogem dela, fixando sua atenção no que Nietzsche considerava um conjunto de fantasias: “Deus”, “alma”, “virtude”, “pecado”, “além”, “verdade”, “vida eterna”. É curioso notar, porém, que o pensamento de Nietzsche ganha a simpatia mesmo de pessoas que têm fé, mas que também percebem a “doença” de certas práticas religiosas. Em vez de enraizar a fé no gosto pela vida, essas práticas usam a fé para apegar-se à tristeza, ao pessimismo e à vingança.

Nietzsche nutria certa admiração pelo personagem histórico de Jesus Cristo, mas denunciava formas de vida cristã que ele conheceu bem. Ações amargas, rancorosas, rígidas, repletas de condenações morais e hipócritas contribuíram para que o filósofo desenvolvesse sua visão da religião como uma mentira ou um jogo de vingança. Pessoas incapazes de lutar ou exercer a força dos instintos fazem passar-se por ovelhas mansas a fim de controlar os mais fortes, introduzindo neles um sentimento de culpa por serem fortes.

Quanto a Baruch de Espinosa, ele certamente foi o pensador mais radical na denúncia da religião. Sem, no entanto, negar a existência de Deus, Espinosa atacou a base mesma da fé religiosa: a crença de que Deus é diferente do mundo ou da Natureza. Pensador de extrema capacidade de análise, Espinosa construiu uma filosofia em que somente era considerado racional aquilo que pudesse ser demonstrado de modo semelhante aos procedimentos da Matemática. Dado que algo como um mistério divino não pode ser

DiCA

tratado dessa maneira, não haveria por que afirmar sua existência. Ademais, segundo Espinosa, o mundo pode ser explicado por si mesmo, no campo da pura imanência, sem recurso a nenhuma transcendência. O próprio mundo, portanto, deve ser chamado de divino; e, chamando o mundo de divino, Espinosa muda completamente o sentido desse termo, tirando dele toda significação de ser maior do que o mundo e dando-lhe o sentido de fonte e destino internos ao próprio mundo. O filósofo holandês construiu, assim, uma “metafísica sem transcendência”, alterando também, por fim, o significado da própria palavra Deus: agora, Deus é o mundo ou a Natureza.

Deus sem transcendência

Como Deus é um ente absolutamente infinito, do qual nenhum atributo que exprima a essência de uma substância pode ser negado, e como ele existe necessariamente, se existisse alguma substância além de Deus ela deveria ser explicada por algum atributo de Deus, e existiriam, assim, duas substâncias de mesmo atributo, o que é absurdo. Portanto, não pode existir e, consequentemente, tampouco pode ser concebida nenhuma substância além de Deus. Pois, se pudesse ser concebida, ela deveria necessariamente ser concebida como existente. Mas isso é absurdo. Logo, além de Deus, não pode existir nem ser concebida nenhuma substância.

Disso se segue, muito claramente, em primeiro lugar, que Deus é único, isto é, que não existe na natureza das coisas senão uma única substância, e que ela é absolutamente infinita.

ESPINOSA, Baruch. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 29, 31. Parte I, Proposições 11 e 14.

No seu entender, a ideia de Deus é algo que tem sentido racional (um ser infinito que produz a si mesmo); nada obrigaria racionalmente a associar Deus a um ser diferente do próprio mundo ou da Natureza. Para entender o texto de Espinosa, faz-se necessário esclarecer pelo menos três termos: essência, atributo e substância. A fonte para esse esclarecimento é o início da mesma obra da qual foi extraído o trecho lido, chamada Ética.

A essência, segundo Espinosa, é a identidade de algo, a qual pode ser pensada com recursos da razão, sem necessidade de nenhum auxílio externo a ela. O atributo é aquilo que, também pela capacidade racional, o ser humano percebe como algo que faz parte da essência. Por sua vez, a substância é algo que existe em si mesmo, quer dizer, que não existe em dependência de outra coisa e que pode ser pensado por si mesmo (é aquilo cujo conceito não precisa de outro conceito para ser formado).

Ente: algo que existe (realmente, ou pelo menos no pensamento).

► Estátua do filósofo Baruch de Espinosa em Amsterdã (Holanda), 2012.

ROBERT VANT HOENDERDAAL/ALAMY/FOTOARENA

Planta suculenta em que as partes são estreitamente ligadas ao núcleo, formando com ele uma unidade. Dado que as partes da planta são continuidades diretas do núcleo, essa imagem pode ser tomada como representação ou analogia da concepção espinosana da única substância divina da Natureza.

Dado esse vocabulário, o raciocínio de Espinosa pode ser expresso como segue:

1. se Deus só pode ser pensado como aquele cuja essência é a de ser absolutamente infinito,

1.1. então não se pode negar que ele tenha todos os atributos que exprimem a essência de uma substância (se Deus não tivesse algum atributo, não seria infinito);

1.2. e então Deus existe necessariamente (se não existisse, faltaria a ele o atributo da existência, o que faria com que ele não fosse infinito);

2. seria, por isso, absurdo pensar que existe alguma substância diferente de Deus,

2.1. pois uma substância diferente de Deus teria de ter o mesmo atributo de Deus,

2.2. o que faria duas substâncias terem o mesmo atributo;

3. ora, é absurdo pensar duas substâncias com o mesmo atributo, então só há uma substância, que é infinita;

4. se as coisas existem e se a existência é um atributo de Deus, a natureza das coisas é o próprio Deus; só há uma única substância (a natureza das coisas), absolutamente infinita.

A grande transformação operada por Espinosa está em sua insistência no fato de que pensar com coerência sobre o mundo exige pensar uma única substância absolutamente infinita. Só há um ser, que é divino por ser absolutamente infinito. Isso não quer dizer que todas as coisas percebidas são “partes” de Deus; elas são suas expressões singulares. Como explica Espinosa em outros trechos de sua obra, as coisas não são criadas por Deus como se elas fossem diferentes dele. Todas as coisas são modos de Deus , são a manifestação dos atributos divinos: o atributo “extensão” produz os corpos; e o atributo “pensamento” produz ideias e mentes (ou almas). Corpos e mentes são expressões de Deus imanentes a ele.

Nesse trabalho está a raiz da irreligiosidade de Espinosa. Deus deixa de ser entendido como mistério transcendente e passa a ser concebido como o infinito que opera por seus modos finitos ou pelas coisas que existem nele mesmo. Segundo Espinosa, não se crê em Deus, mas se conhece Deus: ele é explicado racionalmente. Dessa compreensão surge o verdadeiro amor por Deus ou pela sua essência infinita. O amor é conhecimento acompanhado de alegria, a qual, por sua vez, é a passagem de um conhecimento para outro conhecimento maior. Esse estado de conhecimento amoroso ou alegre resulta na liberdade, pois o ser humano se livra de falsos conhecimentos como as imaginações religiosas que mantêm os seres humanos na escravidão do medo. A origem da religião, portanto, será, segundo Espinosa, o medo ou as emoções tristes que nascem da ignorância humana.

Na direção contrária ao medo e à superstição, o ser humano se torna livre quando compreende que toda a realidade é divina e que ele mesmo é um modo da essência infinita. Como modo finito de um ser infinito, o ser humano, pelo conhecimento racional, pode entender que sua tendência é permanecer no ser ou na existência. Em outras palavras, sua tendência é igualar-se ao seu conceito (ao que ele compreende); essa tendência é uma possibilidade inscrita em todos os humanos e, por isso mesmo, é sempre positiva, é desejo, é força que leva a melhorar a própria existência por meio da razão, e não por meio de ficções como as religiosas. A ela, Espinosa chamava conatus.

A impactante filosofia de Espinosa é um testemunho claro de que, para recusar a existência de Deus tal como afirmada religiosamente, é preciso atacar a ideia de transcendência, e não apenas criticar os rostos que as religiões dão a Deus. Quando se ataca a raiz da transcendência e se constrói uma argumentação para negar toda possibilidade de conhecimento de Deus ocorre outra atitude filosófica, o ateísmo.

O filósofo inglês Bertrand Russell, por exemplo, dedicou-se a várias maneiras de refutar os argumentos de quem defende a existência de Deus. Uma delas se concentra na ideia de que o mundo foi criado ou produzido por um ser divino diferente do próprio mundo.

Em síntese, o argumento de Russell consiste em denunciar o erro ou a falácia do argumento segundo o qual o mundo teria uma causa primeira (a que se denomina Deus): trata-se de uma falácia, segundo Russell, porque, se tudo tem uma causa, então Deus mesmo seria causa de algo, deixando de ser a “causa primeira”.

Por outro lado, se a ideia de causa primeira é falaciosa, então se torna desnecessário procurar por ela. Mais do que isso, torna-se possível, segundo Russell, pensar que algo pode existir sem causa. Ora, se é possível

► LUZ de inverno. Direção: Ingmar Bergman. Suécia: Svensk Filmindustri (SF), 1962. 1 DVD (81 min). Pôster do filme.

• O f ilme retrata a crise de fé de Tomas Ericsson, pastor luterano que luta para continuar crendo em Deus quando se encontra profundamente abalado diante das dificuldades da vida.

BIOGRAFIA

Bertrand Russell (1872-1970) foi um filósofo, matemático e lógico inglês, cujo pensamento contribuiu decisivamente para uma das tradições filosóficas do século XX, a chamada filosofia analítica, centrada no interesse pela lógica e pela linguagem. Também foi ativista político e pacifista, defensor da justiça social e da liberdade. Obra mais conhecida: Principia Mathematica (Princípios matemáticos), publicada pela primeira vez em 1910.

pensar que algo existe sem causa, esse algo pode ser tanto Deus como o mundo, de onde se provaria a inutilidade do raciocínio que chega a Deus. Pode-se dizer, de modo resumido, que a reflexão de Bertrand Russell representa um núcleo comum a diversas formas de pensamento ateu. Trata-se de anular a referência a toda possibilidade de transcendência e de apontar para o equívoco de pensar em Deus como causa diferente do próprio mundo. De modo semelhante operaram filósofos como Georg W. F. Hegel (1770-1831), Karl Marx (18181883), Ludwig Feuerbach (1804-1872), Jean-Paul Sartre (1905-1980), entre outros. Feuerbach procedeu a uma análise da crença em Deus como projeção ou imaginação do próprio ser humano, que transforma o “mistério” do mundo em um ser divino. Mas tal ser divino não seria mais do que um “ser humano aumentado” ou “infinitizado”.

BIOGRAFIA

Ludwig Feuerbach (1804-1872) foi um filósofo alemão reconhecido por seu ateísmo humanista e pela influência que exerceu sobre Karl Marx. Abandonou os estudos de teologia para ser aluno de Hegel durante dois anos em Berlim, tornando-se depois crítico da filosofia hegeliana. Seu pensamento é reconhecido como uma importante mediação entre o idealismo alemão e o materialismo histórico de Marx e Engels. De acordo com Feuerbach, a religião é uma forma de alienação que projeta os conceitos do ideal humano de perfeição em um ser supremo. Obras mais conhecidas: A essência do cristianismo (1841) e Preleções sobre a essência da religião (1846).

► KANDINSKY, Wassily. O grande domingo. 1911. Xilogravura em cores, 21,9 cm x 21,9 cm. Kandinsky era fascinado pela tentativa de “pintar sons”, exercício que contribuía, no seu dizer, para elevar o ser humano à transcendência.

► Retrato do filósofo Ludwig Feuerbach.
► O filósofo Bertrand Russel em 1951.

O deísmo e o teísmo

A reflexão ateia é recente na História da Filosofia. Sempre houve, é verdade, desde os inícios da Filosofia, críticas à religião e ao modo como os seres humanos falam do ser divino. Xenófanes de Colofon e mesmo Platão (427 a.C.-347 a.C.) são alguns exemplos dessa crítica. Já a reflexão sistemática com o objetivo de negar a existência de Deus tal como visto pelas religiões nasceu apenas nos séculos XVII e XVIII.

Em sentido contrário ao ateísmo moderno, alguns filósofos procuraram afirmar a existência de um ser divino para explicar o funcionamento do mundo, mas sem adotar uma concepção religiosa nem se basear em textos sagrados. Se um relógio pressupõe a existência de um relojoeiro, Deus seria o “relojoeiro” do mundo, seu grande “arquiteto”. Não se tratava, porém, de concebê-lo em uma relação religiosa, mas como uma peça no quebra-cabeça de explicação do mundo. Essa postura filosófica chama-se deísmo (do latim deus), e alguns de seus representantes são Voltaire (1694-1778) e Rousseau (1712-1778).

Outra atitude filosófica, porém, consiste em justificar a afirmação da existência de Deus e defender a possibilidade de uma relação com ele por intermédio dos textos sagrados. A ela se chama teísmo (do grego théos ). Essa postura não nasceu em reação ao ateísmo, pois é anterior e data do encontro entre o pensamento antigo, greco-romano, e a fé judaico-cristã. Ela se desenvolveu fortemente na Idade Média, continuou na Modernidade, com filósofos como Pascal (1623-1662) e Leibniz, e continua até os dias de hoje.

BIOGRAFIA

Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716)

Foi um filósofo, matemático, cientista e diplomata alemão. Entre seus feitos matemáticos e científicos estão o desenvolvimento do cálculo integral moderno, cuja descoberta também é atribuída a Newton, e a criação do conceito de energia cinética em Física. Em Filosofia, Leibniz é conhecido por sua concepção do Universo como o conjunto de mônadas, ou unidades, que seriam substâncias espirituais indestrutíveis, individuais e dinâmicas, espelhos da totalidade do mundo organizado por Deus em uma harmonia universal. Obras mais conhecidas: Novos ensaios sobre o entendimento humano (1704), Ensaios de Teodiceia (1710) e A monadologia (1714).

► Retrato do filósofo Gottfried Leibniz. Restauração digital com base em gravura do século XIX.

BIOGRAFIA

► Estátua de pedra do filósofo Xenófanes em Viena (Áustria).

Xenófanes de Colofon (570 a.C.-475 a.C.) foi um filósofo e poeta grego nascido na cidade de Colofon, na Jônia (atual costa ocidental da Turquia). Crítico do antropomorfismo dos poetas e da mitologia de Homero e Hesíodo, considerava absurda a ideia de que os deuses possuíam forma, nasciam e eram movidos por paixões humanas, praticando atos de violência, fraude e luxúria. Para Xenófanes, o ser divino era uno, onisciente, perfeito, imóvel e eterno. De sua obra restaram apenas uma centena de versos, registrados em publicações de outros autores.

Causa eficiente: causa do dinamismo que produz algo; ponto de origem desse dinamismo.

Sensível: que pode ser percebido por meio dos cinco sentidos.

Ordem: concatenação bem-organizada; série que tem um sentido articulado.

Para os filósofos teístas, os problemas e comportamentos doentios surgidos com as religiões não são suficientes para negar a existência do mistério divino. Muitos deles, aliás, teceram críticas impactantes às práticas religiosas.

Por sua vez, para justificar a afirmação segundo a qual Deus existe, tais filósofos concentram-se precisamente em defender o que eles consideram a insuficiência do mundo para a explicação do próprio mundo e do horizonte de sentido que se abre à realização humana. Um dos exemplos mais conhecidos nessa direção é o trabalho de Tomás de Aquino (1225-1274), em seus livros Suma teológica (1943) e Suma contra os gentios (c. 1259-1265), entre outros. O núcleo de seu argumento está na experiência humana que leva a afirmar que tudo tem uma causa. Como não se observa no mundo nada que se tenha causado a si mesmo, mas, em vez disso, tudo recebe a existência de outro ser, Tomás concluía que a grande rede de causa e efeito observada no mundo deve ter sido produzida por um ser externo ao mundo, transcendente a ele. A esse ser transcendente ele denomina Deus. Na Suma teológica, Tomás emprega a expressão causa eficiente, tomada de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), para significar aquilo que dá o impulso que faz alguma coisa existir (o artesão, por exemplo, é a causa eficiente da mesa produzida por ele).

Deus é a causa eficiente primeira

[Este caminho para provar que Deus existe] é tomado daquilo que se entende por causa eficiente. Em tudo o que é sensível encontramos uma ordem de causas eficientes: não se encontra, nem se pode encontrar, algo que seja causa eficiente de si mesmo, porque, se fosse causa eficiente de si mesmo, existiria antes de si mesmo [para poder causar-se], o que é impossível. Tampouco é possível proceder ao infinito nas causas eficientes, porque, em todas as causas eficientes ordenadas, o que vem primeiro é causa do que é intermediário; e o que é intermediário é causa do que vem por último, seja no caso de uma ordem de muitas causas, seja no caso de uma única causa. Assim, removida uma causa, remove-se também seu efeito. Portanto, se não houvesse um primeiro na ordem das causas eficientes, não haveria nem um intermediário nem um último. Mas, se se procede ao infinito na ordem das causas eficientes, não haverá uma primeira causa eficiente: por conseguinte, não haverá nem efeito último nem causas eficientes intermediárias. Mas é claramente falso pretender isso. Portanto, é necessário pôr [afirmar] alguma causa eficiente primeira: a ela todos denominam “Deus”.

TOMÁS DE AQUINO. Summa theologiae I, 1, 3 [Suma teológica]. Roma: San Paolo, 1988. p. 13-14. Tradução nossa.

A argumentação de Tomás de Aquino pode ser resumida nos seguintes passos:

1. a observação das coisas sensíveis (o mundo tal como percebido pelos cinco sentidos) faz ver que há uma ordem de causas eficientes, quer dizer, cada coisa é causada por outra coisa que lhe dá o impulso que a faz existir;

2. isso se confirma pela observação de que nada no mundo é causa de si mesmo, pois, para ser causa de si mesmo, algo teria de já existir a fim de poder causar-se (o que parece absurdo);

3. mas, caso se concorde que todas as coisas são causadas por outras, será preciso afirmar que existe uma primeira causa de tudo, pois, do contrário, não se poderia falar de uma ordem ou de uma série de causas no mundo;

4. no entanto, se não se afirmar uma série de causas no mundo, vai-se contra a percepção sensível, que constata o fato de que tudo recebe sua existência de outro (todas as coisas são causadas por outras);

5. então, para respeitar a observação, é preciso dizer que há uma série de causas e que deve haver uma primeira causa;

6. dado que nada no mundo é causa de si mesmo, a primeira causa tem de ser diferente do mundo, pois, do contrário, não se respeita o que foi dito no passo 2;

7. a essa primeira causa, por ser diferente do mundo, chama-se Deus. Numa palavra, para pensar o mundo com coerência e respeitar a percepção sensível, será necessário, segundo Tomás de Aquino, afirmar que o mundo tem uma causa diferente dele mesmo, a qual, por sua vez, deve ser vista como causa “incausada” (ela é causa, mas não é causada). Afinal, se ela também for causada, a busca das causas se reabre ao infinito e não se pode falar de ordem ou série de causas, o que vai contra a percepção sensível.

A causa primeira de que fala Tomás de Aquino não significa necessariamente um começo temporal do mundo; ele pode ter existido sempre. Apenas com base na observação sensível não é possível afirmar definitivamente nem que o mudo foi começado nem que não o foi, pois ninguém tem experiência sensível do “começo” ou do “não começo” do mundo.

MUSEUDEBELASARTESDECÓRDOBA,ESPANHA

► PEÑALOSA Y SANDOVAL, Juan de. Santo Tomás de Aquino. [ca. 1610-1615]. Óleo sobre tela, 306 cm x 266 cm. Museu de Belas Artes de Córdoba (Espanha).

Segundo Tomás de Aquino, tendo começado ou não, o mundo só pode ser pensado com coerência caso se aponte para uma dimensão que fez o mundo ser como é. Em outras palavras, tanto se o mundo existe desde sempre como se ele começou a existir em um momento preciso, ele existe porque uma causa primeira o fez existir. Será por um ato de fé que se tornará possível defender que o mundo teve um começo, embora a consciência da necessidade da fé para essa conclusão mantenha a validade de dizer que nada pode existir sem causa.

Dessa perspectiva, se Tomás de Aquino pudesse responder a Bertrand Russell, ele provavelmente diria que o princípio da causa primeira é racionalmente válido somente para o mundo. Aplicar algo válido para o mundo ao pensamento sobre algo que supera o mundo seria injustificado. Em outras palavras, é justamente para garantir a compreensão do mundo que ele, Tomás, aponta para uma causa externa ao mundo. Não seria coerente falar em uma conexão de causas e efeitos no mundo sem pressupor uma primeira causa não causada. Chamando a essa causa externa de Deus, o filósofo esclarece que ela é causa de si mesma, não necessitando ser causada por algo diferente dela.

Além disso, Tomás insiste que a causa primeira só pode ser pensada com coerência caso seja entendida como transcendente. Afinal, só algo infinito pode ser causa de outra coisa, sem ser ele mesmo causado. Mas, sendo infinito, esse algo tem de ser pensado como um ser consciente e livre (do contrário, se lhe faltasse consciência e liberdade, ele seria limitado e, portanto, finito). Ser consciente e livre, por sua vez, requer que ele possa fazer ou não aquilo que se passa em sua “mente”. Por conseguinte, como nada no mundo revela ser capaz de fazer tudo o que quer (porque, no mundo, todos os seres são finitos), então esse algo precisa ser pensado como transcendente ao mundo; a ele se dá o nome Deus. No limite, só há a existência de Deus; e todo o restante existe “em Deus”, sem necessariamente identificar-se com ele, uma vez que, como fonte consciente, livre e infinita, ele garante sua diferença em relação às coisas do mundo.

VOLTOLINA, Laurentius de. Henrique da Alemanha com seus alunos. Século XIV. Pintura em pergaminho, 18 cm x 22 cm. Museu de Gravuras e Desenhos, Berlim (Alemanha). As universidades foram o principal ambiente em que se cultivou a Filosofia durante os últimos séculos da Idade Média. Nesse contexto se destacou o pensamento de Tomás de Aquino.

MUSEU DE GRAVURAS E DESENHOS, BERLIN, ALEMANHA

A posição tomasiana foi construída em debate com alguns filósofos muçulmanos que justamente concebiam Deus como um ser que produz as coisas por necessidade, isto é, sem liberdade. Para Tomás, no entanto, era mais racional pensar que Deus pode produzir seres diferentes, pois essa possibilidade significa que o ser divino é ainda mais perfeito do que se pudesse produzir apenas a si mesmo. Toda diferença, aliás, só pode ser entendida com a ajuda de alguma semelhança. A semelhança entre Deus e o mundo estaria no fato de que ambos existem. Contudo, o mundo existe como o rio que corre de Deus, sua fonte: mesmo nascendo dela, o rio não é a fonte. Assim, segundo Tomás, não seria irracional pensar que o mundo, mesmo tendo sua causa em Deus, é diferente dele. Justificar a afirmação da existência de Deus, no entanto, não basta para originar a vivência religiosa. Segundo Tomás de Aquino, é preciso que a razão se associe a um ato de amor e mova a pessoa a estabelecer uma relação com Deus. A razão aceita que não pode dominar Deus completamente e passa a encará-lo como um mistério ou como uma realidade a ser sempre mais conhecida. Nesse ponto, os textos sagrados auxiliam no conhecimento de Deus, pois abrem um horizonte de compreensão que, sozinha, a razão não poderia produzir. A fé, assim, aparece como um ato da razão ligada ao amor; ela não seria contrária à razão nem uma anulação dela.

Na Contemporaneidade, diferentes pensadores continuam o trabalho de justificar a afirmação da existência do mistério divino. O filósofo e teólogo Karl Rahner, por exemplo, recuperou o pensamento tomasiano e, em diálogo direto com a Ciência, apontou para a inadequação de tratar Deus como parte do mundo ou como o “pontapé” natural que fez tudo existir.

O texto de Karl Rahner é bastante denso. Por isso, recomendamos lê-lo mais de uma vez!

Deus como pressuposto do “mundo”

O ser humano encontra-se já em um “mundo” quando começa a tomar sobre si a responsabilidade pela sua própria existência. Esse mundo não é um mundo de “fatos”, pela simples razão de que os “fatos” são sempre “fatos analisados”, quer dizer, construídos com base em visões e ideias. […]

Toda tentativa de construir uma imagem do mundo, tratando experimentalmente as coisas, baseia-se já em uma série de dados anteriores à experiência, tomados como universalmente válidos e mais ou menos verificados na experiência sempre particular, porém impossíveis de serem demonstrados por ela. Por exemplo, partimos do dado de que a realidade existe, que obedece ao princípio de não contradição, que

► HESSE, Hermann. Narciso e Goldmund Tradução: Myriam Moraes. Rio de Janeiro: Record, 2003. Reprodução da capa.

• A história se passa na Idade Média e retrata a profunda amizade entre Narciso e Goldmund, explorando as relações entre beleza e transcendência.

► MORIN, Dominique. Para falar de Deus. São Paulo: Loyola, 1993. Reprodução da capa.

• Apresentação didática da questão da existência de Deus no debate entre Filosofia e Ciência sob a perspectiva dos temas da liberdade e da maldade presente no mundo.

Odisseia: viagem; aventura (referência ao livro Odisseia, de Homero).

Instância: nível ou autoridade responsável por fazer julgamentos.

BIOGRAFIA

Karl Rahner (1904-1984)

► O filósofo Karl Rahner em fotografia de 1980.

Filósofo e teólogo alemão, aluno de Martin Heidegger (1889-1976), Rahner buscou identificar elementos fenomenológicos e existencialistas em autores medievais, principalmente Tomás de Aquino. Sua teologia é considerada um marco de renovação no pensamento cristão do século XX. Obras mais conhecidas: O ouvinte da palavra (1941) e Curso fundamental sobre a fé (1984).

apesar de toda a diversidade existente entre as coisas há relações e semelhanças entre elas, que todo acontecimento natural sempre tem uma explicação etc. A justificação e a evidência dessas estruturas anteriores à experiência só se manifestam a quem se confia a elas em um ato de livre confiança. Mas nosso começo intelectual parte também de algo historicamente dado de antemão e que não pode ser evitado. Os indivíduos começam sempre com uma imagem do mundo já transmitida e já projetada. […] O ponto de partida é a lei prévia de nossa odisseia intelectual. Mesmo quando queremos nos revoltar e protestar contra essa lei, olhando-a com grande desconfiança, não nos libertamos dela. Afinal, pelo protesto, referimo-nos precisamente a essa lei, ocupamo-nos com ela e não com outra coisa, protestamos contra algo que não poderíamos questionar se não existisse. […] Assim, a orientação das perguntas humanas sobre o mundo é sempre orientada, é guiada por algo que antecede à sua própria experiência. […]

[Nesse quadro geral,] a imagem do mundo construída pela Ciência não é a instância crítica para a Religião. Entre elas não há duas verdades que necessariamente se contradizem. […] Quando há um aparente conflito, tanto a Religião como a Ciência devem, com honrada autocrítica, buscar o motivo dessa aparente contradição. Mas a Religião não está, por isso, entregue sem mais à Ciência e à sua imagem do mundo. […]

O ser humano, ao construir uma imagem do mundo, sabe que nessa imagem do mundo ele é finito; ele vê também que diante de sua finitude há uma amplidão infinita de perguntas e de possibilidades. O ser humano não se relaciona, portanto, apenas com aquilo que está dado nem apenas com o que é investigável no campo já delimitado historicamente, mas relaciona-se também (aliás, em primeiro e em último lugar) com o que está longe, com o que é horizonte e fundo de seu mundo. Relaciona-se com aquilo que, justamente sendo inalcançável e incompreensível, revela a permanente finitude e historicidade de seu mundo e de sua visão de mundo. Assim, o indizível é fundamento do dizer. Aquilo de que não existe nenhuma imagem é o que torna possível toda imagem do mundo. Esse fundamento primeiro e objetivo de toda realidade (fundamento que só está presente exatamente porque não é uma parte de nossa imagem do mundo e porque é o horizonte conceitualmente inacessível), de nosso movimento “imaginador” do mundo, é o que chamamos Deus. […]

Deus não é uma parte do mundo, mas um pressuposto dessa imagem. Não é uma porção do saber, ao lado de outras porções, mas é a infinidade posta sempre diante do movimento do saber e dentro da qual o saber percorre seus caminhos sempre finitos. Deus não é uma hipótese que leva a uma conclusão, formulada com base em um projeto de imagem do mundo; ele é, na verdade, o único dado requerido por todas as hipóteses com que construímos nossa imagem do mundo.

RAHNER, Karl. ¿Sería la ciencia una confesión? In: RAHNER, Karl. Escritos de teología: tomo III. Tradução: J. Molina. Madri: Taurus, 1961. p. 427-430. Tradução nossa.

Observe que Rahner escreve “mundo” entre aspas, indicando que o que costumamos chamar de “mundo” não é algo óbvio e evidente, a que todos percebem da mesma maneira. O “mundo”, mesmo nas suas características mais básicas, depende do modo como nosso olhar é formado para vê-lo. Por exemplo, podemos tomar o “mundo” por um conjunto de coisas independentes entre si, cujo funcionamento se assemelha ao de uma máquina, bem como podemos considerá-lo como um conjunto de partes correlacionadas, de modo que o funcionamento de todas elas esteja interligado, assim como ocorre em um organismo ou em um corpo vivo. Ambas as visões são construídas e determinam nosso modo de olhar para o “mundo”.

Ninguém “descobre” o mundo de maneira direta; todos são precedidos pelas concepções já elaboradas pelos grupos sociais em que nascem. Disso Rahner tira uma afirmação: há sempre uma “lei prévia” que faz o “mundo” ser o resultado de dados formulados antes mesmo que haja experiência das coisas.

Tais concepções, por sua vez, são elaboradas sobre uma base que não pode ser explicada com a mesma clareza e certeza com que se explicam as coisas do “mundo”. Essa base permite haver conhecimento, embora não seja costume prestar atenção nela. Trata-se de uma série de elementos ou estruturas, tais como a crença na existência da realidade, no funcionamento do princípio de não contradição, na existência de semelhanças e relações entre as coisas, na possibilidade de explicar todo conhecimento natural etc. Para além dessas crenças, não é possível avançar com a investigação; e elas mesmas são objetos de confiança, não de prova ou demonstração. Justamente por isso, são a base do conhecimento; e, como tal, essa base pode ser percebida, mas não dominada conceitualmente. Quando o pensamento funciona, ele já aceitou essa base e entrou no nível da construção de visões de mundo.

► Inspirada na imagem do “relógio com asas”, constante na obra de Marc Chagall (1887-1985), essa escultura de autoria desconhecida simboliza o tempo que se liberta de seu ritmo quando se abre à transcendência ou ao indeterminado. Vitebsk (Bielorrussia), 2009.

A análise de Rahner lhe permite identificar, na raiz do pensamento racional, algo suprarracional, quer dizer, algo que ultrapassa as possibilidades de investigação da razão, embora a razão possa percebê-lo. Assim, sob a superfície do conhecimento racional há um “abismo sem fundo”, impossível de ser explorado completamente pelas elaborações construídas historicamente. Ao ser humano finito abre-se, portanto, um horizonte infinito de questões e possibilidades. Nada está dado definitivamente nem pode ser considerado como dado definitivamente, uma vez que o caráter histórico da existência pode fazer tudo mudar. Por conseguinte, se o pensamento exprime o “mundo” e se na raiz do pensamento há um abismo de incertezas, então o próprio “mundo” é sustentado por algo incomensurável, inanalisável, incontrolável; numa palavra, impossível de dominar pelo pensamento.

Nesse sentido, Rahner recupera a ideia de que a realidade é envolvida por um mistério. Quando se é tomado de amor por tal mistério, pode-se chegar à sua associação com Deus, dando-lhe um rosto em continuidade com as diferentes religiões. De todo modo, Deus não é “parte” do “mundo”. Tanto a ciência como a religião erram, segundo Rahner, quando o encaram dessa maneira. Ele é o abismo misterioso que permanece como condição ou base para o ato de pensar e falar sobre o “mundo”. Ele irmana pela raiz, então, Ciência e Religião.

Para resumir a concepção teísta de Rahner e sua filosofia da religião, é possível recuperar uma imagem usada por autores antigos: diante do mistério divino, os seres humanos são como animais noturnos ou aqueles que vivem no fundo das cavernas; a luz os incomoda, porque estão acostumados à sombra e à escuridão; ficam cegos diante da luz. Assim também os humanos, não podendo encarar diretamente a luz divina, só podem vê-la em seus reflexos, entre os quais o mais fiel é a própria atividade humana de pensar e amar

► ALMEIDA JÚNIOR, José Ferraz de. Leitura. 1892. Óleo sobre tela, 95 cm x 141 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo (SP).

EXERCICIO Não escreva no livro. D
• Diferencie teísmo e deísmo.
PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO, SÃO PAULO, BRASIL
Consultar orientações no Manual do Professor

Religião e convivência republicana

Refletir sobre a necessidade de convivência democrática e sobre o papel da religião na construção dessa convivência é uma tarefa de extrema urgência.

Viver em uma democracia significa necessariamente respeitar os concidadãos, nossos companheiros de jornada, garantindo que todos tenham liberdade de opinião. Trata-se de construir a “coisa pública”, ou, como diziam autores de língua latina, a res publica, na qual todos os indivíduos e grupos se encontram pela necessidade de conviver. Essa convivência inclui, obviamente, o respeito às pessoas religiosas e não religiosas. Todas têm alguma contribuição a dar para a vida republicana. Especificamente no caso das pessoas religiosas, elas podem testemunhar, por exemplo, o respeito sagrado pela vida em nosso planeta, a dignidade humana em todas as situações e o senso da possibilidade da transcendência. No entanto, não convém que elas tentem impor seu pensamento às outras pessoas. Elas podem tentar convencê-las por seu exemplo e por argumentos, mas em um respeito total pela liberdade alheia, assim como se espera que as pessoas não religiosas respeitem a liberdade de quem é religioso.

Um dos maiores desafios para a convivência republicana é justamente manter uma saudável tensão entre diferentes visões de mundo, evitando a violência. Tensão, porém, não é necessariamente sinônimo de conflito. Uma sociedade pode nutrir visões diferentes que, sem se anular, permitem pensar a vida social sob aspectos que não seriam imaginados caso todos tivessem um pensamento único. No contexto atual, a responsabilidade das pessoas religiosas é tão grande ou mesmo maior do que a das não religiosas. Se elas se entendem como testemunhas do amor divino, também devem tomar consciência de que esse mesmo amor não é algo em que todos creem; e, se nem todos creem, é porque o próprio ser divino não se impõe aos seres humanos, mas dá liberdade a eles e os respeita. Nenhuma pessoa religiosa pode, então, interferir na liberdade alheia. Infelizmente, porém, o mundo está repleto de exemplos de violência religiosa ou violência praticada em nome de Deus.

► Kayllane Campos, moradora do Rio de Janeiro (RJ), foi atingida na cabeça por uma pedra arremessada por cristãos depois de sair de um ritual do candomblé, em 2015, quando tinha 11 anos. Na foto, ao lado de sua avó Katia Marinho, ela participa de um encontro interreligioso pela paz na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). São Paulo (SP), 2015.

Não é preciso pensar no Oriente Médio (de que tanto se fala como local de violências religiosas); basta observar que, no Brasil, nos últimos anos, houve um aumento assustador da intolerância religiosa. O número de denúncias aumentou 80% de 2023 para 2024, e a maior parte das violências relatadas foram cometidas contra as religiões de matriz africana.

Um dos casos mais graves é o dos traficantes cristãos, no Rio de Janeiro (RJ), que perseguem os terreiros de Umbanda e de Candomblé, alegando que se trata de locais de culto ao demônio. A partir de 2020, esses traficantes passaram a chamar os territórios sob seu domínio de Complexo de Israel, em alusão à “terra prometida” aos cristãos, conforme a narrativa bíblica. Ironicamente, esses cristãos não assumem o mal que fazem por meio do tráfico, mas pretendem fazer “justiça” em nome de Deus, interferindo na liberdade religiosa.

Outro caso emblemático de intolerância religiosa ocorreu em 2015, em uma escola do Amazonas, na qual os estudantes se recusaram a fazer uma pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras, “justificando” que tais religiões incentivam o culto ao demônio e à homossexualidade. Esses estudantes foram apoiados por seus pais e por líderes religiosos, em um ato claro de interferência na prática republicana. Se a escola tem o dever de oferecer formação cultural aos estudantes, ela deve tratar de todos os assuntos ligados à realidade social.

Esses exemplos levantam um tema de caráter filosófico: a violência em nome de Deus nasce da ignorância ou da manipulação do seu caráter misterioso. Por ser ele Deus absconditus (um Deus discreto ou escondido), como dizia Pascal retomando uma expressão do livro bíblico dos Salmos, muitos falam em seu nome para “justificar” suas próprias visões de mundo, isto é, põem o ser divino a serviço de si mesmos. Felizmente, há também no mundo inteiro iniciativas positivas para fortalecer o respeito entre as pessoas e construir a paz. Algumas delas são os encontros dos representantes religiosos, a fim de estabelecer um diálogo e um conhecimento mútuo que permitam respeitar as diferenças, ir além dos debates doutrinários e unir-se em busca de um mundo melhor.

► Salão do Templo da Boa Vontade (TBV), em Brasília (DF). No templo, representantes de diversas religiões caminham pela espiral, representando a proposta do TBV de promover o respeito e a paz entre culturas e crenças distintas.

Consultar orientações no Manual do Professor.

1. O que permite afirmar que na experiência religiosa a pessoa experiencia a si mesma sem que, por isso, ela viva uma ilusão ou uma fantasia?

2. Por que Friedrich Schleiermacher defendeu a necessidade de identificar um sentimento especificamente religioso?

3. Por que Rudolf Otto viu a necessidade de complementar a filosofia da religião desenvolvida por Friedrich Schleiermacher?

4. Explique o Princípio de Clifford e o Outro Princípio de Clifford em relação às visões sobre a existência de Deus.

5. (Unesp)

Jamais um homem fez algo apenas para outros e sem qualquer motivo pessoal. E como poderia fazer algo que fosse sem referência a ele próprio, ou seja, sem uma necessidade interna? Como poderia o ego agir sem ego? Se um homem desejasse ser todo amor como aquele Deus, fazer e querer tudo para os outros e nada para si, isto pressupõe que o outro seja egoísta o bastante para sempre aceitar esse sacrifício, esse viver para ele: de modo que os homens do amor e do sacrifício têm interesse em que continuem existindo os egoístas sem amor e incapazes de sacrifício, e a suprema moralidade, para poder subsistir, teria de requerer a existência da imoralidade, com o que, então, suprimiria a si mesma.

Friedrich Nietzsche. Humano, demasiado humano, 2005. Adaptado.

A reflexão do filósofo sobre a condição humana apresenta pressupostos

5. Alternativa A

a) psicológicos, baseados na crítica da inconsistência subjetiva da moral cristã.

b) cartesianos, baseados na ideia inata da existência de Deus na substância pensante.

c) estoicistas, exaltadores da apatia emocional como ideal de uma vida sábia.

d) éticos, defensores de princípios universais para orientar a conduta humana.

e) metafísicos, uma vez que é alicerçada no mundo inteligível platônico.

6. Resuma a crítica de Nietzsche à religião.

7. Por que, mesmo falando de Deus, Baruch Espinosa ataca a base da religião?

8. Em que consiste o núcleo do ateísmo tal como praticado por Bertrand Russell?

9. Quais são as razões de Tomás de Aquino para afirmar que nada, no mundo natural, pode ser causa de si mesmo?

10. Segundo Tomás de Aquino, defender que o mundo tem uma causa significa necessariamente que o mundo começou a existir em um momento preciso? Explique.

11. Por que, segundo Tomás de Aquino, nada obriga racionalmente a afirmar que Deus é incapaz de produzir seres diferentes dele mesmo?

12. Por que Karl Rahner, para falar de Deus, inicia pela análise da atividade humana de conhecer?

ReToManDO Não escreva no livro.

13. (Enem)

A maior parte das agressões e manifestações discriminatórias contra as religiões de matrizes africanas ocorrem em locais públicos (57%). É na rua, na via pública, que tiveram lugar mais de 2/3 das agressões, geralmente em locais próximos às casas de culto dessas religiões. O transporte público também é apontado como um local em que os adeptos das religiões de matrizes africanas são discriminados, geralmente quando se encontram paramentados por conta dos preceitos religiosos.

REGO, L. F.; FONSECA, D. P. R.; GIACOMINI, S. M. Cartografia social de terreiros no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014.

As práticas descritas no texto são incompatíveis com a dinâmica de uma sociedade laica e democrática porque

13. Alternativa E

a) a sseguram as expressões multiculturais.

b) promovem a diversidade de etnias.

c) f alseiam os dogmas teológicos.

d) estimulam os rituais sincréticos.

e) restringem a liberdade de credo.

DISSERTAÇÃO

Dissertação de síntese filosófica

Elabore uma dissertação de síntese filosófica (p. 102) para apresentar os três primeiros temas deste capítulo:

• A experiência religiosa

• A experiência religiosa é uma experiência de quê?

• O sagrado ou o Numinoso

Como em uma disserta ç ã o d e síntese filos óf ica o objetivo é tornar claras as articula çõ e s feitas no tratamento de um tema, é importante lembrar que o que articula os três primeiros títulos do capí t ulo 12 é o tema da experi ê n cia religiosa: de uma primeira caracteriza ç ã o g eral ( A experi ê nc ia religiosa ), o cap í t ulo passa ao tratamento da maior dificuldade filos ó f ica implicada nessa experi ê n cia, a saber, a legitimidade de falar de “experi ê n cia” quando o objeto n ã o é f ísi co, o que encaminha para a solu ç ã o p roposta por Friedrich Schleiermacher, autor que explorou os aspectos subjetivos da experi ê n cia religiosa ( A experi ê nc ia religiosa é uma experi ê nc ia de qu ê? )

Por fim, o cap í t ulo procura completar essa an á lise por meio do estudo das contribui çõ e s de Rudolf Otto, autor que investigou os aspectos propriamente objetivos dessa experi ê n cia ( O Sagrado ou o Numinoso). Tendo essa articula ç ã o em mente, mobilize os recursos e orienta çõ e s fornecidos na p á g ina 102 para sintetizar filosoficamente os temas em questão.

REFERÊNCIAS COMENTADAS

AGOSTINHO DE HIPONA. Confessions. Tradução: Pierre Labriolle. Paris: Belles Lettres, 1961. v. 2. O autor rememora seu caminho de superação do materialismo e de construção de uma filosofia do espírito.

AGOSTINHO DE HIPONA. Confissões. Tradução: Lorenzo Mammì. 2. ed. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2017.

Tradução do original latino da obra citada anteriormente.

AGOSTINHO DE HIPONA. De mendacio liber unus. [S. l.]: Sant’Agostino, [200-]. Disponível em: www.augustinus. it/latino/menzogna/index.htm. Acesso em: 25 jul. 2024. Reflexão sobre a mentira e temas conexos (verdade, erro, engano…).

AGOSTINHO DE HIPONA. Sobre a mentira. Tradução: Tiago Tondinelli. Campinas: Ecclesiae, 2016. Tradução da obra citada anteriormente.

AQUINO, Tomás de. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2000-2006. 9 v.

Tradução do original latino da obra citada a seguir.

AQUINO, Tomás de. Summa theologiae. Roma: San Paolo, 1988. Obra de síntese a respeito do conhecimento de Deus.

ARENDT, Hannah. On violence. Nova York: Harcourt, Brace & World, 1969.

A era pós-Segunda Guerra Mundial analisada pelo ponto de vista da experiência da violência.

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução: André Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022. Tradução do original estadunidense da obra anterior.

ARISTÓTELES. A política. Tradução: Roberto Leal Ferreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Reflexão sobre a melhor organização social e o melhor governo.

ARISTÓTELES. Ethica nicomachea I 13 – III 8: tratado da virtude moral. Tradução: Marco Zingano. São Paulo: Odysseus, 2008. Tratado aristotélico sobre a virtude moral na obra Ética Nicomaqueia.

ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução: Leonel Vallandro. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. (Coleção Biblioteca dos séculos).

Reflexão sobre as condições para que algo venha a ser (existir).

AVICENA. De anima. Tradução: G. C. Anawati, S. Zayed. Cairo: Institut Français d’Archéologie Orientale, 1974.

Obra A cura ou Tratado da alma, do pensador árabe Avicena (data desconhecida-1037).

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Estudo da correspondência do pensador Baruch de Espinosa (1632-1677) com o cientista e filósofo Erenfredo de Tschirnhaus (1651-1708).

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Tradução do mesmo original da obra citada a seguir. EINSTEIN, Albert; INFELD, Leopold. L’évolution des idées en physique. Tradução: M. Solovine. Paris: Payot, 1978. Breve história da Física, até a teoria dos quanta, permeada de intuições filosóficas.

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HUSSERL, Edmund. Investigações lógicas: sexta investigação: elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento. Tradução: Zeljko Loparic, Andréa M.Altino de Campos Loparic. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção Os pensadores). Obra de fundação do estudo das essências objetivas que permitem a percepção.

HUSSERL, Edmund. Logische Untersuchungen. Tübingen: M. Niemeyer, 1968. v. II. Original alemão da obra anterior.

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KANT, Immanuel. Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita. In: KANT, Immanuel. A paz

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KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. O pensador indígena reflete sobre a separação moderna entre a humanidade e a Natureza.

LAÉRCIO, Diógenes. Les vies des plus illustres philosophes de l’Antiquité. Tradução: Jacques Georges Chauffepié. Paris: Lefebvre, 1840. Primeira coletânea de resumos das vidas e obras dos filósofos da Antiguidade.

LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução: Mario da Gama Kury. 2. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 2008. Tradução do original grego da obra anterior.

LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução: Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Uma das obras fundadoras da concepção moderna de Poder.

LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Tradução: Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

Reflexões da autora que se considera externa (outsider) ao que ela chama de norma ditada por pessoas brancas, heterossexuais e magras.

MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem?: qual racionalidade? Tradução: Marcelo Pimenta Marques. São Paulo: Loyola, 1991.

Reflexões sobre a relação entre justiça e racionalidade no mundo atual, com suas incoerências, equívocos e engodos.

MAIMÔNIDES, Moisés. Le guide des égarés. Tradução: S. Munk. Paris: Verdier, 1979.

Obra que sintetiza o pensamento ético-religioso de Maimônides (1138-1204).

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução: Lívio Xavier. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os pensadores). Obra que marcou os inícios da filosofia política moderna.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Tradução: José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os pensadores).

Textos de Karl Marx (1818-1883) em defesa do socialismo como melhor forma de sistema econômico.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Tradução: Regis Barbosa, Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os economistas, v. 1, t. 1).

Início da obra clássica de Karl Marx de compreensão e crítica do capitalismo.

MASSIMI, Marina (org.). Psicologia, cultura e história: perspectivas em diálogo. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2012.

Coletânea de textos a respeito da articulação entre psicologia, cultura e história.

MATOS, Olgária Chaim Féres. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993. (Coleção Logos).

Apresentação didática dos pensadores da Escola de Frankfurt, com uma coletânea de excertos.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Em toda e em nenhuma parte. In: MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos selecionados. Tradução: Marilena de Souza Chaui. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Coleção Os pensadores, p. 157-186).

Tendo em vista a problemática da linguagem, o pensador francês reflete sobre a identidade ou não identidade da Filosofia.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Estudos da percepção na linha das Investigações Lógicas de Husserl (1859-1938).

