Contos da vida - Cláudio Emanuel Abdala - Contos - Degustação

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CONTOS DA VIDA

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Edição e distribuição

EDITORA EME

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EMANUEL Abdala

CONTOS

CONTOS DA VIDA — 3 Capivari‑SP — 2011 —
DA VIDA CLÁUDIO EMANUEL ABDALA

© 2011 Cláudio Emanuel Abdala

Os direitos autorais desta obra foram cedidos para o Núcleo Espírita Campo da Paz.

A Editora EME mantém o Centro Espírita “Mensagem de Esperança”, colabora na manutenção da Comunidade Psicossomática Nova Consciência (clínica masculina para tratamento da dependência química), e patrocina, junto com outras empresas, a Central de Educação e Atendimento da Criança (Casa da Criança), em Capivari‑SP.

1ª edição – junho/2011 – 2.000 exemplares

Capa: André Stenico

Diagramação: Antonio do C. Martimbianco

Revisão: Adriano Celso Rodrigues

Maria Odília da Cunha Editora EME

Revisado de acordo com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Ficha catalográfica elaborada na editora

Santana, Cláudio Emanuel Abdala de Contos da vida. Cláudio Emanuel Abdala. – 1ª ed., jun. 2011 – Capivari‑SP: Editora EME.

152 p.

1. Literatura brasileira. 2. Contos. 3. Espiritualidade.

4. Espiritismo. 5. Moral cristã. I. Título.

CDD 133.9 / 869.0

CONTOS DA VIDA — 5 Sumário Apresentação ................................................................... 7 Explicando........................................................................ 9 01 – Resposta da vida ................................................... 11 02 – A “adoção” ............................................................. 15 03 – O diamante de Huparu ........................................ 19 04 – A escolha ................................................................ 23 05 – Suicídio ................................................................... 27 06 – Guerra vazia........................................................... 33 07 – Acusação indébita ................................................. 39 08 – Visita aos esquecidos ............................................ 45 09 – O cupim .................................................................. 51 10 – A abóbada celeste como teto ............................... 55 11 – Redimindo‑se do passado para libertar‑se ........ 61 12 – Eutanásia ................................................................ 65 13 – Acreditando na Providência Divina ................... 71 14 – Sentido da vida ...................................................... 75 15 – Só é feliz quem é livre ........................................... 83
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16 – Um “mal” necessário ........................................... 91 17 – Onde está o samaritano? ...................................... 95 18 – A vida ensina ........................................................ 97 19 – Socorro providencial........................................... 105 20 – Do abismo às estrelas.......................................... 113 21 – A surpresa ............................................................ 121 22 – Viagem singular .................................................. 133 23 – É natal. De quem? ............................................... 141 24 – O desejado ............................................................ 145 25 – Bendito sejas......................................................... 147
Abdala

APRESENTAÇÃO

O autor desta obra, Cláudio Emanuel, é um jovem inteligente, estudioso e voltado para o bem. Encontra‑ ‑se empenhado, com outros jovens, na construção e instalação de uma Casa para assistência a crianças com deficiências e pessoas idosas carentes.

O resultado da venda deste livro será revertido em favor da efetivação do ideal.

Contos da Vida, cujo conteúdo tem um caráter pro fundamente educativo, pelas reflexões que provoca e os exemplos comportamentais que oferece, merece ser lido por todas aquelas pessoas que sonham com uma sociedade humanizada e solidária com os ensinos de Jesus, que aconselha “amar a Deus sobre todas as coi‑ sas e ao próximo como a si mesmo”.

Salvador, 21 de maio de 2011

Ildefonso do Espírito Santo

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Tendo plena convicção de que tudo provém de Deus, nosso Criador e Pai amado, não ousaria negar o auxílio dos companheiros espirituais na constru‑ ção desta obra. Evidentemente, alguns perguntarão: Quais os nomes?

É comum buscarmos os nomes dos grandes Emis‑ sários Espirituais, esquecendo‑nos dos Emissários Es‑ pirituais grandes, aqueles que apesar de desconheci dos pelos nomes, são grandes nas tarefas de Jesus e “não se sentem diminuídos quando se tornam peque‑ ninos a fim de auxiliar‑nos”.

Em verdade, o que importa é a mensagem de amor e de fraternidade, que se expressa no bem, materializando‑se na caridade. Os nomes são secun dários; o valor verdadeiro está no amor do Ser por trás do nome.

Fazemos parte de uma grande cadeia de fraterni‑ dade, tudo que fazemos tem um pouco de tudo que nos cerca, visível e invisível aos nossos olhos. É sau‑

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EXPLICANDO

dável sentirmo‑nos integrados ao Universo que pulsa envolvido no amor de Deus, dessa forma não há lu‑ gar para o egoísmo, orgulho e solidão. Tudo é amor, paz, vida e luz. Agradeço a esses irmãos espirituais que apesar de invisíveis, estão sempre dispostos a nos socorrer e sempre presentes como verdadeiros repre‑ sentantes do Cristo em nossas vidas.

Salvador, abril de 2011. Cláudio Emanuel Abdala de Santana

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RESPOSTA DA VIDA

Deitado em um leito hospitalar, estava o sr. Hermó genes e diante dele um jovem médico.

— Dr. Marcelo – perguntou o paciente angustiado – será que eu vou escapar dessa?

— Meu caro Hermógenes, o seu caso é um pouco delicado, você está com um câncer bastante volumoso no mediastino, ele está comprimindo o seu coração e os pulmões, e, por ser uma área muito vasculariza da, a cirurgia será muito delicada. Entretanto, você está respondendo bem a quimioterapia. Creio que há boas possibilidades.

— Estou aqui – disse o paciente mais animado –porque tenho referências do senhor, inclusive como um dos mais competentes na área em nosso país.

— Se tudo correr como programado – arrematou o médico – faremos a cirurgia na próxima semana.

Quando dr. Marcelo ia saindo, foi chamado por Hermógenes.

— Doutor, o senhor dispõe de mais algum tempo?

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— Só mais um pouquinho. Pode falar.

— Vendo o senhor assim tão jovem, eu me lembrei que ele poderia estar com sua idade.

— Ele quem?

— Eu vou contar ao senhor toda a minha história.

— Estou perdido – disse o médico brincando – vou passar aqui o resto do mês.

— Eu era muito jovem – começou o interlocutor – e me apaixonei completamente por Marta, uma mulher linda, uma verdadeira rainha do Ébano. Iniciamos o namoro, mas não fazia planos de casamento. Com mi nha mente doentia e preconceituosa, eu poderia na‑ morar, com uma negra, mas casar‑me com ela jamais. O tempo foi passando e eu cada vez mais apaixonado.

Além de muito linda, Marta, de um coração de ouro e um caráter incorruptível, seria a mulher ideal para qualquer homem, mas casar‑se comigo nem pensar.

Um dia, estávamos em meu apartamento, quando ela, toda sorridente comentou que tinha uma grande surpresa para mim. Depois de algum tempo em silên‑ cio, sentenciou que estava grávida, com dois meses e meio de gestação.

O senhor imagina como fiquei? O mundo inteiro desabou em minha cabeça. Como eu ia explicar aos meus pais que eles iriam ter um neto negro ou no mí nimo moreninho?

— E o que o senhor fez? – perguntou o médi‑ co curioso.

— Deixei‑a no apartamento e retornei com uma

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medicação abortiva para ela tomar. Um filho naque le momento, e, em tais circunstâncias, seria o fim da minha vida.

— E ela aceitou?

— Não, ela chorou muito, tentou sair; eu não dei‑ xei, fechei a porta, segurei‑a à força, e com um copo na mão forcei a beber o remédio.

— E depois – perguntou dr. Marcelo demonstran do angústia no olhar – o que aconteceu?

— Eu estava enlouquecido, desesperado, tranquei‑ ‑a no quarto e esperei. Algumas horas depois ela per deu a criança, estava sangrando muito. Eu tentei aju‑ dar, mas ela recusou. Ela saiu chorando e eu nunca mais a encontrei. Contando ao senhor, parece que foi ontem, mas já faz vinte e nove anos.

— O senhor não tem remorso?

— Eu sinto – respondeu Hermógenes com triste‑ za no olhar – sinto muito! Depois de algum tempo casei‑me, fui pai de um lindo menino de olhos ver‑ des, porém, aos dezoito anos, morreu num acidente de automóvel na via Dutra. Parece que foi um castigo de Deus! Não tive outros filhos. Doutor perdoe‑me, afinal de contas o senhor é médico e não padre.

O médico nada respondeu. Despediram‑se, e o doutor foi atender outros pacientes. * * *

Após uma semana, no dia da cirurgia, duran‑

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te a avaliação pré‑operatória, o senhor Hermóge nes comentou:

— Doutor , eu estou com muito medo! Tenho pen‑ sado em Marta e na criança que eu a fiz abortar! Será que Marta também morreu e os dois me esperam no Além para o acerto de contas?

— Deixe de bobagens – falou o médico buscando animá‑lo. – Você está ótimo, a cirurgia vai ser um su cesso e você vai ficar “vivinho da silva”! Às vezes, o acerto de contas se dá de outras formas!

Realmente, tudo correu bem. A cirurgia foi fan tástica, Hermógenes perdeu parte do pulmão direito, mas ficou ótimo.

Seis meses depois, em uma das avaliações periódi cas, o dr. Marcelo perguntou a Hermógenes:

— Se o senhor pudesse voltar no tempo, no caso de Marta, o que o senhor faria?

— Eu estou mudado – disse com os olhos em lágri mas. Eu a aceitaria e ao meu filho, pois descobri com o sofrimento que o amor não tem cor. Entretanto, dou‑ tor, o tempo não volta, e eu tenho que amargar esse remorso. Quero agradecer pelo senhor ter salvo a mi‑ nha vida. Soube que estive quase morto, e contaram‑ ‑me que nunca o senhor se mostrou tão empenhado em salvar a vida de um paciente como fez comigo.

—Eu não poderia proceder de outra forma – dis‑ se dr. Marcelo em prantos – pois era a primeira vez que eu tinha na mesa de cirurgia, meu próprio pai como paciente!

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A “ADOÇÃO”

A madrugada avançava ao encontro da alvorada, entretanto, o nascimento do astro‑rei não seria símbo‑ lo de renovação da vida para todos. Sentados em uma ruela de uma metrópole, encontravam‑se três jovens: Paulo, com quinze anos de idade, Henrique com qua torze e João com treze. Após a noite de perambulação, realizando pequenos roubos, “viajavam” no consumo da cocaína, e, após alguns minutos de silêncio, come çaram a conversar:

— Cara – perguntou Paulo a Henrique – me conta como foi que você entrou nessa vida?

— Pela barriga da minha mãe – respondeu sorrindo.

— Engraçadinho, eu estou perguntando na vida das drogas, do crime, da marginalidade.

— Eu não gosto de fazer esse tipo de viagem – res pondeu a contragosto – mas porque você é minha cor‑ rente, eu vou contar. Eu tenho oito irmãos, meu pai só vive bêbado, briga com minha mãe, bate nela e ela também que não é besta, bate nele. A gente mora num

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barraco no morro. Tem dia que minha casa parece um inferno. Eu e meus irmãos somos criados como se cria batatas, sabe como? Joga no mundo que o tempo cria, a chuva, o sol e o vento, o dia, a noite e o sereno fazem o resto. Não suportei e saí de casa, agora meu pai e minha mãe são o pó branco. E você, como foi?

— Comigo foi bem diferente, praticamente o con trário. Você sabe né, eu sou do Leblon, família rica, o famoso “filhinho do papai”. Desde pequeno, meus pais fizeram todas as minhas vontades. Eles vivem em outro mundo, desde cedo aprendi a viver com as babás. Sabe por quê? Porque eles que dizem que são meus pais, vivem para as festas, encontros sociais, chás das cinco, viagens para Europa. O meu quar to está entupido de presentes de todas as partes do mundo, sempre estudei nas melhores escolas. Todas as minhas vontades são atendidas. Eu me lembro que num Natal, eu pedi de presente a Papai Noel, um pai e uma mãe, porque o resto eu tinha, o dinheiro deles podia comprar.

— E eles sabem o que você anda fazendo?

— Eles enxergam em mim o que querem, mas na verdade acho que sou invisível. Primeiro, transferi‑ ram toda a responsabilidade da minha educação para as babás e depois para os professores. Enquanto eles viajam pelo mundo, eu “viajo” sem sair do lugar. E você, pouca sombra – perguntou a João sorrindo – vai ficar aí só ouvindo? Conte para a gente a sua longa história de vida.

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— Contar o quê? – perguntou magoado – vocês ainda têm pais para reclamar e acusar, eu nem isso te‑ nho. Fui criado em orfanato, depois de ter sido achado em uma caixa de papelão na porta de uma igreja. De pois que a diretora morreu, seu Raimundo apareceu, e tentou me fazer de mulher. Aí eu fugi. De lá para cá, a minha casa é a rua, e aqui fora é muito difícil não cair nos braços da marginalidade. A maconha é o cartão de visitas, e, depois, vêm as drogas mais pesadas.

O silêncio se fez pesado. Os três estavam chorando, quando João, ainda com a inocência que só as crianças têm, falou:

— Eu não queria que fosse assim. Eu queria ser normal como a maioria das crianças. Às vezes, quero trabalhar, pego a flanelinha, e no semáforo, quando vou me aproximando as pessoas fecham o vidro da janela. É aí que me revolto e dá vontade de roubar mesmo. – E chorando, agora mais intensamente, arre mata: – eu só quero uma chance, eu só quero ser feliz!

