

Vol. 1
Harmonia dos Evangelhos
Volume 1 – Mateus, Marcos e Lucas
Série Comentários Bíblicos
João Calvino
Título do Original:
Calvin’s Commentaries: Commentary on Matthew, Mark, LukeVolume 1
Edição baseada na tradução inglesa de T. A. Smail, publicada por Wm. B. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, MI, USA, 1964, e confrontada com a tradução de John Pringle, Baker Book House, Grand Rapids, MI, USA, 1998.
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Copyright © Editora Fiel 2013
Primeira Edição em Português 2023
A versão bíblica utilizada nesta obra é a Revista e Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB)
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Editor-chefe: Tiago J. Santos Filho
Supervisor Editorial: Vinicius Musselman Pimentel
Coordenador Gráfico: Gisele Lemes
Editor: Tiago J. Santos Filho
Tradutor: Rev. Valter Graciano Martins
Revisor: Franklin Ferreira, André Soares
Diagramador: Rubner Durais
Capista: Rubner Durais
ISBN brochura: 978-65-5723-223-1
ISBN e-book: 978-65-5723-222-4
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Mateus 8.23–27; Marcos 4.35–41; Lucas 8.22–25 ............................... 474
Mateus 8.28–34; Marcos 5.1–20; Lucas 8.26–39 ................................. 479
Mateus 10.1–8; Marcos 6.7; Lucas 9.1, 2 .............................................
Mateus 10.9–15; Marcos 6.8–11; Lucas 9.3–5 ..................................... 497
Mateus 10.16–20; Lucas 12.11, 12 ........................................................ 503
Mateus 10.21–25; Lucas 6.40 ................................................................ 510
Mateus 10.26–31; Marcos 4.22, 23; Lucas 8.17; 12.2–7 ...................... 516
Mateus 10.32–36; Marcos 8.38; Lucas 9.26; 12.8, 9, 51–53 ................ 522
Mateus 10.37–42; Marcos 9.41; Lucas 14.25–33 ................................. 527
Começar este prefácio sobre a Harmonia dos Evangelhos é um tanto irônico porque esse foi o último dos escritos do Novo Testamento a receber a atenção de João Calvino. O reformador francês começou seus comentários do Novo Testamento com Romanos, em 1540, continuando depois pelas demais epístolas. Ele, então, se voltou para Atos e para o Evangelho de João, antes de, finalmente, publicar o Comentário sobre a harmonia , analisando os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. 1 Mas, como T. H. L. Parker argumentou, essa ordem “estava não apenas mais próxima da história literária do Novo Testamento, visto que muitas das epístolas antecederam os sinópticos em sua forma canônica, mas também mais próxima da história da igreja primitiva, pois sua confissão de fé concentrava-se em Jesus Cristo como Criador e Redentor e assim seguia o ensinamento de São João e das Epístolas”. Romanos seria a porta que abriria toda a Escritura, enquanto João serviria como “uma chave 1 Para as informações quanto ao contexto do lançamento do livro Harmonia dos Evangelhos, cf. Darlene K. Flaming, “Calvin as Commentator on the Synoptic Gospels”, in Donald K. McKim, ed., Calvin and the Bible (New York: Cambridge University Press, 2006), p. 131-35.
para abrir a porta para o entendimento” dos demais escritos do Novo Testamento. Assim, “sugerimos que a ordem de trabalho de Calvino não foi ditada por suas predileções pessoais [...] ou mesmo por julgamentos do que a época precisava, mas pelas exigências teológicas do Novo Testamento”. Em outras palavras, “para Calvino o Jesus Cristo dos Evangelhos sinópticos era compreendido à luz dos ensinos das Epístolas e do quarto Evangelho”. 2
Então, qual é o propósito dos três evangelhos para o reformador? Calvino começou o argumento de sua Harmonia dos Evangelhos definindo o Evangelho por meio de uma paráfrase das palavras de Paulo. Ele foi “prometido por intermédio de seus profetas nas Sagradas Escrituras, com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos” (Rm 1.2-4). Ou seja, “o evangelho é um testemunho da salvação revelada, a qual fora anteriormente prometida aos pais, numa sucessão ininterrupta de eras. Realça, ao mesmo tempo, a distinção entre as promessas que mantiveram a esperança do povo em suspense, e essa jubilosa mensagem, pela qual Deus declara que haveria de concretizar aquelas coisas que inicialmente exigiu que esperassem.”3 Com essa definição, Calvino afirmou que todo o Novo Testamento deveria ser corretamente chamado de Evangelho. Embora quatro livros do Novo Testamento sejam propriamente chamados de evangelhos, Calvino destacou um papel diferente para os evangelhos sinópticos, pois eles apresentam Jesus como o cumprimento das promessas de Deus do Antigo Testamento.4 Como ele escreveu:
O poder e os resultados de sua vinda são ainda mais plenamente expressos em outros livros do Novo Testamento. E, mesmo
2 T. H. L. Parker, Calvin’s New Testament Commentaries (Louisville: Westminster John Knox Press, 1993), p. 31-35.
3 João Calvino, Harmonia dos Evangelhos, vol. 1 (São José dos Campos: Fiel, 2023), p. 23-24.
4 Beth Kreitzer, “Introdução a Lucas”, in Beth Kreitzer, org., Lucas: comentário bíblico da Reforma (São Paulo: Cultura Cristã, 2018), p. 37. Esses “três evangelhos são chamados de sinópticos com base na expressão grega ‘enxergaram juntos’, por causa de suas diversas semelhanças e trechos sobrepostos”.