MOORE, George Edward. Principia ethica. Cambridge: Cambridge University Press, 1959. Obra de síntese do pensamento ético do filósofo inglês George Edward Moore (1873-1958).

MURDOCH, Jean Iris. A soberania do bem. Tradução: Juán Fuks. São Paulo: Editora da Unesp, 2012. Obra de síntese do pensamento ético da filósofa irlandesa Iris Murdoch (1919-1999).

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. In: NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1987. (Coleção Os pensadores, v. 2, p. 143-156).

Livro em que Friedrich Nietzsche (1844-1900) mostra como entende a si mesmo, em sua história e em sua filosofia.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. In: NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os pensadores, v. 1, p. 39-76).

Obra que oferece, por assim dizer, um panorama do pensamento maduro de Nietzsche.

PEDRO ABELARDO. Ética, ou conhece-te a ti mesmo

Tradução: Tiago Tondinelli. Campinas: Ecclesiae, 2016. Tradução do original latino da obra a seguir.

PEDRO ABELARDO. Peter Abaelard’s ethics. Tradução: David Edward Luscombe. Oxford: Clarendon, 2002.

O filósofo medieval expõe sua ética, centrada no tema da intenção.

PIQUEMAL, Michel. Les philo-fables. Paris: Albin Michel, 2008.

Coletânea de fábulas com moral filosófica de diversos autores.

PLATÃO. As leis. Tradução: Carlos Humberto Gomes. Lisboa: Edições 70, 2004-2019. 3 v. Tradução do original grego da obra citada a seguir.

PLATÃO. Les lois. Paris: Flammarion, 2006. Último diálogo de Platão, representativo do conjunto de seu pensamento.

PLATÃO. Diálogos: o banquete: Fédon: sofista: político. Tradução: José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat, João Cruz Costa. São Paulo: Nova Cultural, 1972. (Coleção Os pensadores).

Coletânea de quatro diálogos representativos do pensamento maduro de Platão.

PLATÃO. Górgias de Platão. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Perspectiva, 2020. Tradução do original da obra a seguir.

PLATÃO. Gorgias. Tradução: Jean-Paul Laffitte. Paris: Nathan, 2003.

Diálogo sobre a melhor maneira de viver.

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica 14. ed. Tradução: Leonidas Hegenberg, Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2006.

Concepção da ciência como prática definida em função de regras metodológicas.

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: volume 7: O tempo redescoberto. Tradução: Lúcia Miguel Pereira. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2013.

Tradução do original francês da obra citada a seguir.

PROUST, Marcel. Le temps retrouvé. Paris: Flammarion, 1986.

Reflexões sobre a arte e a literatura no sétimo e último volume de Em busca do tempo perdido

RAHNER, Karl. Escritos de teología Tradução: J. Molina. Madri: Taurus, 1961. t. III. Textos do teólogo alemão sobre conhecimento e fé.

REFAIRE société. Paris: Seuil, 2011. Coletânea de textos filosófico-sociológicos sobre a refundação da vida em sociedade.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Reflexões para entender as origens do racismo e combatê-lo.

RODIN, Auguste. L’art: entretiens réunis par Paul Gsell. Paris: Bernard Grasset, 1911. Entrevistas do escultor Auguste Rodin (1840-1917) sobre a arte.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Tentativa de compreensão do lado perverso do sistema globalizado, visando a possibilidades de mudá-lo.

SARTRE, Jean-Paul. A náusea. 25. ed. Tradução: Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. Tradução do original francês da obra citada a seguir.

SARTRE, Jean-Paul. La nausée. Paris: Gallimard, 1938. Romance em torno do sentido ou da falta de sentido para existir.

SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião: discursos a seus menosprezadores eruditos. Tradução: Daniel Costa. São Paulo: Novo Século, 2000. Reflexões filosóficas sobre a religião, em forma de diálogos.

SCHOPENHAUER, Arthur. Studies in pessimism: the vanity of existence. In: SAUNDERS, T. Bailey (ed.). Essays of Arthur Schopenhauer. Tradução: T. Bailey Saunders. Nova York: A. L. Burt Company, 1902. Textos do pensador alemão sobre o pessimismo.

STEIN, Edith. Der Aufbau der menschlichen Person. Friburgo (Brisgóvia, Alemanha): Herder, 2004. Estudo da natureza humana como unidade entre corpo, alma e espírito.

STEIN, Edith. Zum Problem der Einfühlung. Haia: Buchdruckerei des Waisenhauses, 1917. Estudo sobre a empatia como experiência da experiência alheia.

TIERCELIN, Claudine. Le doute en question: parades pragmatistes au défi sceptique. Paris: Éditions de l’Éclat, 2005.

Obra de problematização do ceticismo.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: sentimentos e opiniões: de uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Livro II.

Um dos textos fundadores do pensamento político moderno.

TZARA, Tristan. Œuvres complètes. Paris: Flammarion, 1982. t. I.

Obras em francês do poeta romeno.

VELASCO, Patrícia Del Nero. Educando para a argumentação: contribuições do ensino de lógica. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. (Coleção Ensino de filosofia).

Obra de educação filosófica mediante a argumentação.

WEIL, Simone. Aulas de filosofia. Tradução: Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1991. Textos de anotações de aulas dadas pela pensadora.

WIESEL, Elie. A noite. Tradução: Dorothée de Bruchard. Rio de Janeiro: Sextante, 2021. Tradução do original francês da obra citada a seguir.

WIESEL, Elie. La nuit. Paris: Éditions de Minuit, 1958. Testemunho de um sobrevivente aos campos de concentração nazistas.

WILDE, Oscar. A decadência da mentira e outros ensaios. Tradução: João do Rio. São Paulo: Principis, 2021. Tradução do original traduzido pela obra citada a seguir.

WILDE, Oscar. Le déclin du mensonge: une observation. Tradução: Hugues Rebell. Paris: Allia, 1986. Defesa de que a arte não deve ser avaliada por critérios exteriores a ela mesma.

WILLIAM, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Pólen, 2019.

Estudo do tema da apropriação cultural sob a perspectiva da rememoração dos povos escravizados.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução: José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção Os pensadores).

Obra representativa da fase madura do pensamento de Wittgenstein.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução: Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Editora da USP, 2001.

Obra representativa da primeira fase do pensamento de Wittgenstein.

ORIENTAÇÕES PARA O PROFESSOR

Apresentação

Professor(a), este material foi elaborado com o objetivo de auxiliá-lo(a) no seu dia a dia. Para tanto, serão discutidas questões fundamentais sobre a educação e o mundo contemporâneo, em articulação com orientações pedagógicas para o Ensino Médio, a fim de preparar os jovens brasileiros para os desafios impostos pelo século XXI.

Esperamos que este livro seja seu parceiro em sua jornada.

SUMÁRIO

PARTE I

Educação, juventudes e protagonismo ...... 371

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ...................................................... 371

O trabalho com competências e habilidades.............................................................. 372

Categorias da BNCC ................................................. 372

Especialização e integração ................................ 374

Temas Contemporâneos Transversais ........ 374

Temas Contemporâneos Transversais e as juventudes .................................................................. 375

Metodologias ativas de aprendizagem ...... 378

Autonomia na educação ........................................ 380 O trabalho docente .................................................. 381

A cultura digital ........................................................ 382

PARTE II

Pressupostos teórico-metodológicos 382

Objetivos de nossa proposta didáticopedagógica ................................................................. 382

Modelo teórico-metodológico ............................. 383

PARTE III

Orientações didático-pedagógicas gerais .............................................................................. 390

Modelos de avaliação e seus objetivos 390

Disposições mais adequadas da sala de aula .......................................................... 392

Organização e possíveis usos deste livro ........................................................ 393

PARTE IV

Orientações didático-pedagógicas capítulo a capítulo ................................................... 396

Unidade 1 Os seres humanos são seres de pensamento ...................................... 396

Capítulo 1 – Portas para a Filosofia .................. 396

Capítulo 2 – Modos de convencer 399

Capítulo 3 – Método racional ............................... 403

Unidade 2 Os seres humanos são seres de sentido ...................................................

4 – Conhecimento ...................................

5 – Sentido da existência .................... 415 Capítulo 6 – Natureza, cultura e pessoa ......... 417 Unidade 3 Os seres humanos são seres de ação 421

Capítulo 7 – Sociedade, indivíduo e liberdade .................................................................. 421

Capítulo 8 – A prática ética ..................................

Capítulo 9 – Política e poder ................................

Unidade 4 Os seres humanos são seres de transcendência ..............................

Capítulo 10 – A felicidade 429

Capítulo 11 – Experiência estética e experiência artística ............................................... 432

Capítulo 12 – A experiência religiosa...............435

Referências bibliográficas comentadas ..............................................................

PARTE I

Educação, juventudes e protagonismo

Em um mundo no qual o acesso à informação é cada vez mais facilitado por meio de dispositivos móveis conectados à internet e em que a socialização das juventudes passa cada vez mais por grupos de afinidade constituídos nas mídias sociais digitais, a escola atravessa um período de reformulação de seu papel, que até pouco tempo atrás era o de grande instituição socializadora e fornecedora de conhecimento. Utilizamos o termo juventudes, no plural, pois as culturas juvenis constroem diferenças significativas entre sujeitos na mesma faixa etária, o que coloca um desafio adicional à escola contemporânea: a questão da diversidade. Juntamente com a escola, o papel do(a) professor(a) também se desloca. Além de autoridade do conhecimento, ele(a) passa a ser cada vez mais um orientador do(a) estudante na produção de conhecimento em meio à intensa produção e à circulação de informações.

O(A) estudante, portanto, é percebido(a) como protagonista no processo de ensino-aprendizagem. Se no mundo do trabalho a figura do operário-padrão, disciplinado e dedicado, mostra-se progressivamente como um ideal do passado, a imagem de estudantes contidos e enfileirados também passa a ser, no mínimo, insuficiente. Isso não ocorre só porque o mercado de trabalho em constante e acelerada transformação exige de seus candidatos a ingressantes características como criatividade, adaptabilidade e resiliência mas também porque as inovações das tecnologias de informação e de comunicação tornaram disponíveis uma quantidade virtualmente sem fim de recursos para a construção do conhecimento. Assim, não basta mais ao(à) estudante aguardar o(a) professor(a) transmitir seu conhecimento, para que, então, ao repetir o conteúdo recebido em sala de aula, ele(a) demonstre sua capacidade. Na atualidade, trata-se mais de aprender a navegar em um infindável mar de informações, buscando selecionar as mais relevantes, confrontá -

-las e, usando um método específico, participar ativamente da construção do conhecimento.

A Base Nacional Comum

Curricular (BNCC)

No atual Ensino Médio, os objetivos do processo de ensino-aprendizagem estão explicitados nas competências e habilidades que se espera serem mobilizadas pelos(as) estudantes. O que se pretende nessa forma de ensino é que os(as) estudantes possam adquirir a habilidade de realizar determinadas operações cognitivas, mais do que apenas reter um conjunto de informações. Essa maneira de conduzir o processo de ensino-aprendizagem não é uma novidade na educação brasileira. Desde a sua criação, em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, avalia a demonstração do desenvolvimento de competências dos(as) estudantes.

A BNCC trabalha de maneira semelhante e opera com a seguinte definição de competência:

[…] a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.1

Conforme é mencionado no documento da BNCC, o enfoque no desenvolvimento de competências também é adotado por organismos internacionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O documento elaborado em 2018 pela OCDE, The future of education and skills: education 2030, afirma que a “competência, mais do que mera aquisição de conhecimentos e habilidades, envolve a mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para atender a demandas complexas”2

Outra referência importante para a reflexão a respeito de competências no ensino é o sociólogo suíço Philippe Perrenoud (1944-), cuja obra Construir as competências desde a escola define o conceito de competência como “uma capacidade de agir eficaz-

1 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: MEC, 2018. p. 8. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 20 out. 2024. 2 ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. The future of education and skills: education 2030. Paris: Secretary-General of the OECD, 2018. p. 5, tradução nossa. Disponível em: https://www.oecd.org/content/dam/oecd/en/about/projects/edu/education-2040/position-paper/ PositionPaper.pdf. Acesso em: 19 out. 2024.

mente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles”3.

Dessa maneira, com base nas definições apresentadas, é possível pensar que as competências não se opõem frontalmente ao conhecimento de conteúdos e informações, mas são formas de colocá-los em ação, de manejá-los de maneira prática.

O trabalho com competências e habilidades

A BNCC elenca dez competências gerais do ensino básico, competências específicas de cada área do conhecimento, além de uma série de habilidades relacionadas a cada competência específica. Desse modo, a estrutura da BNCC promove o encadeamento dos objetivos das aprendizagens essenciais, dos mais específicos aos mais gerais. Tomemos como exemplo a Competência Geral 1 para a Educação Básica:

1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.4

Agora, vejamos, respectivamente, a Competência Específica 6 e a Habilidade EM13CHS601 da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas:

6. Participar do debate público de forma crítica, respeitando diferentes posições e fazendo escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.

[…]

(EM13CHS601) Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país.5

Ao analisá-las, da competência geral até a habilidade, é possível verificar possibilidades de integração entre elas, articulando o geral e o particular. A habilidade e as competências dizem respeito à capacidade de realizar de-

terminados manejos práticos do conhecimento, porém, trata-se de operações em diferentes níveis de especialização. A habilidade opera em um nível bastante específico; a competência específica, em um nível intermediário; a competência geral, em um nível mais abrangente.

Manejar conhecimentos da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, integrando construções teóricas e conceitos de seus componentes curriculares, de acordo com a capacidade objetivada na habilidade fornece algumas das condições para o(a) estudante “participar do debate público”, como é preconizado na competência específica. Tanto a habilitação para realizar operações de análise e recomposição quanto a preparação para participação no debate público integram parte do que é necessário para a valorização e a utilização dos conhecimentos para a construção de uma sociedade justa, conforme está posto na competência geral. Com base nesse exemplo, é possível compreender como habilidades e competências tratam os objetivos da aprendizagem: partem de objetivos mais específicos para os mais gerais. Observe que esses objetivos não tratam da retenção estática de definições de conceitos e fórmulas, e sim de mobilizações, aplicações que demandam a realização de relações entre os saberes para a construção de uma educação integral.

Categorias da BNCC

Na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, a BNCC está estruturada da seguinte maneira: seis competências específicas e 32 habilidades relacionadas a essas competências. Como foi exposto, competências e habilidades funcionam de maneira articulada com os objetivos gerais e os objetivos específicos, respectivamente, das aprendizagens dessa área.

As competências e as habilidades contemplam os quatro componentes curriculares da área: Sociologia, Geografia, Filosofia e História; portanto, elas poderão ser trabalhadas ao longo dos três anos do Ensino Médio. Como ocorre com as demais áreas do conhecimento e os demais componentes curriculares, o trabalho interdisciplinar em uma perspectiva holística é a prerrogativa que orienta as Ciências Humanas e Sociais Aplicadas na BNCC. A BNCC do Ensino Médio definiu as competências e as habilidades da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas levando em consideração as categorias fundamentais dessas ciências. Tais catego-

3 PERRENOUD, Philippe. Construir as competências desde a escola. Porto Alegre: Artmed, 1999. p. 7.

4 BRASIL, ref. 1, p. 9.

5 BRASIL, ref. 1, p. 558-565.

rias tangenciam todos os componentes curriculares da área e permitem o acesso e o trabalho integrado com conceitos formulados no interior das tradições disciplinares de Sociologia, Filosofia, História e Geografia. Essas categorias fundantes são: Tempo e Espaço, Território e Fronteira, Indivíduo, Natureza, Sociedade, Cultura e Ética e Política e Trabalho.

Muito embora essas categorias fundamentais das Ciências Humanas não configurem propriamente competências e habilidades, elas as atravessam. Desse modo, as categorias por si só não são finalidades das aprendizagens da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, mas elementos que compõem seus objetivos.

Para que fiquem mais evidentes as relações entre as categorias fundamentais e as competências específicas dessa área do conhecimento, é interessante explorar as formas nas quais as duplas e os grupos de categorias se inserem nas seis competências específicas das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

Dada a sua abrangência, as categorias Tempo e Espaço contemplam todas as competências específicas, ainda que não estejam mencionadas nominal e explicitamente em cada uma delas. Tomemos como exemplo a Competência Específica 1, que diz respeito à capacidade de análise de múltiplos processos humanos.

Embora a palavra espaço não conste explicitamente da redação dessa competência, são utilizadas palavras relacionadas a ela, como local, regional, nacional, mundial. A palavra tempo, por sua vez, compõe textualmente a competência, onde se lê “em diferentes tempos”. Assim, se a Competência Específica 1 diz respeito à capacidade de fazer análise de processos, esses procedimentos só serão passíveis de realização se referenciados no tempo e no espaço.

O segundo par de categorias fundamentais, Território e Fronteira, compõe textualmente a Competência Específica 2, que diz: “Analisar a formação de territórios e fronteiras…”. A palavra território também pode ser encontrada na formulação da Competência Específica 4. Desse modo, é fácil compreender como esses pares de categorias estão contemplados nas competências específicas. No entanto, mesmo não sendo citadas explicitamente nas outras quatro competências, essas categorias podem estar tangenciadas, por exemplo, em análises de processos políticos, cuja capacidade de elaboração está referida na Competência Específica 1.

No grupo de categorias Indivíduo, Natureza, Sociedade, Cultura e Ética, encontram-se menções textuais exatas ou aproximadas em diversas competências específicas. Podemos ler, na Competência Específica 1,

“ambientais” e “sociais”; na Competência Específica 3, “ética socioambiental”; na Competência Específica 4, “culturas” e “sociedades”; na Competência Específica 5, “princípios éticos”; e, na Competência Específica 6, “debate público”, “exercício da cidadania” e “projeto de vida”. Assim, essas categorias podem se fazer presentes sob abordagens diversas em análises de processos ambientais, que figuram na Competência 1; na análise da formação de territórios, cuja capacidade de realização se expressa na Competência 2; na avaliação crítica das relações entre sociedade e natureza, como se referencia na Competência 3; na análise de relações de produção em diferentes culturas, que é posta como objetivo na Competência 4; na adoção de princípios éticos no combate a formas de violência, mencionada na Competência 5; e, por fim, é inevitável o tangenciamento da categoria Indivíduo ao se falar em realização de “escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida”, conforme posto na Competência 6.

As categorias Política e Trabalho estão diretamente relacionadas às Competências Específicas 1 e 2, que versam sobre análise e compreensão de processos políticos. Essas categorias também se relacionam com a Competência Específica 4, que menciona a capacidade de “analisar as relações de produção, capital e trabalho”. É possível traçar muitas outras relações, implícitas e explícitas, entre as categorias fundamentais das Ciências Humanas elencadas na BNCC e as competências dessa área do conhecimento. No entanto, cabe ressaltar que essas categorias não aparecem na BNCC como conceitos que possuem definições delimitadas e/ou operacionalizáveis. As categorias são, antes, elementos das competências que podem ser trabalhados de maneiras distintas, porém relacionáveis pelos diferentes componentes curriculares da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

Existe uma ampla gama de conceitos e formulações teóricas que podem ser suscitados com base na reflexão sobre essas categorias e na problematização delas. Esse processo de pensamento e elaboração, por sua vez, possibilitará aos(às) estudantes adquirirem habilidades e competências da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

É importante destacar, mais uma vez, que habilidades e competências se referem à capacidade cognitiva de realização de operações que figuram como objetivos dos processos de aprendizagem. As categorias fundamentais devem proporcionar oportunidades para as discussões teórico-conceituais que serão mobilizadas para colocar em prática as capacidades adquiridas com as habilidades e competências.

No amplo construto educacional elaborado pela BNCC, as articulações entre habilidades, competências específicas e competências gerais apontam para objetivos tanto mais ambiciosos quanto necessários para uma educação afinada com os tempos atuais. O incentivo ao protagonismo juvenil, por exemplo, torna-se possível por meio do pensamento esclarecido e crítico, calcado em uma educação integral.

Especialização e integração

Na BNCC, o conhecimento disciplinar não é descartado, tampouco diluído. O que ocorre é a organização desse conhecimento de modo a possibilitar a composição de quadros maiores para a compreensão dos fenômenos. Tomemos como exemplo o trabalho com a habilidade EM13CHS201.

(EM13CHS201) Analisar e caracterizar as dinâmicas das populações, das mercadorias e do capital nos diversos continentes, com destaque para a mobilidade e a fixação de pessoas, grupos humanos e povos, em função de eventos naturais, políticos, econômicos, sociais e culturais, de modo a compreender e posicionar-se criticamente em relação a esses processos e às possíveis relações entre eles.6

Essa habilidade se articula com a Competência Específica 2:

2. Analisar a formação de territórios e fronteiras em diferentes tempos e espaços, mediante a compreensão das relações de poder que determinam as territorialidades e o papel geopolítico dos Estados-nações.7

O(A) educando(a) que desenvolveu essa habilidade e essa competência poderá elaborar análises complexas de temas como a crise migratória na Europa, por exemplo. Em uma perspectiva disciplinar, um tema como esse seria dividido e, em função dele, poderiam ser estudados os conceitos de regionalização e de migração em Geografia, enquanto aspectos sociológicos, históricos e filosóficos do problema seriam deixados de lado. Já em uma perspectiva interdisciplinar, esses conceitos da Geografia podem ser articulados com discussões sociológicas sobre raça e etnia, com a história do colonialismo e com indagações filosóficas sobre o conceito de humanidade.

Dessa maneira, a conexão de um amplo aparato conceitual proveniente dos diferentes componentes curriculares da área de Ciências Humanas e Sociais

6 BRASIL, ref. 1, p. 561.

7 BRASIL, ref. 1, p. 561.

Aplicadas serviria de substrato para o desenvolvimento da habilidade e da competência específica em questão.

Assim, ao promover conexões teóricas e conceituais, a perspectiva interdisciplinar que orienta a BNCC potencializa os conhecimentos dos componentes curriculares em vez de deixá-los em caixas separadas. Os saberes são postos a serviço da compreensão de problemas complexos, não por meio da separação artificial de determinados aspectos convenientemente dispostos nas disciplinas, mas na complexidade mesma dos fenômenos, tal qual eles se apresentam. Essa abordagem possibilita ao(à) estudante mobilizar um aparato conceitual e teórico que aumenta sua capacidade de compreender e de propor soluções, seja para os problemas de sua comunidade, seja para os complexos desafios do mundo contemporâneo.

Temas Contemporâneos

Transversais

A relevância de inserir na formação da educação básica propostas que permitam ao(à) estudante uma formação voltada à construção da cidadania já era considerada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), na década de 1990. Os Temas Transversais, portanto, foram estruturados, à época, como assuntos significativos para a sociedade cuja abrangência poderia se estender a todas as áreas do conhecimento, alinhando cidadania e saber científico. Em caráter de recomendação para que fossem trabalhados em todos os componentes curriculares, os Temas Transversais, nos PCN, dividiam-se em seis eixos: saúde, ética, orientação sexual, pluralidade cultural, meio ambiente e trabalho e consumo. Evidencia-se que, além da indicação de temáticas que se faziam presentes na sociedade, recomendou-se que fossem abordadas com base em propostas didáticas e epistemológicas a transversalidade e a interdisciplinaridade.

A partir da homologação da BNCC, em 2018, para o Ensino Médio, os Temas Transversais tiveram seu alcance ampliado, com a inserção de questões sociais que devem acompanhar a formação do(a) estudante, agora em caráter de obrigatoriedade, na composição do currículo. A inclusão da contemporaneidade, não apenas na nomenclatura, mas como pressuposto no desenvolvimento dos temas, sustenta-se na compreensão da integralidade como elemento primordial para a formação

de sujeitos atuantes no mundo, exercendo responsabilidade local, regional e global. Para tanto, foram estabelecidas temáticas envolvendo questões que permeiam a sociedade e que consideram a vivência dos(as) estudantes no processo de aprendizagem, habilitando-os(as) a refletir a respeito das diversas realidades e papéis a serem exercidos na construção da cidadania.

A importância da contemporaneidade dos Temas Transversais é reforçada na BNCC:

O mundo deve lhes ser apresentado como campo aberto para investigação e intervenção quanto a seus aspectos políticos, sociais, produtivos, ambientais e culturais, de modo que se sintam estimulados

a equacionar e resolver questões legadas pelas gerações anteriores – e que se refletem nos contextos atuais –, abrindo-se criativamente para o novo.8

A abordagem dos Temas Contemporâneos Transversais (TCTs) no processo de aprendizagem tem como resultado a possibilidade de construir conhecimentos utilizados para a resolução de problemas e para a prática cotidiana, pelo exercício da cidadania. Dessa forma, ao tratar de questões sociais que estão inseridas nas realidades dos(as) estudantes, os conteúdos apresentados passam a extrapolar a produção científica, sem que haja um fim em si mesmo, compreendendo a educação como um processo que se realiza em diversos espaços sociais.

Temas Contemporâneos Transversais na BNCC 9

MEIO AMBIENTE

Educação Ambiental Educação para o Consumo

CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Ciência e Tecnologia

MULTICULTURALISMO

Diversidade Cultural Educação para valorização do multiculturalismo nas matrizes históricas e culturais brasileiras

Temas

Contemporâneos Transversais na BNCC

CIDADANIA E CIVISMO

Vida Familiar e Social Educação para o Trânsito Educação em Direitos Humanos Direitos da Criança e do Adolescente Processo de envelhecimento, respeito e valorização do idoso

ECONOMIA

Trabalho

Educação Financeira

Educação Fiscal SAÚDE

Educação Alimentar e Nutricional

9[…] os Temas Contemporâneos Transversais têm a condição de explicitar a ligação entre os diferentes componentes curriculares de forma integrada, bem como de fazer sua conexão com situações vivenciadas pelos estudantes em suas realidades, contribuindo para trazer contexto e contemporaneidade aos objetos do conhecimento descritos na BNCC.10

Temas Contemporâneos Transversais e as juventudes

No que se refere ao Ensino Médio, a abordagem de temas contemporâneos ganha ainda mais relevância

8 BRASIL, ref. 1, p. 463.

para a escola, que deve acolher diferentes juventudes. As questões sociais propostas nos TCTs colaboram para uma formação que privilegia a tomada de decisões e as ações conscientes diante de temáticas que envolvem a vida em sociedade, incentivando o(a) estudante a atuar no mundo de forma ética e cidadã.

9 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Temas Contemporâneos Transversais na BNCC: contexto histórico e pressupostos pedagógicos. Brasília, DF: MEC, 2019. p. 13. Disponível em: https://anec.org.br/wp-content/uploads/2020/04/TEMAS-CONTEMPORANEOS_contextualizacao_BNCCMEC.pdf. Acesso em: 10 out. 2024.

10 BRASIL, ref. 9, p. 4-5.

A socialização juvenil não acontece em um único espaço social, mas em diferentes instâncias, que permitem a existência de condições diversas, vivenciadas na escola, na família, na comunidade e nos demais círculos sociais. A condição plural das culturas se verifica, também, de acordo com o contexto histórico e social no qual estão inseridas. Não é possível, portanto, pensarmos a categoria juvenil como homogênea, definida por uma determinada faixa etária ou por aspectos biológicos. Faz-se necessário admitir, consequentemente, que as culturas juvenis se manifestam em dimensões diversas e apresentam especificidades.

Nesse cenário, a escola assume lugar de destaque como espaço social onde as múltiplas culturas juvenis se manifestam, já que se constitui como o universo em que grande parte das relações são estabelecidas, possibilitando o contato com a complexidade de outras realidades, vivências e contextos. Para Juarez Dayrell, sociólogo e educador mineiro com pesquisas voltadas à juventude, a relevância do espaço escolar para a manifestação cultural juvenil se reafirma da seguinte maneira:

Na frequência cotidiana à escola, o jovem leva consigo o conjunto de experiências sociais vivenciadas nos mais diferentes tempos e espaços que […] constituem uma determinada condição juvenil que vai influenciar, e muito, a sua experiência escolar e os sentidos atribuídos a ela. Por outro lado, a escola que ele frequenta apresenta especificidades próprias, não sendo uma realidade monolítica, homogênea. Podemos afirmar que a unidade escolar apresenta-se como um espaço peculiar que articula diferentes dimensões. […]11

Os Temas Contemporâneos trabalhados dentro do ambiente escolar de forma transversal permitem que os assuntos ultrapassem as barreiras disciplinares e sejam incorporados às próprias realidades e escolhas, tornando-se subsídios para que os jovens desenvolvam as diversas leituras do mundo, conforme preconizado pela BNCC.

No que se refere ao conteúdo, os TCTs buscam atender a demandas da sociedade contemporânea inerentes ao cotidiano dos(as) estudantes, já que adentram diferentes âmbitos da vida, como as relações que se estabelecem na comunidade escolar, nas famílias e nos círculos sociais e que afetam, de forma direta ou indireta, o processo educacional.

O TCT que aborda o Meio Ambiente, por exemplo, possibilita ricas conexões entre todas as áreas

O desenvolvimento do tema permite que os(as) estudantes se percebam como sujeitos atuantes no mundo, com ações que impactam os meios ambiental e social em diferentes escalas. Nas abordagens do tema, ainda que possam ocorrer de múltiplas formas, a percepção da cidadania é privilegiada, principalmente pelo diálogo equilibrado entre as Ciências da Natureza e as Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, evidenciando as intrínsecas relações entre sociedade e natureza.

As áreas de Linguagens e Matemática também se articulam para apresentar aos(às) estudantes diferentes fontes de análise com a finalidade de apoiar a construção do conhecimento ambiental e do pensamento crítico acerca das responsabilidades que possuem enquanto cidadãos(ãs). Da mesma forma, atuam nos campos científico e filosófico ao apoiar a elaboração de argumentação e a proposição de solução de problemas, privilegiando ações que se insiram na realidade dos(as) estudantes.

Um grande marco da BNCC é o fato de ter sido estruturada visando à formação integral do indivíduo. Sendo assim, é inegável considerarmos que os temas relacionados à Saúde, que envolvem também a educação alimentar e nutricional, vão ao encontro do saber científico, que embasa de forma crítica as escolhas dos(as) estudantes, bem como seu bem-estar físico e emocional. Nesses assuntos, são estabelecidos estreitos diálogos com questões que trabalham o autocuidado e o autoconhecimento, como previsto na Competência Geral 8, promovendo a autonomia do(a) estudante.

Por meio da apropriação do conhecimento sobre o funcionamento de seus corpos e a relação com os alimentos, abrem-se possibilidades de tratamento de outras questões sociais, como as relacionadas à produção de alimentos, envolvendo as práticas e os modos de vida, ao consumo e às múltiplas possibilidades de intervenções efetivas nas comunidades em que vivem.

No que se refere às competências que abordam temas socioemocionais, o espaço dedicado à saúde é igualmente relevante, já que os(as) estudantes da

11 DAYRELL, Juarez. A escola “faz” as juventudes?: reflexões em torno da socialização juvenil. Educação e Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 1105-1128, out. 2007. p. 1118. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/es/v28n100/a2228100.pdf. Acesso em: 9 out. 2024. do conhecimento, assim como aplicações que podem ser percebidas na vida prática e cotidiana de todos(as) os(as) estudantes. A urgência em tratar questões que promovam a educação ambiental e a educação para o consumo responsável dialoga tanto com as competências que pressupõem pensamento científico quanto com as competências socioemocionais, de ética e responsabilidade.

etapa do Ensino Médio experimentam novas questões relacionadas ao corpo e à sexualidade. É por meio do autoconhecimento que se torna possível estabelecer a importância do cuidado e da preservação, de si e do outro, reconhecendo as emoções envolvidas nesse processo de transformação.

Não se trata apenas de apresentar aos(às) estudantes as ferramentas disponíveis no mundo contemporâneo, sem que lhes seja possível estabelecer conexões com outros assuntos pertinentes ao contexto em que estão inseridos. O que se pretende é criar espaços em que essas ferramentas possam ser efetivamente utilizadas de forma reflexiva com o propósito de transformação social, na produção de conhecimento, considerando a tecnologia uma aliada no processo educativo.

As competências que se relacionam diretamente ao tema são bastante abrangentes, já que as metodologias aplicadas podem se associar a outras temáticas também trabalhadas durante o Ensino Médio. Entre as que se destacam, envolvendo todas as áreas do conhecimento, estão as Competências Gerais 1, 2, 4 e 5, que discorrem sobre a produção do conhecimento científico, tendo apoio na inclusão das tecnologias digitais com significado real para os jovens, colaborando para a sua formação ética e responsável.

As questões relacionadas ao tema também estão presentes na vida socioemocional dos(as) estudantes, razão pela qual deve haver espaço para que possam ser elaboradas e discutidas, principalmente no que se refere às relações interpessoais e ao respeito às diferentes realidades existentes dentro da comunidade escolar.

Por não estar vinculado a um único campo do saber e pressupor questões sociais atuais, o desenvolvimento dos TCTs vai ao encontro do estabelecido na BNCC quando afirma a importância da integralidade na formação do(a) estudante:

Independentemente da duração da jornada escolar, o conceito de educação integral com o qual a BNCC está comprometida se refere à construção intencional de processos educativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes e, também, com os desafios da sociedade contemporânea. Isso supõe considerar as diferentes infâncias e juventudes, as diversas culturas juvenis e seu potencial de criar novas formas de existir.

Assim, a BNCC propõe a superação da fragmentação radicalmente disciplinar do conhecimento, o

12 BRASIL, ref. 1, p. 14-15.

13 BRASIL, ref. 9, p. 18.

estímulo à sua aplicação na vida real, a importância do contexto para dar sentido ao que se aprende e o protagonismo do estudante em sua aprendizagem e na construção de seu projeto de vida.12

Faz-se necessário reforçar o caráter transversal, ou seja, que tem como pressuposto o atravessamento de diferentes áreas do conhecimento, presente nos Temas Contemporâneos Transversais. Apesar de vinculado à concepção de interdisciplinaridade e intradisciplinaridade, que também são tratadas na BNCC como possibilidade de abordagem, existem diferenças importantes na proposta de cada uma delas que se mostram relevantes para a discussão. É importante destacar, porém, que, apesar de aparecerem em níveis diferentes de complexidade, as três abordagens se complementam.

[…] existem múltiplas possibilidades didático-pedagógicas para a abordagem dos TCTs e que podem integrar diferentes modos de organização curricular. Tais possibilidades envolvem, pois, três níveis de complexidade: intradisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar.13

Durante o trabalho com os TCTs, é esperado que o desenvolvimento das questões propostas ocorra de forma intradisciplinar, explorando os temas com efetiva incorporação à disciplina, e não como elemento paralelo. No que tange à interdisciplinaridade, pressupõe-se o diálogo entre diferentes componentes curriculares de cada área, de forma que os(as) estudantes possam compreender a integralidade das questões desenvolvidas.

A transdisciplinaridade parte da necessidade de que o conhecimento não se resuma à estrutura escolar e de que extrapole o conteúdo disciplinar. Dessa forma, a transversalidade possibilita a articulação entre as diferentes áreas do saber e, ao mesmo tempo, permite o diálogo com a vida em sociedade, resultando em conexões entre diferentes realidades e no preenchimento de lacunas comuns ao ensino fragmentado, que dificultam o acesso e o domínio sobre o conhecimento. Considerando as vivências dos(as) estudantes no processo de aprendizagem, a educadora Maria Cândida Moraes (1947-) atenta para a importância da educação transdisciplinar ao considerar que:

A transdisciplinaridade não apenas combina conteúdos disciplinares e integra as diferentes informações procedentes de cada uma das disciplinas, mas ela reencontra e dá sentido ao sujeito que está além das disciplinas, explorando os diferentes níveis dos objetos de conhecimento. Ela reintroduz e reafirma uma nova epistemologia

do sujeito e da subjetividade humana, abrindo o campo do conhecimento não apenas aos saberes disciplinares, mas também às histórias de vida, aos saberes não acadêmicos e às tradições.14

Os Temas Contemporâneos Transversais, principalmente ao seguir as premissas da transdisciplinaridade, não estão fechados em um modelo único de abordagem, reconhecendo múltiplas aplicações metodológicas no processo de aprendizagem. Assim, a escolha pedagógica para a abordagem deve considerar o vínculo entre os assuntos trabalhados e a vida em sociedade, de modo a desenvolver as dez competências gerais previstas na BNCC. A importância do trabalho do docente, portanto, reafirma-se, já que participa da construção de conhecimento do(a) estudante, principalmente no que se refere aos assuntos não disciplinares que colaboram para a compreensão acerca da responsabilidade dos jovens em relação à vida pessoal, coletiva e ambiental.

Metodologias ativas de aprendizagem

Frequentemente, nas referências às metodologias de ensino, são elencadas apenas as técnicas utilizadas. Entretanto, para compreendermos a relevância das metodologias, é necessário considerá-las elementos norteadores da totalidade do processo educacional, não buscando apenas atender a um objetivo isolado.

Durante séculos, as metodologias de ensino se basearam no chamado “modelo tradicional”, em que os(as) professores(as) ocupavam o protagonismo como transmissores do conhecimento. Os(As) estudantes, por sua vez, eram condicionados a um papel passivo no próprio processo de aprendizagem, com limites de atuação na receptividade das informações já processadas e transmitidas. Pensadores que contribuíram para a crítica a esse modelo, como o filósofo e educador estadunidense John Dewey (1859-1952), apontavam seu caráter padronizador, em que os(as) estudantes eram educados unicamente para a reprodução dos conhecimentos já construídos, formando indivíduos sem iniciativa, culminando em uma sociedade estática, sem espaço para transformação e, portanto, sem que a escola cumprisse com eficiência seu papel social.

John Dewey, ao abordar o ensino tradicional, recorre a uma interessante passagem na qual relata o insuces-

so obtido ao buscar móveis escolares que atendessem às necessidades dos(as) estudantes sob diferentes perspectivas, ainda no século XIX. Como resposta, ouviu de um dos comerciantes que os objetos buscados por Dewey não poderiam ser encontrados porque pressupunham um espaço onde os(as) estudantes pudessem trabalhar, enquanto todos os disponíveis “são para ouvir”15, reafirmando as estruturas em que as relações entre professor(a) e estudante se desenvolviam.

Muito embora a obra do filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), no século XVIII, já indicasse os princípios de metodologias de ensino que enfatizassem a importância do caráter experimental na superação da exclusividade teórica, foi no século XX que ganharam força as teorias educacionais que contestavam o modelo tradicional hegemônico, criticando o papel secundário designado ao(à) estudante. Nesse contexto, as concepções da Escola Nova, idealizadas por John Dewey, tiveram grande influência sobre a reformulação metodológica, que buscou privilegiar a ação do(a) estudante no cenário da educação.

A metodologia educacional que se propõe ativa entende os(as) estudantes como protagonistas da aprendizagem, com uma consequente mudança na forma como vivenciam esse processo e como se posicionam diante dele. Em uma postura ativa, os(as) estudantes experimentam novas formas de se relacionarem com a aprendizagem, desenvolvendo autonomia e responsabilidade por meio do entendimento da aplicabilidade social do que se aprende.

De acordo com o professor Claudino Piletti (1942-), as novas metodologias partem do pressuposto de que o(a) estudante é um ser em desenvolvimento, cuja atividade, espontânea e natural, é condição para seu crescimento físico e intelectual, afirmando que é principalmente no espaço que o(a) professor(a) reserva para as descobertas que ocorre a sua participação ativa e consciente16. Saviani afirma a importância do trabalho educativo no desenvolvimento dos indivíduos, já que para ele:

O trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem hu-

14 MORAES, Maria Cândida; NAVAS, Juan Miguel Batalloso (colab.). Transdisciplinaridade, criatividade e educação: fundamentos ontológicos e epistemológicos. Campinas: Papirus, 2015. p. 93.

15 DEWEY, John. A escola e a sociedade e a criança e o currículo. Tradução: Paulo Faria, Maria João Alvarez e Isabel Sá. Lisboa: Relógio D’Água, 2002. p. 38.

16 PILETTI, Claudino. Didática geral. 23. ed. São Paulo: Ática, 2004.

manos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.17

Tendo como pressuposto a garantia de atender às necessidades dos jovens em relação a um processo de aprendizagem integral, em que a educação percorra caminhos indispensáveis para a formação dos(as) estudantes como cidadãos(ãs), a BNCC preconiza que as escolas devem:

• garantir o protagonismo dos estudantes em sua aprendizagem e o desenvolvimento de suas capacidades de abstração, reflexão, interpretação, proposição e ação, essenciais à sua autonomia pessoal, profissional, intelectual e política;18

Os pressupostos apresentados pela BNCC dialogam com o pensamento expresso por diversos autores ao compreender o indivíduo em sua totalidade, o que necessariamente inclui o contexto no qual está inserido. Para que sejam alcançados esses objetivos, as metodologias ativas, ainda que não sejam fechadas em estruturas preconcebidas, sustentam-se em pilares educacionais, tais como: centralização do processo de aprendizagem no(a) estudante; incentivo à autonomia; criação de espaços nos quais se desenvolvam problematizações e reflexões acerca da realidade; e desenvolvimento da produção do conhecimento de forma individual e coletiva.

De acordo com a BNCC, quando a construção do conhecimento tem por base o trabalho com metodologias ativas, são desenvolvidas importantes competências, entre elas:

• saber buscar e investigar informações com criticidade (critérios de seleção e priorização), a fim de atingir determinado objetivo, a partir da formulação de perguntas ou de desafios dados pelos educadores;

• compreender a informação, analisando-a em diferentes níveis de complexidade, contextualizando-a e associando-a a outros conhecimentos;

• interagir, negociar e comunicar-se com o g rupo em diferentes contextos e momentos;

• conviver e ag ir com inteligência emocional, identificando e desenvolvendo atitudes positivas para a aprendizagem colaborativa;

• ter autogestão afetiva, reconhecendo atitudes interpessoais facilitadoras e dificultadoras para a qualidade da aprendizagem, lidando com o erro e as frustrações e sendo flexível;

• tomar decisão individualmente e em g rupo, avaliando os pontos positivos e negativos envolvidos;

• desenvolver a capacidade de liderança;

• resolver problemas, executando um projeto ou uma ação e propondo soluções.19

As metodologias, portanto, aparecem dotadas de intencionalidade por se desenvolverem de acordo com os objetivos que se pretende atingir. Assim, uma educação que privilegie a autonomia dos(as) estudantes, garantindo o protagonismo no processo de aprendizagem, deve incluir metodologias que atendam a essa demanda, com materiais relevantes, assuntos contemporâneos, que conversem com a realidade dos(as) estudantes, colocando-os em posição de atuar na resolução de problemas, refletir, tomar decisões, trabalhar de forma coletiva e avaliar os resultados, buscando o aprofundamento do conhecimento produzido.

A própria organização do espaço em que as propostas se desenvolvem pode colaborar com as trocas necessárias e a horizontalidade de relações que podem ser estabelecidas no processo ativo, facilitando as discussões, os trabalhos coletivos e o próprio entendimento do(a) estudante sobre a posição de protagonista que ocupa em seu processo de aprendizagem. Não se trata, entretanto, da simples troca na disposição de carteiras ou da utilização de outros ambientes sem que haja intencionalidade de atividade do(a) estudante na proposta, e sim de proporcionar espaços criados como meios reais de atender ao que pretendem, enquanto totalidade.

Como exemplo dos resultados de acordo com determinada abordagem metodológica, Dewey20 problematiza o alcance da cooperação entre estudantes ao considerarmos os modelos tradicionais de aprendizagem, pautados na acumulação de conteúdo. Em uma educação calcada na memorização de determinadas informações, não existe lugar para que ocorra a ajuda mútua; pelo contrário, ela é desestimulada e compreendida como “delito”.

17 SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2003. p. 13.

18 BRASIL, ref. 1, p. 465.

19 BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base: aprofundamentos. Brasília, DF: MEC, 2018. Localizável em: sub. O uso de metodologias ativas colaborativas e a formação de competências. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/implementacao/praticas/ caderno-de-praticas/aprofundamentos. Acesso em: 20 out. 2024.

20 DEWEY, ref. 15.

Para Dewey,

Se o fim que temos em vista é pôr quarenta ou cinquenta crianças a decorar determinadas lições que depois serão recitadas a um professor, o tipo de disciplina imposta deverá assegurar esse resultado. Mas se o fim em vista é o desenvolvimento dum espírito de cooperação social e de vida comunitária, a disciplina deve emergir desse objetivo e a ele ser relativa.21

De modo contrário, quando está em curso uma educação ativa,

Ajudar os outros, em vez de ser uma forma de caridade que empobrece o destinatário, é apenas e só um auxílio para libertar as faculdades e incentivar aquele que é ajudado. Um espírito de livre comunicação, de troca de ideias e sugestões, resultados de experiências anteriores bem ou malsucedidas, torna-se a nota dominante das aulas.22

O papel da escola, na perspectiva ativa, está associado à vida dos(as) estudantes, permitindo que aprendam por meio de experiências diretas, em vez da abstração de situações hipotéticas que não se apresentam com sentido efetivo durante o processo de aprendizagem.

No artigo “Construção de portfólios coletivos em currículos tradicionais: uma proposta inovadora de ensino-aprendizagem”, os(as) autores(as) indicam que as bases das metodologias ativas se fundamentam na concepção crítico-reflexiva, possibilitando que os(as) estudantes realizem a leitura da realidade e intervenham sobre ela23. O conceito crítico-reflexivo na educação se apoia no entendimento de que, com base na formação crítica na análise das realidades, acontece o desenvolvimento do(a) estudante como cidadão(ã) capaz de atuar na transformação social. No processo reflexivo, o(a) estudante é incentivado a compreender as consequências inerentes às próprias ações na prática social e na vida em sociedade, de maneira que o conteúdo escolar não permaneça no campo das abstrações.

Nessa abordagem, é privilegiada a construção coletiva do conhecimento, mediante as interações entre os diferentes atores que participam do processo de aprendizagem com o assunto estudado, com práticas que envolvem não só escuta mas também discussões, exposições, trocas e questionamentos. Em um ambiente que tenha a metodologia ativa como norteadora, o(a) estudante se apropria dos conhecimentos,

21 DEWEY, ref. 15, p. 25.

22 DEWEY, ref. 15, p. 25.

compreendendo as possibilidades e as situações de utilização diante da articulação que ele(a) estabelece entre a sua própria vivência, a escola, a comunidade e a sociedade em diferentes escalas. Por meio dessa abordagem, além do engajamento dos(as) estudantes nos conteúdos trabalhados, as metodologias ativas contribuem para o desenvolvimento das competências socioemocionais, criando espaços para que eles(as) reflitam sobre o lugar que ocupam no mundo e tenham suas vivências e saberes socioculturais valorizados na produção do conhecimento científico.

Autonomia na educação

Na prática de abordagens que privilegiem as metodologias ativas no processo de aprendizagem, ideias como a centralidade do(a) professor(a) e a transmissão de conteúdo perdem espaço em favor do protagonismo do(a) estudante e da construção do conhecimento. Nessa perspectiva, ocorre uma transformação na relação educador(a)-educando(a).

Em métodos tradicionais, existe uma dicotomia entre um(a) professor(a) que guia o processo e um(a) estudante que se submete a um caminho dado de antemão. Em abordagens que se elaboram de maneira crítica a esse tipo de educação, o(a) estudante é instado(a) a assumir um papel ativo, enquanto o(a) educador(a) abdica de ser o(a) único(a) dirigente do processo.