O dia nasceu, as pessoas começaram a se acoto‑ velar nas ruas, cada uma em busca dos seus sonhos e ideais, preocupadas com suas questões, passam na entrada da ruela sem perceber, que sobre papelões, três crianças, de origens diferentes, dormem, talvez sonhando com um mundo melhor e mais justo, onde as drogas não encontrando as portas abertas, não mais adotem os nossos filhos.

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O DIAMANTE DE HUPARU

O verde florescia abundantemente. Árvores de to das as espécies produzindo frutos a mancheias. Rios caudalosos que despencavam em cascatas e cachoei‑ ras de tirar o fôlego. Animais que pululavam de todas as partes. Era a fauna e a flora que se confraterniza vam numa harmonia jamais pensada pelo mais oti‑ mista dos biólogos.

Em verdade, aquela floresta era um verdadeiro Éden não descoberto pelos ditos civilizados. Entre‑ tanto, o homem estava presente na figura simples do índio que se harmonizava perfeitamente com a mãe Natureza. Banho nos rios, pesca apenas para o neces‑ sário de cada dia, sem ambição material, sem cobiça, sem egoísmo; tudo era dividido com todos.

Respeito à natureza, respeito aos idosos, respeito à vida.

Naquela tarde Huparu, índio ainda adolescente, ha‑ via saído para caçar e numa gruta muito úmida encon trou a grande pedra. Era um diamante lindo, extrema‑

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mente puro e valioso, do tamanho da mão fechada de Huparu. O índio ficou muito feliz, não pelo valor da pe‑ dra, pois não sabia o que era diamante, mas pela beleza cintilante quando refletia a luz do sol. Imediatamente, fez um lindo colar, sendo admirado por toda a tribo.

O tempo passou, Huparu se tornou o grande chefe e sábio da tribo. Seus conselhos evitaram várias guer ras entre as tribos da região, e todos viam nele, agora já maduro, um grande líder.

Um dia, uma frota de grandes navios é vista no horizonte. Era o homem branco com a ilusória ne cessidade de conquistas sobre os outros homens, tornando‑se lobos uns dos outros. Aportou distribuin‑ do presentes para conquistar a confiança dos nativos, o que conseguiu.

No dia seguinte, Huparu estava sentado à beira do rio, quando Jonas, o capitão, se aproximou e disse:

— Lindo colar que você usa, grande chefe!

— Encontrei há muito tempo quando ainda era bem jovem. Ele reflete a luz do Pai Sol – respondeu o índio convicto.

— Da terra de onde vim, esta pedra tem grande va‑ lor, os homens matam e morrem por ela – falou Jonas com os olhos a brilhar.

— E o que vocês fazem com ela? – inquiriu Hupa ru interessado.

— Nós a burilamos e transformamos em belíssi‑ mas joias. Vendemos, ganhamos muito dinheiro e compramos muitas coisas!

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— E para que ganhar muito dinheiro?

— Eu já disse chefe; para comprar muitas coisas.

— E para que comprar muitas coisas? – voltou a perguntar o índio.

— Ora – respondeu Jonas sem jeito – para ter status!

— E o que é status?

— Bem! Status é... Quer dizer... Como posso te explicar... É uma forma das pessoas respeitarem as outras. É isso, o status faz com que as pessoas se‑ jam respeitadas.

O chefe da tribo pensou... pensou... e argumentou:

— Aqui na tribo, as pessoas são respeitadas pelo que são, pelo que fazem, pela coragem, pela sabedo‑ ria, pela idade e pelos bons conselhos – depois de al guns segundos continuou – diante da Mãe Natureza não é preciso guardar e acumular coisas. Andamos sem roupas como essas de vocês, isso porque nasce‑ mos sem roupas e não vamos precisar delas depois de mortos. Quando pescamos e caçamos é para o alimen‑ to do dia, a gente sabe que amanhã a floresta dá mais.

Meio desconcertado e ao mesmo tempo tentando afastar do pensamento as reflexões profundas que os conceitos de Huparu estimulavam, propôs:

— Chefe, você trocaria comigo esse diamante por esta lanterna?

— Para que serve lanterna?

— Para iluminar a noite.

— Mas nós já temos a lua.

— E na noite sem lua?

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— Temos as estrelas.

— E quando o céu estiver encoberto de nuvens?

perguntou Jonas um pouco agastado.

— Está bem homem branco – disse Huparu com ar de compreensão – tome a pedra do seu status e seja feliz com ela, como eu irei continuar feliz sem ela.

E Jonas, o homem branco, voltou para a chamada civilização, vendeu o diamante, comprou os seus bens e continuou em busca do ilusório status.

E na floresta, à beira do rio, numa linda noite, Hu‑ paru olhava o céu atapetado de estrelas e, lembrando do homem branco, pensou consigo:

— O homem busca o diamante da terra que muitas vezes traz tanta dor e se esquece de olhar para o céu que durante a noite está repleto de verdadeiros dia mantes colados no teto celeste. O homem se torna tão pobre, sem perceber que é tão rico.

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A ESCOLHA

O Dr. Ângelo Diniz era um juiz de direito muito conceituado na cidade onde residia. Homem enérgi‑ co, disciplinado e dono de um coração justo e bondo‑ so. Julgava de forma imparcial, sempre buscando o bem que pode atenuar o mal. Dedicado pai de família, dignificava a missão de esposo e pai. Por todos era querido e respeitado.

Em determinada noite, o dr. Ângelo retornava ao seu lar depois de um dia exaustivo de trabalho. Ao se aproximar da garagem, observa um vulto na escuridão da noite, e antes de qualquer reação, um jovem de mais ou menos dezessete anos já estava no banco do carona com um punhal encostado no seu pescoço. O jovem estava muito agitado, de tal forma que o punhal já estava a ferir o homem da justiça. O rapaz pede para ele dirigir o automóvel para longe da residência.

Durante o percurso, o juiz faz uma proposta que desconcerta o jovem:

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— Eu vou te dar algumas opções para você esco lher uma.

— Coroa – disse o jovem agressivo – não estou dis‑ posto à conversa, eu acho melhor o senhor ficar calado.

— Escute‑me e sua vida poderá tomar outro rumo!

— Vá, fale, mas se for algum truque, eu te cor‑ to todinho!

— Eu vou te dar as opções: primeira, me deixar e fugir; segunda, me roubar e fugir; terceira, me roubar, me matar, tornando‑se um assassino e fugir; e a quar‑ ta, baixar o punhal, jogá‑lo fora e se dar uma nova chance me ouvindo.

O juiz falava com tamanha ternura, em um tom paternal que o jovem empalideceu e tremeu em suas bases.

— O senhor quer me enganar, como todos. Quem se importa?

— Eu me importo.

— A pobreza me levou a esta situação.

— Isto não é totalmente verdade – afirmou dr. Ân‑ gelo convicto – por favor, deixe‑me encostar o carro, vamos conversar um pouco.

O juiz estacionou o veículo e, magnetizado pela força moral, como um animal acuado e amedrontado, o jovem ficou na expectativa.

— Vou contar uma história para você – disse o se‑ nhor, afável. – Em determinada favela, vivia um me‑ nino de oito anos de idade. Ele não conheceu o pai, não sabia quem era, nem a sua mãe sabia. Vivendo

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num barraco em condições muito precárias, muitos dias passando fome, era forçado a dormir embaixo da cama, e, nem sempre conseguia dormir, pois sua mãe recebia os “clientes”; ela vendia o próprio corpo para sobreviver e criá‑lo. Um dia, um traficante, vendo o menino chorando, lhe ofereceu um revólver e disse:

— Vá ganhar a vida!

— E o que o menino fez? – perguntou o rapaz, já em outro clima mental.

— Recusou. Depois de alguns dias, o mesmo traficante ofereceu ao garoto a possibilidade de ser “aviãozinho”, ou seja, trabalhar entregando as drogas aos compradores. E o menino recusou mais uma vez.

Durante a noite, o garoto subia no telhado do bar raco e, ficava olhando as estrelas e sonhando em cres cer, estudar, se formar e trabalhar. Ficava olhando as casas e os edifícios lá debaixo, com o desejo de um dia descer do morro. Pensava em ajudar a mãe a deixar “aquela vida”, e dizia: – um dia vou ser doutor!

— Ele conseguiu? – perguntou o jovem infrator. –Ele virou doutor? Ajudou a mãe? Desceu do morro?

— Sim, meu filho – falou emocionado – é ele quem está falando com você. Eu sou o menino pobre, que venceu na vida, não porque virou doutor e sim, por que não se deixou corromper. A pobreza pode favore cer o desenvolvimento da criminalidade tornando‑se um campo fértil, àqueles que já trazem a predisposi‑ ção no próprio caráter. Existem ricos instruídos nas melhores escolas, não sabem o que é fome, nunca

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subiram em um morro e, são criminosos, marginais astutos e perversos. Quantos estão travestidos em ho‑ mens de bem, políticos, com nível universitário, que não passam de lobos em pele de cordeiros?

Você, meu filho, não se tornou assim porque é po‑ bre. Na verdade, mesmo sem saber a sua história, sin‑ to em você, alguém pedindo socorro. E aí! Você já fez a sua escolha?

O jovem, em prantos, jogou o punhal pela ja‑ nela e abraçou o juiz, que retribuiu o forte abraço, olhando a alvorada que surgia convidando para um novo começo.

Uma semana depois, o jovem estava assumindo o trabalho de mensageiro interno, no gabinete do juiz, no fórum da cidade.

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SUICÍDIO

Era uma noite fria de outono, as nuvens borras cosas encobriam a lua e as estrelas, uma chuva fina molhava as calçadas da cidade. O vento soprava, em seu cantar solitário, levando consigo algumas folhas arrancadas bruscamente dos galhos das árvores que se curvavam vencidos pelo seu ímpeto.

Sobre a ponte das Torres, que une ambas as margens do Tâmisa, em Londres, uma mulher de olhar triste e angustiado pensava nos dissabores da própria existência. Nascera, e, em dois anos, havia perdido os pais em um naufrágio. Fora levada para um orfanato onde vivera sem a experiência de um verdadeiro lar. Quando se tornou maior de idade, trabalhou duro em uma taberna, onde teve a opor tunidade de encontrar o grande amor de sua vida. Casou ‑se, e, durante dez anos, viveu um paraíso com o esposo e os dois filhos. Entretanto, mais uma vez, as águas que se transformaram em abundantes lágrimas, levaram em suas correntes caudalosas, a

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felicidade. Em outro naufrágio, ela perdeu o esposo e os filhos.

Naquela noite, ela estava como que hipnotizada, olhando as águas do Tâmisa, e em sua tela mental, como imagens cinematográficas se descortinava a sua vida, a sua desdita, a sua profunda dor, e pensava so‑ litária: – Como continuar vivendo? Como ser feliz, se tudo me foi roubado pela própria vida? Que destino cruel, ter meus amados pais, esposo e filhos tragados pelas águas caudalosas? Não, não desejo mais viver. Terminarei a minha triste história como aqueles que foram a razão do meu viver. Se eles não mais existem, também eu mergulharei nas profundezas do nada.

— Quem disse que eles não mais existem? – a voz do inesperado homem assustou Carmem – a morte não é o final da história.

— Quem é o senhor?

— Alguém que já viveu bastante para entender os meandros da vida. Meu nome é Charles Bermann. Minha querida, a existência é uma longa jornada de aprendizado. Entretanto, quando comparada com a eternidade não chega a um minuto. Eu imagino a dor que te dilacera o coração, mas buscar a solução no sui‑ cídio é uma ilusão.

— Mas como eu vou conseguir continuar vivendo com uma dor tão profunda? – interrompeu a mulher. Como superar, se o jardim do meu coração se trans‑ formou em um deserto sombrio?

— Filha, posso chamá‑la assim, pois tenho idade

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para ser seu pai. O sofrimento, quando inevitável e aceito com resignação, pode, verdadeiramente, abrir úlceras profundas na alma. Entretanto, depois que o tempo as cicatrizam, transformam‑se em fonte de luz para o Espírito.

— Eu não consigo – disse Carmem, em prantos –não vejo luz, não tenho perspectivas, minha única saí da é a morte.

— Saída não – afirmou Charles – entrada, sim! En‑ trada em uma dor que nem a imaginação mais fértil é capaz de vislumbrar.

— Mas, como? O senhor está me deixando confusa.

— Filha, observe o céu agora. – falou inspirado – O que você consegue ver?

— Nuvens escuras anunciando tempestade.

— É verdade, porém as nuvens são passageiras, o que é permanente está atrás, ou melhor, acima das nu‑ vens. E nessa noite que anuncia chuva, o que há acima das nuvens? – perguntou sorrindo.

— As estrelas – respondeu a mulher, não perce‑ bendo que já estava mais tranquila.

— As estrelas e a lua – completou Charles – e, ama‑ nhã pela manhã o sol. Entretanto, as estrelas continua‑ rão, mesmo sem serem vistas pelos nossos olhos huma nos. Entendeu?

— O senhor está falando de vida depois da morte?

— Sim, minha querida! Vida sempre! Vida abun‑ dante, exuberante! De que adiantariam os amores se a morte fosse realmente aniquiladora? Tudo perderia

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o sentido. O homem sempre perguntou: – Quem sou? De onde vim? Para onde vou? Entretanto, nunca abriu verdadeiramente o coração para ouvir as respostas.

— Não sei por que, mas ouvindo o senhor, sinto o meu coração mais leve, menos dolorido. Então o que devo fazer?