nesse aspecto, João difere amplamente dos outros três Evangelistas, pois se ocupa quase totalmente de explicar o poder de Cristo, bem como das vantagens que derivamos dele; eles, por sua vez, insistem mais plenamente em um ponto: o de que nosso Cristo é aquele Filho de Deus que fora prometido para ser o redentor do mundo. Sem dúvida, entreteceram a doutrina que se relaciona com o ofício de Cristo e nos informam qual é a natureza de sua graça, com que propósito ele nos foi dado; porém, ocupam-se, principalmente, como eu já disse, em mostrar que, na pessoa de Jesus Cristo, já se cumpriu o que Deus havia prometido desde o princípio.5
Em síntese, “os evangelhos relatam as ‘boas notícias’ de Jesus, o Cristo, o Messias ou ‘o Ungido’ de Deus, e sua utilidade para nós”, as “boas-novas de Jesus Cristo e a salvação que ele nos traz”.6 Mas os evangelhos “não pretendem de forma alguma acabar com a Lei e os Profetas”. Tendo como alvo os anabatistas, “para quem”, segundo Calvino, “o Antigo Testamento agora se tornou supérfluo”, o reformador destaca que “os evangelistas apontam diretamente para Cristo e nos exortam a buscar nele o cumprimento do que a Lei e os Profetas proclamam. Lemos o evangelho com proveito, portanto, apenas se aprendermos a ver as conexões entre ele e as promessas de tempos anteriores”.7
A Harmonia dos Evangelhos foi publicada em Genebra, em 1555, por Robert Estienne, em edições em latim e francês. Calvino não pregou especificamente sobre a harmonia dos Evangelhos até a segunda metade de 1559. Portanto, não há possibilidade de que o comentário tenha sido uma reformulação de sermões pregados anteriormente na Catedral de São Pedro. No entanto, a partir de 1553, a sua harmonia dos Evangelhos foi abordada nas reuniões de estudos bíblicos de sexta-feira da Companhia de Pastores, reuniões conhecidas como 5 Calvino, p. 25-26.
6 Kreitzer, p. 45-46.
7 Wulfert de Greef, The Writings of John Calvin: An Introductory Guide (Louisville, KY: Westminster Press, 2008), p. 84.
congrégations, quando havia uma discussão sobre uma passagem da Escritura previamente selecionada.8 No entanto, é improvável que o comentário tenha sido baseado em transcrições desses estudos, porque Calvino não foi o único a fazer palestras nessas reuniões.
O comentário foi dedicado “aos nobilíssimos e ilustríssimos senhores, os burgomestres e o Concílio da nobre cidade de Frankfurt [am Main]”, e é datado de primeiro de agosto de 1555. Nessa carta, Calvino elogiou a cidade não apenas por sua própria posição firme na “defesa” e na “manutenção da doutrina pura, como foi promulgada por Cristo”, mas também por ter recebido refugiados religiosos da França e da Inglaterra, de modo que é “merecida honra ao Filho de Deus, fazendo com que seu evangelho fosse claramente ouvido em sua cidade em idiomas estrangeiros”.9 Mas, na época em que este comentário foi escrito, o ministro luterano de Hamburgo, Joachim Westphal,10 estava tentando expulsar os refugiados ingleses de Frankfurt, que haviam chegado em 1554.11 No fim de 1554, Westphal publicou um tratado, Collectanea sententiarum d. Aurelii Augustini de coena Domini, opondo-se
8 As congrégations de Genebra, realizadas às sextas-feiras pela manhã, na Catedral de São Pedro, foram instituídas em 21 de novembro de 1536 para a formação permanente dos ministros da Palavra e para a preservação da unidade doutrinal. A Escritura era estudada por meio do método de lectio continua, que fazia uso da Vulgata, da Bíblia Hebraica e da Septuaginta. Cerca de 60 pessoas participavam desses encontros. As Ordenanças Eclesiásticas de 1541 e 1561 tornaram obrigatória a presença dos pastores da cidade e de vilas próximas nas congrégations. Cf. Wulfert de Greef, The Writings of John Calvin, p. 101-104. Membros leigos da igreja estavam presentes regularmente nessas reuniões, entre eles artesãos, professores, médicos, advogados e impressores. Cidadãos nascidos em Genebra e refugiados franceses também participavam das reuniões. Embora os membros leigos não tivessem um papel de liderança, sua presença e participação nas congrégations ajudaram a moldar a compreensão da teologia reformada em Genebra. Cf. Erik A. de Boer, “The Presence and Participation of Laypeople in the Congrégations of the Company of Pastors in Geneva”. The Sixteenth Century Journal v. 35, n. 3 (Fall, 2004), p. 651-670.
9 João Calvino, Harmonia dos Evangelhos, vol. 1, (São José dos Campos: Fiel, 2023), p. 19.
10 Para mais informações, cf. o verbete “Joachim Westphal”, em https://en.wikipedia.org/wiki/ Joachim_Westphal_(of_Hamburg). Em 1541, ele se tornou pregador da Hauptkirche Sankt Katharinen, em Hamburgo; em 1562, tornou-se superintendente interino e, de 1571 a 1574, serviu como superintendente de Hamburgo, presidindo a igreja luterana da cidade-estado.
11 Para uma carta escrita de Genebra, em 13 de janeiro de 1555, “aos ingleses em Frankfurt”, refugiados na cidade por causa das perseguições da rainha católica Maria I da Inglaterra, cf. Jules Bonnet, org., Cartas de João Calvino (São Paulo: Cultura Cristã, 2012), p. 118-19. O reformador francês “os exorta a fazerem, em sua liturgia, todas as mudanças compatíveis com a manutenção da união e da paz na igreja”.
à visão de Calvino sobre a Ceia do Senhor, dedicando-o ao conselho da cidade de Frankfurt am Main. Nessa obra, ele cita Agostinho de Hipona como um dos principais suportes para a compreensão luterana da Ceia do Senhor. Na Harmonia dos Evangelhos, Westphal não foi mencionado pelo nome; no entanto, as passagens sobre a Última Ceia são um dos poucos lugares onde Calvino se permite uma exposição mais detalhada. Ele se via lutando contra a visão católica da transubstanciação e contra “outros mestres literalistas”, os gnésio-luteranos, que “rejeitam o sentido figurado e imediatamente, como fanáticos, o pedem de volta”, defendendo a consubstanciação.12
Ao refutar essas visões, Calvino confiou na “metonímia” como a forma pela qual a linguagem sacramental sempre deveria ser interpretada. Ele insistiu que essa figura de linguagem não seria uma inovação, pois “esse princípio de linguagem não foi forjado recentemente por nós; ele foi compendiado por Agostinho sob a autoridade dos antigos, e abraçado por todos, no sentido de que os nomes das coisas espirituais são impropriamente atribuídos aos sinais, e que todas as passagens da Escritura em que se mencionam os sacramentos devem ser explicadas dessa maneira”.13 Essa controvérsia com os luteranos sobre a Ceia do Senhor também perpassa as compreensões sobre a pessoa de Cristo que aparecem de forma proeminente na Harmonia dos Evangelhos. A outra controvérsia teológica que serve como pano de fundo da escrita deste comentário envolveu as opiniões antitrinitarianas de Miguel Serveto, que foi executado em Genebra, em 27 de outubro de 1553, dois anos antes da publicação desta obra. Na Harmonia dos Evangelhos, Calvino chamou Serveto de “cão imundo”, ao refutar sua interpretação de passagens bíblicas específicas.14 Embora Serveto seja mencionado pelo nome apenas duas vezes em todo o texto, a controvérsia contra ele perpassa grande parte do comentário,
12 Citado em Darlene K. Flaming, “Calvin as commentator on the Synoptic Gospels”, in Donald K. McKim, ed., Calvin and the Bible (New York: Cambridge University Press, 2006), p. 133.