O conceito de autonomia pode ser entendido como uma competência adquirida que permite ao sujeito tomar decisões, manifestar opiniões e posicionamentos críticos e guiar sua trajetória de acordo com seus próprios pressupostos. Em resumo, um sujeito autônomo é aquele que assume uma posição crítica e respeitosa de autoria em relação às normas e regras.

Dessa forma, educador(a) e aprendiz passam a ser coparticipantes de um processo de autoria. Essa mudança exige não só uma postura ativa do(a) estudante mas também torna necessário o incentivo do(a) educador(a) para que o(a) estudante reflita de maneira crítica e esteja aberto ao debate respeitoso e construtivo. Assim, a autonomia torna-se tanto uma conquista quanto uma construção mútua.

Para tanto, faz-se necessário um ambiente escolar que tenha em sua base o diálogo e a comunicação. O(A) professor(a) assume o importante papel de encorajar o

23 COTTA, Rosângela Minardi Mitre et al. Construção de portfólios coletivos em currículos tradicionais: uma proposta inovadora de ensino-aprendizagem. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 787-769, mar. 2012.

registro e a comunicação das ideias dos(as) estudantes, práticas importantes que lhes servirão para as oportunidades de resolução de problemas. Mesmo nas atividades individuais que não carecem de espírito associativo, é recomendável que, quando oportuno, eles(as) sejam questionados(as) sobre como chegaram às suas conclusões. Haverá também atividades nas quais eles(as) serão instados a realizar trabalhos de pesquisa e de investigação. Nesses casos, processos cognitivos como analisar, definir, comparar e resolver problemas os(as) habilitarão a compreender os problemas em nível local e, eventualmente, em outras escalas mais abrangentes, sendo possível pensar esses trabalhos de investigação buscando a modelagem e automatização das soluções propostas. Desse modo, esta obra também abre terreno para o trabalho com o pensamento computacional, que leva ao desenvolvimento de competências e habilidades específicas associadas à abstração, à visualização, à generalização e ao uso de estratégias algorítmicas. No desenvolvimento de propostas pelas metodologias ativas, o pensamento computacional não deve ser entendido como uma preparação dos jovens para trabalhar com computação, e sim como uma forma de lidar com problemas que demandam a capacidade de analisar e organizar logicamente as informações para, depois, resolvê-los de modo eficiente. A obra apresenta seções, que serão descritas mais adiante, nas quais essa proposta pode ser mais bem desenvolvida, sobretudo as que constam nos finais das unidades.

O trabalho docente

As transformações ocorridas diante de novas possibilidades de metodologias de ensino não diminuem a importância que o(a) professor(a) ocupa nos cenários criados fora dos modelos tradicionais; pelo contrário, a competência para ensinar não está em transferir conhecimento, mas em possibilitar que os(as) estudantes construam seu conhecimento.

Em uma educação que se pretenda ativa, o(a) professor(a) atua como facilitador(a) e orientador(a) do processo de aprendizagem, superando o antigo papel de único(a) provedor(a) de informação e conhecimento. Para o educador paulista José Carlos Libâneo (1945-), na participação ativa, com a mediação do(a) professor(a), o(a) estudante passa de uma experiência confusa e fragmentada a uma visão sintética, organizada e unificada24. Nesse sentido, o trabalho do(a)

24 LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.

Assim, antes que sejam definidos os métodos e as técnicas aplicadas para o desenvolvimento da aprendizagem, o(a) professor(a) deve considerar os diferentes contextos que compõem o grupo escolar, a fim de criar meios que integrem e alcancem todas as realidades. Com base em situações que dialoguem com o universo do(a) estudante, o saber escolar ultrapassa a simples assimilação de conteúdo e permite que o(a) estudante apreenda o processo de produção do conhecimento, aplicando-o na sua atuação como cidadão(ã).

As metodologias ativas não estão limitadas a determinadas formas de aplicabilidade, o que permite ao(à) professor(a), de acordo com a realidade em que os(as) estudantes estão inseridos, elaborar propostas que se apoiem na ação dos(as) estudantes. Espera-se que as abordagens preconizem a ação do(a) estudante embasada em problemáticas reais, que passem pela discussão de valores e ética, processos investigativos e de reflexão, possibilidade de explorar diferentes fontes de conhecimento, dados e informações, além de variadas linguagens, incluindo os meios digitais e artísticos, alternando trabalhos individuais e de construção coletiva.

Para que seja possível aplicar as metodologias ativas de aprendizagem, é preciso que sejam fornecidos os meios para que os(as) estudantes cultivem as competências que se pretende alcançar. Diante desse contexto, o planejamento do docente diante da metodologia aplicada se faz ainda mais necessário, já que, para alcançar os resultados programáticos, devem ser elaboradas estratégias didáticas contextualizadas e intencionais, objetivando a totalidade do processo de ensino.

O método envolve a construção de situações de ensino que promovam uma aproximação crítica do aluno com a realidade; a opção por problemas que geram curiosidade e desafio; a disponibilização de recursos para pesquisar problemas e soluções; bem como a identificação de soluções hipotéticas mais adequadas à situação e a aplicação dessas soluções. Além disso, o aluno deve realizar tarefas que requeiram processos mentais complexos, como análise, síntese, dedução, generalização.25

O planejamento, no sentido mais amplo, não se restringe à proposição de atividades; ele inclui a contextualização, compreensão da heterogeneidade dos(as)

25 MEDEIROS, Amanda Marina Andrade et al Docência na socioeducação. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2014. p. 323. professor(a) também está pautado no planejamento do processo de ensino-aprendizagem, buscando proporcionar as condições necessárias para que ele se efetive.

jovens que compõem o Ensino Médio, considerando os anseios próprios dessa etapa da vida e os seus projetos de vida. O planejamento de metodologias ativas, portanto, passa pela criação de espaços de valorização das diferentes competências e formas de aprendizagem para que as relações com o saber científico possam ser estabelecidas. Assim, o conteúdo é apreendido e aplicado na formação cidadã e autônoma, tornando o(a) estudante um(a) agente de transformação da comunidade.

A cultura digital

A ampliação do acesso aos recursos digitais ocorrida nas últimas décadas é um dos fatores que mais têm modificado a interação entre os indivíduos. Fora da escola, a interconexão proporcionada pela internet, por meio do uso de celulares, computadores e outros dispositivos eletrônicos, transformou significativamente as práticas sociais nos mais diversos campos da atividade humana e permitiu a interação entre pessoas e entre pessoas e máquinas.

Extremamente atual e necessário, o ensino-aprendizagem no campo das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs) deve ser fomentado e trabalhado no contexto escolar, uma vez que o domínio de seus usos instrumentaliza os(as) estudantes não só para sua aprendizagem na escola mas também para sua atuação no contexto social e profissional. A atividade escolar sobre o uso de tecnologias digitais, unida às experiências prévias dos(as) estudantes sobre o tema, possibilita o desenvolvimento de habilida-

des voltadas a uma participação consciente e democrática dos(as) estudantes na sociedade por meio da comunicação digital, assim como a reflexão sobre os fundamentos das TDICs e sobre aspectos relacionados à comunicação de dados e à segurança das redes, por exemplo. As tecnologias digitais são ferramentas que possibilitam o diálogo entre os diversos componentes curriculares e entre as áreas de conhecimento por meio da realização de pesquisas, do planejamento para a apresentação de trabalhos e do compartilhamento de informações, favorecendo as interações com o mundo virtual e globalizado que nos cerca.

Com relação às práticas e ao uso de recursos digitais, é função dos(as) profissionais da Educação, entre eles professores(as), gestores(as), funcionários(as) de escola, elaboradores(as) de políticas educacionais e fornecedores(as) de produtos e serviços educacionais, permitir que a escola valorize a construção de conhecimento fundamentada em valores éticos e democráticos, inclusive quanto ao acesso à informação e às práticas multimidiáticas de expressão de valores e manifestações culturais de maneira crítica e responsável.

Esse encaminhamento se deve ao fato de os recursos tecnológicos permitirem a análise, a produção, a avaliação e o compartilhamento de informações em tempos e espaços distintos daqueles que estão naturalizados no interior das escolas. Então, ao serem integrados às práticas pedagógicas, eles permitem a ampliação do universo cultural, social e de conhecimento dos(as) estudantes. PARTE II

Pressupostos teórico-metodológicos

Objetivos de nossa proposta didático-pedagógica

A proposta didático-pedagógica deste livro consiste fundamentalmente em oferecer um conjunto de caminhos formativos que articulam métodos, temas, problemas e conceitos, tal como surgem na experiên-

26 BRASIL, ref. 1, p. 561.

cia das estudantes e dos estudantes, a fim de analisá-los e inteligi-los com base na História da Filosofia.

As estudantes e os estudantes poderão, assim, encontrar em diversas filosofias elementos que permitam, a um só tempo, refletir sobre sua própria existência e sobre a experiência daqueles com quem convive, bem como aumentar seu ângulo de visão e refletir sob possíveis perspectivas da experiência humana em geral. Como bem exprime a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o que se busca com essa prática, típica do Ensino Médio, é favorecer “os processos de simbolização e abstração”26

A referência fundamental para nosso trabalho é a História da Filosofia como busca para conhecer de modo seguro elaborações filosóficas no sentido mais próximo ao que elas tiveram para as próprias filósofas e os próprios filósofos. Em outras palavras, trata-se de permitir que diferentes filosofias alcancem os(as) estudantes em seu contexto imediato e os(as) convidem a ampliar seu horizonte reflexivo, pensando sobre sua entrada consciente na existência. Tudo isso se pretende, vale dizer, sem que se caia, todavia, em algum tipo de instrumentalização das filosofias, mas em uma apropriação existencial, respeitando o caráter técnico do trabalho filosófico.

Por fim, cabe lembrar que, como será esclarecido adiante, o respeito ao caráter técnico do trabalho filosófico significa conhecer e admitir suas especificidades metodológicas e teóricas, sem, no entanto, terminar em adesão a cada filosofia estudada, o que resultaria simplesmente em confusão intelectual. Cabe possibilitar que os(as) estudantes sejam atraídos(as) por essa ou aquela filosofia, assim como que a professora ou o professor de Filosofia também manifeste honestamente suas posições filosóficas, com coerência e sem proselitismo. Trata-se de colocar acima de tudo a autonomia estudantil em qualquer tipo de adesão ou recusa teórica. Nesse sentido, como bem exprimem as Orientações curriculares para o Ensino Médio, “a orientação geral em um currículo de Filosofia pode tão somente ser filosófica, e não especificamente kantiana, hegeliana, positivista ou marxista”27.

Como se verá, a continuidade deste texto, para além da apresentação de nosso modelo teórico-metodológico, será também um desenvolvimento do que foi exposto de modo condensado como nossos objetivos.

Modelo teórico-metodológico

Os objetivos de nossa proposta didático-pedagógica têm como referência central de formação o modelo teórico-metodológico da História da Filosofia. Assim, os(as) estudantes poderão ampliar e aperfeiçoar a consciência de si e a alteridade em contato com o arcabouço próprio da unidade curricular de Filosofia, que não é outro senão o conjunto da produção filosófica, reflexo e expressão da experiência de pensadoras e pensadores no decorrer dos séculos.

A menção a autoras e autores, temas, problemas, conceitos, textos etc. neste livro não é feita de modo esparso e desconexo, pois tal prática significaria o oposto de uma filosofia, quer dizer, de uma tentativa de alcançar inteligibilidade. Em vez disso, subjaz à estrutura de nossa obra a articulação entre existência e filosofias na constituição de um saber ao qual sempre se pode denominar Filosofia, sem reduzi-lo, porém, a algo aplainado e homogêneo.

Para apresentar nosso modelo teórico-metodológico, mostraremos aqui a articulação entre cinco concepções do processo de ensino-aprendizagem em Filosofia, aprendidas ao longo de nossa própria formação, ampliada e desenvolvida por nós para a produção de nossa obra: a relação entre Filosofia e filosofias; os atos filosóficos e o hábito da Filosofia; a História da Filosofia; a interdisciplinaridade; a avaliação.

Filosofia e filosofias

Operamos, neste livro, com a distinção entre uma atitude filosófica geral e as diferentes filosofias, ou seja, as formas assumidas por essa atitude no trabalho de filósofas e filósofos ao longo do tempo. Essa distinção permite falar em Filosofia, aqui definida como o pensamento do pensamento, e em filosofias, no plural, como uma constelação de expressões filosóficas que encarnam a atitude geral de pensar sobre o pensamento.

Entendemos por atitude filosófica geral ou por pensamento do pensamento o trabalho de investigação dos sentidos que se revelam ou que são construídos nas mais diversas áreas da experiência humana e que são expressos publicamente para referir essa experiência. Trata-se de uma concepção bastante ampla (assim como é amplo o uso do termo sentido, aqui), visando não propriamente oferecer uma definição única de Filosofia, mas assumir a possibilidade de adotar uma visão, digamos, englobante, a qual, por sua vez, apontando para a experiência do pensamento do pensamento, seja capaz de destacá-lo como uma característica que aparece, em maior ou menor grau, nas diferentes filosofias, respeitando-se suas especificidades.

Justamente por sua amplitude, essa concepção seria exposta a graves riscos caso pretendesse unir, em torno de algo como um “universal da Filosofia”, a variedade das filosofias, mas não é nessa direção que este livro é encaminhado. Se ele pressupõe algo como

27 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o Ensino Médio: v. 3: Ciências Humanas e suas Tecnologias. Brasília, DF: MEC: SEB, 2006. p. 18.

uma característica universal, ela consiste na atenção que o pensamento dá a si mesmo. Como se busca esclarecer na sequência deste Manual do Professor, talvez se possa falar de uma universalidade do hábito da Filosofia, algo do registro de uma disposição e de uma atividade que guardaria semelhanças apesar das diferenças presentes tanto nos atos que o formam como nos objetos ou alvos visados. Não se trata, portanto, da universalidade de alguma essência filosófica.

Cabe também lembrar que a concepção de Filosofia que estrutura este livro nasce de alguém que encara o arcabouço das filosofias “de frente para trás”, indo do contexto contemporâneo rumo à Antiguidade. Por isso mesmo, é possível pensar que, se pudessem, inúmeros pensadores antigos e medievais se voltariam contra tal concepção, uma vez que a Filosofia, para tais autores, possuía uma identidade com contornos mais definidos (basta lembrar a longa tradição platônico-aristotélica e medieval dos debates em torno da distinção e da classificação das ciências). Ainda, entendemos o termo tradição, aqui, no sentido de movimento de transmissão cultural (filoófica, artística, científica, religiosa, política) e não no sentido de blocos de pensamento uniforme que percorreriam tempos diferentes. Provavelmente, alguns modernos e contemporâneos também discordariam de sua aproximação com autores, por exemplo, pré-críticos ou pré-kantianos, como se costuma dizer, ainda que outros certamente apreciassem tal associação. No entanto, não se trata de permanecer nesse nível de preocupação, pois ele se refere justamente tecnicidade filosófica. Antes, trata-se de – considerando as necessidades e possibilidades de jovens estudantes que se aproximam do legado filosófico –encontrar um modo de apresentar a multiplicidade de perspectivas filosóficas sem dar a impressão de que elas não têm relação alguma entre si.

A relação que este livro pretende identificar entre as filosofias pode ser concebida em torno de dois aspectos: considerar como tecnicamente filosófico o universo que a comunidade acadêmica costuma reconhecer como tal e enfatizar como tipicamente filosófica a atividade de justificar as expressões que o pensamento elabora para sua própria tarefa de exprimir as diferentes experiências humanas, em uma atitude inclusive de “teste” da posição de eventuais interlocutores (algo como o elenchos socrático).

Este livro dá, assim, atenção especial à atividade de justificar as expressões produzidas pelo pensamento para os diferentes sentidos com que se exprime a experiência humana, sem, no entanto, pretender

que a Filosofia seja apenas discurso. Todavia, falar de sentido não visa, aqui, afirmar que a Filosofia busca “o” sentido “da” vida ou “um” sentido “para” a existência. O próprio Sócrates, entre tantos outros gregos e pensadores de épocas diferentes, não buscava propriamente um sentido para existir, mas pretendia compreender a noção mesma de ser, para além dos “recortes” operados pelos saberes particulares. Se nos concentramos na Modernidade e na Contemporaneidade, o debate em torno do sentido fica ainda mais complexo, pois, ao falar então de sentido, pretende-se muitas vezes apenas concentrar a atenção nos resultados da atividade de conhecer (ou de saber), enfatizando o trabalho filosófico como puro pensar ou conhecimento do pensamento como simples expressão de diferentes aspectos da experiência (aspectos científicos, estéticos, ontológicos, políticos, éticos, religiosos etc.). Aliás, é como problema filosófico (e não como resposta dogmática) que o capítulo 5 (unidade 2) se dedica ao tema do sentido da existência.

Em resumo, este livro procura concretizar uma postura de formação filosófica cujo teor é dado pela íntima relação com a História da Filosofia e pelo estudo de temas, problemas e conceitos filosóficos sem a adoção de uma linha de pensamento específica. Certamente, caberia perguntar como isso é possível, uma vez que autores(as) e professores(as) possuem suas próprias preferências filosóficas e que tais preferências condicionariam a escolha de assuntos, autores(as) e livros. A resposta mais apropriada consiste em dizer que a postura de formação filosófica aqui adotada se explica por dois esforços: o de propor itinerários ou caminhos formativos em torno de questões recorrentes nos debates filosóficos, como, por exemplo, o bem e o amor em Ética, o poder em Política, a experiência na filosofia da religião, a representação nas teorias do conhecimento etc., e o de basear-se em trabalhos atualizados de História da Filosofia para suscitar análises e interpretações adequadas a cada autor(a) ou tema estudado. Se há uma “tendência” neste livro, ela consiste em buscar possibilidades reais de colocar diferentes filósofos(as) em diálogo, evitando arbitrariedades. Para tanto, adota-se a metodologia da identificação de questões em rede

Atos filosóficos e hábito da Filosofia

O que parece haver de universal nas filosofias é o fato de elas procurarem perscrutar diferentes sentidos encontrados e/ou construídos na experiência,

com atenção especial ao modo como tais sentidos são expressos. Dessa perspectiva, parece possível caracterizar a Filosofia ou a atitude filosófica geral como um hábito que se desenvolve (o da investigação dos sentidos e do modo como eles são expressos; numa palavra, o hábito de pensar o pensamento). Ensinar Filosofia, por sua vez, pode ser entendido como a atividade de possibilitar que os(as) estudantes entrem em contato com o hábito da Filosofia e tenham a oportunidade de desenvolvê-lo.

Entretanto, aqui se requer redobrada atenção, pois importa saber como se constitui tal hábito. Empregando o vocabulário de alguns autores clássicos, pode-se perguntar: se o que gera um hábito é a prática de determinados atos, então quais atos produzem o hábito filosófico? Além disso, se um ato é sempre uma reação a certo objeto, a certo alvo, quais objetos determinariam os atos filosóficos e o hábito da Filosofia? A Filosofia teria um objeto específico?

Certamente, algumas filósofas e alguns filósofos diriam que o objeto da Filosofia é o ser; outros, a verdade; outros, a linguagem. Alguns diriam que a Filosofia não tem objeto, resposta que talvez seja a mais adequada no contexto contemporâneo. Como não se trata, neste livro, de adotar nenhum estilo filosófico preciso nem o pensamento de algum(a) autor(a) particular, deve-se evitar a identificação de um objeto único que seja considerado determinante dos atos filosóficos e do hábito da Filosofia. No entanto, sem objeto não se despertam atos nem se produzem hábitos. Faz-se necessário, enão, encontrar, de modo “universal” (com muito cuidado para evitar o autoritarismo e a autor(a) referência), um objeto comum ou um conjunto comum de objetos sobre os quais se possa estabelecer a formação filosófica (o despertar de atos filosóficos e do hábito da Filosofia).

Dado que o nosso contexto é o da escola aberta a todos e orientada pelos valores da democracia, do republicanismo, da laicidade e da pluralidade, convé m que tal base objetiva seja marcada justamente pela abertura à multiplicidade das filosofias e das experi ê ncias. Desse ponto de vista, o objeto ou o conjunto de objetos que permitem suscitar atos filos ó ficos e o h á bito da Filosofia não é outro sen ã o o conjunto composto (i) dos textos dos(as) pró prios(as) fil ó sofos(as), (ii) das narrativas da História da Filosofia e (iii) dos problemas, temas e conceitos filos ó ficos (que nascem dos textos dos(as) fil ó sofos(as) ou do modo como a comunidade filos ó fica reelabora tais textos). Em outras palavras, dados esses objetos, é por meio do contato com os textos dos(as) pró prios(as) fil ósofos(as) e das narrativas da História da Filosofia,

al é m do estudo de problemas, temas e conceitos filos ó ficos, que n ó s e nossos(as) estudantes praticamos atos filos ó ficos e desenvolvemos o h á bito da Filosofia em um primeiro n í vel. Afinal, é muito dif ícil, e talvez mesmo impossível, pretender praticar Filosofia fechando-se ao di á logo com aqueles que nos precedem. Em um segundo n í vel, porém, n ó s e os(as) estudantes podemos intensificar o h á bito da Filosofia, passando a produzir uma reflexã o filos ó fica em continuidade com algum(a) autor(a) precedente, repetindo-o e assumindo seu pensamento para n ó s, ou at é mesmo – caso altamente desej ável, embora extremamente laborioso – produzindo reflexõ es filos ó ficas em primeira pessoa.

Materialmente falando, trata-se, em um primeiro nível, de praticar atos de conhecimento ou atos que dão vida a conhecimentos registrados na literatura técnica, que está sempre à espera de que alguém os ponha novamente em movimento, assim como em uma biblioteca os livros registram dados à disposição de todos para serem revividos na consciência dos indivíduos e dos grupos. Dessa perspectiva, supera-se uma possível dicotomia entre simplesmente “estudar História da Filosofia” e “filosofar”. A reativação do legado filosófico permite desenvolver algo como um hábito de ciência ou hábito de conhecimento (scientiae habitus), tal como diziam alguns pensadores medievais, ou mesmo passar do saber como dado objetivo (Wissenschaft) ao saber como ato (Wissen), na terminologia de Edmund Husserl (1859-1938).

Uma das vantagens dessa concepção dos atos filosóficos e do hábito da Filosofia está em não exigir um compromisso necessário com nenhuma concepção técnica e específica de sujeito ou de subjetividade, pois mesmo filosofias antissujeito parecem convergir com filosofias do sujeito na compreensão de que, independentemente da interpretação que se dê à natureza humana, é possível identificar atos e hábitos. Por outro lado, se despertar nos(as) estudantes atos filosóficos e o hábito da Filosofia pode ser visto como o sentido de nossa prática docente, ressalta-se também o caráter radicalmente ético de nosso trabalho de professores(as) de Filosofia, pois, para além de toda doutrinação, o elemento que realmente marca nossa atividade é o nosso exemplo profissional no modo como tratamos as filosofias e despertamos atos semelhantes nos(as) estudantes.

Tal caráter ético é certamente o que articula o estudo técnico de Filosofia com a atenção à prática da cidadania, tão desejada atualmente para a formação filosófica e a formação geral de estudantes. É certo que muitas filosofias podem e talvez devam ser estudadas

sem interesses existenciais. No entanto, mesmo nesse tipo de estudo parece haver um caráter ético, procedente do fato de que ele é tão formativo (despertador de atos e hábitos) como os estudos que conectam o aspecto técnico a uma preocupação existencial. A esse respeito, o filósofo brasileiro Bento Prado Júnior (1937-2007), comparando a formação filosófica típica do mundo antigo com a formação filosófica praticada em nossos dias, traz uma reflexão estimulante no texto a seguir.

[…] a distância que nos separa desses textos [antigos] é maior ainda do que a agora sugerida. Pois esse código ou essa retórica (a ‘gramática’, digamos, da escrita teórica na Antiguidade) só são compreensíveis no seio das práticas e das instituições sociais que as sustentam: um regime de articulação entre prática e teoria que não é exatamente o que teorizamos e praticamos hoje. […] o próprio ensino da Filosofia não tem, nesses tempos diferentes, o mesmo sentido. E aqui caminhamos numa direção diferente da apontada por Derrida: o próprio estatuto do texto modificou-se desde a Antiguidade, e Platão deve ser (aqui sim) tomado ao pé da letra quando aponta a deficiência da escrita: ela é muda, não responde a perguntas do leitor.

O ensino da Filosofia é essencialmente oral; e a escrita, apenas um aparelho auxiliar. E isso ainda é dizer pouco: a própria aula, de viva voz, não é nada se não ensinar a ‘mudar a vida’ do discípulo (não se pensa, é claro, antes da modernidade, em ‘transformar o mundo’).28

Diante de um texto de tamanha força como esse, é impossível não nos perguntarmos o sentido de nossa prática docente. Percebemos, aliás, que o bom êxito de nossa atividade depende não apenas do nosso trabalho de ensino propriamente dito (partilha de conteúdos e métodos) mas também de uma constante e sempre mais aprofundada consciência de nós mesmos, de nossos objetivos e de nossa ação didático-pedagógica. Desse ponto de vista, é comum sentirmo-nos como os primeiros beneficiados de nossa própria prática docente, pois, antes de procedermos à partilha de conteúdos e métodos com os(as) estudantes, nós mesmos somos postos diante da tradição filosófica e solicitados a reativar os atos filosóficos registrados pelos pensadores ao longo dos tempos. Essa atividade requer de nós um exercício constante de atenção ao

Ao mesmo tempo, somos convidados a dar uma atenção mais refinada e perspicaz aos(às) estudantes, a seus contextos, interesses, possibilidades e limites. É numa relação intersubjetiva que parece fazer sentido a atividade de ensinar Filosofia. Os(As) estudantes não são apenas destinatários de nossas aulas; eles(as) podem ajudar-nos a construir-nos a nós mesmos, docentes, pois o modo como interagem conosco desperta reações em forma de pensamentos e atos. É verdade que somos nós, professores(as), que temos o preparo técnico-profissional para “ensinar”. No entanto, isso não permite crer que não temos nada a aprender com nossos(as) estudantes.

História da Filosofia

A centralidade que a História da Filosofia ganha nessa proposta formativa exige lembrar que estudá-la significa muito mais do que “visitar um museu” ou uma galeria de pensamentos mortos. Em vez disso, significa ouvir aqueles que nos precederam e buscar compreender as razões pelas quais eles pensaram o que pensaram, extraindo daí possibilidades de ampliar o horizonte de reflexões que nos dizem respeito hoje.

Dessa perspectiva, a expressão História da Filosofia, neste livro, tem um sentido preciso: consiste no trabalho de análise (desconstrução) e reelaboração (reconstrução) das diversas filosofias, com atenção à estrutura interna de cada fonte filosófica e de cada sistema (quando é o caso de um sistema), mas também às conexões entre as filosofias e seu contexto histórico próprio. Trata-se, como se diz, de “vestir a camisa” de cada filósofa ou filósofo, procurando, em um primeiro momento, evitar ao máximo julgá-la ou julgá-lo segundo nossos critérios e nossas expectativas. É uma atitude de cuidado, profissionalismo e respeito epistemológico.

Nesse sentido, a História da Filosofia não se confunde com a História das Ideias, no sentido do que pretendia, por exemplo, Arthur Lovejoy (1873-1962), nos anos 193029. A História da Filosofia não identifica, por projeção, unidades de ideias ou temas no passa-

28 PRADO JÚNIOR, Bento. Um convite à falsificação. Folha de S.Paulo, São Paulo, 19 dez. 1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fol/ brasil500/dc_2_2.htm. Acesso em: 24 set. 2024.

29 LOVEJOY, Arthur O. A grande cadeia do ser: um estudo da história de uma ideia. Tradução: Aldo Fernando Barbieri. São Paulo: Palíndromo, 2005. sentido de nosso trabalho, aos conteúdos de nossas próprias convicções e ao modo como as justificamos, ao nosso estilo, aos hábitos mentais a que estamos acostumados e assim por diante. Em resumo, o caráter específico do trabalho filosófico convida-nos a uma constante autorreflexão e autocrítica docente

do, procurando retraçar o caminho percorrido por elas (como pretende a História das Ideias). A História da Filosofia é de outra ordem: consiste na tentativa – da maneira mais autoconsciente e mais autocrítica possível – de perceber cada filosofia (ou pelo menos cada documento filosófico, como um livro ou um artigo) no sentido que ela teve para sua autora ou seu autor.

Alguns chamam a esse cuidado de método estruturalista. Invocam, inclusive, a autoridade de Victor Goldschmidt (1914-1981), professor e pensador francês cuja metodologia influenciou decisivamente as gerações filosóficas dos anos 1960 aos 2000 no Brasil, que tomavam praticamente como texto-guia de metodologia filosófica o artigo “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos”30. Vale notar que Goldschmidt não usa o termo estruturalismo nem se filia propriamente ao estilo filosófico-científico que recebeu esse nome depois de Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Parece adequado, no entanto, falar em método estruturalista com a condição de lembrar que buscar a estrutura interna de um pensamento expresso em uma obra ou em um sistema (quando é o caso) não impede de também levar a sério elementos históricos externos a ele e claramente importantes para aumentar sua compreensão. Aliás, Goldschmidt propunha um método estrutural-histórico, ou, como ele dizia, dogmático-genético (método que considera a verdade – dogma em grego – de um pensamento e os fatores que contribuíram para o seu surgimento). Não é por acaso que o título de seu artigo insiste na percepção de um tempo histórico e um tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos. Não caberia ignorar o tempo histórico e reter apenas o tempo lógico. Por outro lado, também não caberia privilegiar elementos que transcendem as obras e são “externos” a ela (o tempo histórico) a fim de interpretá-las.

O esclarecimento da concepção de História da Filosofia como história filosófica da Filosofia e não como história das ideias leva ainda a perguntar qual é a possibilidade de estudarmos as filosofias apenas com um interesse lógico-analítico, concentrando-nos apenas nos argumentos registrados nas obras, sem interesse por elementos que não sejam relevantes para o estudo dos argumentos. Certamente, há essa possibilidade e ela é válida do ponto de vista do que se espera do aprendizado filosófico. Na verdade, ela corresponde

ao que, no vocabulário de Goldschmidt, denomina-se tempo lógico31. Espera-se que, no tratamento dado às filosofias, elas sejam ouvidas por si mesmas.

No entanto, neste livro se defende a ideia de que há um ganho de compreensão quando os argumentos são correlacionados com dados que, embora não sejam diretamente relevantes para a argumentação, permitem visualizá-la melhor e mesmo explicá-la com mais coerência com o conjunto do pensamento da autora ou do autor em questão. Tais elementos não provêm apenas do contexto histórico, mas, muitas vezes, de outras partes da mesma obra estudada. Dessa perspectiva, o tempo histórico não é mero sinônimo de contexto.

Mais do que isso, a atenção ao tempo histórico de cada obra ou de cada sistema permite melhorar compreensões que, se ficassem presas apenas ao tempo lógico, não retratariam adequadamente o pensamento estudado. Um exemplo claro, extraído de uma parte bastante conhecida do pensamento medieval, é dado pelo estudo das assim chamadas cinco vias construídas por Tomás de Aquino para demonstrar que a proposição Deus existe é verdadeira32. Nelas, Tomás de Aquino emprega o termo princípio. Uma interpretação estritamente lógica do seu argumento corre o risco de entender o termo em sentido temporal (o “começo” do Universo). Todavia, Tomás de Aquino defende em vários textos que o mundo não precisa ter tido um começo temporal; ele pode ser eterno. Se se toma o termo princípio em sentido cronológico, a reconstrução do argumento tomasiano pode ser bem-feita, mas não corresponderá propriamente ao que pensou Tomás. É apenas por uma atenção a elementos externos à demonstração (pois não é nas cinco vias que Tomás trata do sentido do princípio) que se pode chegar a uma compreensão mais adequada de seu argumento, esclarecendo que o termo tem sentido ontológico. Outro exemplo, análogo a este e mais recente, pode ser evocado aqui: no debate com Alvin Plantinga e visando provar que Deus não existe, o filósofo estadunidense Michael Tooley persegue, em nome da consistência lógica, o famoso “problema do mal” (como pode o mal existir em um mundo criado por um ser bom?). Reduzindo-o ao mínimo, seu raciocínio talvez possa ser expresso pela forma clássica do modus ponens: se o mal existe, então Deus não existe; ora, o mal existe, então, Deus não existe. Essa formulação pressupõe uma unidade de sentido e uma constância

30 GOLDSCHMIDT, Victor. Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos. In: GOLDSCHMIDT, Victor. A religião de Platão. Tradução: Oswaldo Porchat, Ieda Porchat. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963. p. 139-147.

31 GOLDSCHMIDT, ref. 30.

32 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2000.

histórico-interpretativa para o conceito de mal. Ela ignora ou oculta o fato de que rios de tinta correram ao longo dos séculos para nuançar o significado do termo mal e o sentido do seu conceito, inclusive da parte de filósofos não religiosos. Platão e Plotino são certamente os casos mais relevantes. Numa palavra, filosofias bastante sólidas já relativizaram a existência do mal ou mesmo a negaram. Além disso, simplesmente não há, em Filosofia, um conceito unívoco nem um “arquiconceito” de mal, menos ainda um “arquiproblema” do mal. Cabe perguntar, por conseguinte, por que Tooley procura induzir a uma compreensão unívoca. Para uma visão mais detalhada do debate, pode-se ler a obra Conhecimento de Deus33 .

Em outra direção, o esclarecimento da noção de História da Filosofia permite também perguntar se, dada a necessária concentração na estrutura de uma obra ou de um sistema, seria possível, sem migrar para a História das Ideias, estudar as filosofias por meio do rastreamento de temas, problemas e conceitos. No tratamento de um tema, por exemplo, ir além da obra de um(a) autor(a) e conectá-la com a obra de outro(a) autor(a) não significaria produzir algo artificial, dado que, embora haja semelhana de tema, nada garante que ele tenha o mesmo sentido para ambos? A resposta é bastante simples: tudo depende do tema e dos(as) autores(as)!

Em primeiro lugar, se um(a) autor(a) faz remissão a outro(a), então fica garantida a conexão, ao menos no sentido do posterior ao anterior (se faz sentido estudar a concepção cartesiana de alma com base na teoria aristotélica, nem por isso é óbvio o sentido de estudar a teoria aristotélica com base na teoria cartesiana, como se Aristóteles devesse ter previsto o que faria Descartes, a menos que se queira dar um tratamento contemporâneo ao mesmo tema e defender que Aristóteles teria “errado” – observações teórico-metodológicas muito esclarecedoras são dadas por Libera34). Em segundo lugar, ainda que os(as) filósoos(as) não se mencionem entre si, também parece adequado identificar continuidades e rupturas entre eles(as) quando a comunidade dos especialistas demonstrou haver tais continuidades e rupturas. Para além dessas duas possibilidades, corre-se, sim, o risco de produzir conexões artificiais e sem lastro real.

Dessa perspectiva, parece possível defender que o trabalho filosófico não tem necessidade de isolar a abordagem histórica da abordagem temática, proble-

matizadora ou conceitual. Bem ao contrário, parece mais desejável que essas abordagens sejam entendidas como complementares. Escolher entre elas é algo que talvez deva depender mais dos objetos ou dos conteúdos estudados, em união com os objetivos que se pretende alcançar, e não de uma escolha ou preferência dos estudiosos (o que pode se dirigir facilmente para o campo da manipulação ideológica dos autores, em uma atitude autorreferente e mesmo autoritária).

Na realidade, a História da Filosofia mostra aos(às) estudantes que filosofar é entrar em uma grande comunidade de pensamento, enfatizando a importância de justificar com boas razões as nossas continuidades e rupturas com os(as) autores(as) que estudamos. O ganho didático-pedagógico da ênfase nessa atitude é grande. Segundo as Orientações curriculares para o Ensino Médio:

É salutar, portanto, para o ensino da Filosofia que nunca se desconsidere a sua história, em cujos textos reconhecemos boa parte de nossas medidas de competência e também elementos que despertam nossa vocação para o trabalho filosófico. Mais que isso, é recomendável que a história da Filosofia e o texto filosófico tenham papel central no ensino da Filosofia, ainda que a perspectiva adotada pelo professor seja temática, não sendo excessivo reforçar a importância de se trabalhar com os textos propriamente filosóficos e primários, mesmo quando se dialoga com textos de outra natureza, literários e jornalísticos, por exemplo – o que pode ser bastante útil e instigante nessa fase de formação do aluno. Porém, é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que se apresenta na forma amplamente conhecida como História da Filosofia, que a Filosofia pode propor-se ao diálogo com outras áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na formação do educando.

[…]

É importante registrar que uma certa dicotomia muito citada entre aprender filosofia e aprender a filosofar pode ter papel enganador, servindo para encobrir, muitas vezes, a ausência de formação em véus de suspeita competência argumentativa de pretensos livres-pensadores35

Com essa atenção específica, este livro apresenta diferentes caminhos para entrar no universo da reflexão filosófica por diferentes “métodos”

33 PLANTINGA, Alvin; TOOLEY, Michael. Conhecimento de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2014.

34 LIBERA, Alain de. Arqueologia do sujeito. Tradução: Fátima Conceição Murad. São Paulo: FAP: Unifesp, 2013. v. 1.

35 BRASIL, ref. 27, p. 27, 32.

(conforme unidade 1), seguidos por capítulos temáticos, estruturados em torno da análise de textos filosóficos e do estudo filosófico de documentos não propriamente filosóficos (conforme unidades 2 a 4).

Interdisciplinaridade

Apesar de conter práticas interdisciplinares específicas ao longo de suas páginas, pode-se dizer que este livro, em seu todo, concretiza efetivamente um trabalho filosófico interdisciplinar, pela sua natureza e pelo seu método, pois todos os temas tratados recebem tratamento filosófico com base em dados provindos de outros conhecimentos e saberes.

A partir da Modernidade, com o surgimento de novas formas filosóficas, desenvolvidas na Contemporaneidade, a Filosofia, deixando de ser a “mãe das ciências” e não determinando mais conteúdos exclusivos seus, opera com base no que lhe fornecem a Ciência, a Arte, a Política, o Direito, a Religião e, mais recentemente, a Tecnologia e a Inteligência Artificial. Da parte da Filosofia, quando esses conhecimentos e saberes abrem-se a uma influência recíproca, busca-se verdadeira interação e ação conjunta, e não apenas uma instrumentalização de resultados científicos, práticos e experienciais por filósofas e filósofos.

De modo análogo, é também pela atenção aos objetos de estudo que este livro determina sua concepção de interdisciplinaridade em geral (entre os saberes e entre os componentes curriculares escolares), porque, concebendo a Filosofia como pensamento do pensamento, ele assume que a Filosofia certamente não tem um objeto único, mas opera em grande parte sobre os objetos construídos pelos outros saberes. A interdisciplinaridade, assim, vem da raiz da atividade filosófica, e não de um esforço ou de uma boa vontade para abrir-se aos outros saberes em busca de alguma “ação comum”.

Na realidade, sem precisar propor uma resposta categórica para a questão de saber se a Filosofia tem ou não um objeto próprio, vale recordar o que dizia professor Gilles-Gaston Granger (1920-2016): Pode-se dizer que a Filosofia não tem objeto, por menos que se tenha a preocupação de dar a esta palavra um alcance racionalmente rigoroso, embora bastante amplo, para ser aplicado ao mesmo tempo aos objetos do senso comum e aos objetos da ciência. A crença, geralmente muito difundida de que a Filosofia fala de tudo é perfeitamente correta no fundo: o campo de

aplicação de seu exercício é, com efeito, o conjunto da experiência humana. […] Expressar o que entendemos por conhecimento filosófico é tentar explicitar em conceitos essa articulação sui generis, mostrar um trabalho da forma e do conteúdo que seja de uma natureza diversa da do pensamento científico.

De uma outra natureza, sem, contudo, afastar-se tanto do pensamento científico a ponto de não mais merecer o título de atividade conceitual, então o que é um conceito filosófico?

Propor a qualificação conceitual para a obra do filósofo é dar um nome ao problema e não fornecer a sua solução. Em todo caso, se o conhecimento filosófico é irredutível à ciência, sempre nos pareceu que devesse conservar duas características que, sem dúvida, serviram mais ou menos claramente de pretextos aos que queriam assimilar o conhecimento f ilosófico a uma ciência: porque ele é analítico e arquitetônico ao mesmo tempo, mas de modo diferente do das ciências, uma vez que seus atos de análise e de construção não se referem a f atos, não visam uma representação abstrata dos fatos; propriamente falando, não há objetos filosóficos36. Seria possível, evidentemente, explorar com mais demora o pensamento do professor Granger e estabelecer um debate, sobretudo em torno de sua concepção de Filosofia. Afinal, ainda que afirmemos não haver objetos filosóficos, é difícil negar que, se a Filosofia pode ser definida como pensamento do pensamento (o que fez não apenas Hegel, divulgador dessa expressão, mas também Plotino, uma dezena e meia de séculos antes dele), então o próprio pensamento é o objeto da Filosofia. Se existem atos que consideramos filosóficos é porque existe um hábito que os qualifica à medida que é formado por eles, ao mesmo tempo que são determinados por um tipo de objeto que, embora sem um conteúdo precisamente recortado, fornece o modo como se aborda tal conteúdo: o modo da atenção ao próprio fazer-se do pensamento. No entanto, é difícil negar que, no tocante à relação da Filosofia com outros saberes, notadamente as ciências, a reflexão do professor Granger parece indiscutível.

Para além dessas orientações teórico-metodológicas aqui apresentadas a respeito da interdisciplinaridade, os(as) professores(as) encontrarão, na sequência deste Manual do Professor, mais propostas concretas de articulação com outros componentes curriculares.

36 GRANGER, Gilles-Gaston. Por um conhecimento filosófico. Campinas: Papirus, 1989. p. 234, grifos nossos.

Avaliação em Filosofia

Em Filosofia, como certamente, em maior ou menor medida, nos demais componentes curriculares, a avaliação não possui mais um aspecto meramente quantitativo ou de medição de conteúdos assimilados e não assimilados, destaques positivos e erros. Há algum tempo as concepções didático-pedagógicas em nosso país superaram essa concepção esquematizada da avaliação. Sem enveredar pelos intermináveis debates sobre o caráter objetivo ou subjetivo das avaliações em Filosofia e em Ciências Humanas e partindo do fato de que os(as) professores(as) – no modo como a relação ensino-aprendizagem está organizada majoritariamente na sociedade brasileira – veem-se obrigados(as) a avaliar o aprendizado de estudantes de diferentes maneiras, é possível vivenciar positivamente essa tarefa, identificando critérios menos esquemáticos e mais humanistas para orientar o processo avaliatório. A esse respeito, as Orientações curriculares para o Ensino Médio oferecem elementos norteadores de grande valia. Diz o documento:

[…] de que capacidades se está falando quando se trata de ensinar Filosofia no Ensino Médio? Da capacidade de abstração, do desenvolvimento do pensamento sistêmico ou, ao contrário, da compreensão parcial e fragmentada dos fenômenos? Trata-se da criatividade, da curiosidade, da capacidade de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema, ou seja, do desenvolvimento do pensamento crítico, da capacidade de trabalhar em equipe, da disposição para procurar e aceitar críticas, da disposição para o risco, de saber comunicar-se, da capacidade de buscar conhecimentos. De forma um tanto sumária, po-

PARTE III

Orientações didático-pedagógicas gerais

Modelos de avaliação e seus objetivos

Por um lado, é bastante problemático avaliar tendo como base as expectativas da formação ou os obje-

37 BRASIL, ref. 27, p. 30, grifos nossos.

de-se afirmar que se trata tanto de competências comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentativo da linguagem, para o qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas, que podem fixar-se igualmente à luz de conteúdos filosóficos.

Podemos constatar […] uma convergência entre o papel educador da Filosofia e a educação para a cidadania.37

O documento enfatiza competências comunicativas e competências cívicas e as articula com grande acerto por meio da habilidade discursivo-filosófica. Não se trata, portanto, de colocar em primeiro plano um acúmulo de conteúdos (o que poderia ser feito por simples memorização), mas de desenvolver aquela que pode ser considerada a especificidade do saber filosófico: a atividade de saber justificar os porquês do pensamento. Dessa perspectiva, não faria sentido avaliar os(as) estudantes procurando identificar se eles(as) se tornaram “melhores” ou “mais conscientes”, “mais cidadãos(ãs)” ou “mais reprodutores(as) de conteúdos aprendidos”, e, sim, se eles(as) desenvolveram, segundo modos diversos, a capacidade discursivo-filosófica. Mesmo quando se trata de conteúdos referentes ao exercício da cidadania, os(as) estudantes não podem ser avaliados(as) pelo tipo de engajamento ético-político que adotam (caso que poderia até resvalar para a doutrinação, o proselitismo ou a ideologização do ensino de Filosofia), mas pelos recursos que conseguem acionar para justificar suas posições. Nesse quadro, as competências comunicativas e cívicas, articuladas pela habilidade discursivo-filosófica, podem ser critérios mais explícitos e públicos de avaliação

tivos que estipulamos para cada turma. Nossos dados de realidade levam a constatar as inúmeras deficiências precisamente de ordem comunicativa (leitura, análise, coerência reflexiva e expressão oral ou escrita) com que os(as) estudantes chegam ao Ensino Médio e mesmo à universidade. Se avaliássemos seu desempenho apenas com base nos objetivos e nas expectativas que estipulamos, e considerando que sempre as definimos de modo elevado (dada a complexidade do

próprio objeto de estudo), correríamos o risco de ter de atribuir notas ou menções frustrantes porque seriam baixas demais. Acontece que avaliar não é simplesmente atribuir notas. Aliás, no exercício da docência, corremos o risco de incorrer na ambiguidade de apresentar conteúdos complexos para, depois, “fechar os olhos” e aceitar resultados que não correspondem à complexidade dos assuntos.

Em vez disso, trata-se, antes de tudo, de destinar uma atenção específica a cada estudante e a cada grupo de estudantes, sem adotar um padrão avaliativo definido apenas por nossas expectativas de conteúdo, por melhores e mais adequadas que sejam, mas que se concentre principalmente em registrar e avaliar a evolução de cada estudante em relação ao seu grau de formação anterior. A esse tipo de avaliação costuma-se denominar modelo ipsativo (fundado no que é próprio – ipsum, em latim – de cada estudante; no seu eu).

Esse modelo está diretamente relacionado à prática avaliativa pela qual o(a) docente, em qualquer época do ano, mas sobretudo no início, identifica o conhecimento apropriado ou não pelo(a) estudante, oferecendo-lhe recursos para alcançar novos conhecimentos. Esse tipo de avaliação não tem quase nada de medição, mas tem, sim, cuidado, atenção formativa, pedagógica, acolhida na fragilidade. A ele se denomina modelo diagnóstico. Temos de reconhecer que um(a) estudante pode não ter atingido, por inúmeras razões, os objetivos e as expectativas no grau que estipulamos, mas pode ter percorrido um caminho considerável de desenvolvimento em relação ao seu ponto de partida e certamente tem condições de entrar em um ritmo progressivo mais explícito para ele(a) e em um processo de recuperação permanente de aprendizagem. Aliás, um processo de recuperação permanente é sempre útil para todos os que se dedicam à Filosofia, docentes e estudantes, dado que o legado da História da Filosofia é tão grande, provavelmente incomensurável, que uma recuperação de conteúdos permite rever constantemente nossos hábitos interpretativos e nos mantêm atualizados quanto às últimas publicações especializadas, as fontes mais autorizadas para nossa atualização.