— Você experimentou a orfandade, e sabe as dores que a falta dos pais proporcionam, mas também foi mãe e já experimentou esse amor que tudo renuncia, tudo sacrifica pela felicidade dos filhos. Então, minha querida, deixe esse amor represado em seu coração banhar tantos órfãos dessa cidade. Agora, vai para sua casa e pensa, pensa em nossa conversa. Vida, mi‑ nha filha, sempre vida. Adeus.

Ao ouvir a despedida, Carmem como uma criança, atirou‑se nos braços de Charles e osculou‑lhe as mãos.

Alguns dias se passaram, Carmem havia expulsa‑ do o pensamento do suicídio da sua mente, e, depois de pensar muito resolveu procurar Charles. Utilizou de sua influência na cidade, do seu dinheiro, sem êxi‑ to. O homem havia desaparecido sem deixar rastros.

Numa tarde, Carmem relembrava o encontro com Charles, e em determinado momento, uma lembrança fez estremecer todo o seu corpo: – Ele falou da minha orfandade – pensou emocionada – mas eu não contei sobre a minha infância para ele. Como ele soube?

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* * *

Na mesma tarde, Carmem se dirige para o Gabine te de Leitura da cidade, e começa a folhear os jornais mais antigos, há mais de quarenta anos. Trêmula e em prantos lê: – Foi encontrado às margens do Tâmisa, o corpo de Charles Bermann, desaparecido há três dias.

Um ano mais tarde, Carmem inaugura uma casa‑ ‑lar para acolher crianças órfãs, às quais iria dedicar‑ ‑se pelo resto da sua vida.

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* * *
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GUERRA VAZIA

Aqueles eram dias obscuros. O homem, mais uma vez, quedara‑se diante da louca ambição, transfor‑ mara‑se em lobo do próprio homem, desrespeitan‑ do as leis mais primárias de respeito à vida em todas as suas manifestações. A Segunda Guerra Mundial chegava ao seu ponto mais crítico e os campos de concentração eram o símbolo da vergonha humana. Neles, magotes de seres esquálidos esperavam a mor te, alguns a desejavam, tamanha a dor e a vergonha que experimentavam.

Num vilarejo distante e abandonado, o cenário não era diferente da maior parte do mundo, prédios com‑ pletamente destruídos, casas e casebres perfurados por balas de metralhadoras, destroços, lixo e poeira.

Havia um silêncio mortal, até os pássaros em êxodo forçado desapareceram.

Entretanto, o vilarejo não estava totalmente deser‑ to. Um soldado alemão, único sobrevivente do seu batalhão, escondia‑se em uma casa que permanecera

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conservada apesar dos bombardeios. Hans Forher era um jovem com vinte anos incompletos, que havia bus‑ cado o Exército alemão iludido pelas promessas de Hitler e pelos sonhos de aventuras e vitórias. Estava, agora, apavorado após ver a morte de todos os seus companheiros; os sonhos de vitória haviam ruído como os castelos de areia na beira do mar. Desejava agora voltar para casa, rever seus pais e irmãos. Assim pensava e chorava convulsivamente.

Não longe dali, na entrada do vilarejo, com a res‑ piração irregular e o coração descompassado, a farda em frangalhos e uma metralhadora em mãos, estava John, um jovem americano que havia desertado do seu exército. Ele não havia desejado ir para a guerra. Era músico, queria montar sua banda, quando foi sur preendido com a convocação do Exército americano.

Dois jovens prestes a se encontrar, ambos desi‑ ludidos em seus sonhos, amedrontados, cansados e em um grande nível de stress. John aproxima‑se da casa, que chama a atenção por ser a menos destruída. Sorrateiramente, abre a porta e entra. Móveis quebra dos, cortinas rasgadas, tudo coberto de poeira. Con‑ trastando com quadro desolador, estava, no canto da sala, um piano de calda coberto com um lençol, que a princípio, deveria ser branco tingido de marrom pela poeira.

Enquanto o jovem americano descobria o piano, deu‑se a primeira rajada da metralhadora de Hans, que percebeu a presença do intruso inimigo. John res‑

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pondeu imediatamente, e uma guerra particular teve início. Os jovens rolando no chão, escondendo‑se atrás dos móveis, lutando desesperadamente pela vida. Em determinado momento, encontram‑se frente a frente. O inesperado acontece. Ambos puxam o gati‑ lho das metralhadoras e as duas máquinas da mor‑ te travam e não cospem as balas de fogo. Atônitos, encontram‑se os olhos pela primeira vez. Em ato con tínuo, se livram das armas e atracam‑se como feras em sua irracionalidade. Trinta minutos se passam entre socos, pontapés, móveis atiçados contra o corpo, até que ambos caem completamente exaustos. O resulta‑ do: cortes, hematomas, equimoses e muito sangue.

Após alguns minutos inconscientes, ambos acor dam e sem forças para levantar, iniciam o diálogo:

— Qual é o seu nome – perguntou John com esforço.

— Meu nome é Hans. E o seu?

— O meu é John. Você é de que cidade?

— Eu sou de Berlim, Alemanha.

— Eu sei que Berlim fica na Alemanha, tive aula de geografia – respondeu John com ar de riso. – Eu sou da Califórnia.

Grande silêncio se fez. Em determinado momento, os olhos se cruzaram, e, assim, permaneceram por uns dez minutos, um olhando profundamente nos olhos do outro. O silêncio é cortado por um gemido.

— O que foi? – perguntou Hans.

— Minhas costelas, eu acho que você me fraturou algumas. Você bate bem!

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— Não era para ser assim, quer dizer, eu não que ria que fosse assim. Mas não se sinta inferior, acho que você também fraturou algumas das minhas. Ambos sorriram.

Agora foi a vez de John perguntar:

— Por que você entrou na guerra?

— A princípio – falou Hans – pensei que era pela aventura e sede das vitórias, mas agora sinceramente não sei. E você?

— Eu fui forçado, era aceitar ou ser preso. Eu que‑ ria montar minha banda, fazer música, ser feliz. Por isso desertei.

— Você fugiu?

— Sim – confirmou John em tom mais sério – a guerra é um flagelo para a Humanidade, uma prova patente da nossa proximidade com os animais, pois é assim que nos comportamos, como verdadeiros ou até piores que os animais. Não existe uma lógica. Como invadir as cidades, destruir tudo e matar as pessoas que não conhecemos, que jamais sequer vimos?

— Você tem razão, somos todos membros da gran de família universal. Isso sem falar que os homens que promovem as guerras ficam em seus gabinetes cercados de seguranças, enquanto os jovens, muitas vezes, ainda adolescentes, perdem a vida nas batalhas ou sofrem nos campos de concentração. John será que isso um dia vai acabar?

— Valendo‑me da sensibilidade dos músicos, eu creio que só quando o ser humano vencer o egoísmo,

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o orgulho e a vaidade e se deixar embalar pelo amor, cantando um hino de louvor à fraternidade, aí sim, o mundo viverá em paz.

— John, a conversa está boa, mas temos um pro blema prático – questionou Hans preocupado – pelas leis da guerra, me sinto ridículo falando assim, como se ela fosse digna de ter leis. Bem, seja como for, para eles nós somos inimigos, e agora o que faremos?

— Bem – disse John sorrindo – aqui nessa cidade, tem uma casa, um piano e dois moradores. Vamos fa‑ zer música e esperar essa louca guerra acabar.

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ACUSAÇÃO INDÉBITA

— Agora, Norma, tenho certeza que as coisas vão começar a melhorar em minha vida – comentava Elisa animada. Consegui um emprego de doméstica e vou poder ajudar a Antônio nas despesas da casa, afinal de contas, são cinco filhos para criar, e todos menores de idade.

— Eu não sei como vocês sobrevivem, porque em relação à pobreza, não é viver, é sobreviver.

— Antônio é um homem trabalhador – falou Eli‑ sa – é um dos melhores vendedores de peixe da feira livre, e quando a coisa aperta, eu e os meninos vamos para rua catar latas para vender. Nunca aprovei as pessoas que usam as crianças para pedir esmola, acho que todo trabalho é digno, e assim, meus filhos apren dem que mesmo sendo dura e difícil, a vida pode ser vivida com honestidade.

— Eu concordo – disse Norma – mas tem muita gente que diz que as crianças não devem fazer esses tipos de trabalhos.

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— Eu também acho, porém, seria bem melhor se essas pessoas que andam falando aos quatro ventos, que as crianças não devem ir trabalhar, fizessem al‑ guma coisa. É muito fácil falar, apontar a ferida, mas ajudar a tratar e cicatrizar, ninguém se mobiliza. Às vezes, aqui e ali, surge um iluminado que ajuda, en‑ tretanto, a grande maioria só faz discurso, e não estou falando somente de político. Uma vez um rapaz me contou um caso da Madre Teresa de Calcutá. Disse que, um dia, um homem a procurou e disse que ela estava estimulando a preguiça ao alimentar os mendi gos, e disse um ditado popular para ela: “melhor que dar o peixe é ensinar a pescar”. Madre Teresa sorriu e disse a ele que os mendigos estavam tão fracos que não teriam forças, nem para segurar a vara de pescar, e que ela ia dar a comida, para eles ficarem fortes, e que ele, o falador moralista, deveria ensinar a pescar, conseguindo emprego para eles. Por isso que eu digo: julgar é muito fácil. Sentir na pele é outra coisa.

— Você hoje está uma filósofa, mas voltando ao assunto, onde seus futuros patrões moram?

— Num bairro nobre da cidade, é um casal de mé‑ dicos muito ricos, eles têm dois filhos, um de dez e o outro de oito anos. Eu começo a trabalhar na pró xima segunda‑feira, dia três. Só Deus sabe o quanto estou feliz! * * *

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— Mariana, estou muito feliz. – Dizia dr. Adriano abraçando forte a esposa. – Daqui a dez dias, estare‑ mos completando quinze anos de casamento, e você sabe, como eu sou ansioso, adiantei o presente. Tome... Abra!

Dr.ª Mariana abriu a caixa. Tinha outra dentro. Abriu novamente e outra caixa. Fez isso umas seis ve zes e falou emocionada:

— Meu querido, este anel é maravilhoso! Deve ter custado uma fortuna!

— Você merece todos os anéis do mundo. Agora, guarde para usá‑lo no jantar em comemoração ao nos‑ so amor.

Os dias se passaram sem maiores acontecimentos. Elisa iniciou o trabalho na residência do casal Mariana e Adriano e estava muito feliz. Muito simpática, logo conquistou os filhos do casal.

Na noite do jantar em comemoração aos quinze anos do casal, Mariana estava deslumbrante. Adriano ficou tão encantado que lembrou a primeira vez que se encontraram, e disse sorrindo:

— Para você ofuscar todas as pessoas do restau‑ rante só falta colocar o anel.

— Desculpe querido, na ânsia de arrumar‑me para você, esqueci de colocá‑lo. Eu vou buscar.

Em minutos, retornou pálida e nervosa.

— Meu querido, o anel sumiu!

— Sumiu como?

— Eu não sei, desapareceu. Eu tenho certeza que

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quando você me deu, eu coloquei dentro da minha caixa de joias, eu não saí do quarto com ele – falou irritada – alguém nos roubou.

— Mas em nossa casa só temos nós e as crianças. A última festa que demos, aqui, faz mais de um mês, não temos recebido visitas.

— Elisa, só pode ter sido ela. Elisa – gritou a mu lher – venha cá urgente.

Elisa chegou ao quarto do casal ofegante por ter subido correndo a escada que dava acesso ao cômodo.

— Sim senhora – falou sorridente como sempre.

— Onde está o anel?

— Que anel?

— Que anel? O anel que o Adriano me presenteou. Você pegou.

— Senhora – disse Elisa já em prantos – eu não peguei o anel. Dona Mariana, eu sou pobre, a minha vida é difícil, eu passo muitas dificuldades, mas eu nunca roubei ninguém.

— Meu anel é muito valioso, você ia ter muito di‑ nheiro com ele, – disse com ódio no olhar – confesse e não chamarei a polícia.

— Eu já disse doutora, pelo amor de Deus, eu não roubei o seu anel.

A mulher, completamente possuída pelo ódio pegou o telefone e em uma hora a polícia chegou e foram todos para a delegacia. Como acontece muito, frequentemente, o pobre diante do rico, em questões como essas é sempre o lado mais fraco. Por mais que

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Elisa falasse, não era ouvida. A verdade era que o anel havia desaparecido, e ela era a única suspeita. Diante do poder, às vezes, o suspeito é quem tem que provar que é inocente, e não o acusador provar que ele é cul pado, coisas da “justiça” do mundo.

A verdade é que, após presa e julgada, Elisa foi condenada e levada para o presídio feminino, onde iria sofrer por muito tempo.

O tempo passou inexorável. A vida transcorria tranquila para o casal Mariana e Adriano. O objetivo agora era reformar a casa, ou melhor, a mansão. E as sim o fizeram. Numa manhã, Mariana é surpreendida pelo pedreiro:

— Senhora – disse ele – quebrando o piso do seu banheiro, olha o que eu encontrei!

Era o anel. Elisa estava com a razão, ela não ha‑ via roubado o anel. Mariana pôs as mãos na cabeça, pois apesar de se descontrolar, facilmente, e às vezes se precipitar, ela também tinha um lado bom. Meu Deus – disse – cometi uma enorme injustiça. Em ato contínuo, chamou o marido, contou a história e mos trou o anel. Resolveram ir juntos à penitenciária na tentativa de corrigir o grande erro. Chegando à peni‑ tenciária, notificaram às autoridades e pediram para falar com Elisa.