13 João Calvino, Harmonia dos Evangelhos, vol. 3 (São José dos Campos: Fiel, 2023), p. 235.
14 João Calvino, Harmonia dos Evangelhos, vol. 1 (São José dos Campos: Fiel, 2023), p. 64; cf. também vol. 2, p. 299.
sobretudo quando Calvino trata da relação de Cristo com o Pai e distingue precisamente quais ações ou atributos pertencem à divindade e quais pertencem à humanidade de Cristo.15
Quando Calvino se dedicou aos evangelhos sinópticos, ele trouxe o fruto de sua exegese do Novo Testamento e de Isaías para sua tarefa de compreender o sentido da vida, morte e ressurreição de Cristo narrados pelos três evangelistas. Neste comentário, Calvino assumiu que Mateus seria o primeiro evangelho, por seu lugar prioritário no cânon, e seguiu a estrutura textual de Mateus em sua harmonia, dialogando com Marcos e Lucas, como outros fizeram antes, como Martin Bucer, em seu comentário de 1527. Como ficará evidente, para o reformador francês “nenhum dos três evangelhos pode ser interpretado sem uma comparação com os outros dois”.16 Nesse comentário também vemos a ênfase de Calvino na “brevidade lúcida”, ao expor o “sentido genuíno e simples” do texto bíblico.17 O exame desse comentário, no entanto, nos permite descobrir elementos da exegese de Calvino que podem não ser tão presentes em outros lugares por causa do conteúdo dos textos bíblicos específicos em consideração. De particular importância será sua interpretação de parábolas e milagres, o problema da harmonização dos evangelhos e da relação deles com o Antigo Testamento e a aplicação da mensagem evangélica para o contexto atual.18 Em todo o tempo Calvino assume que “as diferenças entre os evangelhos devem sempre ser baseadas num bom motivo e precisam ser explicadas”.19
15 Beth Kreitzer, “Introdução a Lucas”, p. 41: “Calvino concorda que a elaboração ortodoxa das duas naturezas de Cristo em uma pessoa é declarada em Lucas e critica Miguel Serveto [...] por ter realizado a leitura do trecho ‘[...] será chamado Filho do Altíssimo [...]’ (Lc 1.32) para divulgar a ideia de que Jesus se tornou Filho de Deus apenas quando assumiu a carne, a ressurreição de um tipo de heresia relacionada à adoção.”
16 Cf. Wulfert de Greef, The Writings of John Calvin: An Introductory Guide, p. 84.
17 Para uma introdução ao método hermenêutico de João Calvino, cf. Franklin Ferreira, Servos de Deus (São José dos Campos: Fiel, 2014), p. 214-29.
18 Tais pontos são abordados por Darlene K. Flaming, “Calvin as commentator on the Synoptic Gospels”, in Donald K. McKim, ed., Calvin and the Bible (New York: Cambridge University Press, 2006), p. 142-63.
19 Kreitzer, p. 37.
Portanto, neste comentário temos Calvino em sua melhor forma e maturidade como intérprete da Escritura. Nesse sentido, ele faz jus ao elaborado elogio de Karl Barth, em 1921, referindo-se à exegese da Epístola aos Romanos, mas que se aplica plenamente à Harmonia dos Evangelhos: “Designo de entender e explicar propriamente dito aquela atividade que [...] Calvino de forma manifestadamente sistemática colocou como meta de sua exegese [...]. Quão energeticamente o último envida esforços para que seu texto, depois de também ele ter constatado ‘o que consta ali’, seja repensado, i.e., debatido até que o muro entre os séculos I e XVI se torne transparente, até que Paulo fale lá e as pessoas do século XVI ouçam aqui, até que o diálogo entre documento original e leitor acabe totalmente concentrado no assunto (que aqui e lá não pode ser diferente!). De fato, quem supõe poder acabar com o método de Calvino com o adágio progressivamente desgastado sobre a ‘coação da doutrina da inspiração’ só faz comprovar ainda nunca ter trabalhado realmente nessa direção.”20
É nos evangelhos sinópticos que aprendemos o real significado do discipulado cristão, assim como suas reais e muito sérias implicações.
Que na leitura atenta desta obra de Calvino aprendamos a obedecer ao comando de Jesus Cristo para sua Igreja: “Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século” (Mt 28.18-20).
Franklin Ferreira
Diretor do Seminário Martin Bucer, São José dos Campos-SP
20 Karl Barth, “Prefácio à segunda edição”, A carta aos Romanos (São Leopoldo: Sinodal/EST, 2016), p. 48.
Aos nobilíssimos e ilustríssimos senhores, os burgomestres e o Concílio da nobre cidade de Frankfurt, João Calvino
Se exemplos virtuosos sempre fossem necessários para se resistir à imitação, a fim de estimular as pessoas morosas, ociosas ou inativas, a preguiça e – o que é pior – a indiferença dessa mesma época corrupta tornam necessário que a maioria dos homens – os quais, por iniciativa própria, não progridem, mas, ao contrário, regridem – ao menos seja compelida pela vergonha a cumprir seu dever. É necessário dar-se conta de que todos se deixam influenciar, seja em público, seja em privado, por uma desditosa emulação. Não há sequer um rei que não labute para mostrar que é igual a seus vizinhos no discurso, na perseverança, na energia ou na coragem, que se revelam necessários para estender, por todo método possível, as fronteiras de seu domínio. Não há uma nação ou comunidade que ceda a preferência aos outros, pela astúcia e por todas as artes do engano, nem um indivíduo sequer entre as categorias dos ambiciosos que reconheça sua inferioridade em relação aos demais em seus perversos artifícios. Em suma, quase diríamos que eles já maquinaram uma conspiração silenciosa, porém mútua, de desafiar uns aos outros a uma disputa de vícios, e cada um que leva a perversidade ao extremo facilmente arruína uma vasta
multidão por meio de seu exemplo, de modo que, em meio à prevalência generalizada de crimes, haverá pouquíssimas pessoas que exibem um padrão de retidão.