De certo modo, em contraposição à avaliação diagnóstica, há o modelo classificatório, solicitado e aplicado por muitos(as) colegas professores(as) em contextos que exigem uma demanda de comparação de desempenho dos(as) estudantes. Observa-se certa

tendência no meio filosófico de evitar, ou mesmo de abandonar, esse modelo, considerado psiquicamente cruel para com os(as) estudantes mais frágeis e perverso-narcisista para com os(as) mais avançados(as). No entanto, considerando a realidade do mundo atual – o que não significa aprová-la, mas levar em conta o bem dos(as) próprios(as) estudantes –, estruturado em torno de classificações (meritórias ou, muitas vezes, falsamente meritórias), esse modelo não deixa de ter sua utilidade. Entretanto, para o sucesso pedagógico desse tipo de avaliação, um princípio deve ser honrado sem a menor possibilidade de ser posto em questão: os critérios de avaliação devem ser públicos, assim como a classificação deve ser comentada em sala de aula, sobretudo se houver questões dissertativas, pois na correção destas pode haver, consciente ou inconsciente, arbitrariedade dos(as) docentes.

Comparado com um padrão externo (temas de dissertação de outros livros, de concursos, de questões do Enem, da Olimpíada Internacional de Filosofia, das Seletivas Nacionais para a Olimpíada, de vestibulares etc.), um tipo de avaliação parecido com esse é o modelo comparativo, e, dado o padrão externo com o qual se compara o desempenho dos(as) estudantes, é praticamente nulo o risco de arbitrariedade docente, tanto acidental como proposital.

Outro tipo de avaliação é o modelo formativo, muito próximo ao diagnóstico, com a diferença de que o formativo é desenvolvido no cotidiano da sala de aula, na convivência em outras instâncias e atividades escolares etc., e serve para os docentes certificarem-se de que os(as) estudantes estão bem no processo de ensino-aprendizagem ou identificarem se precisam de ajuda específica. Esse modelo corresponde, em certo grau, ao que se costumava chamar de avaliação continuada, pois guarda suas características, porém sem a pressão que se fazia sentir, como se os(as) docentes devessem avaliar os(as) estudantes a cada instante.

Por fim, não se pode deixar de mencionar o mais conhecido tipo de avaliação, aquele em que são dadas notas para mostrar até que ponto a meta de aprendizagem foi alcançada ou não. A esse tipo chama-se modelo somativo

Prática avaliativa, linguagem e ética da docência

Neste livro, independentemente do modelo avaliativo com que se opere, damos ênfase à prática

dissertativa, seja na forma de redação escrita, seja na forma de expressão oral, porque é consenso, confirmado pela BNCC38 e pelas Orientações curriculares para o Ensino Médio39, que as Ciências Humanas e suas Tecnologias, especialmente a Filosofia, devem primar pelo desenvolvimento da prática argumentativa e da inferência, capacidades cujo melhor meio de exploração parece ser ainda a dissertação. Enfatizamos também essas práticas em exercícios de respostas diretas, respostas construídas em duplas e em grupos, além de testes de múltipla escolha

A expressão oral é incentivada e desenvolvida em cada capítulo na seção Dialogando, mas também na seção Retomando, além dos variados Exercícios. No limite, ela pode ser considerada um recurso de avaliação. É certo que falar de avaliação oral pode parecer um retrocesso pedagógico, evocando os tempos das provas orais, ocasiões de grande estresse para os(as) estudantes, mas, no contexto da sala de aula, a expressão oral, como mostra a experiência, permite que muitos(as) estudantes atinjam resultados mais satisfatórios do que em avaliações escritas.

Muitos outros fatores compõem, ainda, nosso trabalho avaliativo. Tendo em vista justamente a habilidade discursivo-filosófica que articula habilidades comunicativas e habilidades cívicas, podemos dar atenção específica aos trabalhos em grupo (não apenas ao modo como os(as) estudantes se relacionam com outros membros do grupo, mas à prática efetiva por meio de debates, plenárias, seminários, relatórios individuais, além de textos de autoavaliação. Os textos de autoavaliação, aliás, constituem outra ocasião adequada ao desenvolvimento de habilidades cívicas e comunicativas, pois os(as) estudantes podem treinar para explicitar os critérios adotados por eles na sua maneira de se autoavaliarem (e mesmo de se atribuírem uma nota ou menção, se for o caso). Ainda que seja um exercício de avaliação de si mesmo, os critérios empregados devem ser públicos; do contrário, a autoavaliação pode resvalar em capricho, autorreferência ou mesmo autoritarismo.

Além disso, nosso papel de educadores exige dar atenção ao emprego da chamada norma-padrão, auxiliando os(as) estudantes a adequar o uso da língua em diferentes situações sociais e nos diversos gêneros escritos, orais ou multimodais que circulam na sociedade. Com isso, auxiliamos também na garantia

38 BRASIL, ref. 1, p. 567.

39 BRASIL, ref. 27, p. 26-34.

de oferta a oportunidades iguais, principalmente nas atividades em grupo, nos debates e nas plenárias. Práticas como essas tornam explícito o cuidado com a cidadania e com o protagonismo juvenil. Acrescentamos que as atitudes cidadãs devem envolver todas as personagens do cotidiano escolar, indistintamente, sem esquecer, acima de tudo, o respeito incondicional e a atitude solidária para com os(as) estudantes e trabalhadores(as) com deficiência. Tal cuidado permite que se instale um ambiente de confiança que favoreça a criatividade. Conscientemente ou não, sempre adotamos uma ética em nosso gesto educativo (uma ética da colaboração ou da concorrência, do respeito humano ou da acepção de pessoas etc.).

Disposições mais adequadas da sala de aula

A disposição mais adequada da sala, para o uso de nosso livro, é a junção de carteiras em duplas, por uma razão óbvia: todos os capítulos têm um tom dialógico, que o(a) professor(a) pode explorar na ocasião que considerar conveniente, além de duas seções que, segundo nosso critério, merecem ser exploradas em duplas: Dialogando e Para refletir e argumentar. Em algumas atividades, sugerimos o trabalho em trios ou grupos de cinco integrantes. Como conclusão, propomos diversas vezes a realização de uma plenária com todos os(as) estudantes organizados(as) na sala em círculo, a melhor maneira de dar visibilidade a todos e de facilitar a comunicação entre todos. No entanto, a menos que o(a) colega professor(a) prefira e tenha habilidade no trabalho com a sala em círculo, parece-nos mais didático iniciar os trabalhos em células menores (duplas, trios, grupos), a fim de que tais células cheguem à plenária com elementos já amadurecidos para as exposições, partilhas e debates, evitando-se, assim, que todos queiram tomar a palavra, gerando possíveis repetições, fugas do assunto ou brincadeiras.

Na estruturação da sala de aula, dê prioridade aos(às) estudantes com deficiência, não só por uma questão de gentileza, mas de direito adquirido: eles(as) merecem escolher o local onde se sintam capazes de melhor trabalhar, e, eventualmente, caso os(as) colegas aceitem (pois também a autonomia deles deve ser respeitada), identificar alguém com quem se sintam mais à vontade para compartilhar os estudos.

Do mesmo modo, deve-se garantir o respeito incondicional e a inclusão de estudantes cuja orientação sexual seja singular ou diferente da maioria da turma. Aqui não se trata apenas de respeitar seus direitos de cidadania mas de aprender a conviver com a diferença e com a alteridade, quebrando preconceitos e crenças distorcidas que muitos trazem para a sala de aula, e, sobretudo, de desfazer o costume de classificar as pessoas segundo critérios sexistas. Vale perceber e valorizar cada pessoa em sua singularidade.

Organização e possíveis usos deste livro

Natureza do livro didático

Grosso modo, no século XIX, em muitos países um livro didático consistia em uma obra que sintetizava o conteúdo de todos os outros livros usados na formação educacional. Seu objetivo era marcar pontos essenciais tratados com mais profundidade nos demais livros, facilitando aos(às) estudantes a identificação dos aspectos mais decisivos a serem retomados para a preparação de seus exames.

Essa visão essencialmente europeia e norte-americana influenciou a educação de praticamente todo o mundo. Tratava-se de manuais que sintetizavam conhecimentos específicos em uma só obra mais abrangente. No caso de Matemática, por exemplo, se havia um livro para álgebra e outro para geometria, o manual reunia o essencial de ambas as áreas. Com a evolução dos debates pedagógicos, sobretudo nos anos 1960, tais manuais deixaram de ter o caráter de meras sínteses e passaram a ser os livros oficiais de formação, até porque, com a ampliação das áreas do saber, não era mais possível aprofundar todos os assuntos, mas oferecer, sem perder a qualidade, o essencial de cada área como conteúdo oficial.

Além disso, entre os anos de 1960 e 1970, os manuais passam a ter outra forma, menos rígida e distante da realidade das crianças e dos jovens, para ser algo mais atraente e mais conectado com questões de cada contexto histórico. Assim, o manual cede lugar ao livro didático, recurso que, independentemente de sua forma, mostra-se indispensável por facilitar o ensino-aprendizagem por meio de c onteúdos apresentados com rigor, mas também com aspectos editoriais mais atrativos.

Dessa perspectiva geral, a natureza de nosso livro didático é a de um material de referência para uma formação segura, apresentando conteúdos essenciais para abrir as portas da Filosofia a estudantes do Ensino Médio. De uma perspectiva específica, essa natureza manifesta-se como um conjunto de itinerários formativos na forma de temas que, inevitavelmente, operando escolhas, explora o pensamento de autoras e autores, textos, atividades, diálogos e debates com o fim de pôr nossos(as) estudantes em contato com o que não se pode deixar de saber ao tratar filosoficamente os respectivos temas.

Descrição da organização geral da obra

A obra está organizada em 12 capítulos, divididos em quatro unidades. Os títulos dessas unidades revelam a singularidade que pretendemos para a obra: trata-se de iniciar os estudos por meio de uma aproximação geral ao método filosófico analítico-compreensivo, chamado didaticamente de método da desconstrução e da reconstrução, a fim de passar ao tratamento filosófico de temas clássicos da História da Filosofia (sem deixar de trazer ao debate visões não eurocêntricas e que privilegiam o papel das filósofas como fonte, e não apenas como acessórias etc.).

Há, por assim dizer, certa naturalidade na estruturação da obra, pois um de nossos princípios norteadores é considerar a urgência de valorizar o que há de universal na experiência humana, sem ceder a identitarismos autoritários, “bairrismos” filosófico-conceituais, rejeição da tradição filosófica, inclusão de temas urgentes e exclusão de temas antigos (ainda que eles possam iluminar os temas urgentes, algo que algumas filósofas e alguns filósofos ignoram ou ocultam) etc. Em certa confusão que reina em alguns ambientes filosóficos, retornar ao essencial parece não apenas prudente como uma proposta para superar as dificuldades.

Além disso, os(as) estudantes do Ensino Médio merecem ter contato com a História da Filosofia, a fim de construírem repertório para conhecer os temas atuais e candentes, posicionando-se livremente perante eles e livrando-se do risco de catequização ou proselitismo, fenômenos que reduzem assustadoramente os horizontes de reflexão e de projeção de engajamento com as lutas de nosso tempo.

A estrutura do livro, portanto, ao conceber os seres humanos como seres de pensamento, sentido, ação e transcendência, desdobra-se nos capítulos

sobre métodos de pensamento, aproximação da Filosofia, argumentação racional (unidade 1), a fim de passar a uma reflexão exigente, sólida, mas também prazerosa e mesmo lúdica, do que significa conhecer, perguntar o sentido da existência e da diferença entre natureza, cultura e pessoa, dando corpo à visão dos seres humanos como seres capazes de captar e/ou produzir sentidos em sua experiência (unidade 2).

Com os recursos epistêmicos dos primeiros capítulos, inclusive o 4, a, por assim dizer, “antropologia filosófica” que começa a ser desenhada nos capítulos 5 e 6 é desenvolvida nos capítulos 7, 8 e 9, com a ampliação do interesse filosófico para o que significa viver em sociedade, ser e agir eticamente, bem como dedicar-se à ação política com atenção fundamental ao que se pretende quando se ocupa o poder (unidade 3). Poderíamos dizer, assim, que há certa completude no estudo de Filosofia no Ensino Médio com os capítulos 1 a 9, mas isso não seria real, uma vez que a Filosofia é capaz de olhar para além da imanência e da efetividade, a fim de investigar as experiências pelas quais os seres humanos dizem transcender sua vida cotidiana, sem abandoná-la, mas ampliando as fontes de sentido para ela, no que se embasam os capítulos 10, 11 e 12, sobre a Felicidade, a Arte e a Religião (unidade 4).

Uso adequado do livro e autonomia do(a) docente

Nosso livro oferece várias possibilidades de uso porque seus capítulos são autoexplicativos. Isso quer dizer que, em cada capítulo, encontra-se tudo o que é necessário para entendê-lo por si mesmo, incluindo boxes, conceitos estratégicos etc.

Essa possibilidade de estudar cada capítulo por si mesmo, sem necessariamente percorrer o livro do início ao fim, permite a professores(as) iniciar os estudos por capítulos que considerem mais palatáveis para turmas específicas, como, por exemplo, o capítulo 10 – A felicidade ou o capítulo 5 – Sentido da existência, em vez de iniciar pelos capítulos da unidade 1, que solicitam um pouco mais de abstração e universalização. Por outro lado, se alguma turma manifestar de saída um interesse mais pronunciado por política, pode-se começar o uso do livro pelo capítulo 9 – Política e poder. Caso, porém, uma classe manifeste interesse por questões científicas, metodológicas e argumentativas, pode-se começar pela unidade 1.

A continuidade também pode depender de acordos, sempre com a prerrogativa de que é o(a) docente

quem tem a palavra final para decidir o que pedagogicamente é melhor para cada turma e contexto.

Graus de complexidade e amplitude das competências (gerais e específicas)

Há uma surpreendente coincidência entre os graus de complexidade, do maior para o menor, de nossa obra e as competências definidas na BNCC para as Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

Antes de redigir nossa obra, há anos estudávamos a BNCC, até mesmo apresentando-a em escolas e outros centros de formação, mas não pensamos exatamente em reproduzir esses graus. Todavia, ainda que nosso livro inicie com um grau de complexidade maior, isso não quer dizer que o trabalho do livro deva começar por ele. Seria perfeitamente compreensível, e desejável, em muitos contextos, iniciar por um dos temas das unidades 2, 3 e 4, a fim de apresentar concretamente o trabalho filosófico, analítico-constituinte (desconstrutor-reconstrutor), para somente depois estudar capítulos como o 3, sobre as estratégias racionais de convencimento, ou mesmo o terceiro item do capítulo 1, sobre o que é a Filosofia, que exige maior grau de abstração.

Ao mesmo tempo, o livro pode ser usado tranquilamente de modo linear, pois cada capítulo, sendo autoexplicativo, fornece os elementos necessários para sua compreensão, sem exigir o entendimento de outro capítulo como requisito.

Sugestão de organização do cronograma

A seguir, apresentamos uma sugestão de cronograma para os três anos do Ensino Médio, considerando a quantidade de aulas para cada capítulo em propostas de planejamento semestral, trimestral ou bimestral. Ressaltamos que esta sugestão deve ser avaliada e adequada ao contexto da comunidade escolar, de acordo com a quantidade de aulas estabelecidas no ano letivo e das escolhas curriculares para cada ano do Ensino Médio.

Nesta proposta, consideramos as seguintes premissas: ano letivo com 40 semanas; uma aula semanal para Filosofia; e quatro aulas por ano para avaliação ou eventuais ajustes. Essas aulas também podem ser destinadas a atividades de revisão ou projetos interdisciplinares.

1o Bimestre 9 aulas

1o Trimestre 12 aulas

1o Semestre 18 aulas

2o Trimestre 12 aulas

2o Semestre 18 aulas

2o Bimestre 9 aulas

3o Bimestre 9 aulas

3o Trimestre 12 aulas

4o Bimestre 9 aulas

5o Bimestre 9 aulas

4o Trimestre 12 aulas

3o Semestre 18 aulas

4o Semestre 18 aulas

6o Bimestre 9 aulas

5o Trimestre 12 aulas

Capítulo 1

Portas para a Filosofia

Capítulo 2

Modos de convencer

Capítulo 3

Método racional

Capítulo 4

Conhecimento

Capítulo 5

Sentido da existência

Capítulo 6

Natureza, cultura e pessoa

Capítulo 7

7o Bimestre 9 aulas

6o Trimestre 12 aulas

8o Bimestre 9 aulas

Sociedade, indivíduo e liberdade

Capítulo 8

A prática ética

Capítulo 9

7o Trimestre 12 aulas

5o Semestre 18 aulas

9o Bimestre 9 aulas

10o Bimestre 9 aulas

8o Trimestre 12 aulas

6o Semestre 18 aulas

9o Trimestre 12 aulas

11o Bimestre 9 aulas

12o Bimestre 9 aulas

Política e poder

Capítulo 10

A felicidade

Capítulo 11

Experiência estética e experiência artística

Capítulo 12

A experiência religiosa

PARTE IV

Orientações didático-pedagógicas capítulo a capítulo

Unidade 1 Os seres

humanos são seres de pensamento

Capítulo 1 – Portas para a Filosofia

Introdução

Da apresentação dos procedimentos metodológicos fundamentais em Filosofia – a desconstrução (análise) e a reconstrução (síntese) – passa-se à aplicação de ambos ao que, de modo geral, chamamos no capítulo de existência e saberes, com o fim de oferecer um modelo de procedimento que ajude os(as) estudantes a compreendê-los e inspire o(a) professor(a) a aplicá-los.

Objetivos

Apresentar dois elementos metodológicos que costumam ser considerados primordiais para a refleão filosófica e que aqui denominamos desconstrução e reconstrução. Como explicitado ao longo do capítulo, não se trata de assumir uma orientação heideggeriana ou derridiana para falar de desconstrução, mas de assumir que a primeira atitude filosófica diante de qualquer investigação é não julgá-la com base em algum pressuposto teórico (menos ainda de algum preconceito), mas procurar conhecê-la em sua estrutura interna, com suas articulações de conceitos e forma argumentativa. Uma vez feito esse trabalho ao qual também se chama de análise, procura-se operar uma reconstrução, uma visão de conjunto mais adequada, fundada no conhecimento das partes. A reconstrução também se chama síntese, porém sem nenhuma conotação exclusivamente hegeliana ou coisa que o valha. Trata-se de um duplo movimento que se observa praticamente em todas as filósofas e em todos os filósofos considerados referências clássicas: entender a alteridade em sua “lógica” interna. A repetição desses atos prepara a formação do hábito

filosófico, que, na sequência, é aplicado à existência e aos saberes, até chegar-se a uma proposta de definição de Filosofia como pensamento do pensamento.

BNCC

• Competências gerais: 1, 2, 4, 6, 7 e 9.

• Competências específicas: 1, 2, 3, 4, 5 e 6.

• Habilidades: EM13CHS101, EM13CHS103, EM13CHS104; EM13CHS201, EM13CHS205; EM13CHS301; EM13CHS401, EM13CHS403, EM13CHS404; EM13CHS502, EM13CHS504; EM13CHS601.

Temas contemporâneos transversais

Cidadania e Civismo (Direitos da Criança e do Adolescente); Multiculturalismo (Educação para valorização do multiculturalismo nas matrizes históricas e culturais brasileiras); Economia (Trabalho).

Orientações didáticas

A estratégia adotada neste capítulo é a de apontar e identificar dois grandes campos de experiência nos quais as atitudes da desconstrução e da reconstrução podem ser aplicadas: o da experiência existencial (campo do sentido das ações) e o da atenção especificamente epistemológica (campo do pensamento ou dos saberes). Tais campos são denominados metaforicamente portas da Filosofia. Trata-se de considerar que a experiência consciente nesses campos (que recobrem de certa maneira as diferentes possibilidades humanas) permite ingressar na atividade propriamente filosófica, iniciando, assim, um hábito filosófico. Ao adotar, porém, o vocabulário da existência, este livro não pretende inscrever-se em uma abordagem tecnicamente existencialista nem se filiar a uma filosofia em específico, mas convidar os(as) estudantes a prestar uma especial atenção ao fato de que, independentemente da interpretação que dermos ao ser do mundo, estamos no mundo e devemos grande parte de nosso ser ao conjunto de relações que estabelecemos. Por fim, falar de saberes, neles incluindo as ciências, as artes, a religião etc., significa despertar nos(as) estudantes a atenção às diferentes maneiras como os seres humanos descobrem ou produzem sentidos em sua existência individual e social. Não se trata, portanto, de reduzir essas atividades ou práticas a um aspecto intelectualista ou racionalista, mas de concebê-las como maneiras de ser consciente de si mesmo e do mundo circundante.

Respostas e comentários

Página 11

Professor(a), é indispensável conversar com os(as) estudantes a respeito das questões legais e da necessidade de autorizações para a realização de grafites, em qualquer contexto que ele possa acontecer.

Página 15

Em 20 de outubro de 2021, uma reportagem da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), com base em estudos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), mostrou que o comércio popular na cidade de São Paulo (SP) tem passado por um processo de “empresarização”, no qual camelôs tornam-se microempresários. Apesar disso, o fenômeno beneficia quem tem mais recursos para investir e aumenta a exclusão dos trabalhadores que iniciaram o trabalho na rua para sobreviver.

Dialogando

Professor(a), os(as) estudantes certamente citarão diferentes motivos que podem impulsionar as pessoas a se deslocarem. Por exemplo, turismo, trabalho, aproximação com familiares, fuga de guerra, fuga da pobreza, perseguição religiosa, preconceitos de raça, cor, religião, orientação sexual, conflitos étnicos etc.

Página 16

Professor(a), comente com os(as) estudantes que, segundo Marx, é o uso do corpo que dá essa medida (o valor das mercadorias). O fetiche da mercadoria é justamente o que desvia a atenção das pessoas, fazendo-as pensar que as mercadorias têm valor por si mesmas, sem voltar o olhar para a real fonte desse valor, o uso do corpo dos que as produziram.

Comente também que, segundo o Código de Defesa do Consumidor (lei no 8.078/1990) e a resolução no 163/2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), a publicidade infantil é considerada prática abusiva, ilegal e proibida.

Página 19

Exercício A

1. Marx observou que os seres humanos, em geral, relacionam-se com as mercadorias como se estivessem diante de algo que tem valor por si mesmo, algo sem histórico e que parece ter produzido a si mesmo. Marx explicou essa observação dizendo que a aparência de uma mercadoria oculta o verdadeiro critério para dar um valor a ela e/ou medi-lo, quer dizer, oculta o trabalho das trabalhadoras e dos trabalhadores. Em linhas gerais, trabalho

implica uso do corpo e do tempo, os quais deveriam ser os reais padrões para se chegar, por comparação, ao valor de cada mercadoria, e não o fetiche que enfeitiça as pessoas, levando-as a dar valores às coisas com base em comportamentos sociais.

2. A Filosofia não procede como a centopeia confusa da fábula chinesa porque também oferece respostas; não faz apenas perguntas. Suas respostas não costumam ser diretas, pois envolvem observação honesta, esforço de compreensão dos outros sem preconceitos, quer dizer, tal como eles são e pensam (e não como gostaríamos que fossem e pensassem), memória, expectativa, reflexão e tudo o que se refere ao dinamismo de nossa vida “interna”, o dinamismo da atenção. Em certos casos, a Filosofia não consegue oferecer respostas, mas identificar essa dificuldade e assumi-la é já um princípio de esclarecimento que satisfaz nosso desejo de conhecer.

Página 20

Para refletir e argumentar

1. e 2. Respostas pessoais. Professor(a) , comente com os(as) estudantes que Silvia Federici enfatiza como muitos trabalhos realizados por mulheres (assim como por homens) não se traduzem diretamente em mercadorias, como ocorre no mercado produtivo, mas sim na produção do valor de uso, como a criação e o cuidado de crianças, a manutenção do lar, o suporte emocional e físico para outras pessoas etc. Esses serviços são essenciais para a reprodução da vida social e para o funcionamento da economia em geral, mas não resultam em mercadorias vendáveis no mercado, ou seja, não se tornam valores de troca. Esse tipo de trabalho, seja feito por mulheres, homens ou pessoas que reivindicam outra identidade de gênero, também é mistificado em outro sentido: é naturalizado e desvalorizado, como se fosse uma extensão natural dos corpos, e não um trabalho socialmente construído e economicamente necessário.

Página 21

Integrando com… Sociologia

1. Resposta pessoal.

2. A apropriação cultural pode ser entendida como o consumo de bens e símbolos de outras culturas, especialmente quando esses elementos são

descontextualizados e comercializados de forma a beneficiar principalmente aqueles que não pertencem às culturas de origem. Isso agrava as desigualdades, ao mesmo tempo que esvazia os significados culturais e identitários desses bens e símbolos, o que contribui para a perpetuação do racismo.

Página 25

Exercício B

Respostas pessoais. O que está em pauta no exercício é a prática em grupo do procedimento de desconstrução, tendo em vista a análise das justificativas para nossas atitudes cotidianas.

Página 29

Exercício C

A admiração diante das coisas boas e das dificuldades da existência leva os seres humanos a perceber sua ignorância. Essa percepção não causa apenas perplexidade mas também melancolia, como descontentamento que move as pessoas em direção à busca do conhecimento. Movidos pela admiração e pela melancolia, alguns seres humanos passam a filosofar, visando, conscientemente ou não, à satisfação humana.

Página 31

Exercício D

Sócrates se entendia como um “parteiro de almas”, alguém que fazia nascer uma consciência mais viva e livre. Sua atividade consistia em enfatizar a ignorância como forma de evitar os equívocos dos conhecimentos frágeis e mal justificados. Fundamentalmente, ela consistia em partir de uma opinião corrente, problematizá-la por meio de uma pergunta que revelasse seus equívocos e revisá-la por meio de uma formulação mais adequada à experiência humana e à observação atenta. Esses passos permitem entender o que é a razão para Sócrates: uma forma de unir-se à razão que dá o modo de ser das coisas e um esforço por formular expressões adequadas desse modo de ser, de maneira que todos os interlocutores possam avaliar tais expressões.

Página 32

Exercício E

A Filosofia como reflexão é a atividade do pensamento que se volta para si mesmo em sua prática de percepção ou de elaboração de sentidos para os diversos aspectos da existência, quer dizer, os diversos aspectos que compõem o fato de estarmos no mundo, em correlação com tudo e com todos. A diferença fundamental da Filosofia em relação ao que hoje são os outros saberes reside na busca não de oferecer

propriamente “retratos” da realidade (como em geral buscam os outros saberes), mas de compreender criticamente o modo como operam esses saberes. Mesmo quando a Filosofia termina por oferecer sentidos para aspectos da existência, ela não pretende oferecer “retratos” únicos e definitivos, e sim lançar luz sobre a atividade humana de perceber ou construir sentidos.

Página 36

Exercício F

Há semelhanças, todas elas residentes no uso da razão e na busca de compreensão da universalidade das experiências humanas, para além de particularismos aprisionantes.

Página 37

Retomando

3. Émilie du Châtelet, que, além de filósofa e cientista, era versada em política, ética, metafísica e outros saberes, comporta-se nesse texto claramente como filósofa porque faz a análise do papel das hipóteses em Física e da relação delas com a descoberta de causas de fenômenos. Ao fazê-lo, responde filosoficamente a questões postas em Física, mas não respondidas por ela. Além disso, defende a necessidade, por parte da Filosofia, de uma consideração do valor das hipóteses para o conhecimento.

Texto complementar

O texto de Jean-Paul Sartre (1905-1980), a seguir, é uma de suas expressões literário-filosóficas mais belas e impressionantes a respeito do sentido da existência. Aprofunda a compreensão de que “existir para mim” (expressão comum a diferentes filosofias contemporâneas) não significa “ter importância para mim”, mas “ser objeto de minha consciência”. Aliás, há coisas que existem para nós, mas às quais não damos importância; outras coisas sequer merecem receber importância, como a maldade de alguém, e, no entanto, também existem para nós (captamos o sentido delas). Na leitura, note-se que Roquentin não diz ter Náusea, mas ser Náusea. O texto pode ser tomado ainda como um claro exemplo de método intuitivo, em contraposição com o método discursivo.

A Náusea

Não posso dizer que me sinto aliviado ou contente; ao contrário, isso me esmaga. Pelo menos meu objetivo foi alcançado: sei o que buscava saber; compreendi tudo o que aconteceu comigo desde o mês de janeiro. A Náusea não me abandonou; creio até que não me abandonará tão cedo; porém, deixei de sofrer com ela, e não a vejo mais

como uma doença ou um espasmo passageiro: sou eu. [...] Quanto tempo durou essa fascinação? Eu era a raiz da castanheira. Melhor ainda, eu era, todo inteiro, consciência de sua existência. Encontrava-me ainda descolado dela – pois eu tinha consciência dela – e ao mesmo tempo perdido nela, nada mais do que ela. Uma consciência desconfortável e que todavia se deixava levar por seu peso, desequilibrada, rumo a esse pedaço de madeira inerte. O tempo parou: uma pequena poça escura a meus pés; era impossível que algo sucedesse àquele momento. Se pudesse, eu teria me arrancado daquele terrível prazer, mas sequer via essa possibilidade; eu estava dentro; a camada escura não passava, ficava lá, nos meus olhos, como um pedaço muito grande entalado na garganta. Não podia aceitar nem recusar esse prazer. A que preço consegui levantar os olhos? Aliás, eu os levantei? Na verdade, não desapareci por um instante, para renascer no instante seguinte, com a cabeça para baixo e os olhos virados para cima? De fato, não tive consciência de uma passagem. Ao contrário, foi de repente que se tornou impossível pensar a existência da raiz. Ela se havia apagado, e mesmo que eu tentasse repetir “a raiz existe; ela ainda está aqui, sob o banco, encostada a meu pé́ direito”, isso não queria dizer mais nada para mim. A existência não é alguma coisa que se deixa pensar de longe: é preciso que ela nos invada bruscamente, que ela pare sobre nós, que ela pese sobre nosso coração como uma grande fera imóvel – se não é assim, não resta nada. Aliás, não havia mais nada; meus olhos estavam vazios e eu me encantava com minha libertação. De uma vez só́, tudo se pôs a mover-se diante de meus olhos, movimentos leves e incertos: o vento balançava a copa da árvore. Não me desagradava ver mexer alguma coisa; pelo contrário, isso mudava um pouco aquelas existências imóveis que me encaravam com olhos fixos. Eu me dizia, seguindo o balanço dos galhos: “os movimentos não existem; eles são passagens, intermediários entre duas existências, intervalos frágeis. Tentava vê̂-los sair do nada, fortalecer-se progressivamente e desenvolver-se: achava que ia, enfim, surpreender existências no momento em que elas nascem. Não precisou mais de três segundos para que todas essas minhas esperanças fossem varridas para longe. Com base naqueles galhos hesitantes que tocavam minhas esperanças cegamente, eu não conseguia perceber nenhuma “passagem” à existência. Essa ideia de passagem é uma invenção dos humanos. Uma ideia muito clara. Todas aquelas agitações isolavam-se, mostravam-se por si mesmas. Por todos

os lados, elas ultrapassavam os galhos e os ramos. Elas turbilhonavam em torno destas mãos secas, envolviam-nas com pequenos ciclones. Estava claro que um movimento era diferente de uma árvore. Mas, mesmo assim, era um absoluto. Uma coisa. Meus olhos só́ encontravam plenitude.

SARTRE, Jean-Paul. La nausée [A náusea]. Paris: Gallimard Poche, 1938. p. 110-116. Tradução nossa.

Sugestões de leitura

• ALBORNOZ, Suzana Guerra (org.). A filosofia e a felicidade. Florianópolis: Edunisc, 2004.

Visões de diferentes pensadores sobre a relação entre Filosofia e felicidade.

• BORNHEIM, Gerd. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. 3. ed. São Paulo: Globo, 2009.

O pensador brasileiro adota um itinerário existencialista para introduzir o filosofar.

• CHAUI, Marilena de Souza. Boas-vindas à filosofia. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

A pensadora brasileira introduz com maestria didático-pedagógica a atitude filosófica.

Capítulo 2 – Modos de convencer

Introdução

Partindo da pergunta “por que e como convencer?”, chegamos ao modo de convencer, que, fundamentalmente, pode operar apenas com as emoções ou com as emoções e a razão. O método estritamente racional será estudado no próximo capítulo. A parte final deste capítulo dedica-se ao que se denomina de “era da pós-verdade”.

Objetivos

Investigar a possibilidade de articulação entre convencimento, verdade e evidência.

BNCC

• Competências gerais: 1, 2, 4, 5, 6, 7 e 9.

• Competências específicas: 1, 2, 4, 5 e 6.

• Habilidades: EM13CHS101, EM13CHS103, EM13CHS104, EM13CHS106; EM13CHS202, EM13CHS205; EM13CHS401, EM13CHS403; EM13CHS501, EM13CHS502, EM13CHS503, EM13CHS504; EM13CHS601, EM13CHS602.

Temas contemporâneos transversais

Ciência e Tecnologia (Ciência e Tecnologia).

Orientações didáticas

Para chamar a atenção à tentativa filosófica de convencimento, o capítulo articula verdade, convencimento e evidência no contexto da chamada “era da pós-verdade”. Trata-se de entender as razões que levam a assim ser denominada a fase histórica atual, mas também de entender que, no limite, não se deixou de crer em formas de verdade. Deixar de crer em formas de verdade talvez seja impossível, pois mesmo quem afirma não crer em nenhuma verdade pretende que sua não crença seja verdadeira, ou seja, toma por uma verdade o fato de não crer na verdade.

Respostas e

comentários

Página 40

Professor(a), existem várias definições para termos como emoção, paixão, sensação, percepção e sentimento, que variam de acordo com a teoria filosófica ou campo do conhecimento adotado. Diferentes áreas da Filosofia, assim como a Psicologia, a Neurociência e outras Ciências Humanas e Ciências Biológicas, abordam esses conceitos de formas mais ou menos distintas, cada uma com seus critérios e interpretações.

Dialogando

Professor(a), o objetivo é que, por meio da oralidade, os(as) estudantes possam compartilhar seus conhecimentos prévios e suas experiências sobre o tema.

Página 42

Professor(a), comente com os(as) estudantes que, além de ser reconhecida internacionalmente por seu talento e contribuições ao cinema, teatro e televisão, Fernanda Montenegro foi a primeira atriz latino-americana indicada ao Oscar de Melhor Atriz por sua atuação no filme Central do Brasil (1998). Ganhou também o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim (por Central do Brasil) e o Emmy Internacional por sua performance em Doce de Mãe (2013). Além disso, Fernanda Montenegro foi eleita para a Academia Brasileira de Letras em 2021, ocupando a cadeira de número 17, o que simboliza seu impacto cultural e intelectual no Brasil.

Página 43

Para refletir e argumentar

Respostas pessoais. A escritora Audre Lorde

(1934-1992), em sua obra Irmã outsider , destaca a importância das emoções, especialmente da raiva, como força motriz para a justiça social. Lorde argumenta que as emoções não apenas têm um papel legítimo mas também são necessárias para desmantelar estruturas de opressão e promover o reconhecimento de injustiças.

Página 46

Para refletir e argumentar

1. Professor(a) , a resposta a essa questão é, no limite, pessoal, pois o estilo de cada texto dependerá das vivências de cada estudante no tocante a seu contato com ciência e tecnologia. Por exemplo, um(a) estudante com menor poder aquisitivo pode enfatizar apenas os aspectos positivos das aplicações da ciência e da tecnologia (objetos de desejo), enquanto um(a) estudante que possui maior poder aquisitivo talvez nem preste atenção e não invista desejo em assuntos como ciência e tecnologia. O que se espera é que eles ultrapassem essas polarizações e sejam capazes de ver a nocividade (em termos éticos, ecológicos, psíquicos, políticos, estéticos…) da prática da ciência e da tecnologia fechadas ao diálogo. Elas se tornariam apenas meios para obtenção ou ação determinadas, podendo, por conseguinte, transformar-se em instrumentos de autodestruição. Algo parecido com a atitude autorreferente, pois o incentivo à busca de convencer não pode significar um fechamento em si, pretendendo-se estar sempre com razão, independentemente do que outras pessoas e grupos argumentam. As consequências da autorreferência argumentativa também podem ser autodestrutivas, levando, por exemplo, ao isolamento social, a dificuldades psíquicas ou mesmo psiquiátricas etc.

2. Não, mesmo que tais máquinas sejam as mais “inteligentes” possíveis, pois a responsabilidade recai sobre quem dá origem ao ato, e o “ato” das máquinas é sempre originado em um ser humano. Ainda que máquinas programem máquinas, algum ser humano esteve na origem da primeira máquina, pois, até onde se sabe, não se conhece nenhuma máquina autoproduzida ou de movimento decidido por ela apenas.

Página 49

Exercício B

1. Sim, porque é um fato hoje praticamente indiscutível que a nossa mente se engana, de modo que, em determinadas situações, a verdade mistura-se com a não verdade. Não é legítimo, porém, deduzir dessa constatação a negação total do que se chama de verdade, coisa que Sastre coerentemente não faz. Essa problemática pode ser mesmo completada por outra: nossas percepções não erram em si mesmas; são nossas afirmações e negações que erram. Assim, quando vimos que X se aproximava, nossa percepção sensível captou o que pôde captar; o erro foi nossa associação entre o que percebíamos e a pessoa X, quando na realidade tratava-se de Y. Com a aproximação de Y e, portanto, com mais dados percebidos, adequamo-nos à verdade que permanecia latente ao fato.

2. Não há contradição alguma entre a prática das ciências cognitivas e o recurso a reflexões éticas porque tanto as ciências cognitivas como as reflexões éticas baseiam-se, em maior ou menor grau, na atividade da razão, atividade essa que tem mais condições de justificar por que somos como somos e porque agimos como agimos, em benefício de uma vida social mais bem organizada, visando ao maior bem para todos. Mesmo as éticas fundadas em princípios religiosos, por exemplo, são aceitáveis como racionais quando conseguem justificar o porquê de crerem no que creem. Tal justificativa deve ser suscetível de avaliação pelos interlocutores, donde o fato de a razão ser um ponto de união de grande potência para todos os seres humanos. O que Peggy Sastre pretende é mostrar que seria um equívoco recorrer à ética para compreender a era da pós-verdade, pois isso pressuporia que todos os interlocutores admitem a razão como mesma regra, o que não vale para os que não se importam com justificativas avaliáveis pelos participantes de um debate (os quais, se tiverem alguma ética, esta irá se tratar mais de controle de atos e pensamentos do que de realmente ética).

Página 54

Dialogando

Professor(a), a proposta é que os(as) estudantes possam problematizar e compartilhar seus pontos de vista sobre o alcance das notícias fabricadas.

Página 55

Integrando com… História

1. O pôster apresenta uma multidão ao redor de um aparelho de rádio gigante. O objetivo é enfatizar o apelo às massas e a grande audiência das transmissões nazistas.

2. Com vistas ao domínio das massas, as notícias veiculadas nos meios de comunicação em massa eram usadas estrategicamente para favorecer o regime e não tinham o objetivo real de informar a população.

3. De acordo com o texto de Hannah Arendt, uma ditadura totalitária necessita que as pessoas não estejam informadas. Dessa forma, seguindo a argumentação da autora, é preciso que haja uma imprensa livre, que evite a disseminação de mentiras e que permita a formação de opinião por parte dos cidadãos. Com esses elementos assegurados, é possível evitar o totalitarismo.

Página 58

Retomando

1. É possível convencer por meio das emoções ativando-as em nossos interlocutores, de maneira que, ao senti-las, considerem essas emoções uma base segura para crer no que dizemos. Os melhores exemplos, durante séculos, foram dados pelo teatro, fazendo rir, chorar, indignar-se, motivar-se etc.

2. a) O f io condutor é a constatação de que, em tudo o que diz respeito à vida social, a responsabilidade é dos seres humanos, pois são eles que pensam e decidem suas ações.

2. b) Porque em ambos os textos o assunto é a justiça e a injustiça, temas sociais por excelência, uma vez que implicam a classificação das ações humanas como adequadas ou inadequadas aos costumes de grupos sociais. No texto A , trata-se da alternativa hipotética de Sócrates praticar ou sofrer a injustiça. No texto B, trata-se de admitir que, por trás da inteligência artificial (IA), há comportamentos humanos que a determinam; esses julgamentos, por sua vez, podem ser classificados com base nos efeitos que aparecem no “comportamento” da IA.

3. Espera-se que os(as) estudantes notem que, na maioria das sociedades conhecidas, valoriza-se o bem de todos, seja por convicção filosófica ou religiosa, seja por costume ou comportamento repetitivo. Ora, a desigualdade social implica que os mais

privilegiados, direta ou indiretamente, são responsáveis pelo fato de haver os menos privilegiados. Eles podem até achar ruim que haja desigualdade social, mas esta é resultado do comportamento dos membros de um corpo social. Colega professor(a), esse tema é de extrema delicadeza, pois alguns estudantes podem polemizar, insistindo que suas famílias não devem ser responsabilizadas pela desigualdade social. É útil, então, lembrar o princípio sociológico segundo o qual toda instituição é maior do que seus membros; portanto, a responsabilidade pelos atos conjuntos não pode recair sobre indivíduos isoladamente. Dessa perspectiva, a desigualdade social é responsabilidade de quem representa o conjunto, o corpo de dirigentes políticos. No entanto, a prática política nem sempre é guiada pelo bem de todos; em muitos lugares do mundo ela tem se tornado praticamente uma profissão cujo objetivo é o bem particular.

4. Não necessariamente. Se alguém espalha fake news crendo no conteúdo delas, não é mentiroso. Para mentir, é preciso saber que o conteúdo do que se diz é falso e mesmo assim dizer.

5. Sim, é correto, porque os seres humanos, de acordo com os textos, são continuamente envolvidos por falta de luz (símbolo da clareza que a razão pode trazer com suas análises), falta de certezas, ambiguidades etc., o que torna bastante complexa a tarefa de distinguir o verdadeiro do não verdadeiro (assim como, sem luz nenhuma, fica muito difícil distinguir entre os rostos de duas pessoas sentadas perto de nós, entre dois gatos que têm o mesmo tom de miado e assim por diante).

Texto complementar

A integração da ciência com a sociedade contemporânea é tão íntima que não se pode pensá-la como se fosse algo neutro e independente. Ao contrário, para avaliar adequadamente seu papel, é preciso levar em conta os valores que norteiam nossas vidas. Vejamos mais um exemplo. Graças aos conhecimentos científicos, desenvolveu-se uma técnica para produzir alimentos transgênicos, permitindo aumentar a produção de alimentos e combater a fome. De outro lado, a poluição do campo gerada pelos agrotóxicos (produtos da ciência) exige o uso de transgênicos, já que plantas não modificadas não têm força para resistir a pragas mais fortes (subprodutos da ciência, pois os agrotóxicos eliminaram

as mais fracas, selecionando-as). Além disso, não se sabe bem qual é o impacto dos transgênicos no meio ambiente. O que significa uma vida (geneticamente modificada) que não é capaz de se reproduzir? Qual o impacto para o pequeno agricultor que não pode mais reproduzir uma espécie e precisa comprar sementes geneticamente modificadas todos os anos? Deve um monopólio deter o controle de espécies modificadas? A ciência, então, é culpada e deveria ser abandonada? Essa conclusão parece precipitada, pois cabe à própria ciência dimensionar o impacto dos transgênicos no meio ambiente e somente quem entende de genética poderá avaliar aspectos cruciais do problema. Mas não cabe somente à ciência decidir o que fazer. Muitos interesses estão em jogo, não somente econômicos, mas também como desejamos organizar nossa sociedade e que tipo de alimento queremos produzir e consumir.

A inseparabilidade da ciência e dos valores se revela em outras questões que nos tocam de perto e surgiram mais recentemente, graças à ciência e tecnologia, como reprodução assistida e o uso de células-tronco para desenvolver novas técnicas de cura. Algumas questões mais antigas, como aborto e eutanásia, ganham nova dimensão à luz das técnicas mais recentes, por exemplo, em função do diagnóstico de doenças gravíssimas já no feto e de prognósticos mais seguros de certas enfermidades que nos acometem.

Em suma, a ciência e a tecnologia permeiam toda a nossa sociedade, mas seus benefícios e malefícios não estão inteiramente claros. [...]

SMITH, Plínio Junqueira. Teoria do conhecimento e filosofia da ciência: conhecimento como crença verdadeira justificada. In: CORNELLI, Gabriele; CARVALHO, Marcelo; DANELON, Márcio (coord.). Filosofia: ensino médio. Brasília, DF: MEC: SEB, 2010. p. 143-158. (Coleção Explorando o ensino, v. 14, p. 145).

Sugestão de leitura

• BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Filosofia: ensino médio. Organização: Marcelo Carvalho, Gabriele Cornelli. Brasília, DF: MEC: SEB, 2010. (Coleção Explorando o ensino, v. 14).

Volume com material para o ensino de Filosofia, centrado nos temas filosóficos mais recorrentes na História da Filosofia e na reflexão sobre a prática docente de Filosofia, publicado pelo governo federal.

Capítulo 3 – Método racional

Introdução

Buscando compreender como nos relacionamos com aquilo que denominamos verdade, o capítulo explora dois grandes métodos de trabalho filosófico: o método discursivo e o método intuitivo.

Objetivos

Estudar o método especificamente racional, ainda que, muitas vezes, ele não deixe de acionar a emoção como meio de convencimento.

BNCC

Competências gerais: 2, 4, 5 e 7.

Competência específica: 1.

Habilidades: EM13CHS101, EM13CHS102, EM13CHS103, EM13CHS104, EM13CHS106.

Orientações didáticas

De modo bastante geral, os possíveis métodos filosóficos dividem-se em dois grupos: o método discursivo e o método intuitivo. No método discursivo, apresentam-se elementos da lógica tradicional dedutiva, com o silogismo categórico, hipotético e dialético, embora o procedimento dialético seja aqui destacado do quadro dedutivo e apresentado em formas mais amplas ou mesmo independentes do funcionamento do silogismo (ainda que tais formas possam ser reduzidas forma silogística). O método intuitivo, por sua vez, é apresentado em contraponto ao método discursivo, no sentido de que a ênfase dada pelo método intuitivo é a da “descoberta” ou da análise do que aparece como evidente, ao passo que a ênfase discursiva é colocada na “construção” de resultados. Procura-se evitar uma oposição rígida entre os dois métodos, sobretudo porque os elementos apresentados neste capítulo não chegam aos debates clássicos ou contemporâneos em torno da natureza da Lógica. Antes, trata-se aqui de atrair a atenção dos(as) estudantes para dados tradicionais e, eventualmente, conduzi-los a questões filosóficas sobre a Lógica. A esse respeito, aliás, este capítulo não pretende apresentar a Lógica como simples método ou instrumento da atividade filosófica.