Ali estavam eles sentados, e no outro lado da mesa

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*
* *

estava Elisa, olhar triste que denotava uma grande melancolia, porém com uma expressão serena, que só os inocentes possuem. Mariana começou o diálogo:

— Elisa, eu não sei o que dizer, por favor, me perdoe.

— E a mim também – interferiu Adriano – sabe‑ mos que não temos perdão e não há justificativa, mas só havia você como suspeita.

— Mas vocês não pensaram na possibilidade de terem perdido o anel, não me deram chance de defe‑ sa, eu disse que era inocente. A pobreza não estimula a marginalidade em quem é honesto. Existem muitos ricos ladrões.

— Elisa, nós vamos lhe restituir todos os prejuízos para você recuperar a sua vida.

— Que vida? – disse Elisa triste – Depois que fui presa, meu marido me abandonou, se casou com ou‑ tra mulher. Ele veio me visitar apenas três vezes em dois anos e meio. As mulheres são mais fiéis aos presi diários que os homens. Hoje, outra mulher cuida dos meus filhos que, dificilmente, terei de volta por que este estigma, mesmo sendo eu inocente, ficará para sempre em minha vida. Vocês dois acabaram com a minha vida.

Um silêncio profundo se fez. O casal extremamen te abatido se despediu. Duas semanas depois, Elisa re cupera a liberdade, entretanto as úlceras em sua alma, mesmo que tratadas, se transformariam em cicatrizes para o resto da vida.

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VISITA AOS ESQUECIDOS

O jardim era de uma beleza indescritível. As rosas atapetavam o chão de forma tão graciosa que parecia ser um pedaço do céu. O aroma do jasmim embevecia e a visão dos jambeiros em flor de primavera encan tava. Os bancos arrumados com esmero denotavam o cuidado dos dirigentes daquela instituição, entretanto a sensação de vazio contrastava com a beleza do local, que afinal de contas era um asilo, casa de repouso, ou para outros, abrigo para idosos.

Sentada em um dos bancos estava dona Carlita. Em seus oitenta e cinco anos demonstrava uma vivacida de no olhar que impressionava. Os cabelos brancos e as rugas na face morena eram as provas dos inver‑ nos da vida que proporcionam marcas indeléveis na alma. Portadora de um sorriso encantador, apesar da ausência de dentes, era de um otimismo a toda prova. Sentei‑me ao seu lado e iniciou‑se o diálogo:

— Como é seu nome meu menino?

— Antônio – respondi sorrindo. – E a senhora o que

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está fazendo nesta manhã de primavera, sentadinha aqui nesse banco?

— Estou tentando encontrar um namorado – dis‑ se brincando. – Estou viúva há nove anos, já está no tempo de casar, novamente, afinal de contas sou uma coroa bonita.

Sorrimos, e percebendo que a nova amiga enfren tava a dificuldade em morar num asilo com muito oti mismo, me arvorei a aprofundar no diálogo:

— Há quanto tempo a senhora mora aqui? A se‑ nhora se incomodaria em contar‑me a sua história, evidentemente, se não for uma inconveniência de mi‑ nha parte.

— Meu filho – falou agora com diferente ento nação na voz – a última visita que tivemos faz dez meses: foi no Natal. Um grupo de jovens esteve aqui com presentes e muita música. Depois do Natal, você é o primeiro, e eu não vou perder a oportuni dade de conversar. Vou contar a você um pouco da minha história: filha única de uma família muito po‑ bre, comecei a trabalhar muito cedo, meu pai teve derrame e minha mãe não podia trabalhar, pois tinha que cuidar dele. Eu vendia doces no cais do porto, e assim cresci.

Depois da morte do meu pai, eu conheci um rapaz e me apaixonei – nesse momento, os seus olhos brilha‑ ram mais intensamente. – Casamos e mamãe foi mo‑ rar conosco. Ele também era pobre, entretanto o nos so amor era tão grande que seria capaz de enfrentar

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EMANUEL Abdala

todos os problemas do mundo. Tivemos treze filhos, dos quais, quatro nós adotamos.

— Como? – Não contive a surpresa, interrompen‑ do a narrativa.

— Eu sei – disse ela, como a ler meus pensamentos – você deve estar pensando: como pode com tamanha pobreza ter nove filhos e ainda adotar mais quatro? Meu filho, você ainda é muito jovem e, com o tempo, irá perceber que os caminhos de Deus, às vezes, são insondáveis aos homens. Os meus quatro adotivos, meus meninos, estão morando na Espanha há uns dez anos.

— E os outros, onde estão?

— Deixe de ser apressado, menino – disse sorrin do, apertando a minha bochecha. – Você me pediu para contar minha história, então não tenha pressa, afinal de contas são oitenta e cinco anos. Eu fui muito feliz em meu casamento. Ernesto foi o melhor marido que a vida me poderia dar. Depois de uma vida de muitos sacrifícios e privações, conseguimos formar a maioria dos filhos. Faz nove anos que Ernesto foi para junto de Deus preparar o lugar para mim.

— Acho que ele vai ter muito tempo para preparar, – falei tentando animá‑la – pois a senhora ainda vai passar muito tempo aqui.

— Vá pensando... A verdade foi que depois da morte dele, eu me senti um peso para meus filhos. Uma semana na casa de um, uma semana na casa de outro. Fizeram até uma escala anual, isso, evidente‑

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mente, sem pedir a minha opinião. Têm pessoas que pensam que a velhice tira de nós a vontade, o prazer e a capacidade de decisão. Alguns acham até que o idoso fica assexuado, não tem mais desejos, prazer, sonhos e nem ideais, isso tudo é prova de ignorância e falta de compreensão do significado da vida. Pois bem, depois de ficar como bola de ping‑pong, decidi que iria para um asilo. Disse isso, mas no fundo que ria ouvir: não mamãe, a senhora no asilo nunca, não depois de tanto sacrifício para nos criar.

— E aí?

— E aí, foi uma grande surpresa. Eles aceitaram sem nenhum pedido para eu ficar. Em uma semana, eu estava chegando aqui e já se passaram oito anos. As duas primeiras semanas foram terríveis. A minha individualidade e privacidade estavam sendo inva‑ didas. A minha casa foi reduzida a uma cama e um pequeno armário de uma só porta. A solidão e o silên cio da noite cortado por alguns gemidos me angus‑ tiavam. E o pior foi o esquecimento dos filhos que me visitavam aos domingos, nos primeiros dois meses, e esqueceram‑me em pouco tempo.

Naquele momento, o sorriso contagiante de dona Carlita foi substituído por grossas, quentes e longas lágrimas que lhe escorriam pela face.

— Aqui meu filho, – disse ela cortando o silêncio – é o “local dos esquecidos”. Às vezes, a solidão é es‑ pantada por pessoas como você que apesar de não ter parentes aqui, vêm trazer carinho e amor para esses

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velhos que o mundo esqueceu. Mas, depois da segun da semana, disse recuperando o ânimo, eu percebi que a vida continua, e eu sendo uma nordestina, for‑ te por natureza, não iria deixar a peteca cair. Mudei a atitude mental e vou vivendo na alegria que Deus me deu.

Ela se levantou e me abraçou bem apertado. Pediu que me abaixasse e me osculou na testa, se despediu e saiu andando, lentamente, olhou para mim sorrindo, e mais uma vez, falou como a ler meus pensamentos:

— Eu ando devagar porque eu quero. O tempo me ensinou a não ter pressa para viver.

E vendo dona Carlita caminhando em direção ao prédio, foi a minha vez de chorar, e chorei muito. Vol tei para casa com reflexões para o resto da vida. * * *

Duas semanas se passaram, retornei ao asilo e con‑ fesso estava com muitas saudades de dona Carlita, porém uma surpresa me aguardava. Ao chegar ao seu quarto, encontrei‑o vazio, totalmente vazio. Desespe‑ rado fui à direção buscar notícias, e como é comum no ser humano, pensando o pior. No entanto, com gran de felicidade, soube que os quatro filhos adotivos que moravam na Espanha, e não sabiam que ela estava há oito anos no asilo, chegaram ao Brasil de surpresa e a levaram com eles para a Espanha fazia dois dias. Muito feliz, estava saindo, quando a diretora do asilo

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disse‑me ter deixado ela uma carta para mim. Sentei ‑me, abri o envelope perfumado e li:

— Meu filho lembra o que eu te disse quando nos conhecemos? Que você ainda é muito jovem, e com o tempo, irá perceber que os caminhos de Deus, às ve‑ zes, são insondáveis aos homens. O que o sangue que corre nas veias não conseguiu fazer por mim, o amor que pulsa no coração fez. Vai meu filho, ama, crê e sê fiel a Deus, continua visitando os idosos nos asi‑ los. Estimula as pessoas para fazerem o mesmo, faze o possível, seja sempre grato à vida, e o impossível Deus fará.

Um beijo de Carlita, agora, a espanhola feliz.

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O CUPIM

Numa vila muito distante, se difundiu a história da existência de um tesouro de grande valor locali‑ zado no pico de uma montanha de difícil e perigoso acesso. Imediatamente, formou‑se um grupo de trinta pessoas, com o objetivo de conquistar a montanha to mando posse do valioso tesouro.

Reuniram‑se, traçaram a estratégia, escolheram o lí‑ der, dividiram as tarefas, prepararam os mantimentos, e marcaram o dia da partida. Todos sabiam dos riscos, entretanto a confiança e a amizade existentes entre eles traziam uma tranquilidade e a certeza da vitória.

No dia aprazado, toda a vila estava em festa, pois a vitória do grupo iria refletir na vida de todos. Partiram.

No início da viagem, tudo era alegria e entusias mo. Alguns dias se passaram, e uma tempestade caiu sobre a montanha, trazendo grandes dificuldades aos componentes do grupo que resistiram bravamente armando com muita rapidez e destreza as barracas, evitando assim uma tragédia.

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No dia seguinte, surgiu na frente deles um imenso abismo, e mais uma vez, munidos dos equipamentos e de um senso de companheirismo nunca vistos supe‑ raram o grande obstáculo.

Dois dias depois, surgiu um obstáculo praticamente intransponível. Um rio extremamente caudaloso, impe‑ dindo a sequência da jornada. Difícil a decisão a tomar, mas o grupo surpreendeu demonstrando uma grande união e confiança. Utilizaram cordas, amarraram‑se uns aos outros, e com uma força hercúlea, atravessa‑ ram o rio. Outros obstáculos surgiram no caminho, e o grupo, superando todos, chegou a uma área mais ame‑ na. Agora tudo parecia mais fácil e a vitória era certa.

A calmaria aparente cedeu oportunidade a outros desafios. Alguns pensamentos começaram a assediar as mentes: “eu acho que eu poderia ser o líder”. “Eu trabalho mais enquanto Antônio se encosta”. “Maria acha que é a melhor do grupo”. “Paulo, o líder, quer os aplausos só para ele”. “Será que o tesouro vai ser dividido em partes iguais?”. “Raimundo pensa que a verdade está só com ele”. “Não sei para que dividir o tesouro com o pessoal da vila”. “A verdade é que não dá para confiar em ninguém”. “Nesse grupo não se pode brilhar muito por causa da inveja”.

Em pouco tempo, esses pensamentos tomaram proporções gigantescas nos corações e as discussões tiveram início. Atritos, agressões verbais, desconfian‑ ças, formação de pequenos grupos com antagonismo recíproco. Cada grupo tomou um rumo.

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Na vila, a expectativa era imensa. Foram escolhi das as pessoas mais capacitadas, por isso a esperança na vitória era muito grande. Porém, o sonho se desfez. À medida que os dias se passavam, os subgrupos iam chegando, fatigados, feridos, tristes e derrotados. E o tesouro continuava intocável no pico da montanha. * * *

Quando um grupo se forma para fins elevados, as agressões, as dificuldades, os obstáculos e todas as formas de impedimentos externos são superados. Se o grupo está verdadeiramente unido, respaldado pelo amor, pela confiança e pela fraternidade, a mon tanha se transforma em um grão de areia. Entretanto, se existe uma contaminação interna, como a descrita neste conto, um grão de areia se transforma em uma montanha de dificuldades. É o que ocorre na madeira infestada de cupins: Por fora parece intacta, porém no momento em que é submetida ao teste, esfarela‑se e para mais nada serve.

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A ABÓBADA CELESTE COMO TETO

Era uma noite fria apesar da primavera, e do céu estar atapetado de estrelas. Era uma noite fria, mesmo a lua a derramar a sua luz diáfana umedecendo com seu orvalho as flores belas dos jardins. Era uma noi te de domingo, de ruas quase desertas, praticamente sem automóveis e raros ônibus.

Sentado numa pedra, encostado em um muro, es‑ tava um homem. Pele negra, barba longa e branca, raros cabelos brancos na cabeça, roupa velha, bem ve‑ lha, quase rota, porém exalava um aroma de jasmim. A sua figura chamava a atenção. Ele estava só, vez por outra o vento balança a sua longa barba.

E o que fazia eu na rua àquelas horas da noite? Não sei, verdadeiramente, não sei. Só sei que algo dentro de mim, de forma imperiosa e irrefreável impelia‑me para rua. Um desejo muito forte de caminhar, respi‑ rar fundo o ar da noite. Ao ver o homem, senti‑me, irresistivelmente, atraído para ele. Sim, era um mora dor de rua, para alguns um mendigo, entretanto me

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atraía como nenhum dos viventes havia conseguido. Aproximei‑me, e antes da saudação para apresentar‑ ‑me, disse‑me:

— Sente‑se, meu filho.