Por essas razões, reputo que é mais vantajoso que aquelas inusitadas excelências, pelas quais pessoas eminentes são distinguidas, recebam os enaltecimentos que merecem, e sejam soerguidas a uma elevada posição, a ponto de serem vistas de uma grande distância, para que o desejo de imitá-las seja despertado em muitos corações. E reconheço, eminentíssimos senhores, que essa é a principal razão pela qual desejo que esta minha obra seja entregue ao mundo sob a sanção de seus nomes. Pois, ainda que meu empreendimento seja considerado por mim mesmo como digno de um eminente galardão, se a prontidão de vocês em fazer o bem extrair dele algum acréscimo, ainda tenho diante de meus olhos o outro objetivo já mencionado, ou seja, que outros possam equiparar-se ao seu progresso ou, ao menos, seguirem o mesmo curso.
Minha intenção, contudo, não é formar um catálogo de todas as excelências pelas quais vocês são distinguidos, mas satisfazer-me, no momento, em mencionar, em termos de recomendação, uma excelência que tem vinculado vocês a mim e a um grande número de servos de Cristo pelo que se pode chamar um laço sagrado. Foi muito importante quando, há mais de cinco anos, quando todos nós fomos tomados por um terrível susto, quando uma terrível devastação das igrejas da Alemanha, com a quase destruição do evangelho, foi ameaçada pela calamidade que ocorreu, vocês, sobre quem recaiu a primeira saraivada de dardos, mantiveram-se firmes numa pública profissão de fé, que, naquele tempo, era extremamente odiosa, e prontamente mantiveram a pura doutrina da piedade, a qual haviam abraçado, de modo a tornar evidente que, em meio às mais profundas ansiedades e perigos, nada há que valorizem mais sublimemente do que lutar sob a bandeira de Cristo. No entanto, mais notável ainda e mais merecedor de registro é que não só mantiveram puro o culto de Deus entre vocês, e fielmente diligenciaram em manter seus concidadãos dentro do redil de Cristo,
como também arrebanharam, como membros dilacerados, aqueles fragmentos de uma igreja dispersa que se viram lançados fora para outros países.
No presente estado melancólico das coisas, foi-me dada a não pequena consolação de tomar conhecimento de que os adoradores devotos de Deus, que vieram a vocês como exilados da Inglaterra e de outros lugares, foram recebidos com cordial hospitalidade; e que vocês não só lhes abriram as portas, em seu miserável exílio, como também renderam merecida honra ao Filho de Deus, fazendo com que seu evangelho fosse claramente ouvido em sua cidade em idiomas estrangeiros. Um exemplo similar de inconfundível bondade foi visto, recentemente, entre os desditosos nativos de Locarno, pelo Concílio de Zurique, que não só lhes escancarou a cidade (quando não lhes fora permitido cultuar Cristo em casa, em consonância com sua consciência), como também ainda lhes designaram uma igreja para que mantivessem suas assembleias religiosas, e não foram impedidos, pela diversidade de idioma, de desejar ouvir Cristo falando italiano em sua própria cidade.
Voltando a vocês propriamente, tão logo ouvi que haviam praticado a bondade de permitir que as pessoas que falam seu idioma encontrassem uma igreja em meio a vocês, considerei que agora me tinham sob obrigações privadas, e então resolvi valer-me desta oportunidade para lhes dar testemunho de minha gratidão. Pois, embora haja uma boa razão para deplorar que o estado de nossa nação seja tal que a sacrílega tirania do papado tenha feito residência em nosso próprio país, que pouco falta para ser banido do reino de Deus, assim, em contrapartida, é um favor eminente ver-nos outorgada uma habitação em solo estrangeiro, em que se possa observar o legítimo culto divino. Essa hospitalidade realmente sacra – que foi oferecida não aos homens, mas, antes, a Cristo mesmo –, confio, acrescentará à já próspera condição de vocês novos atos de divina bondade, os quais lhes assegurarão uma sucessão ininterrupta.
Porque, ao menos de minha parte, como acabo de declarar a vocês, esses foram meus impulsos a lhes dedicar este meu trabalho.
É um comentário em forma de harmonia arranjada dos três Evangelistas, e tem sido preparado por mim com a máxima fidelidade e diligência. Não pretendo detalhar qual foi a labuta que empreguei nessa tarefa; e, até onde fui bem-sucedido, deixarei que os outros decidam. Os leitores a quem me refiro são aquelas pessoas honestas, eruditas e bem-dispostas, cujo desejo de progredir não é retardado pela vergonha atroz de receber instrução, e que se interessam pelo benefício público. Não me deixo atribular por nenhum escândalo mesquinho ou perverso; e qualifico-os não só como monges encapuzados, os quais, em defesa da tirania do papa, deflagram guerra franca contra nós, como também vadios inúteis,1 que, misturando-se conosco, lançam mão de toda pretensão com o fim de ocultar sua ignorância, e gostariam que a luz da doutrina fosse completamente apagada. Que, insolentemente, ladrem contra mim quanto quiserem; minha réplica estará sempre na ponta da língua. Nem obrigação divina nem obrigação humana me sujeitam ao juízo daqueles que merecem o látego por sua tão desditosa ignorância, tanto quanto merecem a chibata por sua obstinada e empedernida malícia e insolência.
Que me seja permitido ao menos dizer, sem a imputação de vanglória, que me tenho esforçado fielmente para prestar esse serviço à Igreja de Deus. Dois anos atrás, João foi publicado juntamente com meu comentário, o que, confio, não foi sem vantagem. E assim, como um dos arautos,2 tenho diligenciado ao máximo que permite minha capacidade em honrar a Cristo, para que ele siga avante cavalgando com extrema elegância sua carruagem régia puxada por quatro corcéis; e sinto-me seguro de que os leitores francos, que têm extraído vantagem de meus labores, não se envergonharão de reconhecer que o sucesso tem, em alguma medida, correspondido ao meu desejo. A história evangélica, relatada por quatro testemunhas divinamente
1 “Mais aussi de ces vermines, lesquels meslez entre nous comme bourdons entre abelles” (“mas também aqueles miseráveis que se misturam conosco à semelhança de zangões entre as abelhas”).