Os(as) colegas professores(as) são convidados(as) a insistir que, embora os elementos da lógica tradicional apresentados no capítulo sejam empregados metodologicamente por boa parte dos filósofos, a Lógica, principalmente a partir do século XIX, adquiriu um caráter de reflexão filosófica propriamente dita, articulando-se di-

retamente com questões epistemológicas e metafísicas, por exemplo. Não por acaso, no século XX, constituiu-se uma disciplina chamada Filosofia da Lógica. No nível do Ensino Médio – e, portanto, em um livro didático correspondente a esse nível de ensino –, parece difícil e talvez antipedagógico entrar no tratamento de questões filosóficas sobre a Lógica, dado o nível de abstração exigido por elas, mas é interessante estar atento à possibilidade de abordar algumas dessas questões, caso o contexto da turma permita. Para tanto, sugere-se a leitura do livro de Susan Haack, Filosofia das lógicas, publicado em 2002, e do estudo de Franklin Leopoldo e Silva, Bergson: intuição e discurso filosófico, publicado em 1993. Um brilhante exemplo de trabalho filosófico que rompe a distinção entre “discurso” e “intuição”, unindo abordagens que muitas vezes parecem incompatíveis, é o conjunto de ensaios do filósofo Bento Prado Júnior, organizados no volume Erro, ilusão e loucura.

Por fim, caso o(a) professor(a) identifique dificuldades por parte dos(as) estudantes em termos de leitura e de interpretação de enunciados, sugere-se que o estudo do método discursivo seja iniciado pelas falácias, pois elas têm a vantagem de despertar a curiosidade e de apresentar elementos, digamos, mais “palpáveis”, menos “abstratos”. Com base nas falácias, é possível recorrer a elementos formais da exposição sobre os silogismos e construir com os(as) estudantes um aprendizado mais adaptado às possibilidades e às dificuldades de cada turma.

Respostas e comentários

Páginas 68-69

Para refletir e argumentar

1. a)

Pressuposto : amigos são pessoas que t ê m o s mesmos gostos.

Premissa : Cláudia e eu temos os mesmos gostos.

Conclus ã o : logo, posso dizer que sou amigo de Cláudia.

A conclusão procede corretamente da premissa. No entanto, o pressuposto pode ser questionado; afinal, é possível ser amigo de alguém sem ter os mesmos gostos. Por outro lado, ter os mesmos gostos não parece ser suficiente para a amizade, pois pessoas podem ter gostos comuns e não serem amigas.

1. b)

Pressuposto: toda afirmaç ão baseada em regras universais é cient í f ica.

Premissa : essa afirma ç ã o se baseia em regras universais.

Conclusão: logo, essa afirmaç ão é cient í f ica.

A conclusão procede corretamente das premissas.

O pressuposto e a premissa também são defensáveis. Porém, em uma análise mais demorada, pode-se também concluir que o raciocínio, mesmo sendo defensável, contém certa fragilidade, porque exige clareza sobre o contexto em que se diz que “toda afirmação que se baseia em regras universais é científica”. Seria necessário esclarecer o que se entende por regra e por universalidade. Alguém poderia, por exemplo, situar-se em um pensamento que cria suas próprias regras universais, afirmando algo como “todo ser humano é mau por natureza”. No contexto de tal pensamento, essa regra universal seria científica, mas dificilmente alguém em contexto realmente científico a abonaria.

Cabe ao(à) professor(a) explorar a fragilidade do racioínio, apontando que, em função da clareza do contexto, ele pode ser perfeitamente aceitável.

1. c)

Pressuposto : alguns casos bastam para expressar uma regra universal.

Premissa : há alguns casos de polí t icos corruptos.

Conclusão: portanto, todo polí t ico é corrupto.

A conclusão é inaceitável em si mesma e não procede das premissas, tornando inválido o raciocínio. Seja pela forma, seja pelo conteúdo, o fundamento do raciocínio está no pressuposto, que é falso e resulta de um raciocínio também inválido: casos particulares não são suficientes para o estabelecimento de uma conclusão universal, a menos que se opere com um conjunto universo bastante reduzido e os casos particulares observados recubram todo o conjunto universo. Mesmo nesse caso, porém, o mecanismo do raciocínio seria frágil.

1. d)

Pressuposto : para duvidar é preciso pensar; e todos que pensam existem.

Premissa : eu posso duvidar de tudo; portanto, eu penso.

Conclusão: ora, se eu penso, ent ão e xisto.

A conclusão procede devidamente das premissas. Os(As) estudantes talvez questionem se realmente apontar para o pensamento é o melhor critério para afirmar a existência. Porém, o pressuposto não toma o pensamento como único indicador de existência; ele afirma apenas que o pensamento supõe a existência.

1. e)

Pressuposto: um remédio capaz de baixar a febre de uma pessoa é capaz de baixar a febre de todas.

Premissa : a dipirona é um rem é dio que baixou a febre da minha vizinha.

Conclusão: ent ão, a dipirona também deve baixar a minha febre.

Há verdade tanto nas premissas como na conclusão; e a passagem das premissas à conclusão é bem feita. Apenas se deve observar que há também uma fragilidade no raciocínio, pois a conclusão é apenas provável, e não necessariamente verdadeira. Assim, a verdade das premissas não garante necessariamente a verdade da conclusão. Apesar de a verdade da conclusão não ser sempre garantida, ela só será declarada falsa quando casos contrários a ela aparecerem (mas não haveria por que duvidar dela por princípio). 2.

Texto 1 – aqui é preciso atentar para o fato de q ue o texto de Espinosa encadeia dois grandes raciocínios:

Raciocínio 1

Premissa : uma natureza feita de tal modo que aquilo que os seres humanos mais desejam é a quilo que é mais ú t il torna desnecess á r ia toda arte para a concórdia e a lealdade.

Premissa: a natureza humana não é uma natureza feita de tal modo que aquilo que os seres humanos mais desejam é aquilo que é mais út il.

Conclus ão implícita : a natureza humana precisa da arte para a concórdia e a lealdade.

Raciocínio 2

Premissa (conclusão implícita do raciocínio 1) : a natureza humana precisa da arte para a concórdia e a lealdade.

Pressuposto: o Estado é a arte da concórdia e da lealdade (ele faz que tanto os que governam como os que são governados, queiram ou não, fa ç a m aquilo que interessa à salva ç ã o comum, isto é , que todos sejam levados, espontaneamente ou à for ç a ou por necessidade, a viver segundo o que prescreve a raz ão).

Conclusão: o E stado tem necessariamente de ser instituído.

A conclusão procede devidamente das premissas dos dois raciocínios. Os(As) estudantes podem questionar, no entanto, se realmente os seres humanos têm a tendência natural a viver sem razão, bem como

se o Estado necessariamente leva todos a viver segundo a razão. A História não está repleta de casos em que o Estado não fez seguir a razão? Ou seguir a razão é algo que depende do Estado? Um Estado totalitário, por exemplo, é um Estado sem razão? Se ele justificar sua existência e suas ações, ele estará de acordo com a razão?

Texto 2 – esse texto é uma boa ocasião para mostrar que a conclus ão de um raciocínio não aparece necessariamente no final. Na montagem seguinte, a conclus ão ser á didaticamente posta no final, mas convém e nfatizar a diferen ç a e ntre a montagem (que a filó s ofa tinha em mente) e o texto redigido pela autora com liberdade liter á r ia.

Premissa: como certas funções do Estado servem ao interesse de todos, temos o dever de aceitar de bom grado o que o Estado imp õ e em rela ç ão a essas fun ç õ e s (exemplo: regulamenta ç ã o d o tr â nsito).

Pressuposto : nem todas as fun çõ e s do Estado servem ao interesse de todos.

Premissa : nos casos em que o Estado não serve ao interesse de todos, é necess á r io suportar o Estado como uma necessidade, mas não aceit á-lo dentro de nós (não assumi-lo como algo total e legitimamente indispens ável; devemos recusar recompensas e utilizar ao má ximo todas as liberdades que o Estado nos deixa; temos o direito leg í t imo de tomar posse, contra a lei oficial, das liberdades que o Estado não nos deixa, desde que isso valha a pena).

Premissa : temos o dever de trabalhar pela transforma ç ã o da organiza ç ã o social: aumento do bem-estar material e instruç ão t é cnica e te ór ica das massas (preservar as funçõe s que servem ao interesse de todos).

Premissa : o Estado menos ruim é aquele em que somos menos limitados pelo Estado e aquele no qual os simples cidadãos têm maior poder de controle (descentralizaç ão; car áter público e não secreto dos negócios do Estado; cultura de massa).

Pressuposto: o Estado é um regime.

Conclus ã o : q uando as circunst â n cias permitem escolher entre v á r ios regimes, temos o dever de escolher o menos ruim.

A conclusão procede devidamente das premissas. Segundo uma das premissas, devemos aceitar o Estado como uma necessidade quando ele não serve ao interesse de todos. A experiência histórica dificilmente

permitiria discordar disso. Por conseguinte, devemos aproveitar a máxima liberdade possível deixada pelo Estado e ainda buscar ampliá-la sempre que possível, buscando escolher, entre os vários regimes, o menos ruim. Nesse sentido, o Estado menos ruim é o que nos permite mais liberdade e mais controle. Daí o dever de escolher, quando é possível, o menos ruim dos regimes (o menos ruim dos Estados).

Páginas 72-73

Integrando com… Matemática

Os(As) estudantes certamente exprimirão hipóteses diferentes em sua formulação, pois esta depende do repertório linguístico e matemático de que eles dispõem. No entanto, mesmo que o repertório seja pequeno, é possível exprimir o dado ilustrado na imagem. Esse dado, dito de um modo concreto, consiste essencialmente no fato de, na escada da esquerda, indicar-se que o primeiro degrau na subida é 1 (e precisa ser 1, porque, se fosse 0, não haveria degrau!). Depois de observar a escada da esquerda, entende-se que, na escada da direita, decide-se não mais apontar para o número do degrau, mas exprimir a regra segundo a qual, subindo-se um degrau, o novo degrau será “o degrau anterior mais um degrau”. Assim, se chamarmos cada degrau de k, o degrau seguinte será k +1, e, se trocarmos a palavra degrau por n, teremos a formulação matemática ilustrada na escada da direita: se o n que se toma por base é k, então o n subsequente (n+1) será k+1. Em uma formulação puramente simbólica, esse dado exprime-se da seguinte maneira: n =k H n+1=k+1 (lê-se: se n é igual a k, então n mais 1 é igual a k mais 1). Espera-se do(a) colega professor(a) de Matemática que, junto do(a) colega professor(a) de Filosofia, acompanhe os grupos no desenvolver do exercício, indicando pistas para eles chegarem à solução, a fim de que os(as) professores(as) explorem a linguagem simbólica e o conceito de indução matemática. Antes, porém, de procederem ao exercício, devem ler o texto introdutório com os(as) estudantes, sobretudo porque podem aparecer dificuldades de compreensão.

Página 76

Exercício A

a) Argumento dedutivo.

Pressuposto: todos os animais são mortais.

Premissa : os humanos são animais.

Conclusão: os humanos são mortais.

b) Argumento indutivo.

Premissa : o remédio x fez 2 mil pessoas melhorarem do estômago.

Conclusão: então, o remédio x faz bem para o estômago.

c) Argumento dedutivo.

Premissa : todo chá é diurético.

Pressuposto: todo diurético ajuda no funcionamento dos meus rins.

Conclusão: este chá preto ajudará no funcionamento dos meus rins.

d) Raciocínio indutivo.

Premissa : um grupo de substâncias parecidas com y combinou com a substância x

Conclusão: a substância x combina com a substância y.

e) Argumento de autoridade.

Pressuposto: os historiadores têm um conhecimento adequado do passado.

Premissa : os historiadores afirmam que os vikings tiveram uma passagem pela América do Norte muito antes do descobrimento do continente americano.

Conclusão : os vikings tiveram uma passagem pela América do Norte muito antes do descobrimento do continente americano.

f) Argumento por analogia.

Premissa : a existência de um relógio supõe a existência de um relojoeiro que o fabricou.

Conclusão : assim tamb é m a e xistência do mundo supõe a existência de um ser que o criou.

Página 84

Professor(a), a Medeia, de Sêneca (4 a. C.-65 d. C.), uma adaptação romana do mito grego. Nela, o foco de Sêneca está mais nos aspectos psicológicos e nas paixões intensas da personagem, diferindo um pouco da versão de Eurípides (c. 480 a.C.-406 a.C.). Ambos, no entanto, tratam da vingança de Medeia contra a traição de Jasão.

Página 88

Exercício B

1. Premissa : toda injustiç a é proibida.

Pressuposto: o assassinato é uma injustiç a

Conclusão: então, o assassinato é proibido.

Silogismo válido.

2. Premissa : alguns cidadãos s ão homens.

Premissa : alguns homens s ão covardes.

Conclusão: alguns cidadãos s ão covardes.

Silogismo inv álido . De duas premissas particulares, nada se conclui (regra 8). Com efeito, nada garante que os cidadãos homens s ão os mesmos que s ão covardes.

3. Premissa : se você tivesse lido o livro, teria aprendido.

Premissa : você não aprendeu.

Conclusão: portanto, você não leu o livro.

Silogismo válido. Note-se que o silogismo segue o modus tollens . Os(As) estudantes podem contra-argumentar, dizendo que o fato de alguém não ter aprendido sobre o conteúdo de um livro não significa necessariamente que não o leu. A falta de aprendizado pode ter outra causa, como a incompreensão, por exemplo. No entanto, cabe explicar que, embora se possa discutir a verdade ou a adequação da primeira premissa, a extração da conclusão, no modo como o raciocínio está montado, é perfeitamente válida, porque se restringe ao fato de que a leitura do livro teria produzido aprendizagem.

4. Premissa : se você tivesse lido o livro, teria aprendido.

Premissa : você não leu o livro.

Conclusão: você não aprendeu.

Silogismo inválido, porque nega ou barra a condiç ão da primeira premissa, o raciocínio parece seguir o modus tollens , mas não o segue realmente: negar a condiç ão não permite obter a negaç ão da conclusão. Com efeito, ainda que o aprendizado possa resultar da leitura de um livro, ele também pode resultar de outros fatores. Assim, o fato de não ler o livro não impede que haja aprendizado.

5. Premissa : todas as pessoas alegres s ã o s eres que riem.

Premissa : todas as hienas s ão seres que riem.

Conclusão: todas as pessoas alegres s ão hienas.

Silogismo inválido, porque em nenhuma das duas premissas o termo médio é tomado em sentido universal (regra 4).

6. Premissa : nenhum problema me afeta.

Premissa : nenhum riso me afeta.

Conclusão: problemas s ão risos.

Silogismo inválido. De duas premissas negativas, nada se conclui (regra 7).

7. Premissa: todos os humanos são cidadãos.

Premissa: alguns cidadãos são bons.

Conclusão: portanto, todos os cidadãos são humanos. Silogismo inválido. O termo médio não pode aparecer na conclusão (regra 2).

8. Premissa: ou os cidadãos lutam pela liberdade, ou aceitam ser dominados.

Premissa: os cidadãos não lutam pela liberdade.

Conclusão: então os cidadãos aceitam ser dominados.

Silogismo válido.

9. Premissa: ou os cidadãos lutam pela liberdade, ou aceitam ser dominados.

Premissa: os cidadãos lutam pela liberdade.

Conclusão : ent ã o os cidadã o s não aceitam ser dominados.

Silogismo válido.

10. Premissa: o cidadão é alguém que ou luta pela liberdade ou aceita ser dominado.

Premissa: como o cidadão não luta pela liberdade... Conclusão: então aceita ser dominado.

Silogismo inválido. Ele opera com a aparência de um silogismo copulativo, mas é inválido porque a negação de um dos predicados não leva necessariamente à afirmação do outro. Com efeito, o cidadão pode ser alguém que não luta pela liberdade nem aceita ser dominado.

11. Premissa: o cidadão é alguém que ou luta pela liberdade ou aceita ser dominado.

Premissa: como o cidadão luta pela liberdade…

Conclusão: então não aceita ser dominado.

Silogismo válido. Note-se que o silogismo opera como silogismo copulativo e afirma um dos predicados, negando o outro.

12. Premissa: sua função como bombeiro era acionar o alarme.

Premissa: o alarme não foi acionado porque ou você soube do incêndio e não o acionou ou porque não soube do incêndio e também não o acionou.

Conclusão: a responsabilidade pelo não acionamento do alarme é sua.

Silogismo válido.

Página 94

Exercício C

1. Falácia da petiç ão de princípio.

2. Falácia da falsa causa ou falácia do post hoc propter hoc

3. Falácia por equivocidade.

4. Falácia da força ou do argumento de autoridade.

5. Falácia da transferência de sentido.

Página 98

Exercício D

Texto 1

O tema central é saber se o fato de um prazer acompanhar um ato mau (pecado) aumenta sua gravidade. O procedimento é claramente dialético, pois Abelardo parte da objeção que alguns pensadores faziam à sua posição; e, com base na objeção, esclarece seu próprio pensamento. Para ele, um ato é mau por causa da sua motivação ou intenção. O prazer que acompanha o ato mau não é condenável em si mesmo; por isso, ele não aumenta a gravidade, mas apenas resulta do modo de ser das coisas. Se o prazer fosse condenável, então um casal praticaria um ato mau (pecado) ao ter prazer carnal; o mesmo ocorreria com alguém que tem prazer ao comer frutas. Os exemplos pretendem mostrar que a maldade de um casal está em ter prazer carnal fora da relação conjugal (lembrar que Abelardo vive em contexto cristão); e a maldade de comer frutas está em roubar as frutas. Não há maldade no prazer carnal em si mesmo nem no prazer de comer frutas. Deus cairia em contradição se desse a possibilidade desses prazeres aos seres humanos e depois a condenasse. Raciocinando ainda por debate e levando o caso ao extremo, Abelardo lembra que é inconcebível pensar (como faziam outros objetores) que seria preciso ter uma relação carnal ou comer um alimento sem prazer.

Texto 2

O tema central é rever a exclusão ou a incompatibilidade que se estabelece comumente entre duas posições contrárias, como o falso e o verdadeiro, por exemplo. Raciocinando por contraposição, Hegel adota o procedimento de mostrar como realidades opostas convergem para uma terceira realidade; o botão e a flor se opõem, mas também se encaminham para o fruto, que, de certa maneira, conserva em si o sentido do botão e da flor (unidade orgânica). O exemplo é elevado por Hegel à condição de exemplo da vida do todo.

Página 100

Professor(a), a respeito da imagem, pode-se exemplificar dizendo que, em uma viagem, uma pessoa que se distrai com a paisagem não vê o tempo passar. Já uma pessoa que fica mal-humorada com a demora con-

sidera o tempo longo demais. Ou, ainda, coisas “passadas” que continuam vivas em nós; se estão vivas, são presentes. O verdadeiro tempo, então, é o do relógio ou o que se vive interiormente, na intuição do agora?

Página 102

Exercício E

A temática central é saber o que é o tempo. A intuição que funda a análise de Agostinho é a constatação de que o que se chama de passado e futuro só tem sentido no presente, assim como o próprio tempo presente. O passado continua a fazer sentido agora, no presente; o futuro só pode ser antecipado por meio de um sentido que se capta também agora, no presente. O presente, por sua vez, a própria presença do que se vive. Se é assim, Agostinho conclui que o tempo não é algo que vai do passado ao presente e deste ao futuro; em vez disso, é mais coerente falar do presente do passado (memória), do presente do presente (visão) e do presente do futuro (espera). O tempo, numa palavra, refere-se à condição presente.

Página 103

Retomando

2. Não. O procedimento silogístico é válido no texto. O risco de pensar que a regra 2 é infringida se dá apenas se se tomar por conclusão a última frase do texto. Porém, a conclusão est á na primeira frase.

3. No esclarecimento de que a duração temporal é um qualificativo do eu, é subjetiva, e não objetiva (como se o tempo fosse o conjunto de convenções que falam a seu respeito).

Atividade complementar

Esta é uma atividade de leitura de texto não filosófico, mas com uma “moral filosófica”, e tem por objetivo chamar intuitivamente a atenção para a possibilidade de pensar que, mesmo na busca da objetividade almejada pelo método discursivo, há certamente elementos que condicionam a escolha dos pontos de partida, a começar pelos hábitos que formam nosso modo de ver a realidade. Em nada essa possibilidade depõe contra o método discursivo; ela apenas o torna mais consciente e – por que não? – mais livre. Leia-se, então, a seguinte fábula: Olhe!

Havia um homem muito rico e um homem muito pobre. Cada um deles morava com seu filho, um de cada lado de uma montanha. Um dia, o homem muito rico subiu com o filho até o topo da montanha e, envolvendo toda a paisagem com os braços abertos, disse ao menino:

– Olhe! Um dia tudo isso será seu!

O homem muito pobre também subiu com o filho ao topo da montanha e, diante do Sol nascente que iluminava a planície, disse simplesmente ao menino:

– Olhe!

PIQUEMAL, Michel. Les philo-fables. [As filofábulas]. Paris: Albin Michel, 2008. p. 168. Tradução nossa. Os(as) colegas professores(as) podem comentar com a sala essa fábula, mas o mais importante é que ela fale por si mesma, e que os(as) estudantes, mesmo se precisarem de alguns minutos de reflexão, cheguem à moral da história; afinal, o sentido de uma fábula é que ela fale por si mesma.

Texto complementar

O texto a seguir foi extraído do livro Verdade e método, publicado em 1999, de Hans-Georg Gadamer (1900-2002), e investiga a noção de objetividade, tomando para estudo de caso a verdade histórica em comparação com a verdade da ciência estatística. Embora sejam aparentemente distantes ou incomparáveis, ambas se unem pela raiz do modo mesmo como, segundo Gadamer, se constitui toda percepção e todo discurso sobre o que quer que se entenda por verdade. Trata-se, no vocabulário de Gadamer, da situação hermenêutica: condição em que se encontra toda pessoa e todo grupo na atividade do conhecimento e que interfere mesmo no estabelecimento dos pontos de partida de todo conhecimento. Da perspectiva da situação hermenêutica, tanto o procedimento filosófico discursivo como o intuitivo são formados pela história dos indivíduos e dos grupos. Gadamer não pretende dizer que tudo o que constitui os indivíduos e os grupos é mero resultado de construção histórica, uma vez que ele pressupunha potências e possibilidades humanas, digamos, naturais. No entanto, ele não deixa de parecer ter razão quanto à historicidade do modo como os humanos se tornam o que eles são e acionam sua capacidade cognitiva.

Situação hermenêutica e história da eficácia

Na suposta ingenuidade [pretensa ausência de fatores condicionantes] da nossa compreensão, na qual nos guiamos pelo padrão da compreensibilidade, o outro se mostra a partir do próprio, e isso se dá de tal modo que ele não se expressa mais, em absoluto, como próprio e como outro. O objetivismo histórico, na medida em que apela para o seu método crítico, oculta o entrelaçamento efeitual-histórico em que se encontra a própria consciência histórica. É verdade que, graças ao seu

método crítico, ele desmorona a arbitrariedade e o capricho de certos atualizadores congraçamentos com o passado, mas com isso ele se livra da má consciência de negar aquelas pressuposições que não são arbitrárias nem aleatórias, mas sustentadoras, as quais guiam seu próprio compreender; dessa forma, negligencia a verdade que seria acessível apesar de toda finitude de nossa compreensão. Nisso, o objetivismo histórico se assemelha à estatística, que é um meio propagandístico tão distinto por deixar falar a linguagem dos fatos, e aparenta assim uma objetividade que, na verdade, depende da legitimidade de seu questionamento. [...] A consciência da história efeitual [da eficácia] é em primeiro lugar consciência da situação hermenêutica. No entanto, o tornar-se consciente de uma situação é uma “tarefa que em cada caso reveste uma dificuldade própria. O conceito de situação se caracteriza pelo fato de não nos encontrarmos diante dela e, portanto, não podermos ter um saber objetivo sobre ela. Nós estamos nela; já nos encontramos sempre numa situação, cuja iluminação é a nossa tarefa, e esta nunca pode se cumprir por completo. Isso vale também para a situação hermenêutica, isto é, para a situação em que nos encontramos face à tradição que queremos compreender. Também a iluminação dessa situação, isto é, a reflexão da história efeitual [da eficácia], não pode ser plenamente realizada, mas essa impossibilidade não é defeito da reflexão; ela encontra-se na essência mesma do ser histórico que somos. Ser histórico quer dizer não se esgotar nunca no saber-se. Todo saber-se procede de um dado histórico prévio, que chamamos, com Hegel, “substância”, porque suporta toda opinião e comportamento subjetivo e, com isso, prefigura e delimita toda possibilidade de compreender uma tradição em sua alteridade histórica. [...] Todo presente finito tem seus limites. Nós determinamos o conceito da situação justamente pelo fato de que representa uma posição que limita as possibilidades de ver. Ao conceito da situação pertence essencialmente, então, o conceito de horizonte. Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Aplicando-se à consciência pensante, falamos então da estreiteza do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes etc. A linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar a vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para caracterizar, com isso, a lei do progresso de ampliação do âmbito visual. Quem não tem um horizonte é alguém que não vê suficientemente

longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver para além disso. Quem tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução: Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 450-452.

Sugestões de leitura

• HAACK, Susan. Filosofia das lógicas. Tradução: César

Mortari, Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: Ed. Unesp, 2002.

Estudo do sentido dos principais empreendimentos l ó gicos atuais.

• PRADO JÚNIOR, Bento. Erro, ilusão e loucura: ensaios. São Paulo: Editora 34, 2004.

Estudo inovador da natureza e do papel do sujeito.

• SILVA, Franklin Leopoldo e. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo: Loyola, 1993. (Filosofia, v. 31). Excelente abordagem de aplicação do método intuitivo.

Unidade 2

Os seres humanos são seres de sentido

Capítulo 4 – Conhecimento

Introdução

O que relaciona representação e realidade, subdividindo-se em racionalismo, empirismo e filosofia transcendental; o que relaciona linguagem e realidade e que rigorosamente não mereceria ser chamado de teoria de conhecimento; e o que relaciona consciência e realidade, representados aqui pela fenomenologia husserliana e pelo legado medieval: essa é a base de uma tríplice compreensão do conhecimento. Como exame crítico de todas elas, aparece o ceticismo, principalmente no que toca à ideia de representação.

Objetivos

Apresentar algumas das mais influentes concep-

ções filosóficas do conhecimento, por meio de uma dupla possibilidade de compreensão, a saber: o conhecimento é uma representação da realidade; o conhecimento é uma correlação com a realidade. Com base nesse debate, visa-se apresentar também o modo como, hoje, os diferentes tipos de conhecimento da realidade são divididos, de modo geral, em Ciências Naturais e Ciências Humanas.

BNCC

• Competências gerais: 2, 4, 5, 6 e 7.

Competência específica: 1.

Habilidades: EM13CHS101, EM13CHS103, EM13CHS106.

Orientações didáticas

Adotando uma dupla de concepções bastante amplas que permitem introduzir algumas das mais influentes posições filosóficas a respeito do conhecimento – a ideia de representação da realidade e a ideia de relação direta com a realidade e na presença dela (por meio daquilo que, de modo mais geral, se chama de consciência) –, o capítulo inicia por uma breve apresentação do racionalismo, do empirismo e da filosofia crítica de Kant, extraindo deles a ideia de representação. Os(as) colegas professores(as) são convidados(as) a desenvolver o estudo do tema tendo em vista que o que interessa não é o conceito técnico de representação, mas a compreenão geral do conhecimento como algo que se produz no sujeito ou no indivíduo que conhece.

Na sequência, o capítulo apresenta o estudo crítico da ideia de representação, conforme abordado desde a Antiguidade pela postura cética, e o deslocamento do tema para a ideia da relação da representação com a realidade, partindo do registro do conhecimento propriamente dito em direção ao uso da linguagem, tal como entendido por Ludwig Wittgenstein. Nesse contexto, os(as) colegas professores(as) são convidados(as) a redobrar a atenção, pois, de acordo com os especialistas, não é uma tarefa simples inserir a filosofia de Wittgenstein em uma “teoria do conhecimento”. Alguns consideram até mesmo impossível. Entretanto, embora o filósofo austríaco buscasse explorar novas possibilidades conceituais, centradas na linguagem, mais do que em faculdades do sujeito cognoscente (como fez a maioria dos filósofos modernos, senão a totalidade deles), é inegável que a filosofia wittgensteiniana suscitou diferentes epistemologias, que, mesmo sendo “linguísticas”, não deixam de ser epistemologias. Por essa razão, este livro toma a liberdade

de introduzir elementos da filosofia da linguagem de Wittgenstein no capítulo sobre o conhecimento, embora seja conveniente deixar claro que essa apropriação não pode sugerir um compromisso de Wittgenstein com a afirmação de alguma estrutura subjetiva humana. Para lidar com esse aspecto, será de enorme proveito a leitura do livro Wittgenstein: o eu e sua gramática, de Sílvia Faustino de Assis Saes, e dos capítulos “Epistemologia”, “Filosofia da linguagem” e “Wittgenstein”, do livro Compêndio de filosofia, organizado por Nicholas Bunnin e E. Paul Tsui-James.

Também por contraposição à ideia de representação (na verdade, à concepção de conhecimento como elaboração do sujeito), o capítulo passa a uma apresentação geral de duas maneiras de entender o conhecimento como uma correlação estabelecida entre quem conhece (o sujeito) e aquilo que é conhecido (o objeto). Basicamente se apresenta a posição da fenomenologia de Edmund Husserl e o modo como a consciência deixa de ser descrita como uma operação ou uma “capacidade” do sujeito, para ser entendida como a correlação estabelecida no presente do encontro entre o sujeito e aquilo que é conhecido (“externo” ou “interno” ao sujeito). Aqui também os(as) colegas professores(as) são convidados(as) a redobrar a atenção, a fim de não sugerir que o conhecimento, segundo Husserl, é dado “na presença” da coisa conhecida, pois o que opera desse modo é o que se pode chamar de consciência ou o fluxo da consciência. O conhecimento, propriamente falando, dá-se na investigação que o sujeito opera sobre o objeto que ele “contém” (não como representação, mas como objeto intencional). Esse cuidado metodológico permite que se introduza um breve estudo sobre as semelhanças entre o pensamento fenomenológico e o pensamento medieval. Diferentemente do que muitos clichês afirmam sobre os autores medievais (considerando-os “empiristas”, “objetivistas” etc.), hoje não há mais dúvida de que conhecer, para muitos medievais, não é representar a coisa conhecida. Essa operação poderia ser associada à percepção física; o conhecimento propriamente dito ocorreria, como afirma Tomás de Aquino, por exemplo, quando quem conhece se dá conta da diferença entre si mesmo e aquilo que é conhecido, visto precisamente como conhecido. Em outras palavras, o conhecimento se dá por um retorno do pensamento sobre si mesmo. A respeito da fenomenologia de Husserl, um dos melhores estudos em língua portuguesa, se não o melhor, é a obra Crítica da razão na fenomenologia, de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, publicada em 1989. A respeito das relações entre a fenomenologia e o pensamento medieval, o melhor estudo em português é o livro de André de Muralt, Metafísica do fenômeno:

as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico, publicado em 1985. Sugere-se, ainda, a leitura do prefácio intitulado “Fenomenologia, antropologia e releitura da tradição filosófica em Edith Stein”, no livro Pessoa humana e singularidade em Edith Stein, de Francesco Alfieri, publicado em 2014. Por fim, com base na elucidação da participação do sujeito na atividade do conhecimento, o capítulo introduz temas clássicos de filosofia da ciência (a classificação ampla dos saberes em “ciências naturais” e “ciências humanas”, podendo a Matemática e áreas afins receberem qualificativos próprios tanto de uma como de outra dessas áreas, segundo a abordagem que se adote), a começar pela relativização operada por Albert Einstein na ideia de verdade objetiva no conhecimento natural, passando à distinção entre explicar e interpretar, tal como elaborada por Dilthey, até chegar às reflexões que articulam crítica social e produção do conhecimento.

Respostas e comentários

Página 121

Exercício A

1. A epoché é a atitude de contenção do juízo como forma de não dar assentimento diante de afirmações sobre a verdade das coisas. Com isso, segundo os céticos, evita-se toda perturbação e toda preocupação causada pela busca dogmática da verdade. A justificativa maior para defender a epoché vinha da constatação da diversidade de concepções filosóficas ao mesmo tempo conflitantes e defensáveis, levando a crer que, se a verdade existe, ela ainda não foi encontrada e talvez sequer possa ser encontrada.

2. Para Carnéades, como não é possível esclarecer e justificar os fundamentos mesmos de qualquer representação, uma vez que cada representação pressupõe aquilo que ela pretende representar, também não é possível decidir qual representação é realmente verdadeira ou falsa. Por essa razão, Carnéades fala apenas de conhecimento provável, ou de conhecimento mais provável e menos provável.

3. A crença justificada diz respeito à aceitação dos fenômenos e do apelo das sensações e percepções de modo involuntário, assim como a certa adesão à percepção comum do mundo, baseando-se em razões e justificativas que reduzam ao má ximo a possibilidade de erro, permitindo a ação social e uma vida tranquila.

Página 128

Exercício B

1. Ele pretendia mostrar que não existe um simples “ver” a realidade, mas um “ver como”. Nesse sentido, referindo-se ao desenho do pato-coelho, as frases “isto é um coelho” e “isto é um pato” podem ser ambas verdadeiras e falsas ao mesmo tempo, dependendo de como se vê a imagem.

2. Porque ele concebia a linguagem como representação do mundo, como se houvesse uma correspondência direta entre a linguagem e o mundo. Nesse sentido, as palavras exprimiriam diretamente as coisas; e as proposições seriam expressões de estados de coisas ou fatos.

3. No “segundo Wittgenstein”, a linguagem deixa de ser entendida em correlação direta com o mundo e passa a ser percebida como expressão de jogos estabelecidos pelos próprios falantes em função de seu modo de vida e de seu contexto. As regras desses jogos não são dadas pelo mundo ou pelo modo como são as coisas, mas pela prática linguística das pessoas. Dessa perspectiva, a linguagem revela mais sobre o modo de vida de seus falantes do que sobre o mundo.

Página 137

Exercício C

1. Não. Para Husserl, o conhecimento não se dá como uma representação produzida na consciência, mas como uma atividade da consciência que, por meio do fenômeno da coisa conhecida, encontra-se na presenç a da própria coisa conhecida.

2. Husserl não via sentido em falar da consciência como se ela pudesse ser entendida por si mesma, sem relação com os seus conteúdos. A experiência indica que não existe consciência “vazia”, pois “ter consciência” é sempre “ter consciência de algo”; é estar na presença de algo. Assim, mais do que um aparelho cognitivo à espera de alguma sensação que lhe permita formular uma representação, a consciência é a relação mesma de um sujeito com a presença daquilo que lhe aparece. Dessa perspectiva, os seres humanos não têm consciência, mas são consciência.

3. Husserl concordaria com o fato de que os nomes dados às vivências dependem dos usos linguísticos e dos costumes construídos socialmente. No entanto, para ele, mesmo quem nunca viveu a experiência da dor de dente pode compreender, em primeira pessoa, o significado dessa expressão, simplesmente porque, no ato intercomunicativo, pode ter consciência da dor de dente de alguém ao associar a ideia de dor, que já lhe é conhecida, à ideia de dente, que também lhe é conhecida. A essa “consciência da consciência

alheia” (expressão da filósofa Edith Stein), que ocorre mesmo quando duas pessoas não têm exatamente a mesma experiência (pois a experiência é sempre individual), Husserl chamava de empatia ou intropatia. A empatia relaciona-se diretamente com a possibilidade humana chamada por Husserl de intersubjetividade, que consiste em poder perceber que os conteúdos de experiência não são “inventados” nem “construídos” pelos indivíduos (ou pela linguagem), uma vez que, apesar de as experiências serem sempre individuais e incomunicáveis em seu caráter de ato singular, elas apontam para coincidências de conteúdo que podem ser observadas por diferentes sujeitos. Por exemplo, duas pessoas têm suas experiências individuais sobre a cor vermelha de determinado objeto. As experiências das duas pessoas são incomunicáveis em si mesmas, mas, pela percepção de que as duas pessoas entendem a expressão de suas experiências, elas se dão conta de que nem a cor vermelha do objeto nem o próprio objeto foram produzidos por elas. Em outras palavras, a “autonomia” da cor e do objeto é garantida pelo encontro comunicativo ou intersubjetivo.

Página 141

Exercício D

1. O fato de que ele experimentou a mesma decepção cét ica com as filosofias e a mesma dificuldade na busca da verdade. Evitar a ilus ão da possibilidade de conhecer a verdade das coisas, confiando apenas nos fenômenos, pareceu, ent ão, mais prudente a ele, pois evitaria a perturbaç ão

2. Agostinho constatou que, se a busca filosóf ica se concentrar apenas no nível dos discursos e das proposições sobre o mundo, realmente será dif ícil decidir entre o melhor discurso ou a melhor proposição. Nesse sentido, seria mais prudente ser cético. Porém, se dermos a devida atenção ao ato mesmo de pensar ou à possibilidade mesma de elaborar discursos ou proposições, constataremos que esse ato de pensar aparece como uma verdade da qual não é possível duvidar. Podemos duvidar da verdade das diferentes expressões do pensamento, mas não fará sentido duvidar do fato de que pensamos.

3. Porque, segundo Tomás, um conhecimento verdadeiro não é uma simples adequação do intelecto à coisa conhecida, mas a atividade refletida de pronunciar-se sobre o mundo com base na percepção da diferença entre aquilo que o mundo é e aquilo que se pensa sobre ele. O conhecimento só ocorre quando alguém

percebe as coisas como realidades “existentes para o intelecto”, ou seja, quando as coisas são percebidas em sua diferença com relação a quem as percebe. Se é assim, o conhecimento, segundo Tomás, não é um retrato direto da realidade, mas passa pela percepção que o intelecto tem da sua diferença própria em relação àquilo que ele conhece.

Página 146

Exercício E

1. Para Einstein e Infeld, mais do que constatar coisas (como ao abrir um relógio), conhecer cientificamente significa elaborar um modo de unificar dados em uma construção que os explique. Explicar, porém, é uma atividade que vai além de conhecer as partes ou os elementos em que os dados podem ser divididos. Essa atividade se parece mais com o estar diante de um relógio fechado, cujo funcionamento interno é apenas imaginado por nós. Mesmo se abríssemos o relógio, só veríamos partes; não explicaríamos o seu mecanismo. Explicar requer ir além da simples observação, exigindo um passo adiante: a criatividade de propor uma teoria que correlacione as partes e invente um porquê para o resultado que elas produzem.

2. Para Kuhn, a objetividade cient í f ica depende da percepção de cada cientista em relação ao mundo, uma vez que observar a realidade depende sempre de um “como” se observa. Esse modo de observar depende, por sua vez, das vivências e das crença s sociais de cada época. Kuhn observou que as ci ê n cias operam por meio de grandes rupturas, que ele chamou de revoluçõe s e que também s e mostram em cumplicidade com as mudanç a s histór icas da sociedade. Diante do surgimento de certas anomalias que não podem ser explicadas, gera-se uma crise em determinado modelo cient íf ico, levando os cientistas à criação de novos paradigmas, até que surjam novas crises e anomalias.

3. Porque o ideal de verifica ç ã o d e um enunciado equivaleria a pensar que as infinitas possibilidades naturais são pré - conhecidas no enunciado “verificado” e permanecer ão a s mesmas em todos os tempos, o que é m anifestamente problem á tico. Em vez de defender a verificaç ão, Popper defende a falseabilidade ou a possibilidade de que um enunciado seja construído de modo que possa ser realmente comparado com a experiência sensível e eventualmente refutado por ela.

Página 154

#JovensEmAção

Professor(a), por haver atividades fora do ambiente

escolar, é importante orientá-los no planejamento das tarefas e ações, bem como garantir que os adultos responsáveis estejam cientes de toda a agenda de compromissos dos jovens, se possível com ao menos um acompanhando-os, para que fiquem protegidos de qualquer risco.

Página 155

Retomando

1. Não, porque sua ênfase na consciência não implicava afirmar que o mundo ou as coisas exteriores são criações da consciência. No dizer de Husserl, investigar o mundo tal como ele aparece para a consciência (sem interesse pelo caráter f ísico do mundo) é tarefa da filosofia fenomenológica. Isso não significa afirmar que é a consciência que produz o mundo; cabe à ciência ocupar-se com as coisas e procurar explicá-las fisicamente. Filosofia ou atitude crítica, por um lado, e ciência ou atitude “natural”, por outro, constituiriam a dupla orientação de que a consciência é capaz. A orientação natural, comum e mesmo ingênua (despreocupada com questões filosóf icas relativas ao funcionamento da consciência), corresponde ao olhar dirigido ao mundo e equivale à percepção sensível, fundamentando, por isso, o trabalho da ciência. A orientação filosófica ou fenomenológica busca entender o modo mesmo de ocorrer da consciência, e é nesse sentido preciso que ela deixa de concentrar-se sobre as coisas empíricas e as põe entre parênteses, fixando sua atenção no fluxo da consciência.

2. Embora o uso comum do termo empatia sirva para designar a simpatia com quem encontramos ou mesmo a compaixão com quem sofre, tecnicamente ela designa a experiência específica (sui generis ) de sermos capazes de perceber o que vive outrem sem que tenhamos exatamente a mesma vivência (conhecemos o objeto da vivência, o conteúdo).

3. Avicena pretendia mostrar que a afirma ç ã o d a pr ó p ria exist ê n cia e a identidade da consci ê n cia com si mesma independe do contato dos sentidos com coisas singulares.

4. Porque o primeiro enunciado não pode ser comparado com a realidade e refutado por ela, uma vez que não é possível encontrar, na natureza, um caso de ser humano imortal. Já o segundo enunciado é falseável, porque ele é formulado de modo que o seu conteúdo pode ser avaliado em termos estritamente naturais; ele é aberto à refutação, porque é possível que se encontre um corvo que não seja preto.

5. Porque, segundo Marcuse, embora seja impossível negar o ganho que as luzes do pensamento moderno

trouxeram à humanidade (por exemplo, com a ideia de uso individual da razão, de valor universal do ser humano, de universalidade da experiência, de capacidade de sempre melhorar etc.), é preciso reconhecer as sombras (como o resultado da manipulação em massa dos indivíduos, a perda da paixão como algo essencialmente ligado à razão, a transformação do prazer em aspecto apenas secundário da vida e um motor do consumo de bens materiais).

6. A percepção de que, operando com a ideia de que a natureza segue leis fixas e imutáveis, as Ciências Naturais mostravam-se insuficientes para investigar o ser humano, uma vez que ele revela a possibilidade de dar sentido à sua própria existência, superando, em alguma medida, os próprios condicionamentos naturais. Para corresponder à e specificidade humana, surgiram as Ciências Humanas (inicialmente chamadas de ciências do espírito).

7. A diferença entre explicar e compreender reside no tipo de tratamento dado aos fenômenos estudados: enquanto “explicar” consiste em analisar os elementos que compõem as realidades estudadas e em identificar as causas que levam esses elementos a produzir seus efeitos correspondentes (em termos de leis ou regularidades); “compreender” consiste em tratar os fenômenos em seus conjuntos, quer dizer, em unidades maiores e produtoras de novos sentidos exatamente como conjuntos. Dilthey atribuía a explicação às Ciências Naturais e reservava a compreensão às Ciências Humanas.

8. A Psicologia pode se concentrar apenas nos aspectos causais das experiências humanas, buscando mostrar por que elas ocorrem e baseando-se em um modelo explicativo segundo o qual uma experiência gera sempre determinadas consequências. O trabalho de quem exerce a Psicologia poderá encontrar essas relações de causa e efeito; sua psicologia será, então, uma ciência explicativa e natural. Entretanto, a Psicologia também pode ser descritiva e analítica, isto é, pode tratar o ser humano como um conjunto de fatores bioquímicos e físicos (constituição corpórea), psíquicos (vivências perceptivas e emocionais) e espirituais (vivências de pensamento reflexivo e de liberdade). O trabalho do psicólogo, de acordo com essa segunda metodologia, será encontrar ligações entre as experiências, além de ver a experiência no singular (a experiência individual), sem a interpretar como apenas mais um caso das relações entre causa e efeito. Pode considerar também as influências tanto naturais quanto sociais sobre as pessoas

e descrever as conexões espontâneas que aparecem na sua experiência como fontes de sentido não necessariamente preestabelecidas. Trata-se da concepção da pessoa como ser que pode operar com seus condicionamentos e participar do sentido dado à própria existência. De acordo com esse modelo, a Psicologia será uma Ciência Humana.

Dissertação

1. A estratégia proposta para a dissertação (contrapor o racionalismo e o empirismo considerando o pensamento cartesiano como tese, o pensamento humiano como antítese e a filosofia kantiana como síntese) permite concentrar a atenção não apenas nos fundamentos do racionalismo e do empirismo, mas sobretudo na filosofia crítico-transcendental de Kant. Espera-se que os(as) estudantes beneficiem-se das orientações dadas na página 297 e problematizem o racionalismo (ênfase na prioridade da razão ou das potencialidades anímicas no conhecimento) por meio da postura empirista (ênfase na origem do conhecimento na ativação dos cinco sentidos), concluindo com a “síntese” kantiana que inclui tanto a importância das potencialidades do sujeito (categorias do entendimento) como a necessidade da base experiencial-empírica (as formas da sensibilidade) e resulta na concepção do sujeito transcendental.

2. Como em uma dissertação de síntese filosófica o objetivo é tornar claras as articulações feitas no tratamento de um tema, é importante lembrar que o fio condutor da apresentação da concepção de conhecimento de Wittgenstein e Husserl, tal como feita neste capítulo, é o compromisso com uma “estrutura” subjetiva (alma, consciência, pensamento, subjetividade). Wittgenstein fixa-se na linguagem como modo de ser tipicamente humano e, nesse sentido, não se compromete com a afirmação de algo como uma subjetividade (consciência, alma, pensamento). Husserl, por sua vez, admite comprometer-se com a afirmação da subjetividade, pois lhe parecia coerente investigar as capacidades ou potencialidades dadas pela “natureza humana” para a atividade de perceber/conhecer (e mesmo para servir-se da linguagem). Espera-se, então, que os(as) estudantes, beneficiando-se das orientações fornecidas na página 104, apresentem esse fio condutor e as razões que levaram Wittgenstein a tirar o foco da subjetividade na análise do conhecimento (respeito ao mundo tal como o mundo se mostra na linguagem), bem como as razões de Husserl para manter o foco da análise do conhecimento nas condições subjetivas (consideração das potencialidades humanas e concepção da

consciência não como polo que representa o mundo, mas polo de uma relação presente com aquilo que é conhecido).

3. Nessa dissertação, é fundamental que os(as) estudantes sejam capazes de destacar os elementos articulados por Kant em sua fundação de uma nova concepção do conhecimento e tomados do empirismo de Hume e do racionalismo de Descartes. Se Hume “acertou” em sua ênfase na import ância da experiência sensível, Descartes também “acertara” ao apontar para estruturas inatas que permitem conhecer. A novidade de Kant est á em coordenar os dois “acertos” em sua filosofia transcendental. Espera-se que, retomando os dados expostos no capítulo para apresentação do pensamento kantiano, os(as) estudantes sejam capazes de explicá-lo em referência a Descartes e Hume.