— Qual o seu nome? – perguntei tentando desfa‑ zer a forte impressão.

— Qual a diferença?

— Diferença do quê? – tornei a perguntar um pou co confuso.

— Qual a diferença dos nomes? Você tem um nome porque alguém lhe deu, seja seu pai, sua mãe, sua tia. Entretanto não é o nome que diz quem você é. Você poderia ter outros nomes e continuaria sendo a mesma pessoa. De longe, você me olhou, e avaliou quem você pensa que sou pela minha roupa, e por es tar sentado aqui na rua. Você pensou: eis ali um pobre morador de rua. Sinto em desapontá‑lo, porque não sou morador de rua, eu moro na rua.

— Não entendi. Como o senhor diz que não é mo‑ rador de rua, mas mora na rua?

— A questão, meu jovem, está no verbo. Eu não sou morador de rua, eu estou morador de rua. Como você não é morador de uma residência, você está morador de uma residência. Repentinamente tudo pode mudar.

— O senhor poderia me esclarecer melhor, dando mais exemplos?

— Tudo o que nos cerca, tudo o que vemos e pode mos pegar é ilusão.

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— Mas como pode ser ilusão se eu estou pegando e vendo?

— Observe, meu jovem! O homem passa boa parte da vida desejando ter as coisas; outra parte, lutando para ter; depois, se desespera com o medo de perder, e depois chora por ter perdido. Por quê?

— Ilusão.

— Exatamente – disse sorrindo – você está come çando a entender. Existe uma verdadeira posse que não é ilusão. A posse de si mesmo. A matéria que nos cerca é forma temporária de uma energia primitiva em estado transitório.

— Já sei! O senhor deve ser um grande estudioso, faliu, ficou pobre e veio morar na rua. O senhor falou para mim de Física Quântica.... O senhor falou de uma energia primitiva. Que energia é essa?

— Essa energia está em semente, dentro de todos os seres, em diferentes graus, inclusive no homem. É ela que criada, guiada e mantida por uma Força ainda maior, sustenta todos os universos que estão dentro do Universo maior. Essa energia é o AMOR, que um dia será o estado natural e comum de todos os seres.

— Agora eu peguei o senhor! Olhe o senhor nomi‑ nando: AMOR.

— Filho, se a palavra AMOR, por mais que fa lada, ainda não é compreendida, como entender a sua essência?

— Um a zero para o senhor – falei desapontado.

— Não fique assim, um dia chegaremos lá. Quan‑

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do o ser humano mergulhar dentro de si, e descobrir quem verdadeiramente é, entenderá e viverá o amor.

— Voltando a fita: o senhor falou em universos, mas o universo não é um só?

— Quem disse? Depende do nome, das palavras. Vou dar um exemplo menor. Observe o nosso sistema solar, para nós da Terra, ele é imenso. O sol, nosso astro rei, é o fulcro, e em volta dele giram os planetas. Pois bem, o átomo é tão minúsculo que é impossível ser visto a olho nu, porém é também um sistema, onde o núcleo faz o papel do sol e os elétrons circulam na eletrosfera, como os planetas. O macro está no micro, que por sua vez está no macro, por isso muitos dizem que tudo está em tudo.

— Então, o mal também está em tudo. – Disse cheio de convicção e orgulho.

— O mal não existe – respondeu derrubando meu orgulho. – Ele não tem vida real, assim como a escu ridão que não existe onde há luz. O mal é apenas a expressão da ignorância sobre a existência do bem e do amor. Um dia, o amor conquistará o homem, e quando este se deixar conquistar, encontrará, assim, a felicidade.

— Volta a fita novamente: o senhor falou que a energia do amor é mantida por uma força ainda maior. Que força é essa?

— Deus. – Respondeu de forma direta, sem rodeios.

— Deus, como?

— Deus é o como, o quando, o porquê, o tudo,

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o início, o fim, o meio. E para descomplicar a nossa mente primitiva, Jesus disse: o Pai. E João comentou: Deus é Amor. Sinta‑se filho, pois Ele sempre foi e será o nosso Pai. Quando o homem, verdadeiramente, en tender, sentir e viver essa verdade perceberá que é o grande herdeiro do Universo, e como eu que tenho as estrelas do céu como teto, será, verdadeiramente, feliz. * * *

A alvorada rompeu a noite com o seu vestido de luz. O sol aqueceu o meu rosto, e acordei vendo‑me só, sentado na pedra, encostado num muro.

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REDIMINDO‑SE DO PASSADO PARA LIBERTAR‑SE

As crises de hemoptise se repetiam implacáveis. O sr. Rogério havia perdido vinte quilos em duas se manas. A tuberculose aproveitou‑se da fragilidade fí sica somada ao excesso de trabalho, para instalar‑se. Às vezes, estava tranquilo, e de repente, uma angús‑ tia sem causa aparente, anunciava que uma nova cri se estava próxima, o que cinco a dez minutos depois se confirmava: uma sensação de algo borbulhando no tórax, a tosse seca, para que instantes depois, o sangue de um vermelho rutilante brotasse em golfa‑ das angustiantes.

Naquela tarde, no seu leito, buscando refazer‑se de outra crise, o sr. Rogério estava pensativo. Lem brava da infância pobre, porém feliz, das dores nos músculos e nas articulações que começou a sentir aos quatorze anos de idade, e que o acompanhavam du rante toda vida. Apesar de fazer exames periódicos,

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todos com resultados satisfatórios, desde a adolescên cia, sentia fisicamente, e às vezes, como uma intuição, que algo havia em seu pulmão direito, que mais de vinte anos depois, iria manifestar‑se como doença. Que mistério! Pensava.

Estava cansado, emagrecido, porém tranquilo e com muita esperança. De repente a angústia. Era ela, uma nova crise. O borbulhar no tórax, a tosse e o san gue, muito sangue. Ele ora, e o inusitado acontece: ele vê entrar no quarto uma mulher. Era uma mulher jovem, cabelos em cachinhos e amendoados, vestido longo de uma beleza discreta, com babados de renda fina nos punhos e na borda inferior, e fechando o ves‑ tido na altura do pescoço, um lindo broxe branco com o desenho preto difícil de caracterizar. Ela aproximou‑ ‑se e falou docemente:

— Rogério, meu querido, seja forte e resigna‑te, pois vai passar e é para o teu bem. Acredita na Pro vidência Divina, você está se redimindo. Tenha fé e bom ânimo.

Rogério ainda não tinha se recuperado da surpre sa, quando por detrás da visitante, surge um homem negro, com quase dois metros de altura, muito forte, com uma calça branca, muito parecida com as de uso dos capoeiristas, nu da cintura para cima, apresentan do correntes partidas nos punhos. Ele olhou humilde para Rogério e disse:

— Eu vim para cuidar do sinhô! Desapareceram. Rogério, fortemente, impressio‑

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nado pensava: creio nas vidas sucessivas. A miseri córdia Divina deve estar dando‑me a oportunidade de agora, mais consciente, redimir o meu passado. Mas, o que será que fiz? Seja lá o que for, creio que o amor de Deus deve ter de alguma forma, atenuado o meu resgate.

No mesmo dia, durante o sono, Rogério teve um sonho onde se via em um engenho no século XVIII, fa zendo as maiores atrocidades com os escravos: tronco, chibatadas, salmoura nas úlceras, castigos dolorosos. Acordou pela madrugada, completamente, encharca do de suor, bebeu um copo d’água que estava em seu criado mudo, sentou‑se e avaliou a situação:

— Meu Deus, se, realmente, ocorreu o que eu so nhei, a Tua misericórdia se fez. Creio que as dores que sinto, desde a infância, são resultado das dores que causei aos escravos, e o sangue que estou vertendo, foi o que eu derramei deles. Comparando o que fiz com o que sofro, percebo, que, talvez, pelo esforço que faço para ser uma criatura melhor, tenha atenuado e muito o meu processo de resgate. Obrigado, Senhor!!

Os dias iam passando e o enfermo em tratamento. Em determinada manhã, após outra golfada de san‑ gue, deitado no leito, com a roupa e o lençol molhados de suor, ele olhou o céu azul pela janela e orou:

— Senhor, sei que está tudo certo, tenho convicção de que os sofrimentos que não podem ser evitados, por mais que tentemos, são para nosso bem e cresci mento, entretanto estou me sentindo muito cansado,

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sinto que meu corpo não vai resistir por muito tempo, mas de qualquer forma me entrego aos Teus cuidados.

Ao terminar a oração, Rogério percebeu uma luz. Eis que então, surge, em sua frente, um homem com uma roupa branca reluzente e lhe diz:

— Meu filho, não se preocupe, acabou. Hoje aca‑ bou tudo. Vamos cuidar de você, não mais haverá as crises de hemoptise. A de hoje foi a última.

O paciente fatigado dormiu profundamente. Ao acordar, percebeu que o homem ainda estava lá, fazen‑ do como que umas anotações em algo que parecia um prontuário. Olhou para Rogério, sorriu e desapareceu.

Depois daquele dia, Rogério melhorou, sensi‑ velmente, e as crises de hemoptise desapareceram. Surpreendentemente, um mês depois, ele retomava as suas atividades, refeito, feliz, e com a convicção de que estava se redimindo do passado em busca da libertação.

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EUTANÁSIA

Um grupo de jovens de classe média conversava animadamente em um restaurante em Copacabana, no Rio de Janeiro, e entre um drink e outro Maurí‑ cio comentou:

— Vocês assistiram, ontem, à reportagem sobre a garota que está há vários anos num hospital, em coma, e os pais pediram para realizar a eutanásia?

— Eu assisti e sou terminantemente contra – res pondeu Elaine. – Se Deus nos deu a vida, só Ele pode nos retirar de cena.

Iniciou‑se a discussão calorosa e muitos casos fo ram contados. Em determinado momento, Maurício tomou a palavra e disse:

— Eu sou a favor da eutanásia. Creio que o sofri mento é muito grande, tanto para o doente quanto para os familiares, que se sentem impotentes vendo o seu ente querido definhando num leito de hospital. E digo mais, se algum dia eu me encontrar em dada si tuação, desliguem os aparelhos. Martinha, você é mi‑

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nha amiga de infância; caberá a você essa importante tarefa, pois além desse motivo, você tem conhecimen‑ to da área, e não vai ter dificuldade.

— Vamos mudar o rumo dessa conversa – falou a amiga – que já está ficando tenebrosa. Vamos falar de política, futebol, até mesmo das colas na facul‑ dade. Eu não gosto dessa conversa de morte, ainda mais com esse pedido sem propósito do Maurício que vai viver ainda muito tempo; o suficiente para ter osteoporose, artrite e todas as “ites” possíveis e imagináveis.

Todos riram, e realmente, a conversa tomou outro rumo. Despediram‑se, e cada um tomou o caminho de sua residência. No dia seguinte, na faculdade, re ceberam a notícia de que Maurício havia sofrido um acidente, seu carro batera num poste em Niterói, e ele estava em coma na UTI de um hospital. O desespe‑ ro foi inevitável, eles eram verdadeiros amigos. Sem condições de assistir às aulas, todos foram, imediata‑ mente, para o hospital.

Chegando ao hospital, enquanto na sala de espera para a visita, o diálogo sobre o que se passou na vés‑ pera, e o que foi conversado sobre a eutanásia, fluiu imediatamente, e Martinha sentiu um arrepio per correr todo o seu corpo ao lembrar‑se do pedido de Maurício. Naquele dia, não foi permitida a visita por parte dos amigos, tal era a gravidade do caso, sendo o acesso apenas liberado para os pais do jovem que saíram completamente desolados.

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Abdala

Os dias foram passando, e o quadro de Maurício continuava o mesmo, coma profundo, e segundo a avaliação médica o caso era gravíssimo, e as possibili‑ dades de sobrevivência eram mínimas, com possibili dade de evolução para morte cerebral.

Numa manhã de domingo, três meses após o aci‑ dente, Maurício se percebe, e apesar de incomunicá vel, não consegue mover um só músculo, entretanto ouve as pessoas que o circundam. Ele tenta se mover, não consegue, tenta gritar, mas só ele ouve o seu pró‑ prio grito interno.

— E agora, o que fazer? E se pensarem que estou morto, e me enterrarem vivo? Não, não, isso não! Eles vão ver que meu coração está batendo. Com os apare lhos de alta tecnologia eles sabem quando uma pessoa está morta ou viva! Se tranquilize Maurício – pensava buscando acalmar‑se. E a eutanásia? Ai meu Deus, eu‑ tanásia não. De repente lembrou‑se: eu pedi a Marti nha... Ai meu Deus! Calma, calma Maurício, voltava a pensar. No Brasil a eutanásia não é permitida – ufa, respirou aliviado.

Naquela mesma tarde de domingo, Elaine e Marti‑ nha chegam ao quarto da UTI para visitar o amigo. As duas fitaram o querido amigo‑irmão com compaixão e sofrimento.

— Olhe como ele está emagrecido – disse Elaine enxugando as lágrimas – por mais que a equipe que cuida dele seja eficiente, não há corpo que suporte tanto tempo na cama. Ele já está com ferimentos, a

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enfermeira disse que são úlceras de pressão. Coitado do Maurício.

— Eu vou ficar bom – pensou o paciente, tentando em vão abrir a boca. – Eu sou forte e vou sair dessa, eu tenho fé em Deus! Eu vou sair dessa.