2 “Comme estant un de la compagnie de ceux qui vont devant pour faire place à leur Roy” (“como um da companhia dos que vão adiante preparando o caminho para seu rei”).
designadas, é justamente comparada por mim a uma carruagem puxada por quatro corcéis; porque, por essa harmonia apropriada e justa, parece que Deus preparou expressamente para seu Filho uma carruagem triunfal, de onde ele pudesse fazer uma magnificente exibição de todo o corpo dos crentes, e de onde, com rápido progresso, poderia apreciar o mundo. Agostinho também faz uma comparação oportuna dos Quatro Evangelistas a trombetas, cujo som enche todos os quadrantes do mundo, de modo que a Igreja, congregada do Oriente e do Ocidente, do Sul e do Norte, emane para uma santa unidade de fé. Tanto mais intolerável é a curiosidade daqueles que, não satisfeitos com os arautos celestiais, importunam-nos, sob a pecha de evangelho, com contos repugnantes, que a outro propósito não servem senão para poluir a pureza da fé e expor o nome de Cristo às chacotas e aos ridículos dos ímpios.
No que diz respeito a vocês, nobilíssimos senhores, por detestarem todo e qualquer tipo de levedo, pelo qual se corrompe a natural pureza do evangelho, e mostrarem que nada mais têm no coração além da defesa e da manutenção da doutrina pura, como foi promulgada por Cristo, sinto-me seguro de que esta produção, que descerra os tesouros do evangelho, receberá sua terna e calorosa aprovação, e confio que minha dedicatória a vocês será aceita como um emblema de meu respeito. Adeus, ilustríssimos senhores. Que Cristo os dirija sempre com a proteção de seu Espírito, sustentando-os por seu poder e defendendo-os com sua proteção, e enriqueça a cidade e a comunidade com toda a profusão de bênçãos.
Genebra, 1º agosto de 1555.
A fim de ler com proveito a história evangélica, é de grande importância entender o significado da palavra evangelho. 3 Assim, estaremos aptos a averiguar qual desígnio tiveram em escrever aquelas testemunhas celestiais, e para qual objeto os eventos relatados por eles teriam apontado. O fato de sua história não haver recebido esse nome de outrem, mas de ter sido assim denominada pelos autores, é evidente à luz de Marcos, que diz expressamente que ele relata “o princípio do evangelho de Jesus Cristo” [1.1]. Há uma passagem, nos escritos de Paulo, em que, acima de todas as demais, é possível obter uma definição clara e certa da palavra evangelho. Nela, conta-nos que ele foi “prometido por intermédio de seus profetas nas Sagradas Escrituras, com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor” [Rm 1.2-4].
Inicialmente, essa passagem mostra que o evangelho é um testemunho da salvação revelada, a qual fora anteriormente prometida aos pais, numa sucessão ininterrupta de eras. Realça, ao mesmo tempo,
3 Evangelium, em latim, Evangile, em francês e Evangell, no antigo inglês, são termos derivados, com pouca alteração, da palavra grega εὐαγγέλιον, que é acompanhada de εὖ, bem, e ἀγγελία, uma mensagem, e significa notícias alvissareiras. A palavra inglesa Gospel tem origem saxônica, e é determinada por sua etimologia no sentido de palavra de Deus; mas teria adquirido, num período muito antigo, o significado da palavra grega, para a qual foi adotada como uma tradução. Na margem do célebre Testamento Genebrino, impresso em 1557 d.C., Evangelho é assim definido: “Esta palavra significa boas-novas, e aqui é tomada para a história que contém a jubilosa mensagem da vinda do Filho de Deus”.
a distinção entre as promessas que mantiveram a esperança do povo em suspense, e essa jubilosa mensagem, pela qual Deus declara que haveria de concretizar aquelas coisas que inicialmente exigiu que esperassem.4 Igualmente, ele declara, um pouco depois, que o evangelho “manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas” [Rm 3.21]. O mesmo apóstolo o chama, em outra passagem, de Embaixador, pelo qual a reconciliação do mundo com Deus, uma vez concretizada pela morte de Cristo, é diariamente oferecida aos homens [2Co 5.20].
Em segundo lugar, Paulo tem em vista não só que Cristo é o penhor de todas as bênçãos que Deus sempre prometeu, mas que temos nele plena e completa exibição delas; da mesma forma, declara, em outro lugar, que “todas as promessas de Deus têm nele o sim; porquanto também por ele é o amém para glória de Deus, por nosso intermédio” [2Co 1.20]. E, deveras, a adoção graciosamente outorgada, pela qual somos feitos filhos de Deus, como ela procede do beneplácito que o Pai teve desde a eternidade, foi-nos revelada neste aspecto: que Cristo (o qual, por natureza, é o único Filho de Deus) vestiu-se de nossa carne e nos fez seus irmãos. Aquela satisfação pela qual os pecados são apagados, de modo que não mais vivemos sob a maldição e a sentença de morte, em nenhum outro lugar está fundada senão no sacrifício de sua morte. A retidão, a salvação e a perfeita felicidade se encontram fundadas em sua ressurreição.
O evangelho, pois, é uma exibição pública do Filho de Deus “manifestado na carne” [1Tm 3.16] para libertar o mundo arruinado e restaurar os homens da morte para a vida. É com razão chamado “uma boa e jubilosa mensagem”, pois contém a perfeita felicidade. Seu objetivo é começar o reinado de Deus e, por esse meio, de nosso livramento da corrupção da carne e de nossa renovação pelo Espírito, conduzir-nos à glória celestial. Por essa razão, às vezes é chamado “o reino do céu”, e a restauração a uma vida abençoada, que nos é trazida
4 “Ce qu’il avoit auparavant commandé a tous fideles d’attendre et esperer” – “que inicialmente ele havia ordenado a todos os crentes que aguardassem e esperassem”.
por Cristo; outras vezes, é chamado “o reino de Deus” – por exemplo, quando Marcos diz que “José esperava pelo reino de Deus” [15.43], indubitavelmente ele se refere à vinda do Messias.