4. Espera-se que os(as) estudantes, inspirando-se nas orientações dadas na página 297, reproduzam à sua maneira os pensamentos de Thomas Kuhn e Karl Popper em relação à natureza do conhecimento científico, chegando à “conciliação” ou “síntese” de ambos no pensamento de Imre Lakatos. Assim, o fio condutor que articula os três momentos é o tema da objetividade do conhecimento científico: se em Kuhn não há objetividade ou pontos de vista neutros (tese), em Popper defende-se o encontro de uma objetividade pela possibilidade de falsear enunciados (antítese); longe, porém, de serem posições contraditórias, os trabalhos de Kuhn e Popper mostram-se conciliáveis ou mesmo complementares, como fez Lakatos (síntese) ao mostrar que, se Kuhn compreendia que a ciência progride por refutação de projetos de pesquisa, então o princípio da falseabilidade de Popper é preservado.

Sugestões de leitura

• BUNNIN, Nicholas; TSUI-JAMES, E. Paul (org.). Compêndio de filosofia. Tradução: Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2002.

Obra sobre as disciplinas filosóficas, com abordagem eminentemente lógica.

• MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. Crítica da razão na fenomenologia. São Paulo: Nova Stella, 1989.

Estudo brasileiro mais destacado sobre a fenomenologia husserliana.

• SAES, Sílvia Faustino de Assis. Wittgenstein: o eu e sua gramática. São Paulo: Ática, 1995. (Ensaios, v. 140).

Estudo da crítica wittgensteiniana à ideia de representação.

Capítulo 5 – Sentido da existência

Introdução

Tomando como ponto de partida a distinção entre sentido e significado, o capítulo investiga três possibilidades de enunciar algum ou nenhum sentido para a existência: (1) não é possível falar sobre o sentido da existência (por exemplo, o “primeiro” Wittgenstein); (2) é possível falar sobre o sentido da existência (Jean Grondin; barão d’Holbach; Platão; filósofos religiosos); (3) a existência não tem sentido, mas é absurda (Schopenhauer).

Objetivos

Tratar de maneira filosófica o tema do sentido da existência, esclarecendo que o primeiro papel da Filosofia não é oferecer uma resposta para a pergunta sobre tal sentido, mas investigar o que nela está implicado e analisar se há uma possibilidade estritamente racional de justificar alguma resposta a ela dada.

BNCC

Competências gerais: 1, 2, 4, 6, 8 e 10.

Competências específicas: 1, 4 e 5.

Habilidades: EM13CHS101, EM13CHS102, EM13CHS103, EM13CHS104, EM13CHS105, EM13CHS106; EM13CHS401; EM13CHS504.

Orientações didáticas

A estratégia do capítulo é explorar três atitudes filosóficas “clássicas”, dando a estrutura mesma do texto: (1) não é possível falar sobre algo como um sentido da existência; (2) é possível falar filosoficamente sobre o sentido da existência e também justificar racionalmente essa fala; (3) afirmar que a existência é absurda, ou seja, não tem sentido. O núcleo dessa abordagem é o esclarecimento da diferença que se pode estabelecer entre sentido e significado

É importante ter em mente que essa diferença (tal como assumida neste capítulo) não seria adotada por todos os filósofos. Por isso mesmo, trata-se de uma diferença estabelecida de maneira ampla, a fim de tomar o termo sentido como indicação de uma experiência em “segundo grau”, isto é, que vai além do grau primeiro da percepção imediata das coisas, requerendo um trabalho que alia observação e reflexão. Já significado remeteria aos conteúdos que percebemos diretamente (independentemente da preocupação com o estatuto da percepção).

Como estrat é gia complementar, insere-se uma

breve reflex ã o sobre o modo como os textos b í blic os são muitas vezes utilizados como fonte de debate cient í fico a respeito da origem e do destino do mundo. Cabe situar filosoficamente, e com grande respeito pela sensibilidade religiosa dos(as) estudantes, o papel dos textos b í blic os no campo do sentido que cada cidad ã o pode dar à exist ê ncia, e não no campo de um significado que seria ó bvio, embora em diferentes contextos esse seja o teor identificado na B íblia. Depreende-se, portanto, a necessidade de uma atitude duplamente respeitosa, pois, a rigor, não h á nada de irracional ou antifilos ó fico em ter uma fé religiosa e pautar a exist ê ncia por um sentido encontrado nos textos b í blic os. O que se apresenta como inadequado é pretender que o discurso cient í fico e o discurso b í blic o sejam do mesmo tipo, o que resultaria em contradi çã o. Ao se explicitar a diferen ç a entre os dois discursos, é poss í vel pensar em formas de di á logo entre ambos.

Respostas e comentários

Página 159

Exercício A

1. No exemplo mencionado, o significado consiste em compreender cada um dos símbolos que compõem uma placa. O sentido, por sua vez, diz respeito a associar esses símbolos a uma ideia mais ampla, que configura a finalidade da utilização da placa. Assim, o significado trata da identidade básica de alguma coisa, ao passo que o sentido aponta para sua razão de ser.

2. Pode-se expressar o sentido de algo por meio de sua origem, ou seja, como surgiu ou de onde veio, e por meio de sua finalidade, isto é, o caminho que algo tende a seguir, que está relacionado ao porquê de sua existência.

Página 174

Integrando com… Ciências da Natureza e suas Tecnologias

Produções pessoais. Espera-se, com a atividade, esclarecer que a atividade filos ó fica parte, em geral, dos resultados dos outros saberes, com especial relevâ ncia para a ci ê ncia. Com a compara çã o de teses cient í ficas, tal como é proposto pelo exerc í cio, espera-se que os(as) estudantes percebam o modo como são constru í das suas justificativas. Prestar esse tipo de aten çã o equivale a desconstru í -las.

Página 175

Para refletir e argumentar

1. Para Rodin, a arte tem uma dupla função. A primeira é de nos arrancar da escravidão da vida prática, uma vez que as obras de arte nos mostram o mundo encantado da contemplação e do sonho. Isto é, a arte nos tira do automático e nos coloca em modo reflexivo, contemplativo. A segunda e principal função é indicar aos seres humanos o sentido da existência ao nos mostrar o caminho que só é possibilitado pela primeira função.

2. De acordo com Auguste Rodin, as obras de arte não têm aplicabilidade prática imediata, tais como a vestimenta, o abrigo ou os alimentos. O que não quer dizer que a arte seja inútil. Ela é fundamental para aquilo que está além do automático.

3 e 4. Respostas pessoais.

Página 176

Retomando

1. De acordo com Wittgenstein, seria uma pergunta falsa porque não teria como ser respondida. Ou seja, não teríamos como nos pronunciar sobre ela porque não temos condições racionais para dar um tratamento adequado a esse tema.

2. Para os filósofos contrários às ideias de Wittgenstein, por exemplo, não haveria necessidade daqueles elementos que ele expôs como fundamentais, tais como: “O que é a existência como um todo?”. Além disso, não seria preciso criar um critério para compreender sua finalidade, porque os elementos partem de outros pressupostos, como o de não tomar a existência como um bloco, ou um todo, mas sim como o ato ou a experiência de existir, sobre a qual podemos nos pronunciar.

3. O sentido imanente é dado por uma explicação do mesmo nível de realidade considerado, ou seja, no nível dos sentidos. Já o sentido transcendente é dado por uma explicação que vai além do nível de realidade considerado.

4. Porque os animais, mesmo sem ter consciência de si, sem ter que refletir sobre o sentido da existência e sem estipular finalidades a alcançar, existem e seguem o movimento do existir.

5. Não. Aquilo que é transcendente, ao ser explicado, sempre se dá pela imanência, ou seja, é captado pelos sentidos na nossa experiência. O transcendente, então, muitas vezes se manifesta no mundo, como a justiça, a bondade e a beleza.

7. A vanidade, ou vaidade da existência, prova que a existência não tem valor em si. Nesse sentido, os seres humanos têm necessidades e carências difíceis de serem satisfeitas, pois, uma vez satisfeitas, só resta o mergulho no tédio, isto é, o sentimento de vazio da vida.

8. Conforme a perspectiva de Camus em relação aos problemas do mundo, podemos nos perguntar: como poderia haver um sentido bom da existência, sendo que coisas más (ou terríveis) acontecem com pessoas boas? O sofrimento não é justificado, não tem explicação.

Atividade complementar Como forma de investigar filosoficamente um documento não tecnicamente filosófico, leia o seguinte conto, tendo em vista elementos imponderáveis da existência, os quais recebem sentidos diferentes em função das vivências dos indivíduos e dos grupos.

Diferentes faces da vida – Conto chinês anônimo

Durante uma feira, na primavera, um camponês chinês comprou uma bela égua. Todas as suas economias foram investidas nela. Mas, desgraça! Mal o camponês a colocou atrás das cercas de seu quintal e, na mesma noite, ela escapou e fugiu na direção da fronteira dos mongóis, com quem os chineses não tinham boas relações. Nem adiantava sonhar em ir atrás dela.

Os vizinhos vieram consolá-lo. Mas esse camponês era sábio.

— Nuvens no Céu trazem, às vezes, uma chuva benéfica para a agricultura. Assim também uma coisa boa pode nascer de uma desgraça. Deixemos a vida seguir seu ritmo. Quem sabe o que acontecerá?

De fato, alguns dias mais tarde, a égua voltou, acompanhada de um belo cavalo dos mongóis.

Todo o vilarejo veio admirar e felicitar o camponês por sua boa sorte.

— É... Talvez seja mesmo sorte. Mas quem conhece o fundo das coisas? O Sol que nos ilumina pode também nos queimar...

Desgraça, o futuro lhe deu razão. Seu filho ficou encantado com o cavalo e passou horas tentando montá-lo. Mas o animal era arisco. Num salto, jogou o filho do camponês à terra, quebrando-lhe uma perna. Vieram novamente os vizinhos, agora à cabeceira do menino. Os comentários eram sobre a falta de sorte do camponês.

Para piorar, a época da colheita aproximava-se, mas o menino não poderia ajudar o pai.

O camponês, então, respondeu com sabedoria: — Este mundo está em perpétua mudança. Quem sabe se as calamidades não se tornam bênçãos? Pensem na lava dos vulcões... Ela devasta tudo o que encontra pela frente, mas deixa atrás de si uma camada muito fértil.

Antes mesmo da colheita, a China e os mongóis entraram em guerra. Todos os jovens do vilarejo foram convocados, menos o filho do camponês, que estava de cama. Ele foi um dos únicos a sobreviver ao massacre da guerra. Sua vida foi salva por uma perna quebrada!

CONTO chinês anônimo. In: PIQUEMAL, Michel. Les philo-fables. [As filofábulas]. Paris: Albin Michel, 2008. p. 45-47. Tradução nossa.

Texto complementar

O sentido da vida humana é a busca da felicidade

A questão da finalidade da vida humana foi colocada inúmeras vezes; jamais obteve uma resposta satisfatória e talvez nem sequer a admita. [...] só́ a religião sabe responder à pergunta sobre a finalidade da vida. [...]

Por essa razão, passaremos a uma pergunta mais modesta: o que os próprios seres humanos, através de seu comportamento, revelam ser a finalidade e o propósito de suas vidas? O que exigem da vida, o que nela querem alcançar? É difícil errar a resposta: eles aspiram à felicidade, querem se tornar felizes e assim permanecer. Essa aspiração tem dois lados, uma meta positiva e outra negativa: por um lado, a ausência de dor e de desprazer; por outro, a vivência de sensações intensas de prazer. Em seu sentido literal mais estrito, “felicidade” refere-se apenas à segunda. Correspondendo a essa bipartição das metas, a atividade dos seres humanos se desdobra em duas direções, segundo busquem realizar [...] uma ou outra dessas metas.

Como se percebe, o que estabelece a finalidade da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. [...]

FREUD, Sigmund O mal-estar na cultura. Tradução: Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 61-62.

Sugestões de leitura

• BOFF, Clodovis. O livro do sentido: crise e busca de sentido hoje: parte crítico-analítica. São Paulo: Paulus, 2015. v. 1.

Consideração geral sobre o tema do sentido tratando-se do sentido da vida.

• BRETON, David Le. Antropologia dos sentidos. Tradução: Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2016.

O autor explora o sentir e todos os sentidos como pensamento dentro do mundo.

Capítulo 6 – Natureza, cultura e pessoa

Introdução

A Natureza como máquina e organismo, a Cultura como oposta ou aliada à Natureza, o indivíduo como natural ou construído. Essas oposições que o capítulo explora recebem – cada uma delas – um tratamento filosófico e refletem-se na concepção de pessoa como ser psicofísico e cultural, singularidade que tem um modo único de concretizar o que recebe de sua espécie.

Objetivos

Estudar a distinção entre Natureza e Cultura, tema que se tornou clássico a partir do final da Modernidade, considerando razões que permitem opor os dois conceitos, identificando um domínio natural e um domínio cultural na experiência humana, bem como razões que permitem associá-los (por exemplo, pelo conceito de pessoa, que enfatiza o modo humano de ser, isto é, o modo humano de viver aquilo que se recebe da espécie natural).

BNCC

• Competências gerais: 1, 2, 3, 4, 5, 7, 9 e 10.

• Competências específicas: 1, 2, 3, 4 e 5.

• Habilidades : EM13CHS101, EM13CHS102, EM13CHS103, EM13CHS104, EM13CHS105, EM13CHS106; EM13CHS206; EM13CHS301, EM13CHS303; EM13CHS401, EM13CHS404; EM13CHS501, EM13CHS502.

Temas contemporâneos transversais

Ciência e Tecnologia (Ciência e Tecnologia); Multiculturalismo (Diversidade Cultural).

Orientações didáticas

Partindo da concepção que se tornou corriqueira no pensamento e no vocabulário cotidianos, segundo a qual a Natureza seria regida pela lei da concorrência ou da adaptação dos seres mais fortes, o capítulo introduz a possibilidade científica de identificar também a colaboração como lei natural. Com base nesses dois

modelos explicativos da Natureza, passamos à especificidade da reflexão filosófica como investigação do modo como se constroem diferentes modelos para exprimir o conhecimento da Natureza.

Ap ó s apresentar o modelo mecanicista, o cap ítulo aborda o modelo que, de certa maneira, poderia ser chamado de vitalista. A estrat é gia é mostrar a relatividade desses tipos de descri çã o, articulando tal relatividade com a possibilidade de não dissociar Natureza e Cultura ao menos no que concerne ao ser humano. Nesse contexto, o conceito de pessoa – tradicionalmente empregado em Filosofia desde a definição dada por Bo é cio (“pessoa é uma subst â ncia individual de natureza racional”), embora criticado por certos autores contempor â neos – aparece como uma forma de referir-se a cada indiv í duo humano como um ser dotado de um modo espec í fico (cultural e singular) de realizar o que tem em comum com sua esp é cie (natural).

A singularidade permite identificar, em cada indiíduo, um núcleo ou um “ponto de irradiação” de onde brota o modo inteiramente único e “irrepetível” com que cada pessoa é sua animalidade e sua humanidade. A metáfora do coração retrata bem esse núcleo, mas cabe enfatizar que coração não deve ser associado ao músculo cardíaco nem à afetividade (por oposição à razão), mas ao que é próprio de cada indivíduo em seu modo de existir, operando com fatores determinantes de ordem “natural” e “cultural”.

Respostas e comentários

Páginas 179-180

Para refletir e argumentar

Produções pessoais. Espera-se que os(as) dois (duas) estudantes debatedores(as) consigam bons textos e que o(a) avaliador(a) possa fazer observações pertinentes.

Página 181

Professor(a), a argumentação de Hannah Arendt baseia-se, principalmente, na falta de base para afirmar que, se algo ocorre entre os animais não humanos, então, a fortiori, ocorre também com os humanos. Sua argumentação recorre também, de maneira subjacente, à liberdade humana, cujo melhor símbolo é a decisão de trapacear (que pressupõe análise de uma situação, vontade e decisão de contrariá-la).

Página 185

Integrando com… Ciências da Natureza e suas Tecnologias

Com base na divulgação da teoria da evolução de

Darwin, muitos pensadores e cientistas passaram a resumi-la com a crença de que a lei da evolução é a lei do mais forte, e que a concorrência é a lei fundamental da Natureza. No entanto, pesquisas recentes mostram que a concorrência não é o único nem sequer o principal fator presente no comportamento de plantas e de animais gregários. Para além da competição, a colaboração mútua e a decisão em conjunto apareceram como fatores mais presentes e mais importantes para a conservação das espécies e do mundo natural.

A proposta dessa atividade é um diálogo da turma com os(as) professores(as) de Ciências da Natureza e suas Tecnologias, a fim de construir uma troca de informações e enriquecimento mútuo.

Página 188

Exercício A

1. Mecanicismo é a teoria filosófica e cientí fica, surgida entre os séculos XVII e XVIII, que busca entender a Natureza através da comparação com o funcionamento de uma máquina. Segundo essa teoria, a Natureza, tal como uma máquina, funciona por meio de leis constantes e est áveis, que podem ser conhecidas e manipuladas pelo ser humano. Nesse sentido, a própria Natureza passa a ser entendida como uma grande reserva de materiais à disposição para o uso e a satisfação humana.

3. A “democracia animal” dificulta o entendimento mecanicista da Natureza porque a cooperação dos indivíduos de uma mesma espécie, como a decisão consensual de um grupo que “vota” coletivamente suas “escolhas”, revela a possibilidade do improviso e de certo cálculo de possibilidades, mesmo em seres irracionais. Esse dado põe em questão a crença de que a Natureza é regida por leis necessariamente fixas e completamente est áveis e regulares.

4. Sim. Como expõe o biólogo inglês Rupert Sheldrake, h á muitos indícios de que o “funcionamento” da Natureza não segue necessariamente leis sempre est áveis e constantes, como testemunha o fato de cientistas terem de ajustar, de tempos em tempos, as “constantes” com que medem fenômenos naturais. Se há a necessidade de ajuste, é porque há mudanç a s no funcionamento da Natureza.

Página 195

Exercício B

1. A diferença entre pessoa e indivíduo reside no tipo de relação estabelecida com a espécie: enquanto um indivíduo é apenas um membro de determinada

espécie (inclusive cada mineral, cada planta e cada animal é um indivíduo no interior de seus grupos), uma pessoa é um indivíduo tipicamente humano, ou seja, um indivíduo que não repete simplesmente sua espécie, mas um modo único e “irrepetível” de ser, dando coloração e características próprias ao seu modo de realizar a sua espécie, por sua capacidade de dar sentido, refletir e escolher.

2. Agostinho se baseou no fato de os seres humanos serem capazes do ato de conhecer e de fazer escolhas. Essas capacidades revelam uma estrutura especí fica que diferencia o ser humano dos outros seres vivos. Ele observou que os minerais apenas existem; as plantas existem e vivem; os animais existem, vivem e sentem; e os seres humanos existem, vivem, sentem, pensam e escolhem refletidamente.

3. Além de existir (por possuir corpo, assim como tudo na Natureza, inclusive os minerais), a alma humana vive (mant é m a f un ç ã o nutritiva ou vegetativa, presente também em plantas e animais) e sente (exerce a funç ão sensitiva, presente também nos animais com sensibilidade). Por fim, existe uma função que só os seres humanos possuem: a capacidade de pensar e fazer escolhas, de dar sentido ao mundo (a alma racional ou espiritual).

4. Agostinho usa a met áfora para representar a vida e as funções da alma por meio da força ou da “tens ão” presente em uma corda de instrumento musical. A tens ão é capaz de fazer a corda realizar as suas capacidades e tornar-se efetivamente o que ela é, produzindo som. A corda frouxa seria como um corpo sem vida, sem alma, sem dinamismo e movimento pr óprio, ou seja, sem a sua fun ç ão pr ó p ria (produzir som). O mesmo ocorre com o corpo sem alma: ele se torna incapaz de realizar as suas potencialidades. Segundo essa met áfora, a alma não é algo que “est á” em alguma “parte” do corpo, mas uma espécie de forç a , vibraç ão ou tens ão que atravessa e vivifica o corpo.

5. Porque afirmam não ter base sensorial (informações vindas dos cinco sentidos, entendidos como única fonte de conhecimento) para observar a alma. Enquanto Agostinho de Hipona observava efeitos que podiam ser ligados à alma como fonte deles, assim como falamos muita coisa do Sol com base nos efeitos, sem termos tido uma percepção sensível da totalidade do Sol. Mas alguns pensadores contemporâneos insistem que, para falar de alma, precisam ter uma percepção sensível dela.

Páginas 196-197 Integrando com… Sociologia, Geografia e Arte

1. A Cultura pode ser entendida como um prolongamento ou como um desenvolvimento de capacidades e possibilidades presentes na pr ó pr ia Natureza. Dessa perspectiva, a possibilidade mesma da Cultura não significa necessariamente algo dissociado da Natureza. Porém, como ser cultural e diferentemente dos outros animais, o ser humano não “nasce sabendo”; ele nasce apenas propenso e com certas potencialidades; precisa aprender e desenvolver suas capacidades por meio de sua inserção em um meio social criativo.

2. Não. E a diferenç a entre animais humanos e não humanos também não se reduz a uma mera diferenç a de grau (grau de animalidade). Há uma diferenç a mais profunda, pois, apesar dos elementos culturais vividos por animais não racionais, eles não revelam uma reflex ão intelectual nem a capacidade de pensar sobre si mesmos e de analisar o modo como se dá o pensamento. A reflexão intelectual vai além da simples percepç ão de causas e efeitos (algo que os animais certamente t êm); ela é da ordem do “pensamento do pensamento”, e, como tal, leva a identificar uma diferenç a de qualidade entre os humanos e os não humanos.

Página 198

Retomando

3. Resposta pessoal. Contudo, as três frases contrariam a continuidade entre Natureza e Cultura, porque são exemplos de certa “naturalização” da Cultura, como se determinados comportamentos fossem naturais, próprios e intrínsecos de cada povo. Além disso, elas fazem uma generalização cultural apressada, pois a Cultura não é, a rigor, algo que determina completamente o comportamento de todos os indivíduos.

Página 199

Dissertação

Professor(a), haverá tantas possibilidades de resposta quantos são suas estudantes e seus estudantes, pois pedimos a cada um que faça sua própria dissertação. Haverá, porém, elementos comuns nos textos, porque houve intercâmbio de informações; e é importante incentivar e dar ocasião para o protagonismo dos jovens como autores de texto escrito, sobretudo porque a produção textual é uma habilidade ameaçada em nossos tempos, quando mesmo a digitação com as

duas mãos já não é mais uma prática comum. No tocante ao conteúdo da questão desta atividade, Edith Stein, tanto como Agostinho, serve-se de metáforas espaciais para falar do cerne da alma, porque ela sabe que o pensamento se apoia em dados físicos e imaginados. Todavia, ela queria apontar para uma experiência que não se condiciona pela espacialidade, a experiência de se sentir companheiro de jornada com outros membros da mesma espécie e, ao mesmo tempo, um ser singular, o único capaz de saber realmente o que sente e o que pensa. Edith Stein, depois de observar que cada indivíduo realiza a espécie humana de um modo único e irrepetível, concluía que o modo único de ser não decorre da matéria de que é feito o corpo, pois a matéria é comum com os outros membros da espécie, chegando a ser idêntica em alguns casos. Esse modo só pode decorrer da vitalidade ou da alma. Mas se a alma, porém, do ponto de vista de suas possibilidades ou capacidades, idêntica para todos, Edith Stein aponta a singularidade de cada indivíduo defendendo haver em todo indivíduo um cerne ou um “fundo” de “onde” nasce a irradiação do ser singular de cada pessoa. É o que Edith Stein, retomando uma longa tradição filosófica, chama de cerne da alma, núcleo da pessoa e alma da alma. Trata-se de um recanto íntimo e “sagrado”, no qual só o indivíduo pode entrar; “lugar” onde a pessoa se “sente em casa”.

Atividade complementar

Projeto interdisciplinar

A naturalidade ou a historicidade das diferenças

Na classificação habitual das ciências, cabe às Ciências Humanas investigar os elementos específicos que levam a entender o ser humano como “ser natural-cultural”, ou seja, como ser em que se encontram elementos naturais e culturais, permitindo que a vida humana seja entendida como maneira de viver culturalmente aquilo que se refere à constituição natural.

Esta atividade propõe explicitar o encontro da Filosofia com as Ciências Humanas, tomando como norte o tema das diferenças entre indivíduos e entre grupos sociais.

1o passo

Em acordo com os(as) professores(as) de Geografia, História e Sociologia, solicitar que cada qual, em uma de suas aulas, apresente abordagens típicas de suas respectivas áreas para tratar da seguinte questão: no estudo da vida em sociedade, é possível afirmar que os indivíduos e os grupos possuem características

naturais ou é necessário afirmar que os seres humanos sempre são resultado de seu ambiente cultural?

É importante que cada professor(a) explicite criticamente as razões que justificam possíveis abordagens em suas respectivas áreas. Em Geografia, por exemplo, pode-se explorar o aspecto da relação entre sociedade e espaço (a transformação do espaço pela sociedade e as imposições que o espaço determina à sociedade) de uma perspectiva liberal, apontando para a naturalidade das diferenças, e de uma perspectiva marxista, apontando a historicidade das diferenças. Em História, pode-se examinar as concepções segundo as quais a História da humanidade pode ser entendida como o desenrolar da vida de sociedades compostas de membros naturalmente desiguais (visão liberal da História como progressão natural) ou como o conjunto das formas de organização em torno de conflitos e de interesses econômicos (visão marxista da História como conjunto de diferentes modos de produção e da luta de classes). Em Sociologia, pode-se analisar os fenômenos sociais concebidos como resultados do encontro de indivíduos que realizam trocas segundo suas possibilidades (visão liberal das diferenças naturais e da coabitação das diferenças) ou como resultados de uma dinâmica de exploração (visão marxista do modo de produção capitalista, por exemplo). Concentrar-se nas duas abordagens (liberal e marxista) pode ser interessante para facilitar o trabalho, evitando a dispersão em uma quantidade excessiva de tratamentos do tema, a fim de explicitar os pressupostos metodológicos e conceituais de cada abordagem.

2o passo

Depois das aulas de Geografia, História e Sociologia, reserva-se uma aula de Filosofia para discutir como os conteúdos das Ciências Humanas são construídos. Pode-se explorar, por exemplo, o modo como o debate entre marxismo e liberalismo foi um dos aspectos teóricos que permitiram o surgimento de áreas como a Geografia Crítica e a Geografia Humana, a História Social e a História Econômica, a Sociologia Econômica e a Sociologia do Trabalho etc. Os(As) professores(as) podem recorrer à diferença entre explicar e compreender, estabelecida por Dilthey (conferir o capítulo 4). Com base nesse trabalho, mostrar como o pensamento se encontra em uma situação complexa: há razões para afirmar tanto a naturalidade das diferenças e das identidades humanas como a historicidade delas.

3o passo

Durante uma aula de Filosofia, organiza-se uma mesa-redonda com o(a) professor(a) de Filosofia e os(as) professores(as) de Geografia, História e Sociolo-

gia, a fim de debater a seguinte questão: é necessário conservar a oposição entre naturalidade e historicidade no reconhecimento das diferenças entre indivíduos e grupos ou é possível unir, de modo rigoroso (científico), os dois polos dessa oposição?

Podem-se reservar dez minutos para cada professor(a) expor como desenvolveu o passo 1 com os(as) estudantes e dar sua resposta à questão colocada. Na sequência, os colegas dialogam e debatem com a turma as vantagens e as desvantagens da abordagem liberal e da abordagem marxista. A esse respeito, pode-se tentar operar ao modo do que se propõe para a elaboração de dissertação de problematização (p. 297).

Sugestões

de leitura

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, 1996.

O artigo comenta o significado do perspectivismo ameríndio, permitindo uma reavaliação de ideias como natureza, cultura e sobrenatureza.

JOAS, Hans. A sacralidade da pessoa. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.

Na obra, o eminente pensador defende que “nosso futuro é nosso dever”.

Unidade 3 Os seres humanos são seres de ação

Capítulo 7 – Sociedade, indivíduo e liberdade

Introdução

O capítulo procura mostrar, pela técnica de contraposição, que não há contradição entre conceber a sociedade como livre associação de indivíduos e como realidade nascida de impulso natural. Assim, à influência natural-social sobre os indivíduos soma-se a possibilidade de os indivíduos operarem com tal influência e construírem sua liberdade como autodeterminação.

Objetivos

Estudar filosoficamente as noções de indivíduo e de sociedade em interdependência com a noção de liberdade, mostrando que é mais universal – e, portanto, racional – uma abordagem em que essas noções são

compreendidas umas em função das outras, em vez de serem definidas por si mesmas.

BNCC

• Competências gerais: 1, 2, 5, 6, 7, 8, 9 e 10.

• Competências específicas: 1, 2, 4, 5 e 6.

• Habilidades: EM13CHS101, EM13CHS102, EM13CHS103, EM13CHS104, EM13CHS105, EM13CHS106; EM13CHS201, EM13CHS202, EM13CHS203, EM13CHS204, EM13CHS205, EM13CHS206; EM13CHS401; EM13CHS501, EM13CHS502, EM13CHS503, EM13CHS504; EM13CHS603, EM13CHS604.

Orientações didáticas

A estratégia do capítulo consiste em “desnaturalizar” as noções de indivíduo, sociedade e liberdade, permitindo a compreensão de que o sentido de cada uma delas é mais adequadamente captado em correlação umas com as outras. Assim, faz mais sentido entender o indivíduo em relação à sociedade e vice-versa. Ao mesmo tempo, como o ser individual possui elementos determinados socialmente, mas também naturalmente, é mais adequado abordar o tema da liberdade em correlação direta com o ser individual e social, o que implica uma relação direta com os aspectos naturais. Pode-se dizer que, de certa maneira, e empregando-se um vocabulário fenomenológico, trata-se de operar uma intersecção entre ontologias regionais (ontologia social e ontologia individual) ou, em vocabulário mais epistemológico-analítico, trata-se de situar-se em um cruzamento possível da dimensão pública com a dimensão privada.

Por essa razão, o capítulo se inicia com o estudo de duas posições clássicas sobre o caráter natural ou histórico da vida em sociedade (Aristóteles e Kant) para, na sequência, articular esse estudo com uma possível afirmação da liberdade (via Espinosa e Merleau-Ponty). O que move a metodologia adotada no capítulo é uma especial atenção ao pensamento por contrariedade e/ ou por contradição, razão pela qual se compôs um boxe específico sobre o tradicional quadro das oposições.

A metodologia do capítulo pode ser tomada como um caso explícito do procedimento dialético. No que se refere ao quadro das oposições, caso o(a) colega professor(a) queira ir além dele, sugere-se a leitura do capítulo 11 do livro Filosofia das lógicas, de Susan Haack, publicado em 2002, no qual a autora estuda algumas lógicas que, embora comunguem de certos dados da lógica tradicional, buscam superar a dicotomia absoluta entre o verdadeiro e o falso.

Com base na correlação entre ser individual-social e liberdade, o capítulo se dedica ao estudo de duas concepções também clássicas a respeito do sentido das desigualdades na vida individual-social (Locke e Marx), abrindo a possibilidade de operar algo como uma síntese entre elementos verdadeiros de ambas as concepções (o comunitarismo).

A fim de ressaltar o pensamento por contrariedade e/ou contradição, o item dedicado ao debate sobre o caráter natural ou histórico da sociedade é estruturado em forma de exercício de múltipla escolha, para que os(as) estudantes conheçam esse tipo de exercício e treinem essa modalidade. Cada um dos itens que compõem o capítulo pode ser estudado separadamente, sem nenhum prejuízo para a compreensão, uma vez que são autoexplicativos.

Respostas e comentários

Página 210

Exercício A

a) Algum c ão não é peixe. Frase particular negativa – O.

b) Algum c ão é peixe. Frase particular afirmativa – I

c) Certos cães são peixes. Frase particular afirmativa – I .

d) N enhum ser humano é f á c il. Frase universal negativa – E

e) S er humano é uma aventura. Frase universal afirmativa – A

Página 215

Dialogando

Resposta pessoal. Espera-se que os(as) estudantes reflitam sobre possíveis sentidos “libertadores” dados por eles(as) mesmos(as) a determinados condicionamentos presentes em suas vidas.

Página 224

Para refletir e argumentar

1. Porque o teste do pr óp rio pensamento ou a autocr í t ica faz com que cada indiv í d uo seja capaz de transformar suas pr ó prias incoer ê ncias em

(I) Algum brasileiro é simpático (A) Todo brasileiro é simpático

vantagens argumentativas, permitindo que cada tradi ç ã o f orne ç a u m modo de ver como tais incoer ências podem ser mais bem caracterizadas, explicadas e superadas.

2. Respostas pessoais. Espera-se que os(as) estudantes relacionem de modo justificado o conteúdo do capí t ulo estudado com a sua experiência e os seus relacionamentos pessoais, familiares e sociais, comparando seu modo de vida com as teorias do liberalismo e do marxismo, bem como analisando, com auxílio da posição comunitarista, a coerência de seu próprio pensamento.

Página 225

Integrando com… Geografia

1. Correspondências terminológicas: “sistema da perversidade [na globalização]”; “ação hegemônica mas sem responsabilidade”; “produção ‘natural’ da desordem”; “império do consumo”; “negligência em relação à cidadania”; “egoísmos”; “quebra da solidariedade entre pessoas, classes e regiões”; “ampliação das desigualdades” etc.

2. Resposta pessoal. Espera-se que os(as) estudantes, caso discordem de Milton Santos, apresentem razões para sua discordância e propostas para justificar a organização liberal por ele denunciada.

Páginas 226-227

#JovensEmAção

Professor(a), por haver atividades fora do ambiente escolar, é importante orientá-los no planejamento das tarefas e ações, bem como garantir que os adultos responsáveis estejam cientes de toda a agenda de compromissos dos jovens, se possível com ao menos um acompanhando-os, para que fiquem protegidos de qualquer risco.

Página 228

Retomando

1. a) Todo brasileiro é latino-americano.

b) Nenhum brasileiro é asiático.

c) Algum brasileiro é corrupto.

d) Algum brasileiro não é corrupto.

2. (Falsa) (Verdadeira) (Falsa) (Verdadeira)

(O) Algum brasileiro não é simpático (O) (E) Nenhum brasileiro é simpático (E)

3. Segundo Espinosa, os seres humanos não percebem que, ao fazerem escolhas, são movidos por seus desejos. Além disso, a escolha sup õ e determinadas opçõe s que nos tornam reféns das circunst â ncias.

4. A liberdade, apesar de todas as limitaçõe s e obriga çõ e s impostas à condi ç ã o humana, reside na capacidade de ir al é m d a situa ç ã o d e fato, ampliando os sentidos dados à vida e procurando a melhor forma de se adequar a ela. Dessa perspectiva, o poder de produzir equívoco ou equivocidade faz concluir que ser livre é produzir novos sentidos para sentidos já existentes. Por sua vez, o processo de regulagem consistiria na possibilidade de o indiv íduo ressignificar sua situa ç ã o p or uma regulagem que opera com tudo o que restringe sua liberdade e produz seu melhor “funcionamento”.

5. Merleau-Ponty cita o filósofo Karl Marx e o poeta Paul Valér y como exemplos da existência da liberdade, porque ambos não se resignaram apenas ao que era dado pela situaç ão de cada um, mas, com base nela, deram novos significados à s suas vidas. Marx, filho de um pequeno-burguê s, desenvolveu o conceito de luta de classes e denunciou a exploraç ão e xercida pela burguesia; e o poeta Paul Valéry, vivendo em solidão, não padeceu completamente da sua circunst â ncia, mas a transformou em poesia.

6. Significa perceber que é o pertencimento a coletivos que dá direitos. É, portanto, apenas no interior de coletivos que o significado de “indivíduo” pode ser compreendido. Tirar a atenç ão do pr óprio indiv íduo (desindividualiz á-lo) permitiria chegar ao sentido pleno do ser individual.

7. Segundo Marx, a posse do dinheiro determina todas as qualidades e os valores socialmente estabelecidos, comprando e estabelecendo a media ç ã o e ntre todas as rela çõ e s humanas. Nesse sentido, as qualidades f ís icas, as qualidades do car áter e as qualidades do espír ito (como a inteligência) são superadas e determinadas pela posse do dinheiro. Tudo passa a ser entendido como mercadoria, e as rela ç õ e s humanas passam a obedecer à s l eis do dinheiro, desumanizando o trabalho e as relaçõe s sociais.

9. Locke parte do princípio de que a liberdade e a propriedade são direitos naturais que existem antes de qualquer contrato social. Ele afirma que existe um consentimento t á c ito e volunt á r io de todos

que aceitam silenciosamente e com naturalidade a posse desigual e desproporcional da terra.

10. Um pensador marxista poderia recorrer a testemunhos antigos segundo os quais os indivíduos que passaram a possuir mais terras e ferramentas não o fizeram por meio do trabalho, mas por meio de guerras, de atos enganosos, de pr át icas religiosas (que levavam as pessoas a dar seus bens a l í d eres religiosos) etc. Um liberal, no entanto, pode dizer que, mesmo tendo havido viol ê ncias e guerras na conquista dos bens e das propriedades individuais, isso não significa que todos os propriet á r ios praticaram violências e enganaram para conquistar seus bens.

Página 229

Dissertação

Produção pessoal. Espera-se que os(as) estudantes, seguindo os passos indicados, elaborem uma dissertação de contradição com uma estrutura geral que destaque essencialmente dois momentos: (1) apresentação de razões para afirmar que tudo o que o ser humano vive é determinado pela Natureza (tomando a desigualdade econômica como prova de que a Natureza determina os humanos a entrar em concorrência); (2) apresentação de razões e dados da experiência que levem a refutar o que foi defendido em (1). Os dados apresentados no capítulo 6 fornecem base para refutar a tese (1). Além disso, a metodologia proposta pelo Quadrado das oposições (p. 210) pode ser um recurso bastante proveitoso para estruturar a dissertação. Em resumo, trata-se de encontrar um caso singular que, dando origem a um enunciado verdadeiro, torna falso o enunciado universal. Assim, se os(as) estudantes conseguirem apresentar um enunciado verdadeiro sobre a não concorrência na Natureza, terão refutado a tese (1). O caso da desigualdade econômica é a melhor forma de proceder a essa refutação (buscando explicações para essa desigualdade não na Natureza, mas nos processos socioeconômicos que estruturam a vida em sociedade).

Atividade complementar

Projeto interdisciplinar

Ciência, cérebro, liberdade e ética

1a fase – Pesquisa

Oriente os(as) estudantes a buscar informações sobre o que as Neurociências afirmam sobre a liberdade. Os(As) professores(as) de Biologia, Química e Sociologia podem ser convidados(as) a colaborar, por exemplo, reservando

uma de suas aulas para o tema ou mesmo comparecendo à aula de Filosofia para apresentar suas perspectivas específicas sobre o tema. Também podem ser acessadas plataformas da internet e sites especializados, como o da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC). Além disso, a melhor estratégia seria estudar algumas obras relativas ao tema, como o pequeno e excelente estudo, publicado em 2014, de Eduardo Kickhöfel, As neurociências: questões filosóficas. Diante das informações que serão recolhidas, dois aspectos interessam mais à atividade: (1) as explicações mecanicistas e materialistas para a consciência, ou seja, as compreensões da consciência como simples resultado do mecanismo de uma estrutura cerebral; (2) as explicações materialistas para o livre-arbítrio ou a liberdade humana.

2a fase – Reflexão

Com base nos resultados de suas pesquisas e na análise das informações, os(as) estudantes devem refletir sobre as seguintes questões: 1) o fato de provar que a consciência humana (a percepção, os comportamentos etc.) depende em grande parte da estrutura cerebral dá base para afirmar que é o cérebro que produz a consciência? 2) Declarar que as decisões humanas não são tomadas de maneira clara e em apenas um momento, mas se preparam nas microdecisões e preferências que adotamos no dia a dia significa diminuir a liberdade humana? Filosoficamente, é coerente negar a liberdade em nome da estrutura material que nos constitui? 3) Qual atitude parece mais adequada para avaliar eticamente os comportamentos de uma pessoa com um problema cerebral? Ela deve ou não ser responsabilizada por seus atos? 4) Do ponto de vista da Sociologia, seria coerente avaliar as ações dos indivíduos apenas com base naquilo que as ciências naturais chamam de “base ou condicionamento físico”?

3a fase – Plenária

Organize uma plenária na qual os(as) estudantes possam partilhar suas opiniões, conclusões e dúvidas. Os(As) professores(as) de Biologia, Química e Sociologia podem ser convidados(as) a assistir à plenária para se manifestarem sobre os resultados do trabalho dos(as) estudantes e participar do debate.

Texto complementar

A Sociedade impõe-se aos indivíduos

Quando desempenho minha tarefa de irmão, de marido ou de cidadão, ou quando executo os compromissos que assumi, eu cumpro deveres que estão definidos, fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda que eles este-

jam de acordo com meus sentimentos próprios e que eu sinta inteiramente a realidade deles, essa realidade não deixa de ser objetiva; pois não fui eu que os fiz, mas os recebi pela educação. Aliás, quantas vezes não nos ocorre ignorarmos o detalhe das obrigações que nos incumbem e precisarmos, para conhecê-las, consultar o Código e seus intérpretes autorizados! [...] O sistema de signos de que me sirvo para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relações comerciais, as práticas observadas em minha profissão etc. funcionam independentemente do uso que faço deles. Que se tomem um a um todos os membros de que é composta a sociedade; o que foi dito aqui poderá ser repetido a propósito de cada um deles. Eis aí, portanto, maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais.

Esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são exteriores ao indivíduo, como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõem a ele, quer ele queira, quer não. [...]

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 1-2.

Sugestão de leitura

• RENAUT, Alain. O indivíduo: reflexão acerca da filosofia do sujeito. Tradução: Elena Gaidano. São Paulo: Difel, 1999. (Enfoques filosofia).

Reflexão sobre a ideia moderna de sujeito, visando reabilitá-la a fim de se chegar a uma ética e a uma comunicação em torno da esfera comum de princípios e valores.

Capítulo 8 – A prática ética

Introdução

Concentrando-se na perspectiva da ética, o capítulo tem por pano de fundo a questão: os atos humanos podem se tornar hábitos individuais e sociais? Partindo dessa temática, apresentam-se os fundamentos da concepção ética de Aristóteles, Kant e Hume, bem como certos desafios contemporâneos que chegam à cosmopolítica e à cidadania em rede.

Objetivos

Apresentar a possibilidade de compreender filosoficamente a prática ética como uma realização de atos e uma criação de hábitos, repondo o tema da cidadania nos termos da tensão entre o ser individual e o ser

social, e apontando para o modo como cada indivíduo, em relação com outros indivíduos e grupos sociais, constrói o sentido de sua própria existência.

BNCC

• Competências gerais: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10.

• Competências específicas: 1, 2, 3, 4, 5 e 6.

• Habilidades: EM13CHS101, EM13CHS102, EM13CHS103, EM13CHS104, EM13CHS105, EM13CHS106; EM13CHS201, EM13CHS203, EM13CHS204, EM13CHS205; EM13CHS304, EM13CHS306; EM13CHS401, EM13CHS404; EM13CHS501, EM13CHS502, EM13CHS503, EM13CHS504; EM13CHS602, EM13CHS603, EM13CHS605.

Temas contemporâneos transversais

Cidadania e Civismo (Educação em Direitos Humanos; Vida Familiar e Social).

Orientações didáticas

Concretizada na frase do Profeta Gentileza: “Gentileza gera gentileza”, a temática da possibilidade de despertar nos outros indivíduos atos que geram hábitos o fio condutor do capítulo. A dinâmica ato/hábito, tematizada desde os gregos (eminentemente Aristóteles), parece ser um elemento que reaparece na reflexão ética da maioria dos filósofos. Por analogia com o que se costuma supor quando se afirma que, diferentemente da metafísica, a ética de Aristóteles perdurou durante os séculos e guarda atualidade ainda hoje, assim também parece possível que a dinâmica ato/hábito pôde e pode ser “assimilada” pelas mais diversas filosofias. Por exemplo, ela combina satisfatoriamente mesmo as filosofias que não se comprometem com a concepção de um sujeito (seja cognoscente, seja ético). No entanto, especificamente sobre essa dinâmica articula-se um debate, digamos, “metafísico”, concernente ao que determina ou ao que dá sentido aos atos e hábitos.

Em outras palavras, e dito de maneira bastante geral, trata-se de saber como nascem os valores que orientam a prática ética. Faria sentido ainda apontar para polos como o bem ou algo que magnetiza todas as ações (ao modo do que Iris Murdoch ou George Edward Moore afirmavam, tal como apresentamos neste capítulo e no capítulo 10) ou para o campo dos valores como constructo histórico-social (ao modo de Hegel, como se indica neste capítulo)? Seja como for, ambas as opções requerem que se esclareça o papel das possibilidades humanas na determinação do sen-

tido da prática ética, sobretudo o papel da razão ou da capacidade de autorreflexão, em conjunto com a capacidade da autodeterminação ou da escolha (a vontade).

Nesse conjunto, é indispensável dedicar atenção às paixões, a fim de não se propor uma visão cindida e dualista do ser humano, como se a dimensão espiritual (razão e liberdade) e a dimensão passional não estabelecessem intercâmbios mutuamente. Com essa preocupação, o capítulo parte dos fundamentos antigos e medievais da concepção do ato e do hábito (virtude/ vício) e passa a dois modelos clássicos de pensar a vinculação entre ética, razão e paixão (Kant e Hume, que não são necessariamente opostos), a fim de introduzir a análise hegeliana do inquestionável papel da influência social sobre a prática ética. Dado esse quadro, o capítulo se dirige a um debate sempre mais delicado: o da relação entre as instituições sociais e a liberdade individual, algo que se deixa melhor esclarecer por meio das noções de cidadania e de direitos humanos.

Respostas

e comentários

Página 242

Dialogando

Resposta pessoal. Para refletir sobre sua própria experiência, espera-se que os(as) estudantes considerem o pensamento de Hume acerca dos conceitos de influência e comparação.

Páginas 246-247

Para refletir e argumentar

A história de M e N mostra que a dimensão privada da experiência humana afeta e interfere diretamente na dimensão pública e social e pode ser considerada na reflexão ética. O amor de M por seu filho a levou a tratar bem N e a reconsiderar sua primeira impressão da nora. Iris Murdoch quer ilustrar com essa história que o que se passa no nível das vivências internas e privadas (o amor de M pelo filho) afeta o campo público e pode ser avaliado de algum modo. Considerar, nas discussões éticas, apenas o que pode ser avaliado de modo objetivo com base no paradigma das ciências seria um empobrecimento da vida humana.

Página 248

Integrando com… História

1. A Declara ç ã o Universal dos Direitos Humanos pretende garantir direitos mínimos para todos os indivíduos, de todos os lugares do mundo, na tentativa de alcançar uma visão sobre o que é bom para o ser humano em geral. Entre esses direitos

estão o direito à vida, ao trabalho, à saúde, à educação, à segurança, à liberdade, ao julgamento público, à liberdade de pensamento etc.