Sem perceber um mínimo gesto do rapaz, Marti‑ nha falou convicta:

— Elaine, eu tomei uma decisão. Se, em uma sema na, o quadro de Maurício não melhorar, eu vou fazer o que ele pediu, vou trazer uma seringa no bolso, com uma substância letal, vou aplicar nele para pôr fim a esse sofrimento, afinal de contas, é o desejo dele.

— Não, não, Martinha – pensou o rapaz desespe‑ rado, tentando gritar. – Não faça isso pelo amor de Deus! Eu estou vivo. Ai meu Deus, me ajude, por fa vor, eu não quero a eutanásia, eu estou vivo.

Os dias se passaram e o jovem Maurício lutava pela vida. Entretanto, apesar de todo esforço mental, não conseguia mover nem um dedo, nem um mús‑ culo, nem mesmo um piscar de olhos. Uma semana depois, as duas amigas retornam ao hospital, e a sós, diante de Maurício, iniciam o diálogo:

— E aí, Martinha, você não acha melhor a gente desistir disso? Afinal de contas é crime.

— Não se preocupe, eu é quem vou fazer, você vai apenas vigiar e me avisar se aparecer alguém – e arre‑ matou – é o pedido do meu amigo e eu não vou deixá‑ ‑lo sofrer desse jeito.

— Não, não, Martinha! Isso vai passar! O sofrimen‑

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Abdala

to vai passar e eu vou ficar bom, eu garanto, por favor, me deixe viver! Lembra o que Elaine falou: só Deus, só Deus pode nos tirar de cena – pensou o rapaz. Entretanto, Martinha estava decidida. Aproximou ‑se de Maurício, beijou‑lhe a testa, conectou a seringa no adaptador do soro, que daria acesso direto à cor‑ rente sanguínea do rapaz, e no momento que iria inje tar a substância letal, ouve a voz rouca e quase sumi da de Elaine:

— Martinha, olhe para o Maurício, ele está cho‑ rando. Minha amiga, ele está voltando para nós, ele vai viver.

Martinha, imediatamente, retira a seringa e com o coração carregado de emoção abraça o amigo, mis turando suas lágrimas às dele. Enquanto isso, Elaine corre para chamar a enfermeira.

Dois meses depois, Maurício estava no apartamen‑ to do hospital, iria ficar paraplégico, porém vivo e lú cido e segundo ele, não iria andar, mas iria voar com a vontade de viver e produzir para a vida. E brincando falou para Martinha:

— Minha querida amiga, da próxima vez que eu te fizer um pedido, só o faça se eu confirmar na hora.

E mais uma vez, todos os amigos estavam reuni dos celebrando a vida.

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CLÁUDIO EMANUEL Abdala

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ACREDITANDO NA PROVIDÊNCIA DIVINA

Carlos era um jovem de dezessete anos que toca‑ do no coração pelo Evangelho de Jesus e pela Doutri na Consoladora resolveu distribuir alimentos para as pessoas carentes, chamados de moradores de rua. Sua mãe preparava o alimento, e às oito horas aos sába‑ dos, ele recrutava seus seis amigos e saíam em cami nhada pelas ruas de Salvador, fazendo o que denomi‑ nava a distribuição.

A caminhada era longa: Calçada, Água de Meni nos, Comércio, Barbalho, Liberdade e outros bairros. Caminhavam com um saco nas costas, e dentro dele, latas que guardavam o feijão, o arroz, a carne, sem faltar, é claro a “farinha de guerra”.

No caminho, sentados e, às vezes, deitados nas cal‑ çadas, estavam crianças, jovens e idosos; roupas rotas, alguns com a sujeira substituindo a epiderme, sem pre, demonstrando uma profunda tristeza no olhar.

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Entretanto, ao ver o grupo da caridade, os olhos bri lhavam de alegria. Quem verdadeiramente estava sendo beneficiado?

Com o tempo, houve uma modificação na dinâmi ca da atividade. Certo dia, descendo o Plano Inclinado Liberdade/Calçada, Carlos observou várias mulheres “mergulhadas” num latão de lixo de um supermerca do. A cena era extremamente dolorosa e desconfortá vel, ávidas pelos restos que para elas seria o alimento dos filhos, mergulhavam as mãos no lixo encontrando frutas e legumes podres, restos de peixes e pedaços escuros de carne em putrefação.

Carlos passou, olhou, e seguiu em seu caminho. No entanto, as imagens não saíam de seu pensamen to. Ao retornar, não resistiu e iniciou um diálogo com as mulheres, e então, teve conhecimento de que todas residiam em invasões na cidade de Salvador. Naquele dia, ele resolveu que iria ajudar aquelas criaturas. Sem perder tempo, fez uma lista com nomes e número de filhos menores em idade; trinta e seis mulheres, com um total de cento e quatorze filhos, isso mesmo 114 filhos. Urgia começar a tarefa.

Durante a semana, saíam pedindo a amigos e vi‑ zinhos gêneros alimentícios não perecíveis, e quin zenalmente, debaixo de uma grande amendoeira na Calçada, bairro de Salvador, faziam a distribuição das cestas básicas.

Em determinado sábado, aconteceu um fato que iria provar a proteção e a Providência Divina àquele

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EMANUEL Abdala

grupo. Durante a distribuição das cestas, um menino, de aproximadamente nove anos, procura Carlos e diz:

— Seu Carlos, sabe quem é dona Domingas?

— Sei. O que aconteceu?

— Ela teve “derrame” e quer ver o senhor.

— Mas, onde ela mora? Você me leva na casa dela?

— Ela mora na invasão em Nova Brasília, mas eu não sei onde, quem me deu esse recado foi o neto dela que encontrei na feira de São Joaquim.

Quando acabou a distribuição, Carlos convidou Dilson, um dos companheiros para ir com ele na casa de Domingas.

— Mas Carlos – disse Dilson surpreso – como você vai visitar dona Domingas, se nem sabe onde ela mora? A invasão de Nova Brasília é nova, mas é enor me, passaremos o dia todo procurando sem encontrar.

— Onde está tua fé Dilson? – Redarguiu Carlos con‑ victo. – Se Deus deu a tarefa, Ele mostrará o caminho.

Pegaram o coletivo rumo ao destino que sequer sabiam. Dilson passou pela catraca do ônibus, e foi para frente. Como estava muito cheio, Carlos ficou no fundo. De repente, uma discussão. E o atrito físi‑ co teve início. Socos, pontapés, corpos se atracando, e Carlos no canto orando, e mais socos e mais pontapés e mais orações.

Então, o condutor do coletivo parou num posto policial.

— Pronto, é agora que vou apanhar de graça –pensou Carlos.

CONTOS DA VIDA — 73

Os policiais entraram no ônibus e foi cassetete para todos os lados.

— Vamos, descendo do ônibus, um por um – disse o policial.

— Estou perdido. Até que eu prove que galinha não tem dentes, eu já terei perdido os meus – disse Carlos baixinho.

Ele foi o último. Entretanto, quando ia descer do coletivo, o policial o olhou de cima para baixo, colo‑ cou a mão em seu tórax e disse, sem saber o porquê:

— Não, você fica! Você não precisa descer. – E em ato contínuo, pediu ao motorista para continuar a viagem.

Silêncio total no ônibus, todos olharam para trás, e lá estava Carlos, em pé, apesar dos lugares vagos. Pensou consigo: vou passar para frente, é bom não abusar da Providência Divina.

A viagem continuava. De repente, os olhos de Car los se cruzaram com os de uma criança que deveria ter, aproximadamente, onze anos. Sem saber por que, um magnetismo o atraía para o menino, e quase sem perceber, perguntou:

— Você conhece uma senhora chamada Domingas?

— É uma que teve “derrame”? É minha vizinha! Se o senhor quiser, eu levo o senhor lá.

Dilson estava surpreso. E Carlos com os olhos a brilhar, disse:

— Precisamos sempre acreditar na Providên cia Divina.

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Abdala

SENTIDO DA VIDA

— Como vai, Armando? Tudo bem? – perguntou Tiago com sinceridade.

— Estou ótimo! Como diz o ditado: se melho ‑ rar estraga. Os negócios estão indo muito bem, ainda ontem, fechei um contrato com uma multi nacional! Negócio muito vantajoso, vamos ganhar muito dinheiro, afinal de contas, além de amigos somos sócios.

— E a fazenda do Pantanal, fechou?

— Claro! Um milhão de reais, agora a fazenda é minha. É muito linda, vou iniciar comprando qui nhentas cabeças de gado.

— E a fazenda que você comprou há quatro anos em Minas Gerais, como está a situação?

— Eu só fui lá três vezes; você sabe como é para manter o que conquistamos, é preciso dar duro. Tra‑ balho de segunda a sábado, das sete às vinte e duas horas, e ainda levo trabalho para casa no domingo. Você tem a vida um pouco menos agitada que a mi‑

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nha, mas sabe como é, precisamos não só ganhar de vemos preservar e aumentar sempre.

— Aumentar para onde Armando? Você é sócio majoritário, além dessa, você tem mais cinco empre sas. Você é muito rico, faz parte dos 3% mais privi‑ legiados do Brasil. Você está com cinquenta anos, se quiser pode parar de trabalhar, e passar o resto da vida viajando e se divertindo e os seus filhos pode riam fazer o mesmo e talvez seus netos e, mesmo as‑ sim, sobraria dinheiro.

— Dinheiro sempre é bom – falou Armando, agas tado com o comentário do amigo – e quanto mais, melhor! Você não percebe Tiago, que ele é a mola do mundo? Quem tem dinheiro tem poder, fama, suces so enfim, quem tem dinheiro tem tudo.

Percebendo que a conversa estava caminhando para discussão, Tiago mudou‑lhe o rumo.

— Me conta. Como vão as crianças e a Dora?

— Rafael está fazendo medicina, Renata está na fa‑ culdade de direito e Sônia é a artista da família, fez canto e agora está fazendo teatro. É o que eu disse. Se não fosse o dinheiro, fruto de meu trabalho exaustivo, seria impossível possibilitar estudo digno aos meus filhos. Quanto à Dora, está muito feliz preparando a nossa viagem à Europa. No próximo mês, estaremos comemorando vinte e cinco anos de casamento, fare‑ mos uma grande festa, e depois embarcaremos para um mês de férias, afinal de contas, não lembro há quanto tempo não as tiro.

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— Que bom, comentou Tiago aliviado. Graças a Deus.

— Graças a Deus não, graças ao meu trabalho que gera o meu dinheiro. * * *

Após a conversa dos dois amigos, quinze dias transcorreram sem maiores problemas. Entretanto, em determinada noite, Tiago recebe um telefone‑ ma desesperado de Armando, solicitando que fosse com urgência à sua casa. Casa é maneira de falar, na realidade era a maior mansão de um bairro nobre da cidade.

A mansão era verdadeiramente belíssima, parecia retirada de um conto de fadas. Depois de um portão de perder o fôlego, se descortinava um jardim que mais lembrava os jardins suspensos da Babilônia, uma piscina no formato de um cisne. A entrada da residência era pomposa, lembrava os pórticos dos pa‑ lácios dos imperadores da Roma antiga. No interior, mármores e tapetes de origem oriental que contrasta‑ vam com o que há de mais moderno em equipamen‑ tos para o entretenimento.

Tiago, habituado ao ambiente, pois sempre ali se reunia com o amigo, foi imediatamente para o gabi‑ nete de Armando. E lá chegando, encontra o amigo trêmulo, caminhando de um lado para outro, sua ex pressão facial era de extrema angústia, quase desespe‑

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ro. Percebendo a gravidade da situação, Tiago inicia o diálogo que seria decisivo para a vida de Armando:

— Meu amigo, o que está ocorrendo? Eu nunca te vi assim! O que há?

— Tiago, estou desesperado! O meu mundo desa‑ bou, está tudo perdido! Depois de tanto trabalho, tan‑ ta luta, acabou tudo para mim!

— Mas, como? O que aconteceu de tão grave? Para tudo se tem uma solução! Vamos ter calma, conte‑me tudo, e tenho certeza que acharemos uma solução. Foi algo nas empresas, algum rombo, alguma deci são equivocada?

— Quem dera que fosse, meu amigo! Lembra da viagem marcada em comemoração às bodas de prata? Lembra da viagem para a Europa? Não vai dar.

— Como não? – perguntou Tiago preocupado e ansioso.

— Meu amigo, pensando na viagem longa, resol vemos eu e a Dora realizar um check‑up. E para meu desespero e tristeza, descobri que estou infectado com o HIV. Eu estou com AIDS.

Tiago engoliu seco, ficou pálido e as palavras tra‑ varam na boca. Os dois se fitaram, e aqueles segundos pareciam verdadeiros séculos.

— E agora? – perguntou Tiago, vencendo o silêncio.

— O médico me disse que eu sou portador do HIV, mas, ainda não desenvolvi a doença, estou assintomático. A sensação é que tenho uma bomba dentro de mim que pode explodir a qualquer mo‑

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mento. Devo iniciar o tratamento visando reduzir a carga viral e aumentar a minha imunidade. Dora está inconsolável, ela já fez o exame, e ainda bem que o resultado foi negativo, coisas que a ciência ainda não explica. A suspeita é que eu tenha me contami ‑ nado numa transfusão de sangue durante uma cirur‑ gia que complicou. Você sabe que eu vivo para mi nha família e para o meu trabalho, aliás, muito mais para o meu trabalho, não tenho tempo para aventu‑ ras – e chorando, conclui: – O que eu faço de minha vida, amigo?