Daí, faz-se evidente que a palavra evangelho se aplica propriamente ao Novo Testamento, e que são responsáveis pela falta de precisão5 aqueles escritores tão comuns em todas as épocas, os quais presumem que os profetas, em pé de igualdade com os apóstolos, seriam ministros do evangelho. Amplamente distinto é o relato que Cristo nos dá quando diz que “a lei e os profetas duraram até João e que, desde então, o reino de Deus começou a ser proclamado” [Lc 16.16]. Marcos, igualmente, como acabamos de mencionar, declara que a pregação de João foi “o princípio do evangelho” [Mc 1.1]. Uma vez mais, as quatro histórias, que relatam como Cristo desempenhou o ofício de mediador, com grande propriedade recebeu tal designação. Como o nascimento, a morte e a ressurreição de Cristo contêm a totalidade de nossa salvação, e por isso são os temas peculiares do evangelho, o nome dos Evangelistas se aplica, justa e apropriadamente, àqueles que põem Cristo, o qual foi enviado pelo Pai, diante de nossos olhos, para que nossa fé o reconheça como o autor de uma vida bem-aventurada. O poder e os resultados de sua vinda são ainda mais plenamente expressos em outros livros do Novo Testamento. E, mesmo nesse aspecto, João difere amplamente dos outros três Evangelistas, pois se ocupa quase totalmente de explicar o poder de Cristo, bem como das vantagens que derivamos dele; eles, por sua vez, insistem mais plenamente em um ponto: o de que nosso Cristo é aquele Filho de Deus que fora prometido para ser o redentor do mundo. Sem dúvida, entreteceram a doutrina que se relaciona com o ofício de Cristo e nos informam qual é a natureza de sua graça, com que propósito ele nos foi dado; porém, ocupam-se, principalmente, como eu já disse, em mostrar que, na pessoa de Jesus Cristo, já se cumpriu o que Deus havia prometido
5 “Que c’est aucunement confondre les termes” – “que de certa maneira confundem as palavras”.
desde o princípio.6 Não tiveram a intenção ou o desígnio de abolir, por seus escritos, “a lei e os profetas”, como sonham alguns fanáticos que afirmam que o Antigo Testamento é supérfluo, agora que a verdade da sabedoria celestial nos foi revelada por Cristo e seus apóstolos. Ao contrário, apontam Cristo com o dedo, e nos advertem para buscarmos dele tudo o que lhe é atribuído por “a lei e os profetas”. O pleno proveito e a vantagem, portanto, a serem extraídos da leitura do evangelho só serão obtidos quando aprendermos a conectá-lo com as promessas antigas.
No que diz respeito aos três escritores da história evangélica a quem me cabe expor, Mateus é sobejamente conhecido. Em geral, supõe-se que Marcos foi o amigo íntimo e discípulo de Pedro. Crê-se ainda que ele escreveu o Evangelho enquanto o mesmo lhe era ditado por Pedro e, assim, ele teria meramente cumprido o ofício de amanuense ou copista.7 Mas, sobre esse tema, não devemos sobrecarregar-nos excessivamente, pois nos é de pouca importância, contanto que apenas creiamos que ele é uma testemunha propriamente qualificada e divinamente designada, que, ao escrever, nada fez senão o que o Espírito Santo lhe incumbira, guiando sua pena. Não há a menor base para a afirmação de Jerônimo, a saber, de que seu Evangelho é uma sinopse do Evangelho de Mateus. Em parte alguma ele adere à ordem que Mateus observou e, desde o início, aborda os temas de um modo diferente. Também algumas coisas são relacionadas por ele, as quais foram omitidas pelo outro, e sua narrativa do mesmo evento algumas vezes é mais detalhada. Em minha opinião, é mais provável – e a natureza do caso permite conjecturas – que, quando escreveu o seu, não tivesse conhecimento do livro de Mateus; ele está muito longe de tencionar fazer expressamente uma sinopse. Tenho a mesma observação a fazer no que diz respeito a Lucas; pois não diremos que a diversidade que percebemos nos três Evangelistas
6 “Des le commencement du monde.” – “desde o princípio do mundo.”
7 “En sorte qu’il ait seulement este escrivão sous luy” (“de modo que foi apenas um escrevente sob sua orientação”).
seria o objetivo de um arranjo expresso; mas, como tencionavam dar uma narrativa honesta do que sabiam ser certo e indubitável, cada um seguiu o método que entendia ser o melhor. Ora, como tal coisa não se deu por acaso, mas pela diretriz da Providência divina, assim, essa diversidade na maneira de escrever, o Espírito Santo lhes aventou uma espantosa harmonia, a qual, por si só, quase seria suficiente para lhes assegurar crédito, se não houvesse outras evidências mais robustas a endossar sua autoridade.
Lucas assevera, com bastante clareza, que ele é a pessoa que dava assistência a Paulo. No entanto, a afirmação que Eusébio faz não passa de infantilidade, ou seja, a de que Paulo é o autor do Evangelho que exibe o nome de Lucas, porque, em certa passagem, ele faz menção de “meu evangelho”8 [2Tm 2.8]. Como se o que segue não deixasse claro que Paulo está falando de toda a sua pregação, e não de algum livro; pois ele adiciona: “pelo qual estou sofrendo até algemas, como malfeitor; contudo, a palavra de Deus não está algemada” [2Tm 2.9]. Ora, é certo que ele não estava confessando-se culpado9 de haver escrito um livro, mas de haver ministrado e pregado em viva voz a doutrina de Cristo. Eusébio, cuja atividade foi grande, revela aqui uma singular falta de juízo, ao coletar, sem discriminação, absurdos tão grosseiros. Sobre esse tópico, creio que é oportuno advertir a meus leitores que não se deixem escandalizar por parvoíces do mesmo gênero, as quais ocorrem por toda parte de sua história.
Do método de interpretação que decidi adotar, e é possível que muitas pessoas, à primeira vista, não o aprovem, será oportuno dar alguma satisfação aos leitores pios e sinceros. Em primeiro lugar, sem dúvida alguma é impossível expor, de forma própria e bem-sucedida, qualquer dos Evangelistas, sem compará-lo aos outros dois; e, em consequência, os comentaristas fiéis e eruditos dedicam uma boa porção de seu labor a conciliar as narrativas dos três Evangelistas.
8 “Se fondant sur une passage où il fait mention de son Evangile” (“fundamentando-se sobre uma passagem na qual ele faz menção de seu evangelho” (segundo meu evangelho).
9 “Il n’avoit este accusé et emprisonné” (“ele não era acusado e aprisionado”).