2. Uma possibilidade de resposta é afirmar que ser contrário aos direitos humanos é uma prática contraditória, típica de sociedades desiguais e autoritárias. A pessoa que se declara contrária a eles provavelmente os reivindicaria caso ela mesma, ou alguém de sua família, cometesse algum erro e fosse processado pela Justiça.

Página 249

Retomando

1. Porque a a ç ã o p r á t ica sup õ e a tividade, decis ã o, reflex ão e e scolha. Nesse sentido, a aç ão humana é distinta da reaç ão instintiva dos outros animais.

2. A virtude e o v í c io, segundo Arist ó t eles, dizem respeito à s disposiçõe s, ou seja, à maneira como vivemos nossas ações e nossas paixões, tendo em vista o meio-termo. Essas disposiçõe s tornam-se há bitos que tendem a repetir-se diante das mesmas condi çõ e s e circunst â n cias. Os h á b itos que tendem a encontrar o meio-termo entre o excesso e a falta são virtuosos; e os há bitos que erram a mediania e tendem a encontrar o excesso ou a falta são viciosos.

3. Kant, antes de propor uma interpretação da realidade, buscou analisar nossas reais possibilidades de conhecimento. Por essa razão, seu pensamento ficou conhecido como filosofia cr í t ica. No que diz respeito ao tema da moral, Kant observou que não é possível conhecer os objetos da moral como conhecemos realidades f ísicas e matemát icas. O Bem não é algo que possa ser conhecido e definido racionalmente. Por isso, ele não é um critério claro e comum que possa orientar a ação de todos. Fazia-se necessário formular um princípio ou uma lei que fosse compreensível por todos e orientasse a ação em todas as circunst âncias. A estratégia de Kant foi discutir se é possível encontrar, pelo entendimento, um princípio a priori , ou seja, anterior à s e xperiências e à s situações especí f icas. Desse esforço surgiu o imperativo categórico kantiano de que só se deve agir segundo uma má xima que lhe permita também querer que a sua própria má xima seja tomada como lei universal.

4. Segundo Hume, não é a raz ão que leva os seres humanos a agir, mas as emoçõe s. Para ele, o entendimento humano não é capaz de controlar as emoções.

5. A simpatia e a comparaç ão. A simpatia é abertura e identificaç ão que permite que o ser humano seja influenciado pelas paixõe s dos outros; e a comparaç ão é o processo inverso, em que há um fechamento para o outro, mantendo um distanciamento e avaliando o outro com base em si mesmo e em sua própria experiência.

6. Porque, para Hegel, os valores morais devem ser fundamentados em instituiçõe s sociais, em pr át icas socialmente construídas, uma vez que mesmo o significado desses valores são construçõe s histór icas e sociais.

7. É uma pr át ica em que os governos e as instituiç õ e s contribuem para que a cidadania de seus cidadã os não seja orientada por uma identidade dada pela Natureza, pelo territór io ou por costumes ancestrais, mas pela possibilidade de criaç ão dessa mesma cidadania por meio da contribuiç ão e da interaç ão com outros povos e culturas, ampliando os horizontes dos cidadão s para a supera ç ã o d os limites dos territ ó r ios, das culturas e das fronteiras, unindo o que h á d e universal na Humanidade com os anseios dos indivíduos.

Páginas 250-251 Dissertação

Produção pessoal. Espera-se que os(as) estudantes, tomando por base as orientações dadas a seguir, elaborem uma dissertação argumentativa para responder à pergunta: as paixões podem impedir os seres humanos de serem éticos?

O próprio modelo oferecido na descrição funciona como padrão de resposta a este exercício. Enquanto no modelo se faz a mesma pergunta em relação aos políticos, aqui a pergunta é feita em relação aos seres humanos em geral. Não se trata de solicitar aos(às) estudantes que reproduzam aquele modelo com pequenas modificações. Ideal seria que eles encontrassem seus próprios caminhos argumentativos, apenas inspirando-se nestes cinco passos: 1) reflexão sobre o tema e concepção de um modo geral de apresentá-lo; 2) elaboração de um esquema; 3) composição de um parágrafo de apresentação; 4) composição de um ou mais parágrafos com as razões que justificam a posição adotada; 5) composição de um parágrafo de conclusão.

Atividade complementar

Embora o conceito de cidadania, em seu uso técnico, apareça em contexto político, ele também é empregado, muitas vezes, em relação à prática ética. No vocabulário

cotidiano, falar em cidadania pode corresponder a respeito de direitos ou a respeito humano pura e simplesmente. A fim de iniciar essa “reivindicação ou urgência ética” sentida em nossas sociedades atuais e de articular o sentido ético com o político, os(as) professores(as) podem programar uma aula em vídeo, apresentando aos(às) estudantes a entrevista a seguir (“A construção do conceito de cidadania”, com Maria das Graças de Souza, professora de Ética e Filosofia Política).

Parte 1:

NA ÍNTEGRA: Maria das Graças de Souza: cidadania desde a Antiguidade: parte 1/2. [S. l.: s. n.], 2008. 1 vídeo (18 min). Publicado pelo canal UNIVESP. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zNxlHZSAerw. Acesso em: 6 nov. 2024.

Parte 2:

NA ÍNTEGRA: Maria das Graças de Souza: cidadania desde a Antiguidade: parte 2/2. [S. l.: s. n.], 2008. 1 vídeo (18 min). Publicado pelo canal UNIVESP. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=kszNS4731EE. Acesso em: 6 nov. 2024.

Na aula seguinte, é possível abrir um debate. Questões para análise e discussão:

1. Se o conceito de cidadania nasce do conceito romano antigo de cidade (civitas ), em que sentido se falava de cidade?

2. A cidadania dependia de um território no pensamento político antigo?

3. Quais aspectos são acentuados na Modernidade para compreender o conceito de cidadania?

4. Há dificuldades em relacionar democracia e cidadania? Justifique.

5. Levante algumas características da compreensão atual da cidadania.

Sugestão de leitura

VAZ, Henrique Claudio de Lima. Escritos de filosofia IV: introdução à ética filosófica 1. São Paulo: Loyola, 2001. (Filosofia, v. 47).

Apresentação da história filosófica da ética, dos gregos até o início do século XXI.

Capítulo 9 – Política e poder

Introdução

Objetivos

Estudar as duas principais concepções da política: a política como atividade concebida em função do bem comum; a política como prática cujo fim é ela mesma (sem, no entanto, afastar-se totalmente de algum ideal nem de tornar-se uma prática aética ou amoral).

Pretende-se também esclarecer que a noção de política como fim em si mesma relaciona-se diretamente, na maioria das sociedades atuais, às noções de poder e de Estado, conduzindo à necessidade de enfatizar o papel da cidadania.

BNCC

Competências gerais: 1, 2, 3, 5, 7, 9 e 10.

Competências específicas: 1, 2, 4, 5 e 6.

Habilidades: EM13CHS101, EM13CHS102, EM13CHS103, EM13CHS104, EM13CHS105; EM13CHS202, EM13CHS204; EM13CHS404; EM13CHS501, EM13CHS502, EM13CHS503, EM13CHS504; EM13CHS601, EM13CHS602, EM13CHS603, EM13CHS605.

Respostas e comentários

Página 255

Exercício A

1. Para fazer com que os cidad ã o s se interessem pelo bem geral do Estado, é preciso envolv ê - los com o cuidado dos assuntos mais imediatos de sua regi ã o , porque eles s ó p ercebem o quanto esses assuntos gerais se relacionam diretamente com suas vidas particulares quando afetam seus interesses privados, visto que o cuidado dos assuntos regionais leva os cidad ã o s a estabelecerem v í n culos mais duradouros ao serem for ç a dos a se conhecerem e a se habituarem uns com os outros.

2. Resposta pessoal.

Página 260

Para refletir e argumentar

a) A ideia central consiste em defender que o governo da cidade ou o serviço das leis deve ser dado àquele que se mostrar ser o melhor exemplo de seguidor das mesmas leis estabelecidas na cidade.

O capítulo vai diretamente ao núcleo da reflexão sobre a política como serviço ao bem comum ou como fim em si mesma, obtendo, desse núcleo, a problemática da relação entre política e poder, que se repõe sob a forma da relação entre cidadania e democracia. Para os modelos de concepção de política, seguem-se Platão e Maquiavel; para os da relação entre cidadania e democracia, Louis Althusser e Michel Foucault. Na origem da atividade política, situa-se o interesse, na linha de Tocqueville.

b) Resposta pessoal.

Página 266

Exercício B

1. Maquiavel partiu da análise da política do ponto de vista histórico, tanto no que diz respeito à participação dos cidadãos nas decisões políticas quanto no que diz respeito à relação entre governantes e governados. Ele não parte de um ideal de sociedade (justa e boa, como fez Platão), mas pensa que são as circunstâncias históricas que determinam que tipos de política e de sociedade são possíveis.

2. O fundamento dessa afirmação é a conservação do poder e a defesa da unidade e da integridade do corpo social. Para Maquiavel, como os seres humanos são pérfidos e capazes de trapacear, enganar e mentir, o príncipe não tem a obrigação de ser bom, leal e justo o tempo todo.

3. Não exatamente. Ele pensava apenas que, se não houver outro recurso legal, por meio dos tribunais e das leis, o governante deve fazer o que for necessário para manter o poder e defender a unidade social.

Página 269

Para refletir e argumentar

1. Para Althusser, a democracia representativa pode criar a sensação de que o povo realmente participa do poder, principalmente por escolher seus representantes por meio do voto, mas inviabiliza as revoltas populares e a expressão direta do interesse público.

2. O exemplo certamente mais comum é por meio da internet, com as consultas on-line .

Página 270

Integrando com… Sociologia

Além de promover um conhecimento mais consistente da estrutura dos três Poderes no Brasil (em âmbito municipal, estadual e federal), a pesquisa visa considerar a composição e o funcionamento dessas instituições com base na perspectiva representativa apresentada no capítulo. Cabe refletir, também, em que medida o modelo atual de organização do poder é adequado às necessidades e às expectativas da democracia. É desse debate que surge o sentido de refletir sobre a necessidade de reforma política, tal como defendida por setores da população brasileira.

Página 271

Retomando

2. a) Generalização apressada. O fato de haver muitas churrascarias em uma região não significa que toda a população come muita carne.

2. b) Generalização apressada. Judeus, cristãos, muçulmanos e budistas são apenas alguns entre inúmeros grupos religiosos, e, mesmo nesses, nem todas as pessoas e segmentos religiosos são violentos.

2. c) G eneralização justificada. Mesmo sem ter experimentado todos os casos de infecções bacterianas possíveis, os casos estudados não dão margens para duvidar, a princípio, dessa afirmação. Trata-se de uma indução.

2. d) Generalização apressada. Não é porque muitos brasileiros amam futebol que é possível identificar esse amor como essência do ser brasileiro.

2. e) G eneralização justificada. Apesar de os casos verificados serem poucos e de não garantirem necessariamente a verdade da conclusão, não há por que duvidar da sua probabilidade. Tratase de uma indução.

2. f) Generalização justificada. Trata-se de uma dedução, na qual a conclusão é extraída adequadamente das premissas anteriores. Se o silogismo for válido e as premissas forem verdadeiras, a conclusão é necessariamente verdadeira.

3. Para Platão, a política é um meio ou um serviço para atingir o bem comum e o interesse geral da cidade. Esse serviço é exercido pelo cidadão, que serve às leis justas, resultado da participação dos cidadãos que vivem sob essas leis. Desse modo, quem age apenas visando ao bem próprio não é um bom cidadão, porque não age tendo em vista o interesse da cidade. Para que a cidade alcance seu bem, é preciso que os seus governantes sejam seguidores exemplares das leis justas estabelecidas pela cidade e que o governo não seja dado a quem tem mais poder. O poder, portanto, não deve ser objeto de disputa, pois vencerá o mais forte, e não aquele realmente comprometido com o bem comum da cidade.

Dissertação

Produção pessoal. Espera-se que os estudantes elaborem uma dissertação de síntese filosófica que acompanhe o movimento do próprio capítulo e se estruture em três momentos principais: (1) introdução:

apresentação geral da possibilidade de entender a política como meio e como fim; (2) desenvolvimento: apresentação das razões que levam a conceber a política como meio (caso em que o pensamento platônico é tomado como exemplo por vincular a política ao serviço do bem comum) e como fim (caso em que o pensamento maquiaveliano é tomado como exemplo por vincular a política ao poder); (3) conclusão: retomada do sentido da estrutura da dissertação, lembrando que as duas possibilidades de concepção (meio e fim) dirigem o modo como concebemos a política, embora, no mundo atual, prevaleça a ideia de poder e a concepção da política como fim em si mesma. Para que a dissertação seja completa, a conclusão pode lembrar (como uma conclusão “aberta” ou “suspensiva”) que a concepção da política como fim em si mesma deixa a possibilidade de se associar com a concepção da política como meio, uma vez que o fim, sendo a manutenção do poder, não se dissocia de objetivos (como o bem de todos, a conservação da autonomia de um Estado etc.), que, no limite, apresentam-se como fins.

Páginas 272-273

#JovensEmAção

Professor(a), no acompanhamento desta atividade, em diálogo com os(as) estudantes, reforçar a importância de processos democráticos que acolham a diversidade escolar. Este também é um momento de valorizar atitudes respeitosas, com atenção a procedimentos que possam suscitar bullying, discriminações e isolamentos. Incentivar a participação de todos de acordo com seus interesses e habilidades, sobretudo dos estudantes com deficiência, para favorecer a construção de um ambiente acolhedor e inclusivo.

Atividade complementar

Faça um levantamento de quantas mulheres há na Câmara de Vereadores de sua cidade, na Assembleia Legislativa de seu Estado, na Câmara dos Deputados do Brasil e no Senado Federal. Calcule a porcentagem que elas representam em relação aos homens nessas diferentes instâncias. Na sequência, assista ao vídeo a seguir, sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), especificamente o ODS 5, sobre a igualdade de gênero. Por fim, em dupla, completem a frase: “Lugar de mulher é ...”.

ODS #5: IGUALDADE de gênero: IBGE Explica. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo (3 min). Publicado pelo canal IBGE. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Mm0g zKOiJVU. Acesso em: 6 nov. 2024.

Sugestões de leitura

• ARENDT, Hannah. Entre o passado e futuro. Tradução: Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1972.

Registro de reflexões da filósofa.

• DEBRAY, Régis. Manifestos midiológicos. Tradução: João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1999.

As técnicas de comunicação consideradas dispositivos e redes de percepção e conhecimento.

• FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução: Maria Ermantina A. P. Galvão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

Estudo sobre o poder e sobre o que Foucault veio a chamar de biopoder.

• MARTINS, José Antonio. Filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.

Introdução didática ao estudo da Filosofia Política.

Unidade 4

Os seres humanos são seres de transcendência

Capítulo 10 – A felicidade

Introdução

A busca da felicidade é certamente uma das formas mais comuns de os seres humanos transcenderem e ampliarem seus horizontes de realização pessoal e coletiva. Neste capítulo, a felicidade é apresentada em relação com os prazeres, dada a tendência de ela ser considerada a soma dos prazeres. No entanto, ainda que a felicidade seja concebida como completude, ela é diferente da simples soma de prazeres, pois, embora os inclua, ela também inclui o que, no vocabulário aristotélico, denomina-se virtude, perfeição e mediedade. Por fim, a felicidade se mostra como um bem supremo e revela-se como ato, não como posse passiva.

Objetivos

Abordar o tema da felicidade, mostrando, por um lado, que é possível investigar filosoficamente a felicidade por meio da sua relação com o tema do prazer e, por outro lado, que a felicidade pode ser entendida como atividade, e não como estado psicológico, a despeito do uso corrente do termo.

BNCC

• Competências gerais: 1, 2, 3, 4, 7, 8, 9 e 10.

• Competências específicas: 1, 3 e 5.

• Habilidades: EM13CHS101, EM13CHS103, EM13CHS104; EM13CHS303; EM13CHS501, EM13CHS504.

Temas contemporâneos transversais

Ciência e Tecnologia (Ciência e Tecnologia); Saúde (Saúde).

Orientações didáticas

A estratégia adotada é iniciar pela concepção de prazer para depois passar à compreensão da felicidade como soma dos prazeres ou como algo diferente da soma dos prazeres. O subtema “A felicidade e o conjunto dos prazeres” pode ser subdividido em quatro partes: (1) o utilitarismo; (2) a revisão do utilitarismo; (3) a posição de G. E. Moore; (4) o problema dos universais. Esta última pode ser estudada logo após a parte 2, tal como aparece na estrutura do capítulo. Nesse caso, a vantagem é esclarecer melhor a revisão do utilitarismo, porém ela exige um grau de abstração que pode constituir um fator de dificuldade. Por esse motivo, talvez seja aconselhável tratá-la em quarto lugar ou mesmo ao final do capítulo. Tudo irá depender do andamento de cada turma, segundo a percepção do(a) professor(a).

Para passar da reflexão sobre a felicidade em relação aos prazeres ao último subtema do capítulo, “A felicidade como atividade e plenitude”, a estratégia é explorar a concepção corrente da felicidade como algo que se possui, assim como os prazeres seriam possuídos. A partir daí, torna-se mais compreensível, por contraposição, a felicidade como atividade cujo sentido é dado por um ideal de plenitude. Em uma palavra, trata-se de passar da concepção de felicidade como estado psicológico à sua concepção como exercício ou atividade de que cada indivíduo pode cuidar ou descuidar.

Respostas e comentários

Página 277

Exercício A

1. As duas frases são os fundamentos da conclusão de que a felicidade é a soma de todos os prazeres, pois se os seres vivos procuram o prazer e fogem da dor; se a natureza os leva a essa procura e a essa fuga desde a infância; e se a felicidade pode ser entendida como a finalidade da vida humana

(algo que se manifestaria desde a infância), então há condições para afirmar que a soma dos prazeres é a felicidade.

2. Se todos os prazeres são corporais, não havendo um mais sensível que outro, então o prazer é algo que se sente, provocando satisfação e sensação agradável. Se a felicidade está ligada ao prazer, e a tranquilidade, como ausência de dor, é indiferente (não é prazer, já que não proporciona satisfação), então a tranquilidade ou a ausência de dor não são a felicidade.

Página 290

Exercício B

1. Assim como o cirena ísmo e o epicurismo, a filosofia utilitarista situa no coração do ser humano um misto de pensamento e desejo, isto é , u ma mescla de possibilidades racionais (atividade do pensamento e da decisão) e possibilidades irracionais (não resultantes de pensamento, mas vividas como impulsos naturais). Além das funções corporais básicas (nutrição, conservação, reprodução, sensação), a vida humana cont ém uma saudável tensão entre aquilo que se pode conhecer e escolher e aquilo que nela brota como impulso. Porém, ao associar a felicidade com as coisas desejadas e produtoras de prazer ou com ausência de dor, a visão utilitarista aproxima-se mais do cirena ísmo do que do epicurismo. Volta-se atrás na inversão realizada por Epicuro e põe-se novamente a felicidade sob a orientação do prazer.

2. O utilitarismo é uma postura filos óf ica que concebe o agir humano em funç ão da felicidade, que, por sua vez, seria apenas o conjunto dos prazeres e a aus ê n cia de dor. Os pensadores utilitaristas adotam o método científico e consideram verdadeiro apenas o que pode ser observado fisicamente, sem nenhum apelo para conceitos universais e transcendentes. Dessa perspectiva, o naturalismo é uma vers ão r adical do utilitarismo, pois, ao conceber a felicidade, leva ao m á x imo a atitude de permanecer no nível das coisas cotidianas e das realidades físicas, imanentes ao mundo, sem nenhum car áter transcendente.

3. Como os naturalistas e utilitaristas afirmam que a felicidade não é nada em si mesma, mas apenas a somat ó r ia dos prazeres, alguns fil ó s ofos entendem que, mesmo de um ponto de vista estritamente naturalista, não é possível sustentar essa concepção da felicidade, já que a experiência

concreta só nos mostra que o ser humano busca prazer e foge da dor em situações concretas e particulares; a experiência não permite observar algo como uma regra geral que ensinaria essa concepç ão precisa da felicidade. Também é preciso notar que dizer “o prazer é um bem” não é o mesmo que dizer “o bem (a felicidade) é o prazer”. Para Moore, por exemplo, trata-se de uma tautologia que extrai uma conclus ã o f alsa de sua afirmaç ã o (uma falácia da tautologia).

4. Para Moore, o Bem Supremo é aquilo que é desejado pelos humanos acima de todas as outras coisas, qualificando todas as coisas boas ao modo de um padrão absoluto ou de um modelo perfeito. Como os seres humanos buscam sempre o máximo de bem, eles desejam não apenas os bens particulares mas também o Supremo Bem. Porém, o máximo bem não se reduz a nenhum dos bens particulares, uma vez que eles não podem definir o Bem completamente. Nesse sentido, o Bem é indefinível e não pode ser compreendido nem sequer pela soma de todos os bens particulares. Mas é possível apontar na sua direção, já que ele está presente (em maior ou menor grau) em cada uma das coisas boas. Como uma fonte que dá a bondade de tudo o que consideramos bom, o Bem da filosofia de Moore pode ser considerado como a afirmação de uma transcendência que age na mais profunda imanência.

Página 294

Para refletir e argumentar

Produção pessoal. Com base na ideia de felicidade apresentada na letra da música (ligada à “proibição da dor” e entendida como uma imposição), espera-se que os estudantes tracem um paralelo com o conceito que define a felicidade como soma dos prazeres e ausência de sofrimento, distinguindo-o da concepção de felicidade como atividade. O fundamental é que seja apresentada a contraposição entre “ter felicidade” (o caráter efêmero do fato de “ter prazer” e vivê-lo no âmbito psicológico) e “ser feliz” (o sentido de plenitude buscado pela atividade a ser exercitada pela prática da prudência e do cuidado de si). A “ditadura da felicidade” do mundo contemporâneo, ao produzir uma obsessão por “ter felicidade”, acaba desviando a atenção da reflexão sobre o que significa “ser feliz”.

Página 296

Retomando

1. Epicuro concorda com os cireneus ao dizer que a felicidade é prazer, mas discorda ao afirmar que ela

também é composta da tranquilidade ou da ausência de dor.

2. Porque os prazeres, na compreens ão de Epicuro, não são capazes de satisfazer completamente a alma. Eles não duram, levando os seres humanos a uma constante busca e insatisfaç ã o. Por essa razão, a tranquilidade deve ser vivida no corpo e na alma: no corpo, como ausência de dor, e na alma, como ausência de perturbaç ão.

3. A prudência torna o ser humano apto para ponderar e escolher o melhor encaminhamento de seus desejos, buscando prazeres úteis ao bem do corpo e da alma e evitando os prazeres inúteis (os que não são nem necessários nem naturais). Dessa perspectiva, a prudência é condiç ão necessária (pois sem ela não se tem felicidade) e suficiente (porque, com ela, envolvem-se os prazeres e a tranquilidade do corpo e da alma). A vida feliz, segundo Epicuro, corresponde não apenas à busca dos prazeres mas também à ponderação sobre o melhor (prudência).

5. Certa confusão que tende a conceber a felicidade como um mero estado psicológ ico de satisfaç ão (momentos felizes). Essa confusão aparece no uso do verbo “estar” para falar da felicidade: embora normalmente ninguém deseje a felicidade a outrem por meio da frase “esteja” feliz, mas sim “seja” feliz, costumamos pensar que “estamos” felizes e não que “somos” felizes.

6. Para Arist ó t eles, mais do que um estado psicoló g ico de bem-estar e satisfa ç ã o, passivo e dependente de causas exteriores, a felicidade é uma atividade da alma, ressaltando o car áter ativo na construç ão de uma vida feliz. Assim, a felicidade seria uma pr át ica e um modo de ser, e não apenas um estado passageiro de satisfaç ão.

Página 297

Dissertação

Produção pessoal. Sugestão:

É preciso satisf azer todos os desejos para ser feliz?

Com base na compreensão da felicidade como satisfação dos desejos, parece possível pensar que, para ser feliz, é necessário satisfazer todos os desejos. Essa posição pressupõe que a felicidade só existe se for plena. Ela não combinaria com nenhuma insatisfação. [TESE]

No entanto, observa-se que, na vida humana, é impossível satisfazer todos os desejos, pois muitos

deles não dependem dos próprios indivíduos. Por exemplo, pode-se desejar conhecer a Lua, mas isso é praticamente irrealizável para os cidadãos comuns. Além disso, alguns desejos podem não ser bons, tornando inconveniente buscar sua realização. Nada disso, porém, impede os indivíduos de sentirem-se satisfeitos de modo geral, ainda que nem todos os seus desejos sejam atendidos. [ANTÍTESE]

Assim, pode-se concluir que, embora a felicidade seja uma satisfação de desejos, é possível ser feliz mesmo sem que todos os desejos sejam satisfeitos. A plenitude da felicidade não depende necessariamente da plenitude de desejos realizados. [SÍNTESE]

Sugestões de leitura

ALBORNOZ, Suzana Guerra (org.). A filosofia e a felicidade: o que os filósofos têm pensado sobre a felicidade humana. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004. Visões de diferentes pensadores sobre a felicidade.

LENOIR, Frédéric. Sobre a felicidade: uma viagem filosófica. Tradução: Vera Lucia dos Reis. São Paulo: Objetiva, 2016.

Concepção da felicidade na relação com o ato de escolha.

SANGALLI, Idalgo José. O filósofo e a felicidade: o ideal ético do aristotelismo radical. Caxias do Sul: Educs, 2013. Apresentação do legado aristotélico no tocante ao ideal de felicidade.

Capítulo 11

– Experiência

estética e experiência artística

Introdução

O capítulo parte da relação entre arte e beleza para investigar cada uma delas na relação entre ambas e individualmente. A experiência do que se costuma chamar de arte e de beleza remete a experiências sempre singulares, mas com aspectos universais que permitem identificar a semelhança de experiências, ainda quando as pessoas divergem no tocante à percepção dos conteúdos. A arte encontrou concepções mais claras do que a beleza, que, segundo Platão, não pode ser definida, dado seu caráter transcendente, sendo identificável mais por seus efeitos (as coisas consideradas belas) do que em sua essência mesma. A beleza, assim, chegou a ser causa de suspeita na Antiguidade e na Idade Média, embora, tanto em um período como no outro, ela tenha sido vivenciada e

explorada ao máximo possível em cada momento histórico.

Na arte moderna e contemporânea, observa-se, por parte dos artistas, tanto uma associação como uma independência da arte em relação à beleza. No caso da separação, requer-se atenção ao contexto para uma experiência mais intensa da produção artística.

Objetivos

Por meio de uma sucinta história filosófica de diferentes compreensões da beleza, pretende-se refletir sobre diferentes maneiras de compreender a arte, tendo em vista, sobretudo, as diversas concepções históricas da relação entre arte e beleza.

• Competências gerais: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10.

• Competências específicas: 1, 2, 3, 4, 5 e 6.

• Habilidades : EM13CHS101, EM13CHS102, EM13CHS103, EM13CHS104, EM13CHS105, EM13CHS106; EM13CHS203, EM13CHS205; EM13CHS301, EM13CHS303; EM13CHS401, EM13CHS404; EM13CHS501, EM13CHS502, EM13CHS503, EM13CHS504; EM13CHS601.

Orientações didáticas

A estratégia central do capítulo consiste em sensibilizar os(as) estudantes para a experiência estética como algo constituinte da experiência humana universal. Adota-se metodologicamente a distinção entre experiência estética e experiência artística, para, ao longo do capítulo, relativizá-la e propor uma concepção de arte como algo “dado a todos”, a despeito das mais diferentes formas de institucionalização da arte, tomadas, muitas vezes, como mediações necessárias entre as pessoas e a arte.

O cap í tulo apresenta resumidamente uma hist ó ria filos ó fica de algumas das mais influentes concep çõ es de beleza, procurando mostrar como a arte foi concebida em fun çã o da beleza at é ser entendida como sua produtora, para obter enfim autonomia em rela çã o a ela. Chama-se a aten çã o também para duas “atitudes est éticas” bastante instigantes de uma perspectiva filos ó fica: a vivê ncia contempor â nea de certo distanciamento em rela çã o à s “artes eruditas” ou à s institucionalizadas (dada a sua “dificuldade” ou “incompreensibilidade”) e a tend ê ncia, da parte de muitos dos pró prios fil ó sofos, a teorizar sobre a arte, distanciando-se do real impulso que leva à pr á tica art í stica.

A fim de refletir sobre essas duas atitudes, propõe-se um estudo da noção de contexto ou de mundo da arte e um exercício de escuta do que os artistas (e não os teóricos, sejam eles filósofos, críticos, sociólogos ou outros) têm a dizer sobre o fazer artístico. Uma reflexão que se debruça de maneira atual e intensa sobre essas atitudes vem de Georges Didi-Huberman, que une trabalho teórico (filosófico e histórico), experiência artística e busca por uma reeducação da experiência do “ver”.

Respostas e comentários

Página 300

Dialogando

Professor(a), as respostas certamente terão variações, conforme a sensibilidade individual e em função do nível de contato de cada estudante com o mundo da arte clássica e/ou popular. Mais importante do que classificar o que é ou não arte é promover o diálogo entre os(as) estudantes sobre os critérios que fundamentam essas classificações.

Página 303

Para refletir e argumentar

Basicamente, Nietzsche denunciava o costume equivocado de considerar a arte um milagre por duas razões: (1) porque as pessoas estão acostumadas a separar o exercício da razão e a vivência da paixão, tolhendo os impulsos naturais que nelas podem brotar, levando-as à realização artística; (2) porque, separando a razão da paixão, as pessoas sentem-se estranhas na presença dos artistas (seres que unem razão e paixão) e, a fim de não serem levadas a olhar para si mesmas e sentir a necessidade de mudar, preferem chamar os artistas de gênios, mantendo-os à distância, como seres inalcançáveis e especiais.

Página 317

Dialogando

É possível observar em ambas a exploração das manchas e variações de luz (características do Impressionismo), aspectos que revelam uma ruptura com os padrões tradicionais da arte.

Página 323

Exercício A

1. A despeito de a experiência art ís tica e a experiência estét ica serem possibilidades dadas a todos os seres humanos, geralmente se costuma distinguir a “arte popular”, como arte ingênua e espont ânea, da “grande arte”, que seria caracterizada por uma

linguagem e uma técnica que exigem aprendizado e iniciaç ão

2. Embora muitas vezes essa diferenç a e steja mais relacionada ao mercado art ístico e ao uso financeiro das obras do que propriamente ao seu valor art ís tico, é importante aprender as diversas linguagens utilizadas pelos artistas para ser capaz de aprofundar a experiência estét ica da contemplaç ão de suas obras.

3. Como sugere Danton, ao afirmar que a arte é capaz de criar o seu mundo pr óprio, é preciso conhecer os conceitos e o contexto especí f ico de cada obra de arte.

Página 324

Integrando com… Arte

1. Professor(a) , a resposta a essa atividade dependerá, como se pode imaginar, da visão que o(a) professor(a) de Arte tem do fazer artístico. Importa, de algum modo, relacionar sua visão com as concepções de arte e beleza apresentadas neste capítulo, ainda que ele(a) possa discordar de nossa apresentação da experiência estética e da experiência artística, fornecendo ocasião para um proveitoso diálogo diante da classe e com a classe. Quanto ao trabalho de Pérola Santos, pode-se empregar o vocabulário tradicional da “arte engajada” para designar sua produção artística em busca do que ela entende por ancestralidade, ou seja, os elementos culturais que a conectam com a história do seu quilombo de origem e a história geral do movimento quilombola. Mas a nomenclatura “arte engajada” pode ser excessivamente redutora, como se seu trabalho fosse apenas voltado a uma causa sociopolítica, quando, na realidade, ela celebra também a beleza por si mesma, pelo gosto, pelo prazer, pela união de percepções que transcendem fronteiras de etnia ou raça, cor, classe social etc.

2. Resposta pessoal.

Página 325

Retomando

1. Imitar a vida ou agir como a Natureza age significa, para Aristóteles, produzir assim como a vida produz (donde sua concepção da arte como imitaç ão da vida), mas visando ao gozo, ao prazer da participação na Arte. Os seres humanos praticam essa imitaç ão justamente porque têm prazer em conhecer e em reproduzir aquilo que conhecem.

2. Para André Bazin, a atividade do artista de imitar a Natureza busca “parar o tempo”, escapar do fluxo constante da correnteza da vida e gravar para sempre o momento que passa, seja por meio da imagem, seja por meio do som ou do toque, como uma tentativa de “embalsamar” a vida, assim como os antigos eg íp cios faziam com os corpos de seus mortos. No entanto, para Bazin, essa imita ç ã o n unca é uma simples reprodu ç ã o o u uma réplica idêntica à sua fonte, pois o artista sempre a apreende de modo particular e com base em seu próprio ponto de vista.

3. Para Platão, a Beleza não se reduz às coisas belas. Estas nascem e perecem, transformam-se e desaparecem, sem, no entanto, que a Beleza desapareça do mundo e sem que a sua essência deixe de existir ou se transforme. Dessa maneira, a Beleza não pode ser definida pelas coisas belas; ela é uma forma, uma ideia, uma regra invisível e indefinível que estrutura o mundo de dentro para fora. Só é possível apontar para ela de modo inteligível, tomando por base as coisas belas.

4. Não. Platão não era contrário à arte, mas desconfiava da arte que não levava aqueles que a contemplam a observar além da manifestação sensível da beleza ou da arte que aprisiona seus observadores às manifestações das coisas belas, sem remeter à origem de toda beleza: o Bem.

5. Recuperando elementos platônicos e aristotélicos, Plotino concede um estatuto mais positivo à arte. Para ele, a arte como imitação é uma ocasião para se chegar ao conhecimento das Ideias ou Essências, comungando da unidade do mundo. O desejo humano pela beleza e pela unidade pode ser acionado por meio da arte, levando à aproximação com a fonte de todas as coisas.

6. Se Deus existe e é a fonte de todas as coisas, então, para ser entendido realmente como ser divino, ele deve ser pensado como o ser que é bom e belo em máximo grau. Ele passa a ser considerado o próprio bem e a própria beleza. Por essa razão, todas as coisas no mundo são belas como um reflexo de seu criador, já que foram criadas harmonicamente por ele.

7. Para os pensadores do período medieval, a fixação da atenção nas coisas belas e no trabalho dos artistas poderia desviar a atenção das pessoas da fonte da beleza, provocando um afastamento de Deus. Nesse sentido, a arte só será boa se apontar

para uma superação de si mesma, levando a atenção humana a se fixar em Deus.

8. Para o pensamento antigo e medieval, a beleza está relacionada a certa estrutura essencial do mundo, superando as coisas belas e as próprias produções artísticas. Dessa perspectiva, a beleza existe por si e não depende da arte; ela está relacionada ao bem. A arte vincula-se, assim, à ação humana e ao modo de ser das coisas; já a beleza dá o modo de ser das coisas, sem ser um resultado da arte.

9. A beleza passa a ser entendida como produção da arte. A ideia de natureza comparada a um grande mecanismo que segue determinadas leis possibilitou um enorme desenvolvimento técnico no Renascimento, dando origem a uma abordagem que enfatizava o aspecto produtivo da beleza. Antigos métodos gregos são redescobertos e desenvolvidos, e a temática religiosa deixa de ter a centralidade que tinha no período anterior. Pouco a pouco, a beleza vai sendo associada apenas ao fazer artístico e ao prazer dos sentidos, sem relação com a prática ética e o modo de ser das coisas.

10. Segundo Kant, existe certa universalidade no juízo de gosto que, apesar de se dar na intimidade subjetiva de alguém, exprime algo que pode ser confirmado por qualquer pessoa. A experiência do belo e o juízo que manifesta a beleza de algo dificilmente podem ser contrariados por alguém. É como se o indivíduo os possuísse em sua capacidade de avaliação estética, algo comum a toda a espécie humana.

11. Para Hegel, o espírito opera por oposição à natureza, buscando ser superior a ela. Por essa razão, a preocupação com o belo natural seria não apenas um esforço inútil como também prejudicial, uma vez que, para ele, um espírito fixado na natureza é um espírito alienado na consciência individual, que ainda não desenvolveu a autoconsciência do espírito absoluto.

12. Para Kierkegaard, Hegel desenvolveu um pensamento hipersofisticado, mas perdeu o que realmente importa e existe: o indiv íduo. Hegel teria construído um castelo de pensamento e foi morar em um “quartinho dos fundos”, pois, como indiv íduo, n ã o se via contemplado na edifica ç ã o intelectual que ele mesmo havia levantado e da qual a individualidade fora banida.

13. A arte contempor â nea assumiu uma contestaç ão das referências tradicionais de beleza, dando uma renovada atenç ão à individualidade e à possibilidade humana de mudar e de criar o próprio modo de produzir e ver a beleza.

14. O objetivo da atividade é p ô r o s(as) estudantes em contato direto com maneiras de ver e reagir ao dada ísmo e ao surrealismo (tomados aqui como estilos t í p icos em que a arte se toma a si mesma como objeto) e fazer com que eles(as) possam interpretar as rea ç õ e s registradas da perspectiva do conte ú do trabalhado no cap í t ulo, especificamente a rela ç ã o e ntre arte e beleza na Contemporaneidade. O p ú bl ico-alvo sugerido para a entrevista (professores de L í n gua e Literatura Brasileira) é certamente o que tem mais probabilidade de poder posicionar-se a respeito desses estilos, mas tamb é m o utras pessoas podem ser entrevistadas (professores ou não). O crit é r io orientador da entrevista é o de procurar pessoas habituadas à literatura. No entanto, se os(as) colegas professores(as) considerarem adequado, podem alterar o modo de fazer a entrevista e apresentar aos entrevistados uma reprodu ç ã o d e uma pintura surrealista, um poema ou um trecho de romance dada í s ta, pedindo que eles deem sua rea ç ã o.

Atividade complementar

Organize com a turma duas audições musicais, a de uma peça clássica e a de uma peça popular. A primeira é considerada uma das mais difíceis composições para piano já produzidas. A segunda explora muitos recursos de voz, o instrumento por excelência dado pela natureza, nem sempre facilmente controlável. As duas peças são incomparáveis entre si, porém cada uma delas é dotada de valor artístico. O objetivo é que as peças sejam ouvidas por prazer.

Após ouvi-las, sem solicitar manifestações da turma, o(a) colega professor(a), deve ficar alerta a comentários espontâneos, comparações etc. Havendo reações, aproveite para abrir uma roda de conversa para que os(as) estudantes se expressem com total liberdade. Não havendo reações, respeite o silêncio. Afinal, com o passar do tempo, a memória das duas peças pode produzir seus efeitos sem necessariamente a extração de alguma conclusão.

• 1a peça: “Variações sobre um tema de Paganini para dois pianos ”, composição do polonês Witold Lutoslawski (19131994). Execução da argentino-suíça Martha Argerich (1941-)

e do brasileiro Nelson Freire (1944-2021), dois dos mais destacados pianistas do mundo. Disponível em: www. youtube.com/watch?v=vsQo0z5CqM8. Acesso em: 15 out. 2024.

• 2 a pe ç a: “AmarElo”, composi çã o do brasileiro Leandro Roque de Oliveira, o Emicida (1985-), com inspiração inicial em “Sujeito de sorte”, do brasileiro Belchior (1946-2017), e participação especial de Majur (1995-) e Pabllo Vittar (1993-), cantores de grande destaque na cena musical brasileira contemporânea. Disponível em: www.youtube.com/ watch?v=PTDgP3BDPIU. Acesso em: 15 out. 2024.

Sugestões de leitura

• DANTO, Arthur C. O descredenciamento filosófico da arte. Tradução: Rodrigo Duarte. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. (Coleção Filô/Estética).

Conjunto de alguns dos ensaios mais centrais de um dos maiores conhecedores de estética do século XX.

• HELLO, Ernest. O homem: a vida, a ciência e a arte. Tradução: Roberto Mallet. São Paulo: Ecclesiae, 2015.

A vida, a ciência e a arte entendidas como três espelhos em que se reflete a mesma verdade.

• LACOSTE, Jean-Yves. A filosofia da arte. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

Reconstrução sintética, porém densa, da história da Filosofia da Arte.

• SCRUTON, Roger. Beleza. Tradução: Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2015.

Reflexão filosófica em defesa da beleza como valor real e universal.

• WOLFE, Gregory. A beleza salvará o mundo: recuperando o homem em uma era ideológica. Tradução: Marcelo Gonzaga de Oliveira. São Paulo: Vide, 2015.

Em nossa época de confitos e guerras, a arte pode redimi-la.

Capítulo 12 – A experiência religiosa

Introdução

A experiência religiosa, seja para quem afirma vivenciá-la, seja para quem nega a possibilidade de uma tal vivência, implica a percepção de um “sentido transcendente” ao mundo, porque não captável nem verificável apenas por meio dos cinco sentidos, mas solicitando também uma adesão livre e mesmo amorosa da parte dos crentes, bem como uma recusa livre e

consciente da parte dos que negam sua possibilidade. O capítulo estrutura-se, portanto, pelo estudo filosófico do “sentido transcendente” segundo as abordagens de Friedrich Schleiermacher (p. 340) e Rudolf Otto (p. 343), para dar a palavra a autores irreligiosos ou ateus, fundamentalmente Friedrich Nietzsche (p. 347) e Baruch de Espinosa (p. 347), antes de devolver a palavra a dois pensadores crentes, Tomás de Aquino (p. 354) e Karl Rahner (p. 357), os quais, cada qual a seu modo, parecem ter oferecido justificativas filosóficas para a afirmação da possibilidade de percepção do sujeito transcendente que não seriam sujeitas às críticas irreligiosas ou ateias.

Além disso, em união com as posições de Schleiermacher e Otto, elas oferecem um quadro epistêmico que permite uma abordagem mais adequada da experiência religiosa autêntica.

Objetivos

Apresentar a possibilidade de compreensão filosófica da experiência religiosa como percepção e nomeação (interpretação) de uma dimensão suprarracional na realidade (chamada de Deus ou Ser Supremo por grande parte das religiões), sem que tal percepção e tal nomeação sejam entendidas como necessariamente irracionais ou absurdas. Por outro lado, visa-se compreender algumas das principais reflexões do ateísmo, em diálogo e debate filosófico com o teísmo e o deísmo.

BNCC

Competências gerais: 1, 2, 3, 4, 7, 8, 9 e 10.

Competências específicas: 1, 2, 3, 5 e 6.

Habilidades: EM13CHS101, EM13CHS102, EM13CHS103, EM13CHS104, EM13CHS105, EM13CHS106; EM13CHS203; EM13CHS304; EM13CHS502, EM13CHS503; EM13CHS601.

Temas contemporâneos transversais

Multiculturalismo (Diversidade Cultural; Educação para valorização do multiculturalismo nas matrizes históricas e culturais brasileiras).

Orientações didáticas

A estratégia central do capítulo consiste em compreender o tema da experiência religiosa por meio da atenção, por um lado, à vivência e aos argumentos das pessoas de fé e, por outro, à vivência e aos argumentos de pessoas que não têm fé. Em todos os aspectos, o ponto de partida é a experiência, pois, em se tratando de investigar algo transcendente (como

ocorre também com a arte, por exemplo), a experiência de cada indivíduo é o único fundamento possível se o que se pretende é ser o mais fiel possível ao que de fato é vivenciado.

Assim, por analogia com a relação entre os filósofos e a arte (caso em que se corre o risco de teorizar sobre o fazer artístico sem conhecê-lo “por dentro”), parece adequado abordar a religião filosoficamente mediante a atenção à experiência das pessoas religiosas, o que permitirá tratar da questão da existência de Deus com mais propriedade, ou seja, procurando as razões de inteligibilidade da presença de um ser divino que se manifesta na experiência humana, e não como se ele fosse um mero objeto de debate abstrato. Esse cuidado metodológico, porém, implica uma dificuldade: a possibilidade de pensar que a experiência religiosa (assim como a artística) seja compreensível apenas para quem a vivencia. Se fosse assim, toda tentativa de reflexão filosófica sobre a religião seria impossível ou mesmo antifilosófica, uma vez que a experiência religiosa mesma não seria universal nem acessível a todos.

Essa problemática tem uma longa história em Filosofia e já recebeu tratamentos que, em vez de oferecer interpretações sobre a “essência” da experiência religiosa (caso em que esta é analisada “de fora”, com o risco de projetar-se nela o que ela não é ou de ser reduzida a meros códigos de conduta moral), procuram explorar experiências humanas universais buscando inteligibilidade para elas. Em outras palavras, trata-se de considerar a possibilidade de identificar uma base “objetiva” de tal experiência: o mistério, o incondicionado ou o indeterminado a que se costuma chamar de Deus (Ser Supremo, Força Maior etc.). Se a dimensão incondicionada da realidade constitui a base “objetiva” da experiência religiosa, essa experiência só é possível na volta do sujeito sobre si mesmo, o que dá a “demonstrabilidade” da base objetiva da religião, fazendo com que a experiência religiosa seja inteligível e universal. Por fim, essa universalidade legitimamente racional ou filosófica confirmaria, do ponto de vista histórico, a universalidade do fato religioso e seria também confirmada por ele.

Tendo em vista essa delicada articulação entre experiência e inteligibilidade, o capítulo explora a necessidade de refinamento das noções de percepção e de experiência, apontando para o mistério (uma dimensão racionalmente inesgotável) que envolve a existência humana e suscita uma reação específica. Essa reação foi chamada por Friedrich Schleiermacher de sentimento religioso e o seu objeto foi chamado de

Sagrado ou Numinoso por Rudolf Otto. Sem pressupor a necessidade de uma linha histórica progressiva, mas com atenção à continuidade temática, é de grande importância filosófica o exercício de escuta dos pensadores contrários à religião e/ou à afirmação religiosa da existência de Deus. Metodologicamente, é adequado distinguir entre autores irreligiosos (contrários à religião) e autores ateus (contrários à existência de Deus). Esse exercício permite identificar em autores religiosos (teístas) ou deístas elementos nem sempre perceptíveis quando lidos segundo clichês interpretativos estabelecidos sem crítica. É nesse sentido que os textos de Tomás de Aquino e de Karl Rahner, dois autores religiosos, são apresentados apenas ao final do capítulo, como elaborações filosóficas resultantes não apenas de um esforço analítico-racional mas também de um diálogo universal que vai além da simples tentativa de provar a existência daquela realidade que as religiões consideram divina. Por fim, dada essa base comum de inteligibilidade, o tema da experiência religiosa requer imediatamente uma refleão sobre a convivência humana (aqui acentuada como convivência republicana).

Respostas e comentários

Páginas 330-331

Integrando com… Antropologia

1. Cada espécie, começando pela nossa, considera a si mesma como humana, ao passo que enxerga as demais espécies como algo não humano. Assim, uma onça se vê como humana, mas ao deparar-se com um ser de outra espécie, considera-o como algo não humano.

2. Conforme a perspectiva ameríndia, o mito refere-se ao tempo em que os “animais falavam”, ou seja, em que todas as espécies conseguiam se comunicar. Nesse tempo “passado”, todos eram humanos – os próprios humanos e os outros seres vivos. No tempo “atual”, todos ainda são humanos, mas não se enxergam mais dessa forma e, assim, não conseguem mais se comunicar. O mito revela, então, que a condição de ser humano é comum a todos os seres.