— Você vai fazer a festa, e vai viajar como planeja‑ do. Você está com o vírus, é um fato, mas está vivo e sem sintomas. Eu não vou deixar o meu melhor amigo se sepultar ainda em vida. Vamos! Levante a cabeça, vá conversar com o seu médico, siga as suas prescri‑ ções, e viaje, seja feliz. Morrer todo mundo vai um dia, e talvez você morra de outra coisa e não de AIDS; e, além do mais, muitas pessoas que não têm AIDS vão morrer antes de você.

Um abraço forte e demorado selou o diálogo entre os dois amigos.

* * *

Os dias se passaram, houve uma grande festa na mansão de Armando que culminou com a viagem do casal para a Europa. O retorno ocorreu dois meses de pois. E, numa tarde de domingo, os dois amigos se

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reencontraram num efusivo abraço, e sem demora, iniciaram o diálogo.

— Armando você está muito bem, forte, corado, mas há algo diferente em você; seu semblante, seus olhos estão estranhos. Vamos, conte‑me, o que aconte‑ ceu nessa viagem? Vamos não me esconda nada.

— Uma revolução. Meu amigo, ocorreu uma ver dadeira revolução em minha cabeça, em meu coração e, consequentemente, em minha vida. Depois de pas‑ sear muito pela Europa, senti um desejo irrefreável de visitar o Egito e a Palestina. Quando chegamos a Je rusalém, fui tomado de uma angústia profunda, uma tristeza como nunca havia sentido, de repente tudo perdeu o sentido.

— Tudo o quê?

— As coisas, a posse, o dinheiro, o poder, os bens materiais. Eu sabia‑me rico, porém sentia‑me o mais po‑ bre e miserável dos homens. Lembrei‑me da fala de um sábio que dizia mais ou menos assim: o dinheiro pode comprar bons colchões e travesseiros, mas não garante bons sonhos. Ali estava eu, com tudo e sem nada. Ao passar pelas ruas da Cidade Santa, vi muitos pedintes, e por alguns instantes, desejei estar no lugar deles. Eu creio que a percepção da possibilidade da morte cau sa uma transformação interior. Até então, não pensava em Deus, para mim o dinheiro era Deus, mas ali em Jerusalém tudo começou a mudar dentro de mim.

— Por que, aconteceu mais coisas?

— Ah! meu amigo. Se em Jerusalém eu fui con‑

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EMANUEL Abdala

vidado a mergulhar em mim mesmo para descobrir que estava em frangalhos, quando chegamos a Cafar‑ naum, a experiência foi ainda mais forte. Começamos a caminhar pelas margens do lago Tiberíades, onde Jesus caminhou. Fui, verdadeiramente, tomado por um êxtase, e dentro de mim um significado novo to‑ mou a vida. É como se meus olhos tivessem sido aber tos, e comecei a ver o mundo de outra forma, as pes soas de outra maneira. Tudo tomou outro colorido. E resolvi mudar.

— Mudar o quê? Como? – indagou Tiago, num misto de emoção e alegria.

— Mudar a minha vida. Com ajuda de minha go‑ vernanta, pois não tenho hábito, peguei o Evangelho de Jesus, e li a história do coletor de impostos Zaqueu, fiquei emocionado, me vi no personagem, evidente‑ mente, antes do encontro com Jesus e,...

— E o quê? Fala homem, não me deixe nes sa angústia.

— E resolvi fazer o mesmo! Você me disse uma vez, que meu dinheiro daria para nutrir e dar boa vida a três gerações. Pois bem, não vou esperar o tempo passar. Com a ajuda de Dora, vou criar uma institui‑ ção de caridade e vou ajudar tantas outras. Pretendo também, escrever um livro contando a minha história, para que outras pessoas não necessitem ficar doentes, sentirem de perto a morte, para poder acordar para o verdadeiro sentido da vida.

— E como você está se sentindo?

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— Leve, feliz, sem medo da morte, e, principal mente, sem medo da vida. E olha que eu nunca pensei que iria pronunciar esta frase: graças a Deus.

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EMANUEL Abdala

SÓ É FELIZ QUEM É LIVRE

O ambiente era totalmente hostil. Homens com semblantes de ira e maldade. Alguns jovens com fran‑ co desequilíbrio no olhar, gerado pelo uso de drogas ilícitas. Os mais velhos guardavam o ressentimento no coração pelos longos anos vividos num meio ad verso, e porque não dizer, tenebroso.

A penitenciária tem uma característica muito mais desumana e dolorosa em países subdesenvolvidos, quando, por razões diversas, acaba se transformando em “faculdade do crime”.

Naquela manhã fria de inverno, João iria viver a experiência mais dolorosa de sua vida. Acusado e condenado por um crime hediondo que não cometeu, o assassinato da esposa e dos quatro filhos pequenos, ele passava pelo corredor da penitenciária ouvindo impropérios, ameaças e palavrões dos outros presos, que, apesar de criminosos, não aceitavam o que acre‑ ditavam fosse de sua autoria.

João estava pálido e suando frio, as mãos trêmulas

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e o coração descompassado. Além da dor por ter per dido os seres mais amados, a acusação infamante, a perda da liberdade, ainda teria que lutar pela própria vida e dignidade. Pelas circunstâncias adversas, o di retor do presídio, colocou João em uma cela “especial”.

A noite avançou lenta e fria. João sentado na cama, sentindo o rosto aquecido pelas grossas lágrimas que fluíam do seu coração ferido, pensava na própria vida. Por que meu Deus? – Refletia entristecido. Por que tanto sofrimento? Quem teria maquinado essa situa‑ ção para mim? Nunca tive inimigos, construí minha riqueza com o suor do trabalho digno, nunca roubei ou fui desleal, sempre fui justo e ao mesmo tempo pa‑ ternal com meus empregados. – Vencido pelo cansa ço, caiu em sono profundo.

Nessa mesma noite, um fato ocorre que iria mudar completamente a vida de João e de, praticamente, to‑ dos do presídio.

Durante o sono, João tem um sonho inesquecível, não apenas pela beleza como também pela forma cla‑ ra e real em que se apresentou. Ele se via caminhan do em uma terra ressequida, pedregosa e com mui‑ ta poeira, as casas não pareciam em nada com as do Brasil, nem mesmo com o tempo presente. Estava ele em uma praça, numa cidade que pela arquitetura pa recia o oriente médio. Entretanto, a praça estava pra‑ ticamente vazia. Ao ver um velho que tinha as pernas mirradas, perguntou onde estavam todos, ao que o idoso respondeu em lágrimas:

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Abdala

— Você não sabe? Onde você estava amigo? Um homem bom, que só fez o bem, que ensinava o Amor, a Fraternidade e a Solidariedade entre as criaturas, foi traído por um amigo, negado por outro, abandonado por quase todos, e após um julgamento forjado e men‑ tiroso, foi condenado à morte. – E com estranho brilho no olhar, perguntou:

— Amigo, você não conhece Jesus de Nazaré?

João ficou atônito, apertou o peito com a destra, e vencendo a dor e a surpresa, perguntou ao idoso:

— E onde ele está, para onde o levaram? – Em prantos continuava: – por favor, me diga.

— Ele pegou nos ombros as dores do mundo in‑ teiro, está carregando uma cruz que não merecia por amor a todos nós – e arrematou – para o Gólgota que fica fora dos muros da cidade, foi para lá que o leva‑ ram. Vá rápido, eu não posso, pois as minhas pernas não se movem.

João correu, entretanto, retrocedeu imediatamente, carregou o velho nos braços, e se direcionou ao Monte da Caveira ou Gólgota. Em lá chegando, vê Jesus sus penso no madeiro infamante, porém tarde, ouvindo apenas dizer: “Meu Pai, em tuas mãos entrego meu espírito. Está consumado”.

Era alvorada quando João acordou. Estava dife rente. Tinha a lembrança clara do sonho, emocionava‑ ‑se, quando lembrava. Definitivamente, algo havia se transformado dentro dele. A situação externa era a mesma, as grades, os impropérios, a injustiça, mas ele

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se sentia novo, algo feliz e principalmente livre. Havia nele uma profunda e sólida sensação de liberdade in‑ terior, e o que impressionava foi a transformação do semblante, o seu rosto transmitia paz, com um brilho fascinante no olhar. Sentia‑se verdadeiramente entre‑ gue ao Pai.

O tempo foi passando inexorável. Cinco, dez, doze anos e João com sua ternura e palavras sempre bem colocadas nos momentos certos, havia conquista‑ do todos do presídio. Alguns o apelidaram de João, o sábio.

Dentre os corações que João conquistou, estava o do próprio diretor do presídio, que por várias ve‑ zes o buscou para pedir conselhos, inclusive de sua vida pessoal. Um dia, em um dos encontros, o dire tor perguntou:

— Como você consegue ser como é num lugar des‑ te? Mesmo preso você parece feliz!

— E quem disse que estou preso?

— Como não? – redarguiu o diretor.

— Eu sou e estou livre – afirmou convicto.

— Mas como, se há doze anos eu o vejo aqui den‑ tro das grades?

— Eu estou livre – prosseguiu João, lúcido. – Livre da culpa, livre dos remorsos, livre do apego, livre da dúvida, e consequentemente, feliz, pois, só é feliz quem é livre. Muitas pessoas que estão lá fora, apesar de aparentemente livres, estão cativas, prisioneiras das coisas que acham que vão lhes trazer felicidade. Estão

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presas a convenções, ao sistema, ao medo de perder o que pensam que possuem. Eu sou verdadeiramen‑ te livre.

Durante a noite, João teve outro sonho com as mes mas características de há doze anos, com a ressalva que ele chegava ao Gólgota no momento em que Jesus dizia: “Pai, perdoai‑os, pois eles não sabem o que fa‑ zem”. Ao acordar ainda ouvia o eco da voz dizendo: perdoai, perdoai, perdoai.

Às dez horas da manhã, recebe um comunicado para comparecer à sala do diretor, que o recebe com um grande sorriso, apesar de desconcertado.

— João, tenho uma excelente notícia para você. Aconteceu um verdadeiro milagre! Você está livre!

— Como? – falou com a voz trêmula. – Minha sen tença é de vinte e oito anos e só cumpri doze.

— O assassino de sua esposa e filhos não suportou o remorso, e como você diz, preso a ele, confessou o crime em prantos.

— Mas, como?

— João sente‑se novamente – falou o diretor num tom sério e preocupado – eu sei que você é uma pes soa diferente das outras, sinto o amor em seu coração, mas não sei como vai reagir com o que tenho a lhe dizer. João, o assassino de sua mulher e filhos... Foi Paulo César, o seu irmão.

CONTOS DA VIDA — 87
* * *

Se uma bomba caísse sobre a sua cabeça não teria o efeito tão arrasador. João estava petrificado.

— Não pode ser, com certeza há um grande enga‑ no. Paulo era o meu irmão mais querido, eu o havia colocado na empresa quase como meu sócio, estava em minha casa quase todos os dias – falou em voz alta.

— Exatamente, aí estava o problema – comentou o diretor – frequentando a sua casa, Paulo acabou por se apaixonar pela mãe dos seus filhos e sua mulher fiel rechaçou qualquer possibilidade de romance. Ele ten‑ tou várias vezes, buscou todas as formas de sedução, quando percebeu infrutíferas as tentativas, foi venci‑ do pela paixão, e com inveja da felicidade que vocês desfrutavam, tramou o crime hediondo de forma que você fosse incriminado, o que realmente aconteceu.

Um silêncio profundo se fez na sala.

Depois de alguns minutos, o silêncio foi quebrado pelo diretor do presídio, comunicando a João que ele estaria livre em dois dias.

João retornou para sua cela e sentou‑se na cama. Imediatamente, os sonhos que teve com Jesus lhe aflo raram à mente. No primeiro, lembrou o que o velho coxo lhe falara: “foi traído por um amigo, negado por outro, abandonado por quase todos, e após um julga mento forjado e mentiroso, foi condenado”. Lembrou ‑se, depois, do sonho da noite anterior e nos ouvidos ecoou a palavra de Jesus: Perdoai, perdoai, perdoai.

Dois dias, que pareceram séculos, se passaram, e o cenário visto foi completamente diferente de há

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Abdala

doze anos. Os presos não estavam nas celas gritando impropérios e palavrões. João passou pelo corredor e existia um silêncio profundo no ar. Ao chegar ao pátio, a surpresa. Todos os presos, muitos deles em lágrimas, aplaudiam João, gritando palavras de gra‑ tidão e amor.

Ao sair do presídio, João olhou para o céu, e não havia chuva, era o sol que lhe dava as boas vindas para uma nova vida.

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EMANUEL Abdala

UM “MAL” NECESSÁRIO

Félix era alfaiate de profissão, residia numa cida de do interior da Bahia. Ficou viúvo muito cedo, não quis novas núpcias, dedicando‑se com esmero e mui‑ to amor à criação dos quatro filhos pequenos.

Portador de um comportamento moral irretorquí vel, que transparecia em seus gestos e no trato com as pessoas. Dessa forma, tornou‑se exemplo para os filhos que o tinham como verdadeiro herói.

Para a manutenção do lar, Félix trabalhava muito em seu ateliê, e à medida que os filhos foram cres‑ cendo, a necessidade o forçava a aumentar a carga de trabalho. Nas proximidades do Natal, ele varava a noite trabalhando: cortava, alinhavava, costurava e passava as roupas. Um trabalho exaustivo que lhe trouxe como resultado um emagrecimento e visível abatimento, trazendo o risco da tuberculose que era muito comum entre as décadas de 60 e 70.