Mas, como frequentemente as pessoas que têm habilidades convencionais consideram que a comparação não é matéria fácil, sendo necessário ir e voltar, recorrentemente, de um ponto a outro, creio que é possível abrandar seu trabalho ao organizar as três histórias numa cadeia contínua, ou num quadro único, no qual o leitor conseguiria perceber, à primeira vista, eventuais semelhanças ou diversidades. Dessa maneira, não omitirei nada que foi escrito por qualquer um dos três Evangelistas; e tudo o que for encontrado em mais de um deles será coletado no mesmo lugar.
Se eu for ou não bem-sucedido em minha exposição, o leitor deve decidir por sua própria experiência. Bem longe de reivindicar o louvor de haver descoberto algo novo, prontamente reconheço, para ser honesto, que adotei tal método por imitação de outros. Bucer, um homem de memória reverenciada e um eminente mestre da Igreja de Deus, que, acima de todos os demais, parece-me haver labutado com sucesso nesse campo, serviu-me de modelo. Como ele mesmo se valeu dos trabalhos dos antigos, os quais percorreram essa mesma estrada antes dele, assim meus labores não têm sido pouco aliviados por sua indústria e aplicação. Onde eu uso a liberdade de divergir dele (o que tenho feito abertamente, sempre que necessário), Bucer mesmo, se ainda fosse um habitante da terra, não se sentiria contrariado.
Lucas 1.1-4
Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde a sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído.
Lucas é o único evangelista que elabora um prefácio ao seu Evangelho, com o propósito de explanar sucintamente o motivo que o leva a escrever. Ao se dirigir a um único indivíduo, pode parecer que ele assim agiu de forma insensata, em vez de soar bem alto a trombeta, como era seu dever, e convidar todos os homens a crerem. Portanto, pode parecer inadequado que a doutrina que não pertence peculiarmente a uma pessoa, ou a outra, mas é comum a todos, seja enviada privativamente ao seu amigo Teófilo. Daí haver quem se deixe levar à conclusão de que Teófilo seja um substantivo apelativo, aplicando-se a todas as pessoas piedosas, em virtude de seu amor para com Deus; mas o epíteto que se lhe anexa é inconsistente com tal opinião. Nem há qualquer razão para se temer o absurdo que os levava a adotar tal expediente. Pois não é menos verdade que a doutrina de Paulo pertence a todos, ainda que algumas de suas
Epístolas fossem dirigidas a determinadas cidades, enquanto outras, a determinados homens. Mas não apenas isso. Devemos ainda reconhecer, se levarmos em conta o estado daquele tempo, que Lucas adotou um curso prudente e consciente. Em cada terra, havia tiranos que, movidos pelo terror e o alarme, estavam preparados para destruir o progresso da sã doutrina. Isso deu oportunidade a Satanás e a seus ministros de difundir por toda a parte as nuvens do erro, por meio do qual a luz pura seria obscurecida. Ora, como o grande corpo de homens pouco cuidou da manutenção da pureza do evangelho, e pouco considerou, de forma atenta, as invenções de Satanás ou os perigos que se moviam furtivamente sob tais disfarces, cada um que excedia os demais por uma fé incomum, ou por dons extraordinários do Espírito, era mais fortemente obrigado a fazer seu melhor, por seu próprio cuidado e labor, a fim de preservar a doutrina da piedade pura e impoluta de toda e qualquer corrupção. Tais pessoas foram escolhidas por Deus para serem os santos guardadores da lei, por meio de quem a doutrina celestial a eles confiada seria honestamente compendiada pela posteridade. Portanto, com isso em vista, Lucas dedica seu Evangelho a Teófilo, para que ele empreendesse sua fiel preservação; Paulo, por sua vez, impõe e recomenda o mesmo dever a Timóteo [2Tm 1.14; 3.14].
1. Visto que muitos . Ele assinala uma razão para escrever, a qual, crê-se, deveria, antes, havê-lo dissuadido de fazê-lo. Compor uma história que já havia empregado muitos autores era um labor desnecessário, ao menos se eles já tivessem desempenhado fielmente seu dever. Não há, porém, a mais leve insinuação ou acusação de impostura, ou de displicência, ou de qualquer outro erro. Portanto, é como se ele estivesse expressando a resolução de fazer o que já fora prontamente feito. Minha resposta é que, ainda que ele trate gentilmente os que já haviam escrito antes dele, não aprova totalmente seus empreendimentos. Ele não diz expressamente que haviam escrito sobre matérias com as quais estivessem imperfeitamente familiarizados, mas, ao reivindicar a certeza quanto aos
fatos, ele modestamente nega seu direito a uma plena e inabalável confiança. Pode-se objetar que, se fizeram falsas afirmações, deveriam antes ter sido severamente censurados. Outra vez, minha resposta é que não poderiam ter vivido em profundo erro; poderiam ter errado mais por falta de consideração do que por malícia; e, portanto, não haveria necessidade de maior ferocidade de ataque. E, certamente, há razão para se crer que eram pouco mais que esboços históricos que, embora comparativamente inofensivos no tempo, depois, se não fossem prontamente neutralizados, teriam cometido uma séria injúria à fé. Mas é digno de nota que, ao aplicar esse remédio por intermédio de Lucas a escritores desnecessários, Deus tinha um maravilhoso desígnio, com vistas a obter, pelo consenso universal, a rejeição dos outros e, assim, assegurar crédito indivisível àqueles que refletem brilhantemente sua adorável majestade. Há menos escusa para aquelas pessoas tolas por cujas histórias repugnantes, sob o nome de Nicodemos ou alguma outra pessoa, são, na atualidade, palmilhadas neste mundo.
Dos fatos que entre nós se realizaram . O particípio πεπληροφορημένα , que Lucas emprega, denota coisas plenamente averiguadas e que não admitem dúvidas. A Vulgata tem reiteradamente caído em equívoco sobre essa palavra e, por meio dessa ignorância, tem-nos mostrado um sentido corrompido de algumas passagens muito belas. Uma delas ocorre nos escritos de Paulo, quando ele ordena que “cada homem seja plenamente persuadido em sua própria mente” [Rm 14.5], que a consciência não hesite nem vacile, “arremessada de um lado para o outro” [Ef 4.14] por opiniões duvidosas. Daí também deriva a palavra πληροφορία , que, erroneamente, é traduzida ali por plenitude , enquanto denota aquela forte convicção oriunda da fé, na qual as mentes pias descansam em segurança. Há, todavia, como eu já disse, um contraste implícito; porque, ao reivindicar para si a autoridade de uma testemunha fiel, ele destrói o crédito de outros que fazem afirmações contrárias.