3. Considerar que todos os seres vivos compartilham o que se entende por humanidade, ou a característica do que é humano, leva os ameríndios a se conectarem com a Natureza de uma maneira mais íntima. Assim, na visão desses povos, é de suma importância o cuidado com a Natureza.

Página 334

Dialogando

Lembre-se de que analisar o comportamento religioso não significa fazer um julgamento, sobretudo porque, no limite, nenhum ser humano conhecerá plenamente o que tem na consciência sobre Deus. Analisar o comportamento significa procurar sinais que permitam conhecer o sentido que os(as) estudantes dão à própria vida. Com essa intenção é que os(as) convidamos a refletir.

Página 335

Exercício A

1. Gosto de viver; abertura aos outros seres, vendo-os como portadores de um sentido que os torna membros de um grande conjunto; abertura ao mundo como um todo que partilha do mesmo horizonte; solidariedade universal e percep ç ã o de valores; busca por satisfa ç ã o do desejo em uma dimensão que não se resolve apenas no horizonte do mundo finito, mas que é misteriosa e transcendente.

2. A experiência religiosa é a experiência da pessoa em relaç ão ao ser divino.

3. Sim. A experiência religiosa pode ser apenas uma experiência de si mesmo (resumida ao nível estritamente humano, social e psicológico), e não uma experiência de si em relação ao ser divino. Assim, o fato de uma pessoa praticar uma religião não significa necessariamente que ela pense em um sentido transcendente para a exist ência ou experimente uma relaç ão com o mistér io.

Página 336

Integrando com… Língua Portuguesa Respostas pessoais.

Professor(a), o desejo, tal como descrito no poema, é o que põe o ser humano em movimento, assim como a ovelha busca a erva fresca que a alimenta. O horizonte é a direção para onde se volta o olhar humano; ele representa as possibilidades que se abrem a cada pessoa. Por sua vez, pensar no que pode estar por trás do horizonte significa perguntar por que o horizonte é desta ou daquela maneira. Significa também perguntar se não podemos interferir em nosso próprio horizonte ou construí-lo. Como diz o poema, ver no horizonte o desejo de riqueza leva a refletir se a riqueza é realmente o único horizonte da vida humana ou se é possível ir além dela. Deixando-nos envolver ainda mais pela beleza do poema e recorrendo a algumas

ferramentas filosóficas para compreendê-lo, podemos observar que o tema central é o horizonte. Apesar de Deus aparecer já no título e também em quatro linhas do poema, o tema central é o horizonte, é porque mesmo Deus é apresentado como um ser que aparece no horizonte. Para o poeta, o desejo move tudo e leva tudo a buscar um horizonte: o ancião deseja Deus assim como a ovelha deseja a erva fresca e assim como os jovens desejam mais do que riqueza. Alguém poderia discordar do poeta, dizendo que nem todos os anciãos creem em Deus, assim como a ovelha nem sempre busca erva fresca (ela pode buscar também água e repouso) e como nem todo jovem consegue olhar para além da riqueza. Precisamos saber, porém, que o poeta não tem a obrigação de escrever um texto “correto” do ponto de vista sociológico, biológico, histórico etc. Ele não escreve uma análise científica. Em vez disso, tem a liberdade de declarar que Deus é o objeto do desejo do ancião porque, sem nos basearmos em nenhuma visão religiosa específica (budista, cristã, espírita, judia, muçulmana etc.), mas considerando que o nome Deus representa um horizonte misterioso que talvez contenha respostas para as perguntas mais importantes sobre o sentido da vida, então o ancião, no alto de sua vida, certamente tem o desejo de saber qual horizonte encontrará depois da morte. Esse “depois” é um misério radical; pode ser que não haja mais nada depois da vida terrestre; pode ser que haja algum horizonte novo. Em todo caso, é como horizonte misterioso que o poeta apresenta o conteúdo contido por trás da palavra Deus.

Página 337

Para refletir e argumentar

1. Respostas pessoais.

2. As imagens que fazemos de Deus, por meio desse termo, são subjetivas. Isso porque vivemos em uma sociedade pluralista e porque não é possível conhecer a Deus através dos cinco sentidos. Dessa forma, o ponto de partida mais plausível em uma educação religiosa é falar de Transcendente

Página 342

Exercício B

1. A percep ç ão da dependência total do ser humano com relaç ão aos outros seres e à totalidade do mundo ou o infinito, uma depend ê n cia que não pode ser definida nem inteiramente explicada, mas sentida. Essa percep ç ã o causa a aceita ç ã o amorosa da totalidade da existência.

2. Resposta pessoal. Espera-se que cada estudante sirva-se, ao menos em partes, do que aprendeu das análises de Schleiermacher.

Página 345

Exercício C

Como mistério transcendente, Deus não é algo que pode ser dominado conceitualmente. Dessa perspectiva, tudo o que se afirma sobre ele, inclusive nas diversas religiões (com ou sem livros sagrados), é afirmado por analogia. A analogia, ao mesmo tempo que permite falar sobre o transcendente tal como o percebemos, evita a pretensão de que se acredite que aquilo que se pensa sobre ele corresponde exatamente ao que ele é

Página 360

Exercício D

A diferença entre o teísmo e o deísmo está no modo como compreendem a possibilidade de uma relação com o ser divino: enquanto o teísmo é uma postura filosófica que, além de procurar justificar a existência de Deus, concebe a possibilidade de se estabelecer uma relação com ele (por exemplo, com o auxílio dos textos sagrados), o deísmo é uma postura que procura afirmar a existência de um ser divino para explicar o próprio mundo, sem, no entanto, supor qualquer tipo de relação com esse ser.

Páginas 363-364

Retomando

1. O fato de que, em uma experiência religiosa autêntica, a pessoa experiencia a si mesma, em relação a uma realidade que a transcende. Não se trata de uma ilus ão ou fantasia, porque é justamente em uma relação que a pessoa se experiencia: a relação com um polo ou um horizonte de sentido ilimitado, com a concomitante percepção da incapacidade de dominar intelectualmente esse polo ou horizonte.

2. Porque as formas modernas de referir-se aos diferentes tipos de experiência não eram suficientes para retratar a experiência religiosa, uma vez que a reduziam a algo de car áter metaf ísico (compreens ão intelectual do modo de ser das coisas) ou a algo de car áter moral (um código de normas de conduta). Considerando que sentimento é d iferente de emoç ão, Schleiermacher propõe chamar de sentimento religioso a experiê n cia relativa à percepç ão do mistério divino.

3. Porque, no dizer de Otto, era necess á r io garantir que a experi ê n cia religiosa aut ê n tica não fosse confundida com um mero subjetivismo nem se

restringisse a uma experi ê n cia produzida pela consci ê n cia dos indivíduos (o que poderia não passar de ilus ão ou fantasia). Era preciso garantir que um objeto ou um conteúdo se apresentasse à consciência, possibilitando falar sobre ele. É nesse sentido que Otto passou a analisar, da perspectiva do objeto ou do conteúdo, a especificidade da consciência religiosa.

4. O Princípio de Clifford diz que é r acionalmente errado e moralmente desonesto acreditar em algo sem evidências. Desse princípio, alguns extraem a conclus ã o de que cabe à s pessoas que t ê m f é o ônus da prova da existência de Deus. Já o Outro Princ í p io de Clifford afirma que é d esonesto e equivocado rejeitar sem provas algo que faz parte de nossas crenç a s. Em outras palavras: é leg í t imo crer em algo que a nossa razão não nos obriga a rejeitar. Dessa perspectiva, o ônus da prova cabe a quem nega a existência de Deus.

6. Para Nietzsche, a pr á t ica religiosa nega o que existe de mais aut ê n tico no ser humano: seus impulsos e suas forç a s vitais de autoafirmaç ão e domínio de todos os obst áculos. Para ele, a pr ática religiosa leva ao enfraquecimento, à nega ç ão da vida e à hipocrisia, com base na afirmaç ão de que é melhor ser fraco e humilde. Assim, as pessoas religiosas ocultariam seu desejo de dominar e condenariam os mais fortes como maus e pecadores. Na realidade, elas seriam movidas por um desejo doentio de vingança , cultivando a tristeza e o pessimismo diante da vida.

7. Para Espinosa, o mundo pode ser explicado por si mesmo, sem nenhuma necessidade de recorrer a algo transcendente, inclusive porque a existência de duas subst â ncias (uma mundana e uma transcendente) seria contraditór ia, uma vez que subst â ncia é o que existe por si e que não requer outra coisa para ser compreendido. Portanto, o mundo passa a ser entendido como automanifestaç ão do ser divino; e Deus, como a própria Natureza.

8. Russell nega a ideia de causa primeira, procurando demonstrar que o argumento para defendê -la é falacioso: se tudo tem uma causa, ent ão D eus mesmo seria causado, deixando de ser a “causa primeira”.

9. O fato de que, para ser causa de si, algo precisaria já existir para poder causar-se, o que é absurdo. Além disso, segundo Tom á s , a observa ç ã o sensí vel mostra que todas as coisas do mundo são

produzidas por outras e não são a causa de si mesmas.

10. Não. O termo causa , aqui, não se refere a começo temporal, mas a uma origem na ordem das causas (o que pode se dar fora do tempo). Para Tom á s , mesmo que o mundo seja eterno e sem um começo temporal, ele necessita de uma causa que seja diferente dele mesmo e que possa ser a fonte de seu movimento (uma vez que no mundo não se observa nada que seja causa de si mesmo, dificultando dizer que o mundo se cause a si mesmo em seu conjunto).

11. Para Tomá s de Aquino, era mais racional pensar que Deus pode produzir seres diferentes dele mesmo, pois essa possibilidade significa que o ser divino é ainda mais perfeito do que se pudesse produzir apenas a si mesmo. Sendo a causa primeira e sendo infinito, é mais coerente pensar Deus como um ser consciente e livre (do contr ár io, se lhe faltasse consci ê n cia e liberdade, ele seria limitado e, portanto, finito). Ser consciente e livre, por sua vez, requer que ele possa fazer ou não aquilo que se passa em sua “mente”. Ora, conceber seres diferentes de si e criá-los mostra-se como atos de um ser mais perfeito do que seria um que apenas produzisse a si mesmo.

12. Porque Rahner adota a estratégia de mostrar que, mesmo aquilo que é considerado como conhecimento claro e seguro (conhecimento racional), fundamenta-se em um mistério que não pode ser dominado pela razão (mistério suprarracional). Trata-se do mistério que envolve nossos pressupostos metaf ísicos e históricos. Somente numa atitude de aceitação desse mistério é que a razão pode funcionar com coerência (uma vez que ela não é capaz de demonstrar a verdade dos pressupostos com que ela opera). Ora, se a própria razão se fundamenta em um mistério, ela mesma aponta para uma infinitude que ela não pode dominar conceitualmente, um abismo sem fundo de possibilidades que, em termos religiosos, designa-se pelo nome Deus

Dissertação

Professor(a), espera-se que os(as) estudantes partam da descrição da experiência religiosa como uma experiência em que as pessoas remetem sempre ao mistério divino na construção de suas visões de mundo e em suas interpretações de tudo o que envolve a existência (experiência que teria cinco dimensões, elementos ou “passos”: gosto de viver, abertura aos outros seres, abertura ao mundo e sentimento de que

todos os seres têm um destino comum, sentimento de uma solidariedade universal e interpretação dessa experiência em termos de transcendência do mundo, chamando de Deus essa dimensão transcendente).

Na sequência, dado que o objeto ou o conteúdo dessa experiência é transcendente, é filosoficamente legítimo perguntar em que sentido se fala de “experiência”, uma vez que essa noção parece referir-se ao conhecimento por meio dos cinco sentidos. O que alguns filósofos enfatizam, para responder a essa pergunta, é o fato de que a experiência religiosa não é experiência de “algo”, mas experiência da “própria pessoa em relação a algo”: ela experimenta, em sua vida, os efeitos da relação que ela interpreta como uma relação com o ser considerado transcendente. Friedrich Schleiermacher chamava a atenção para a especificidade dessa experiência (por ele denominada “sentimento religioso”), associando-a a um sentimento de total dependência em relação ao conjunto dos seres e ao mistério infinito que envolve a existência. Em continuidade com o trabalho de Schleiermacher, porém atento ao risco da acusação de “subjetivismo”, Rudolf Otto procurou esclarecer melhor a especificidade da experiência religiosa, concentrando-se não apenas nos aspectos subjetivos mas também nos objetivos. Com base em uma análise comparativa de diferentes religiões, Otto identificou características comuns ao modo como o ser transcendente ou divino “apresenta-se” nas religiões ou como é entendido por elas: ele sempre provoca um sentimento de estado de criatura; é um mistério que transcende o mundo, fascina e produz uma nova energia na vida de quem com ele depara. Ao objeto transcendente que se apresenta à experiência religiosa, Otto denominou “Sagrado” ou “Numinoso”, de modo que, embora pareça uma tautologia, resulta filosoficamente legítimo dizer que “a experiência religiosa é uma experiência do Sagrado”.

Textos complementares

Experiência e consciência

A oposição entre experiência e pensamento é o primeiro falso lugar-comum que convém remover. [...] Com efeito, a experiência não é senão a face do pensamento que se volta para a presença do objeto. Daqui se infere imediatamente uma proporção direta entre a plenitude da presença e a profundidade da experiência, ou seja, a penetração dessa plenitude pelo ato de pensar. [...] [É o caso, por exemplo, do] sentimento de presença que acompanha a percepção de um objeto exterior, a emoção ou a vivência que nascem desse

sentimento. [...] As origens etimológicas do termo experiência oferecem-nos o melhor caminho para alcançarmos a sua essência Seja o grego empeiría seja o latim experientia, falam-nos de “tentar”, “comprovar”, “assegurar-se”, o que significa percorrer o objeto em todos os sentidos. O que caracteriza, pois, a experiência é a penetração e como que a transfixão do objeto, o que, de um lado, libera o conhecimento do caráter lábil, precário ou confuso da simples sensação e, de outro, suprime o vazio das formas puramente lógicas. A partir desse ponto de vista, a experiência articula-se entre dois polos bem definidos: o objeto que é fenômeno ou que aparece, e o sujeito que é ciência ou consciência que retorna sobre o objeto para penetrá-lo e igualmente penetrar-se da sua presença.

[...]

Convém acentuar que a experiência, como o conhecimento em geral, é uma forma de relação ativa entre a consciência e o fenômeno. A presença que se manifesta na experiência não ocupa a consciência como um objeto que invade um espaço vazio. Manifestar-se à consciência significa manifestar-se segundo leis estruturais da consciência mesma, que tornam possível a manifestação como tal. Eis por que não há experiência sem uma forma de expressão do objeto pelo sujeito da experiência. Aqui surge um segundo aspecto que convém pôr em relevo: a pluralidade das formas de expressão da consciência. Mas essa pluralidade supõe o ato original e constitutivo da expressão mesma. Expressão ativa, ou seja, acolhimento da manifestação do objeto ao sujeito que o interioriza, assume a sua presença e, de certo modo, com ele se identifica (um axioma da ontologia clássica do conhecimento diz, numa aparente tautologia que encerra profunda intuição: o inteligente em ato é o inteligível em ato – Aristóteles, De anima III, 430; Tomás de Aquino, Suma contra os gentios II, cap. 59). Mas, expressão pluriforme, na medida mesma em que a noção de presença, como a noção de ser com a qual é logicamente coextensiva, é uma noção analógica. Presença e expressão se diversificam; e a experiência obedece a essa diversificação. No entanto, podemos estabelecer desde já que toda experiência verdadeiramente tal deve encontrar sua expressão, ou seja, sua linguagem; e que toda expressão ou linguagem da experiência traduz uma experiência.

LIMA VAZ, Henrique Claudio de. Escritos de Filosofia I: problemas de fronteira. São Paulo: Loyola, 1986. p. 243-244.

A religião é uma tentativa de o ser humano explicar-se a si mesmo

Como falar de religião?

Os educadores religiosos, antes mesmo de experimentar as dificuldades próprias da temática a desenvolver, tropeçam na questão da linguagem.

[...]

Sem querer abordar aqui, na sua amplitude, a questão da linguagem religiosa, convém acenar para a direção em que se deve trabalhar, a fim de melhor compreender o sentido das reflexões sobre o conteúdo [que interessa aqui].

Quando se analisa o fenômeno religioso contemporâneo, a religião parece se conservar como um rio subterrâneo, carregando confusas recordações da infância e do passado, que foram ou mesmo estão sendo ainda soterradas pela vida cotidiana, mas que assim mesmo vêm à tona em certos momentos difíceis ou privilegiados.

A análise das festas de fundo religioso – como o Natal, por exemplo, e o Ano Novo, as comemorações do nascimento e da iniciação à vida, como o batismo cristão e a circuncisão judaica, a primeira comunhão como rito de maturidade, comparável ao bar-mitzvá judaico, o casamento, os ritos fúnebres e as orações pelos mortos – permite a interpretação desse remanescente religioso, presente na própria sociedade secularizada.

No fundo de cada ser humano há um religioso que se ignora ou finge se ignorar. Pode ter sido recalcado, esquecido, coberto com a areia e com a lama da vida, mas permanece presente. De repente, para surpresa de todos, mostra-se vivo, transfigurado em mil gestos, sentimentos e expressões, cuja significação pode até lhe escapar ao olhar distraído, mas não engana quando melhor observada.

Seria um erro ir procurar fora do ser humano a fonte do discurso religioso. A religião é um sistema de significações construído em torno da percepção e da expressão do sentido da vida. Todo ser humano é religioso a seu modo, mesmo sem o saber. A religião brota do coração e se alimenta das profundidades do ser. Se a quisermos encontrar de fato, é lá que a devemos procurar.

Dizemos, por isso, que o estudo da religião é, antes de tudo, uma arqueologia do sujeito. Assim como o arqueólogo escava a terra para reconstituir a vida humana a partir dos vestígios que

consegue trazer à luz, a religião é também uma tentativa do homem de se explicar a si mesmo e de reconhecer o que está por trás de sua vida, alimentando efetivamente o seu modo de ser e seu posicionamento diante de si mesmo, dos outros e do mundo.

Ora, escavar no ser humano, para reconstituir seu sistema de significações, é analisar as expressões que dá à sua vida, polarizadas pelo sentido fundamental que as inspira, mediação do Sentido/Outrem Transcendente. Em outras palavras, é analisar o discurso religioso, no sentido mais amplo do termo.

A questão da linguagem religiosa se apresenta, pois, de fato, como uma arqueologia do discurso religioso, que nos levará ao reconhecimento das implicações radicais, que condicionam o processo de comunicação.

CATÃO, Francisco. Em busca do sentido da vida: a temática da educação religiosa. São Paulo: Edições Paulinas, 1993, p. 155-157.

Sugestões de leitura

• CATÃO, Francisco. Deus. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. (Filosofias: o prazer do pensar, v. 8).

Reflexão sobre a realidade denominada Deus com base na tradição filosófica grega e na tradição bíblica.

• GRONDIN, Jean. Que saber sobre filosofia da religião? Tradução: Lucia Mathilde Endlich Orth. Aparecida: Ideias e Letras, 2012.

Consideração das religiões como respostas mais pertinentes à questão do porquê da vida, da qual partem também as filosofias.

• MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre secularização e dessecularização. Tradução: Euclides Balancin. São Paulo: Paulinas, 1995.

Estudo da religião; do seu anunciado esquecimento, nos anos 1960, ao seu efetivo reaparecimento, nos anos 1970.

• MATA, Sérgio da. História e religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (História & reflexões).

Atualização das relações entre História e religião que escapam à oposição entre uma certeza incondicional afirmadora e uma certeza incondicional negadora.

• MICHELETTI, Mario. Filosofia analítica da religião. Tradução: José Afonso Beraldin. São Paulo: Loyola, 2007.

Estudos da religião segundo as abordagens da filosofia lógico-analítica.

• OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A religião na sociedade urbana e pluralista. São Paulo: Paulus, 2013. (Coleção Temas de atualidade).

Estudo do fenômeno religioso como condição de compreensão da modernidade.

• SIMMEL, Georg. Religião: ensaios. Tradução: Stefan F. Klein et al. São Paulo: Olho d’Água, 2011. 2 v. Ensaios sobre a experiência religiosa escritos pelo cofundador da Sociologia, acionando dados filosóficos, psicológicos e históricos.

Transcrições dos áudios

Capítulo 2

Podcast: Argumentos na era da pós-verdade

[Música de transição]

Você já participou de alguma conversa entre amigos ou familiares em que parecia haver um consenso possível? Quanto mais polêmico o tema: eleições, religião, futebol, em vez de debater ideias e justificar nossas opiniões, partimos para uma discussão acalorada demais.

Aliás, isso ocorre muitas vezes de forma agressiva, com cada um firme em suas convicções, muitas vezes com pouca ou nenhuma validade objetiva, tentando impor suas “verdades”, ou seja, as verdades em que acredita.

Este é um cenário cada vez mais comum, relacionado por muitos pesquisadores ao conceito de pós-verdade: em síntese, a ideia de que entramos em um período em que os critérios objetivos da verdade se modificaram tanto que resultaram em uma transformação não só dos debates públicos mas também do nosso modo de argumentar.

[Música de transição]

Para entender melhor o assunto, vamos refletir sobre o que é um argumento. Em linhas gerais, desde os escritos de Aristóteles sobre lógica e argumentação, entendemos um argumento como um conjunto de premissas que sustentam uma afirmação ou uma negação sobre algo de nossa realidade.

A validade de um argumento pode ser determinada de várias maneiras. Por exemplo, verificar se suas premissas não se contradizem ou, como nas teses científicas, avaliar se uma afirmação pode realmente ser comprovada por meio de experimentos.

Isso, é claro, sendo bem sucinto, pois os princípios da lógica formal e os debates relacionados à

teoria do conhecimento sobre a validade de um experimento científico são bem mais complexos do que esse resumo.

De todo modo, as discussões sobre a argumentação ainda estimulam pesquisas instigantes, como as realizadas por Jean-Claude Anscombre e Oswald Ducrot, com sua teoria da Argumentação na Língua, ou a análise do discurso de Michel Foucault.

Se, por um lado, as pesquisas e debates sobre a pós-verdade são exemplos estimulantes, por outro, torna-se cada vez mais necessário e urgente compreender o contexto político sombrio da pós-verdade em nossos dias.

[Música de transição]

A definição mais conhecida de pós-verdade foi cunhada em 2016. Segundo o Dicionário Oxford, o termo se refere à “circunstância em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal”.

O termo existia desde meados dos anos 1990, mas ganhou nova relevância com o debate sobre o Brexit em 2016, no Reino Unido, e a ascensão política de Donald Trump nos Estados Unidos em 2017, que, segundo levantamento do Washington Post, proferiu mais de 30 mil afirmações falsas ou enganosas durante seus quatro anos de governo.

A pós-verdade não significa que as pessoas deixaram de acreditar na verdade, mas que consideram ser verdadeira apenas a verdade em que creem. Por esse costume centrado em si mesmas e fechado aos outros, a pós-verdade está associada sobretudo aos movimentos ultraconservadores, pois são estes movimentos que mais fazem uso da técnica de se tomarem como fontes de verdade, produzindo desinformação e autoritarismo baseado nos afetos pessoais como estratégia política, especialmente o medo, a ameaça e a ativação dos instintos mais primitivos dos interlocutores.

Mas o termo transcende a atuação desses agentes, já que, como afirma a antropóloga Letícia Cesarino, a pós-verdade remete a uma quebra de confiança, no mundo contemporâneo, com os modelos tradicionais de produção e comunicação do conhecimento legítimo.

A pós-verdade não é, assim, uma visão de mundo coerente que apresenta um novo conceito de verdade; é, antes, um discurso que descredibiliza os modos consolidados de justificar a verdade, como a argumentação científica ou o jornalismo investigativo. E pior: ela oferece alternativas que são simulacros falsos desses mecanismos: pesquisas forjadas que se passam por trabalhos de institutos sérios, factoides políticos que se apresentam como furos investigativos.

[Música de transição]

O crescimento do acesso à informação pelo meio digital é crucial nisso tudo – sobretudo nas redes sociais, com seus ecossistemas pouco controlados e suas bolhas algorítmicas, que reproduzem e reforçam as opiniões pessoais de seus participantes.

Esse cenário se torna um terreno fértil para a desinformação em massa, caracterizado pela proliferação de notícias falsas que vão desde a calúnia até o negacionismo científico. Os “artifícios retóricos” utilizados, se é que podemos chamá-los assim, são muitos: por exemplo, o uso de informações retiradas do contexto que, no fluxo ininterrupto das timelines, induzem o usuário a uma conclusão incorreta.

[Música de transição]

O trabalho da pesquisadora e professora Michelle Dominguez, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, apresenta tal cenário de forma mais concreta. Ela analisa uma imagem amplamente compartilhada no contexto da pandemia de covid-19: uma tabela mostrando dados de mortalidade no Brasil em abril de 2020, onde, aparentemente, as mortes relacionadas à covid seriam muito inferiores às provocadas por outras causas, como doenças cardíacas ou violência no trânsito.

No entanto, a tabela contém, no mínimo, duas falsidades: os dados sobre a covid estão desatualizados, e os dados sobre as outras causas não se referem aos primeiros meses de 2020, mas sim ao ano inteiro de 2018. Pouco importa: para quem quer defender a ideia de que a covid não era tão séria, a tabela servia para validar seus pressupostos.

A pós-verdade, portanto, é um dos maiores problemas políticos de nosso tempo: impossibilita o diá-

logo entre pessoas comuns e corrói o ambiente democrático de um país.

Por isso, a pesquisadora britânica Elizabeth Seger menciona, em um artigo para a BBC News, a importância de pensar sobre o que ela chama de segurança epistêmica, ou seja, uma ação voltada ao conhecimento e ao modo como ele é produzido.

Em um cenário cada vez mais empobrecido de debate, pode tornar-se difícil discernir entre um argumento relevante e um factoide, irresponsável ou deliberadamente falso. Daí a importância do saber filosófico, que fornece os instrumentos para a construção de argumentos honestos, críticos e válidos no campo investigativo.

[Música de transição]

Créditos:

Todos os áudios usados nesse podcast são da Freesound.

Capítulo 8

Podcast: Ubuntu: “eu sou porque nós somos”

[Música de transição]

A filosofia é uma área do conhecimento que se dedica a refletir, analisar e esmiuçar uma diversidade quase inesgotável de assuntos e objetos. O interesse em estudar as várias filosofias, ou melhor, em realizar a prática de uma atitude filosófica, contribui não só para a compreensão daquilo que caracteriza a disciplina mas também expande nossos horizontes e nos permite adotar uma visão que engloba a experiência do pensamento, respeitando as diferentes filosofias e as múltiplas sabedorias.

[Música de transição]

E é sob essa perspectiva de respeito às filosofias e sabedorias que vamos tratar de uma sabedoria, ou, por que não dizer, de um conceito que, além de sintetizar alguns aspectos de uma cultura milenar, nos ajuda a problematizar o individualismo que tanto caracteriza o mundo ocidental e algumas de suas correntes intelectuais.

Estamos falando do Ubuntu – termo comum a algumas línguas bantas, faladas entre diferentes comunidades e povos da África Subsaariana, especialmente no Congo e na África do Sul.

A amplitude desse conceito fica clara já na sua etimologia. Como nota o filósofo sul-africano Mogobe Ramose, trata-se da junção de duas partículas: Ubu, que “evoca a ideia geral de ser-sendo ou ser-em-movimento”, e ntu, “a força universal como tal, a qual, porém, nunca ocorre separada de suas manifestações”.

Ramose indica que o termo tem, portanto, não só uma dimensão ontológica, isto é, voltada ao sentido e estudo do Ser, mas também uma dimensão epistemológica – voltada para a capacidade de conhecimento da realidade em suas diferentes manifestações.

[Música de transição]

Essas dimensões estão intrinsecamente ligadas ao caráter cosmológico e até mesmo político, no sentido amplo, do conceito de Ubuntu. Uma de suas traduções mais comuns é essa, oferecida pelo filósofo congolês

Bas’Ilele Malomalo: “Sou porque nós somos”, tradução que se deriva do ditado banto Ubuntu ngumuntu ngabantu, cujo sentido mais preciso é o da máxima zulu e xhosa: “uma pessoa é uma pessoa por meio de outras pessoas, o que indica que um ser humano só se realiza quando se humaniza com outros”.

[Música de transição]

Este é o sentido mais profundo de Ubuntu, que sintetiza um pouco das práticas culturais e das visões de mundo dos povos bantos: um tipo de pensamento que destaca a centralidade da comunidade e, mais ainda, da interação do humano com outros viventes. O interesse no pensamento Ubuntu é, sobretudo, em sua intencionalidade, que estimula os agentes humanos a encararem as múltiplas dimensões da vida.

[Música de transição]

O pensamento e a cultura dos povos bantos se tornam ainda mais interessantes quando analisamos o contexto de emergência desse pensamento no debate público contemporâneo, sobretudo quando refletimos sobre cidadania e Direitos Humanos.

Como observamos, o Ubuntu é uma sabedoria milenar e de vasta amplitude nas culturas bantas, dentre elas, a dos povos zulus, naturais da região onde fica hoje a África do Sul.

E foi justamente na luta de resistência ao apartheid nesse país, no decorrer do século XX, que o Ubuntu emergiu como o centro de uma corrente de pensamento que busca ativamente se opor ao segregacionismo e ao individualismo que caracterizavam a sociedade sul-africana daquele período.

Diferentes figuras da luta contra o apartheid mobilizaram os valores associados ao Ubuntu para funda-

mentar sua ação política e modo de pensar. Exemplos notáveis são: Nelson Mandela, primeiro presidente negro eleito da África do Sul e preso por quase três décadas pelo regime do apartheid; Steve Biko, importante militante contra o mesmo regime, morto durante uma prisão ilegal em 1977; e Desmond Tutu, arcebispo anglicano que recebeu o Nobel da Paz devido ao seu combate ao regime de segregação sul-africano.

Este último, inclusive, nos oferece uma das descrições mais sucintas do Ubuntu: “eu sou humano porque eu pertenço, porque participo e porque compartilho”.

[Música de transição]

As premissas do Ubuntu também foram fundamentais no campo do direito dos Estados africanos, sobretudo nos processos de criação das comissões da verdade que julgaram os crimes e violações dos direitos dos cidadãos.

Nelson Mandela, em 1996, discursou sobre a importância da Comissão da Verdade e Reconciliação na Cidade do Cabo, destacando a capacidade dos povos africanos para a superação de conflitos, sem esquecê-los. Essas comissões tinham como um dos principais objetivos a confissão integral dos crimes ocorridos durante o período de vigência do apartheid, não como uma forma de segregar os violadores, mas com o sentido de reparar as vítimas de forma pacífica. O caráter do pensamento Ubuntu na formação dessas comissões, está em reconhecer que se atacamos a humanidade do outro, nós nos desumanizamos, como revelou Desmond Tutu.

Em síntese, a sabedoria Ubuntu nos traz um pensamento valioso: não existimos sozinhos, e a nossa humanidade se constitui, em sentido forte, conforme nos abrimos para a coexistência com outros e outras.

[Música de transição]

E talvez, sob esse aspecto, possamos de algum modo aproximar o Ubuntu do conceito de cosmopolítica do filósofo francês Étienne Balibar. Poderíamos dizer que reconhecer a humanidade de todos pode ser o caminho para a construção de uma cidadania participativa em que os interesses individuais sejam incorporados à vida comunitária e, com isso, os direitos sejam pensados em função do enfrentamento aos novos desafios que surgem no mundo contemporâneo.

[Música de transição]

Créditos:

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Capítulo 10

Podcast: Duas noções de boa vida: Eudaimonia e Neltiliztli

[Música de transição]

Para você, uma boa vida é sinônimo de uma vida feliz?

Pode parecer óbvio dizer que sim, mas… Talvez a resposta a essa pergunta não seja tão simples. Para refletir sobre isso, vamos recorrer a um dilema presente na Odisseia, poema épico de Homero que conta a história do herói Odisseu e seu retorno de Troia a Ítaca.

Odisseu, após muitos percalços, desembarca em uma ilha onde vivia Calipso, uma ninfa que o recebe e que acaba por se apaixonar por esse simples mortal. Ele é tentado a ficar na ilha, casar-se com ela e desfrutar da imortalidade e de todos os prazeres que o lugar paradisíaco tem a oferecer. Para isso, bastava ele desistir de voltar à sua cidade natal, onde sua esposa Penélope e seus filhos o esperavam.

Eis aí o dilema: de um lado, uma vida eterna de prazeres, e, do outro, o mundo real, com suas dores e dificuldades, mas também com a companhia de pessoas queridas. Odisseu sacrifica a oferta da imortalidade para voltar à sua cidade, sua família e sua condição de mortal.

[Música de transição]

É com base nesse dilema que o filósofo estadunidense Lynn Sebastian Purcell elabora uma reflexão sobre duas noções de boa vida, a eudaimonia, presente em Aristóteles, e neltiliztli, presente na cultura e sociedade dos povos astecas.

A história de Odisseu é apenas o ponto de partida para refletir sobre essas duas noções interessantes da boa vida. Eudaimonia é um termo grego que significa, literalmente, “bom estado de espírito”, e é geralmente traduzido como “felicidade”. Neltiliztli é um termo nahuatl, da língua mesoamericana falada pelos astecas, que pode significar tanto “veracidade” quanto “enraizamento”.

Entre as proximidades e distanciamentos desses conceitos, podemos compreender melhor os dilemas éticos envolvidos na discussão sobre o que caracteriza uma boa vida.

[Música de transição]

O termo eudaimonia, mesmo sendo um substantivo comum na língua grega, se consagrou como con-

ceito devido aos trabalhos de Aristóteles. Para esse filósofo, a felicidade estaria ligada às virtudes, e essas, por sua vez, aos hábitos equilibrados e orientados por um jogo entre a razão e o desejo, buscando-se sempre o meio-termo entre o excesso e a falta em cada caso singular. Por exemplo, se 400 gramas de alimento são o meio-termo adequado para uma pessoa não esportiva, talvez 1 kg seja o meio-termo entre o excesso e a falta para um atleta.

Purcell vê certo caráter racionalista no pensamento aristotélico, mas reconhece que Aristóteles também evidencia a importância das virtudes relativas à convivência com os outros cidadãos. Na vida social, virtudes como a prudência, a justiça e a coragem permitem um juízo equilibrado sobre as deliberações e práticas entre iguais.

Aristóteles entende, nesse sentido, que a pólis é uma das condições mais importantes para a felicidade humana, garantindo a segurança individual e a liberdade política. A importância da pólis está justamente em permitir uma vida social equilibrada, muito embora, nas pólis daquela época, as mulheres, as crianças, os escravos e os estrangeiros ainda fossem considerados como não cidadãos.

Mas é a pólis que oferece material à vida contemplativa do filósofo, que podia dedicar-se, então, à investigação do Bem Supremo, ensiná-lo aos concidadãos e abrir-lhes o caminho da eudaimonia plena.

Deste modo, o pensamento aristotélico se caracterizaria, também em sua ética, por orientar nossas ações a uma finalidade específica, tida como a mais elevada: o conhecimento do Bem Supremo, a Inteligência que, conhecendo apenas a si mesma, desperta o movimento do mundo, que é eterno, e que, intuindo a existência da Perfeição, aspira a ser como ela, assim como o amado pode atrair o amante sem mesmo saber de sua existência.

[Música de transição]

Para os astecas, a ética está centrada na noção de neltiliztli. Esta, por sua vez, tem algumas aproximações com as reflexões aristotélicas: por exemplo, também parte das virtudes humanas e, como nota Purcell, entende que uma boa vida está relacionada à boa execução ou performance das virtudes – seja ao realizar bem uma atividade ou agir de modo justo na comunidade.

Porém, o neltiliztli se distancia da eudaimonia em outros aspectos. Nesse pensamento, não há a noção de Bem Supremo no sentido aristotélico, e muito menos de um caminho único para atingi-lo. As virtudes,

para os astecas, têm raízes menos individuais, e é nesse contexto que emerge a questão do “enraizamento” no pensamento neltiliztli

[Música de transição]

Para entendermos a concepção asteca de boa vida, é preciso termos em mente que ela se fundamenta em algumas práticas abrangentes, que estão relacionadas a quatro níveis de enraizamento.

O primeiro seria o próprio corpo, fonte das paixões e da energia, mas também da memória e do conhecimento.

O segundo nível estaria ligado ao que poderíamos chamar de espírito ou razão, mas que os astecas identificam, primordialmente, ao rosto e ao coração: seria nossa personalidade em sentido amplo, pensada desde o início como intrinsecamente ligada ao corpo e a seu equilíbrio.

No terceiro nível, há o enraizamento, que é a própria comunidade: pois seria no contato com os outros, em seus afazeres comunitários e cargos sociais, que a personalidade própria de cada um tomaria forma plena.

O que nos leva, por fim, ao quarto nível de enraizamento, que está com a divindade, que é compreendida

entre os astecas, primordialmente, como a própria força da natureza.

Deste modo, a boa vida para os astecas se relaciona, também, com o equilíbrio entre diferentes esferas da vida, mas a ênfase volta-se mais para o diálogo entre esses níveis e para o papel social das virtudes que conduzem ao bem viver.

[Música de transição]

No neltiliztli, a boa vida não está relacionada à busca por felicidade, pois, como aponta o filósofo Purcell, esse seria um objetivo equivocado, já que a vida na Terra é vivida entre altos e baixos; intercala momentos de alegrias e dificuldades, então a relevância estaria em buscar uma vida virtuosa.

Observando a concepção aristotélica e a do neltiliztli, podemos dizer que a boa vida é aquela em que orientamos as nossas ações pela virtude para atingir um objetivo que somos capazes de determinar e escolher deliberadamente. Podemos ser capazes de encontrar o equilíbrio frente às nossas experiências e situações que vivenciamos. E você, como caracterizaria uma boa vida?

Créditos:

Todos os áudios inseridos neste podcast são da Freesound.

Referências bibliográficas comentadas

• ALMEIDA JÚNIOR, José Benedito de. A avaliação em filosofia. Princípios, Natal, v. 12, p. 145-156, 2005. Reflexões sobre avaliar o aprendizado de Filosofia.

• ALMEIDA, Guido Antônio. Perspectivas da filosofia no Brasil do ponto de vista de um scholar. Kriterion, Belo Horizonte, v. 129, p. 411-416, 2014. Um intelectual brasileiro, Guido de Almeida, pensa a filosofia no Brasil.

ARANTES, Paulo E. et al. A filosofia e seu ensino. 2. ed. São Paulo: Vozes: EdUC, 1995. Reflexões e dados objetivos sobre a natureza do ensino de Filosofia.

AZAR FILHO, Celso Martins; RIBEIRO, Luís Antônio Cunha. Para que filosofia?: um guia de leitura para o Ensino Médio. Rio de Janeiro: Nau, 2014. Proposta de orientação da Filosofia no Ensino Médio.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: MEC: SEB, 2018. Disponível em: https:// www.gov.br/mec/pt-br/escola-em-tempo-integral/BNCC_ EI_EF_110518_versaofinal.pdf. Acesso em: 24 set. 2024. Orientações e propostas pedagógico-políticas que estruturam o novo Ensino Médio.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Filosofia: ensino médio. Organização: Marcelo Carvalho, Gabriele Cornelli. Brasília, DF: MEC: SEB, 2010. (Coleção Explorando o ensino, v. 14).

Obra de auxílio para a formação em Filosofia, com textos, entrevistas etc.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o Ensino Médio: v. 3: Ciências Humanas e suas Tecnologias. Brasília, DF: MEC: SEB, 2006. v. 3.

Orientações federais oficiais sobre conteúdos do ensino de Filosofia a serem trabalhados no Ensino Médio, inclusive sobre a autonomia dos(as) professores(as).

• BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília, DF: MEC: SEB, 1999. Disponível em: http:// portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ciencian.pdf. Acesso em: 19 abr. 2024.

Padrões oficiais do governo federal para organização do ensino no Ensino Médio.

• CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Tradução: Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. (Ensino de filosofia).

O ensino de Filosofia é filosófico, não apenas didático-metodológico.

• CHAUI, Marilena. Contra o Febeapá. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 55, n. 129, p. 431-438, jun. 2014. Recordando o que, durante a ditadura civil-militar, foi o Febeapá, a autora reflete sobre o significado do ensino de Filosofia.

• CHAUI, Marilena. Ideologia e educação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 42, n. 1, p. 245-257, jan./mar. 2016. Artigo clássico em que a pensadora brasileira reflete sobre a ideologia na educação.

• CHAUI, Marilena. Percursos de Marilena Chaui: filosofia, política, educação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 42, n. 1, p. 259-277, jan./mar. 2016. Entrevista com a pensadora brasileira a respeito de suas posições sobre educação e pesquisa.

• DANNER, Leno Francisco (org.). Ensino de filosofia e interdisciplinaridade. Porto Alegre: Fi, 2013. (Série Filosofia e interdisciplinaridade).

Estudo das possibilidades de um ensino interdisciplinar de Filosofia.

• DOMINGUES, Ivan. Painel: filosofia no Brasil: perspectivas no ensino, na pesquisa e na vida pública. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 129, p. 389-396, 2014. O autor, especialista em Filosofia no Brasil, extrai consequências para o ensino, a pesquisa e a vida pública.

• FIGUEIREDO, Vinicius de. Falta debate. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 129, p. 417-424, 2014.

Tomada de posição sobre o caráter dialógico do ensino de Filosofia.

• GALLO, Silvio. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o Ensino Médio. Campinas: Papirus, 2012. O autor defende o ensino de Filosofia por meio da elaboração de conceitos.

• GOLDSCHMIDT, Victor. Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos. In: GOLDSCHMIDT, Victor. A religião de Platão. Tradução: Oswaldo Porchat, Ieda Porchat. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963. p. 139-147.

Texto de orientação para muitas gerações de filósofos brasileiros, referente aos métodos dogmático-genéticos para ler as obras filosóficas.

• GRANGER, Gilles-Gaston. Por um conhecimento filosófico. Campinas: Papirus, 1989.

O filósofo da ciência e da cultura também toma posição sobre o que seria um conhecimento filosófico.

• GUIMARÃES, Bruno; ARAÚJO, Guaracy; PIMENTA, Olímpio. Filosofia como esclarecimento. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. (Práticas docentes).

Apresentação da Filosofia com base no conceito de esclarecimento.

• KOHAN, Walter O. Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Reflexão livre sobre a relação entre aprendizado e ensino em Filosofia.

• KOHAN, Walter O. (org.). Filosofia: caminhos para seu ensino. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. (Coleção Sócrates).

Propostas de organização do ensino de Filosofia.

KRITERION: Revista de Filosofia. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2014. v. 55, n. 129. Número dedicado ao ensino de Filosofia.

LEBRUN, Gérard. Por que filósofo? Estudos Cebrap, São Paulo, v. 15, p. 148-153, 1976. Reflexão sobre o porquê e a significação dos filósofos no mundo contemporâneo.

LIBERA, Alain de. Arqueologia do sujeito. Tradução: Fátima Conceição Murad. São Paulo: FAP: Unifesp, 2013. v. 1.

Estudo acadêmico-científico sobre as origens da experiência de ser sujeito na Filosofia ocidental.

MAAMARI, Adriana Mattar; BARROS, Antônio Tadeu Campos de; WEBER, José Fernandes (org.). Filosofia na universidade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006. (Coleção Filosofia e ensino). Estudos sobre o status da Filosofia na universidade.

MARGUT TI, Paulo. Sobre a nossa tradição exegética e a necessidade de uma reavaliação do ensino de filosofia no país. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 55, n. 129, p. 397-410, 2014.

Articulação de um estudo da tradição interpretativa filosófica na História do Brasil e a necessidade de reavaliar o ensino de Filosofia em nosso país.

MARTINS, Marcos Francisco; PEREIRA, Ascísio dos Reis (org.). Filosofia e educação: ensaios sobre autores clássicos. São Carlos: EdUFSCar, 2014.

Estudos de autores clássicos a respeito do ensino de Filosofia.

• MERLEAU-PONT Y, Maurice. Em toda e em nenhuma parte. In: MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos selecionados. Tradução: Marilena Chaui, Pedro de Souza Moraes. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Coleção Os pensadores).

Reflexão sobre a identidade ou não identidade da Filosofia.

• MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. História stultitiae e história sapientiae Discurso, São Paulo, n. 17, p. 151-171, dez. 1988.

Segundo o pensador brasileiro, o “sistema” nos salvará, in extremis, do niilismo; nada é verdadeiro, mas nem tudo será

ainda permitido; e o sistema será o último refúgio para os espíritos.

• NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. Ensinar filosofia: uma conversa sobre aprender a aprender. Campinas: Papirus, 2007. (Papirus debates).

Tema do aprender a aprender em abordagem estruturalista e dialética.

• NOGUEIRA, Renato. O ensino de filosofia e a lei 10.639. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.

Estudo específico sobre as determinações da lei no 10.639 sobre o ensino de Filosofia.

• NOVAES, José Luis Corrêa; AZEVEDO, Marco Antonio Oliveira de (org.). A filosofia e seu ensino: desafios emergentes. Porto Alegre: Sulina, 2010.

O ensino de Filosofia visto em sua relação com questões emergentes nos anos 2010, porém hoje integrantes da vida social.

• PIOVESAN, Américo et al. Filosofia e ensino em debate. Ijuí: Editora Unijuí, 2002. (Filosofia e ensino, v. 2).

Debates sobre a relação entre Filosofia e ensino.

• PORTA, Mario Ariel González. A filosofia a partir de seus problemas: didática e metodologia do estudo filosófico. São Paulo: Loyola, 2003. (Leituras filosóficas).

O autor insiste que a Filosofia deve ser estudada com base em seus problemas específicos e toma Kant como exemplo didático.

• PRADO JÚNIOR, Bento. Um convite à falsificação. Folha de S.Paulo, São Paulo, 19 dez. 1999. Disponível em: www1. folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_2_2.htm. Acesso em: 24 set. 2024.

Artigo analisado aqui, tendo como mote a provocação de que o estado atual do estudo de Filosofia é um convite à falsificação.

• SÁ JUNIOR, Lucrécio Araújo de; MENEZES, Antonio Basílio Novaes Thomaz de. Ensino de filosofia: experiências e problematizações. Campinas: Pontes, 2014.

Mais uma análise do ensino de Filosofia que se baseia nas posições de quem a escreveu.

• SALLES, João Carlos. Os livros e a noite. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 129, p. 425-431, 2014. Reflexão literário-filosófica sobre o ensino de Filosofia.

• SILVA, Isabel Medina. Avaliação no ensino de filosofia. Philosophica 7, Lisboa, p. 151-162, abr. 1996. Como indica o título, a obra dedica-se ao tema da avaliação.

• VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Tradução: Alda Baltar, Maria Auxiliadora Kneipp. Brasília, DF: EdUnB, 1982. (Cadernos da UnB).

Obra ímpar de um dos maiores historiadores do mundo, que fundou uma metodologia histórica de referência para os estudos contemporâneos.

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