Entre nós1 tem o mesmo significado que conosco. 2 Ele parece fazer a fé repousar em um fundamento frágil, sua relação com os homens, enquanto deveria repousar apenas na Palavra de Deus; e, certamente, a plena certeza (πληροφορία) da fé é atribuída à selagem do Espírito [1Ts 1.5; Hb 10.22]. Minha resposta é a seguinte: se a Palavra de Deus não mantém a posição primordial, a fé não ficará satisfeita com quaisquer testemunhos humanos, mas, onde a confirmação interior do Espírito já ocorreu, ela lhes admite algum peso no conhecimento histórico dos fatos. Por conhecimento histórico, tenho em vista aquele conhecimento que obtemos em relação aos acontecimentos, ou por nossa própria observação, ou pela afirmação de outrem. Porque, no que pertine às obras visíveis de Deus, é igualmente próprio ouvir as testemunhas oculares quanto à confiança na experiência. Além disso, aqueles a quem Lucas segue não eram autores privados; eram também ministros da Palavra. Por essa menção, ele os enaltece acima da posição da autoridade humana, pois notifica que as pessoas de quem ele recebeu sua informação haviam sido divinamente autorizadas a pregar o evangelho. Daí também aquela segurança que logo depois menciona e que, se não repousa em Deus, logo poderá ser perturbada. Há um grande peso em denominar aqueles de quem recebeu seu evangelho como ministros da Palavra, pois, sobre essa base, os crentes concluem que as testemunhas estão além de toda exceção, como o expressam os advogados, e não podem ser legitimamente descartadas.
Erasmo, que tomou emprestada de Virgílio3 uma frase usada em sua versão, não considerou, de modo suficiente, a estima e o peso devidos a uma vocação divina. Lucas não fala num estilo profano, mas nos junge à pessoa de um amigo seu, Teófilo, a ter em vista a ordem de Cristo, e ouvir com reverência o Filho de Deus falando por meio de seus apóstolos. É de grande importância sua afirmação de que foram testemunhas oculares, mas, ao chamá-los de ministros, ele os tira da
1 "Inter nos".
2 "Apud nos".
3 "Quorum pars magna fui." (Virgílio, Eneida, 2.6)
ordem comum dos homens, para que nossa fé tivesse seu suporte no céu e na terra. Em suma, a intenção de Lucas é esta: “Visto que agora tens aquelas coisas que me foram confiadas a escrever-te fielmente, e as quais aprendeste previamente por afirmações orais, puseste mais forte confiança na doutrina que recebeste”. Assim, é evidente que Deus empregou todo método para impedir que nossa fé vivesse suspensa pelas opiniões sofísticas e duvidosas dos homens. Não há, para o mundo, o menor espaço para escusa, como se abertamente preferisse a incerteza oriunda das notícias vagas e infundadas, que se esquiva de tão grande favor divino com aversão. Atentemos, porém, para a notável distinção que nosso Senhor estabeleceu: o fato de que a tola credulidade não pode insinuar-se sob o nome de fé. Entretanto, admitamos que o mundo é iludido, como bem merece, pelos enganosos engodos da curiosidade, e ainda se deixa envolver espontaneamente pelas ilusões de Satanás.
3. Depois de acurada investigação de tudo. A Vulgata traz “tendo seguido todas as coisas”;4 e o verbo grego παρακολουθεῖν é tomado metaforicamente daqueles que trilharam as pegadas de outros, a quem nada pode escapar. Desse modo, Lucas tencionava expressar sua estrita e laboriosa investigação, justamente como Demóstenes emprega a mesma palavra, quando, ao examinar uma embaixada contra a qual ele traz uma acusação, gaba-se de sua diligência de ter tal natureza, de haver percebido cada coisa que fora feita, como se ele fosse um espectador.
Lucas 1.5-13
Nos dias de Herodes, rei da Judeia, houve um sacerdote chamado Zacarias, da ordem de Abias. Sua mulher era das filhas de Arão e se chamava Isabel. Ambos eram justos diante de Deus, vivendo irrepreensivelmente em todos os preceitos e mandamentos do Senhor. E não tinham filhos, porque Isabel era estéril, sendo eles avançados em dias. Ora, aconteceu que, exercendo ele diante de Deus o sacerdócio na ordem de sua
4 "Omnia assequuto".
piedade e a santidade, e possa ser deduzido da Escritura, a qual lhe designa não um lugar inferior entre as bênçãos de Deus.
A quem darás o nome de João. O título Batista lhe foi dado, creio eu, com o fim de intensificar a autoridade de seu ofício [1Cr 3.15], ao qual os gregos empregam ᾿Ιωάννης, que, em hebraico, significa “a graça do Senhor”. Muitos presumem que o filho de Zacarias foi chamado assim em virtude de ser amado de Deus. Eu, ao contrário, penso que sua intenção foi enaltecer não a graça de Deus que lhe foi outorgada como um indivíduo privado, mas aquela graça que sua missão traria a todos. A força e o peso do nome aumentam ainda mais por sua data; pois foi dado antes mesmo de seu nascimento, inscrevendo-lhe Deus esse emblema de seu favor.
Lucas 1.14-17
Em ti haverá prazer e alegria, e muitos se regozijarão com seu nascimento. Pois ele será grande diante do Senhor, não beberá vinho nem bebida forte, e será cheio do Espírito Santo, já desde o ventre materno. E converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus. E irá adiante do Senhor no espírito e no poder de Elias, para converter o coração dos pais aos filhos, converter os desobedientes à prudência dos justos e habilitar para o Senhor um povo preparado.
14. Em ti haverá prazer e alegria. O anjo descreve a profunda alegria que Zacarias teria com o nascimento breve de um filho; pois lhe informa que teria um filho que jamais se aventuraria a desejar. E avança mais, declarando que a alegria não seria doméstica, desfrutada apenas pelos pais, ou confinada em quatro paredes, mas seria partilhada pelos de fora, a quem as vantagens de seu nascimento se fariam conhecidas. É como se o anjo dissesse que a Zacarias nasceria não apenas um filho, mas que ele seria mestre e profeta de todo o povo. Os papistas têm abusado dessa passagem com o propósito de introduzir um costume profano na celebração do nascimento de João. Passo por
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