Em determinada madrugada, estava dando os re toques numa roupa com o ferro de passar, quando foi

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acometido de um sono irresistível. Acordou instantes depois com uma dor lancinante, o ferro muito quente havia caído sobre o seu pé. O seu grito acordou os filhos que foram ao seu socorro. Levado ao Posto de Saúde foi medicado.

Apesar de medicado já há quinze dias e em repou‑ so constante, a queimadura não cicatrizava, preocu pando os familiares a ponto do filho mais velho es crever para uma tia que residia em Pedro Leopoldo, Minas Gerais.

Dona Leonídia escreveu para Félix, muito preocu pada, solicitando que o irmão fosse para Pedro Leo‑ poldo onde seria mais bem tratado por ela, e com possibilidades de melhor assistência médica. Em uma semana chegavam as passagens e dois dias de pois, viajaram.

Respirando novos ares, com o carinho da irmã, descansando um pouco mais, Félix foi melhorando, recuperou o peso perdido, porém a queimadura não cicatrizava, desafiando os médicos que, a princípio, pensaram em diabetes, depois alteração vascular, en tretanto todos os exames estavam normais.

Um dia Leonídia pensativa, falou para o irmão:

— Félix, aqui na cidade tem uma médium muito conhecida, dizem que tem ajudado muita gente e não cobra nada.

— Lá vem você falar de feitiçaria – falou aborreci‑ do – você sabe que não acredito nessas coisas.

— Não criatura, não é feitiçaria. É Espiritismo. Di‑

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EMANUEL Abdala

zem que é ciência, filosofia e religião. É de Allan Kar dec, é do bem e da caridade. Vamos lá, tem reunião hoje, quem sabe você fica bom? Após muito diálogo, Leonídia persuadiu o irmão. Chegaram ao Centro Espírita quinze minutos antes do início da reunião doutrinária, que era seguida, pelo atendimento espiritual. O Centro estava repleto de pessoas, não havendo mais onde sentar, nem espa ço para ficar em pé. Os irmãos juntamente com outras pessoas ficaram do lado de fora. Félix conseguiu um espaço, ficando debruçado na janela de onde observa va todo o salão doutrinário.

Terminada a reunião doutrinária, durante a pre‑ ce de encerramento das atividades, Félix ouve a mé dium começar a cantar uma música muito antiga, do seu tempo de infância, música esta regional, e que não era muito comum em Minas Gerais. Chamou a irmã e disse:

— Mana você está ouvindo a música? E essa voz parece com a voz de nossa mãe. Ambos começaram a chorar. A médium parou de cantar, e mandou chamar Félix, que trêmulo se apro‑ ximou, e emocionou‑se ao ouvir:

— Filho, lembrou da música que eu cantava para você? Sou sim, a sua mãe. Você se tornou um homem bom e digno, renunciou ao matrimônio para cuidar dos filhos, tinha medo de que uma madrasta pudesse maltratar as suas crianças. Você só pensa no bem dos outros e vive auxiliando as pessoas. Entretanto, meu

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filho, tanto a ociosidade como o excesso de trabalho prejudicam o vaso físico. O corpo é um instrumento de evolução para o Espírito e deve ser preservado. Você, com o excesso de zelo pelos que ama, estava exigindo muito do seu corpo, e se continuasse no mesmo ritmo mais uma semana, iria morrer. Perdoe‑me por induzi‑ ‑lo ao sono que gerou o acidente com o ferro de passar roupas, mas foi o único meio disponível no momento para você descansar um pouco, pois a sua caminha‑ da na Terra é longa e precisa de um corpo forte para vencer a jornada. Vou ensinar o que você deve fazer para cicatrizar a queimadura. Vá com Deus, eu amo muito vocês.

Uma semana depois a queimadura estava cicatri zada, e Félix retornou para sua cidade natal, bem mais fortalecido no corpo e na fé.

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ONDE ESTÁ O SAMARITANO?

Ao meio‑dia, sol causticante, via pública muito mo vimentada, pessoas caminhavam apressadas, umas demonstrando ansiedade nos rostos, outras com fisio‑ nomias preocupadas, algumas tão absortas em suas questões pessoais que pareciam distantes do local onde se encontravam.

Deitado no chão, tendo como travesseiro um saco plástico com algumas peças de roupas rotas, estava um corpo de mulher. Cinquenta anos de idade, apro‑ ximadamente, talvez um pouco mais, com certeza não menos. O tronco, os braços e a cabeça protegidos pela sombra que se fizera no ponto do coletivo e as pernas tostando pelos raios do sol.

Vez por outra, com as unhas longas escurecidas, coçava a barriga flácida que apresentava cicatrizes não mais profundas do que as da solidão. Dormia, e com certeza, sonhava. Dormia, e com certeza fu‑ gia, pois o sono é a fuga dos famintos, dos miserá veis, dos esquecidos, dos que não possuem casa para

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retornar, tendo como teto as estrelas, e por paredes os viadutos.

E os outros? Que outros? Para ela, deitada na calça‑ da da vida, não existiam os outros. Ao abrir os olhos, despertando do sono que a alimentava, via apenas a rua vazia. As pessoas continuavam passando, entretanto a rua era um verdadeiro deserto, o deserto das pessoas.

E a vida continuava, as pessoas continuavam a passar, desviavam do “obstáculo” e seguiam rumo aos seus afazeres. Passavam os pés por sobre aquele corpo, contornavam quase sem olhar. Olhar para quê? Não a conheço, não tenho tempo a perder. Olhar para quê? Tenho negócios a resolver. Não, não a conheço. Quem é? É apenas “mais um” ser humano deitado no chão da vida. É alguém sem passado e com certeza, sem futuro. Não, definitivamente não tenho tempo. Encostado no poste, esperando o coletivo, esta‑ va eu. Observando a mulher deitada, metade no sol, metade na sombra, no calor das paixões humanas e no frio da insensibilidade dos corações. E pensava eu: onde está o Samaritano do ensinamento de Jesus Cristo? O Samaritano do amor, da sensibilidade, da caridade e da fraternidade? Todos passavam e a mu‑ lher deitada no chão da vida estava invisível aos olhos das pessoas. E depois de muito pensar, descobri que também eu, como todas as pessoas que ali passavam, estava cego. O ônibus chegou, entrei, estava indo para casa, olhei pela janela, e lá estava aquela mulher, dei tada no chão da vida.

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A VIDA ENSINA

Numa casa de taipa, em uma favela de uma gran de cidade do Brasil, onde a miséria era o panora‑ ma diário, mãe e filha dialogavam entre sofrimento e agressões:

— Eu não aguento mais – dizia Paula, segurando a cabeça com as mãos – estou com dezoito anos, e da vida só tenho provado fome, sofrimentos e miséria.

— Minha filha – respondeu dona Maria, aflita – eu e seu pai temos lutado a vida inteira para cuidar de você, e dos seus irmãos!

— Este é o problema. Vivendo numa miséria como essa, vocês dois ainda resolvem ter nove filhos. Essa conversa de que, onde come um, come dez é uma grande mentira.

— Mas minha querida, eu não poderia abortar os filhos que Deus me deu, isso é crime.

— A senhora sabe que existem várias maneiras de evitar a gravidez. Por que não evitou trazer ao mundo tanta gente para sofrer?

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— Agora eu sei, mas antes eu não sabia. Seu pai coitado, trabalhando na feira, de domingo a domingo, e eu, quando não estava catando lata para vender, es‑ tava cuidando de vocês. Nesta casa nunca faltou amor.

Nesse momento, Paula irritada, levanta‑se e res‑ ponde agressiva:

— Amor não enche a barriga. Eu estou com fome!

— Filha, apesar de muito pobres, nunca ficamos sem uma refeição. – Respondeu a mãe deixando as lá‑ grimas banharem o rosto.

— A senhora chama mamão verde e ovo frito de refeição? Isso é comida para porcos.

— Mas, minha filha...

A senhora não teve tempo de terminar a frase. Paula totalmente descontrolada saiu, batendo ruido samente a porta.

Dona Maria abriu as comportas do coração, dei‑ xando as emoções como uma cascata de lágrimas de saguarem em sua face negra, e envelhecida, não só pelo tempo, mas também, pelas agruras da vida. * * *

Paula atinge a via pública, e começa a perambular sem rumo. Pensa em sua vida. Filha caçula, mesmo em pobreza extrema, não precisou do sacrifício que fora imposto pela vida aos seus outros oito irmãos. Entretanto, não conseguia entender as desigualdades da vida. Por que uns com tanto, e outros, com quase

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nada? Por que a vida sorri para algumas pessoas, en quanto outras, só conhecem a dor e o sofrimento, a fome e o desespero?

Nesse clima de sofrimento interior, ela observa uma senhora, com extrema dificuldade para atraves‑ sar a rua. Aproxima‑se com a intenção de ajudá‑la e...

— Senhora, deixe‑me ajudá‑la a atravessar a rua!

— Claro, minha querida.

— A senhora está indo para onde?

— Estou indo para o hospital. Meu filho está inter‑ nado faz cinco dias.

— E o que ele tem?

— Diabetes. Já amputou uma perna e parece que corre o risco de ter a outra também amputada.

— Meu Deus! Qual é a idade dele?

— Quarenta e cinco anos.

— Tão jovem!

— É a vida, minha filha. Às vezes as coisas aconte cem independente da nossa vontade. Ele tem alergia a várias medicações, o que dificulta o tratamento dele. Após atravessar a rua, a idosa propõe:

— Minha filha, qual é o seu nome?

— Paula.

— O meu é Ana. Você gostaria de ir comigo ao hospital? É tão difícil para mim, nesta idade, cami nhar sozinha. Se você for eu lhe dou um trocadinho; não é muito, mas dá para comprar um pão, leite, café...

— Eu vou com a senhora – respondeu Paula, sen‑

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sibilizada – mas, não se preocupe em me recompensar com dinheiro.

Chegando ao hospital público, o choque foi ime‑ diato. Dezenas de pessoas na recepção, um calor in suportável e reclamações de todo tipo em relação ao atendimento. Passaram pela Emergência em direção a enfermaria, e o cenário mais parecia de um período de guerra. Pacientes em macas sem colchões, outros sen tados em cadeiras desconfortáveis, e outros ainda, no chão com os frascos de soro pendurados na parede. Muitos sem cobertores, com partes do corpo expostas. Essas cenas da vida real chocaram profundamente o coração de Paula, confundindo a sua mente.

— Meu Deus! – disse visivelmente impressionada – Dona Ana o que é isso?

— É minha filha, – falou resignada – é a vida. Meu amor, a vida tem muitas faces, e nós não conhecemos todas. Quando a dor nos bate à porta, achamos que é a maior do mundo. Debatemo‑nos, e passamos grande parte do tempo nos queixando, procurando um cul‑ pado, e quando não encontramos, sobra para quem? Para Deus. E aí? O acusamos de injusto e cruel, fala‑ mos que Ele se esqueceu de nós.

— E não é verdade?

— Claro que não, minha filha. Você ainda é mui to jovem. Um dia, com o tempo e o amadurecimento você vai perceber que tudo tem uma razão de ser.

Chegaram à enfermaria. Dona Ana apresentou seu filho a Paula e o diálogo entre ambos teve início:

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— Como o senhor está se sentindo?

— Agora um pouco melhor. O meu nível de açúcar no sangue está quase normal, a infecção na perna está melhor e o médico disse que não vai precisar amputar.

Dona Ana chorou de alegria.

— Mãe, a senhora não pode ficar se emocionando muito. Cuidado com o coração – falou carinhoso.

— O senhor não estava com medo de perder a ou tra perna?

— Claro. Estava com muito medo, principalmen‑ te por causa da locomoção. O barraco onde moramos fica no alto do morro. Com uma perna eu posso subir com as muletas, se eu perco a outra, a coisa ia ficar bastante difícil. Isso sem falar, que para trabalhar, creio que não seria possível.

— O senhor trabalha com quê? – Perguntou Pau‑ la, curiosa.

— Eu sou catador de lixo, com muito orgulho.

— Orgulho?

— É minha querida. Todo trabalho digno é moti‑ vo de orgulho, pois evita de nos tornarmos mendigos, necessitando da caridade pública, além do mais, fa‑ zendo o trabalho seletivo do lixo, estou ajudando na preservação da natureza.

— É verdade, visto por esse ângulo...

— Tudo na vida – interrompeu – tem vários ân‑ gulos. O grande problema é que na hora em que a dor nos visita, nós ficamos quase cegos achando que o nosso problema é o maior do mundo. Nesse clima,

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não temos condições de analisar todos os ângulos, e então, achamos que o nosso problema não tem solu‑ ção, que somos as pessoas mais sofredoras do mundo. Paula ficou pensativa.

Não demorou muito, ela ouve outro paciente cha‑ mando a sua atenção. Era um senhor que aparentava uns cinquenta anos de idade. De maneira carinho sa solicita:

— Moça, você pode me dar um pouco d’água?

Paula solícita, se aproxima:

— Claro. O que o senhor teve?

— Foi meu filho – falou chorando – ele é depen‑ dente de drogas. Ontem chegou em casa me pedindo dinheiro, para alimentar o vício, como eu não tinha, ele pegou a panela do feijão que estava fervendo, no fogão, e despejou em meus braços.

Nesse instante o homem chorou convulsivamente. Paula não sabia o que fazer. Sinceramente emociona da, deu‑lhe água e tentou consolá‑lo:

— Não fique assim. Tudo vai passar. Deus existe e vai ajudar o senhor.

Enquanto falava, acariciava a cabeça do homem, que agradecido, beijou‑lhe a mão.

Ainda não tinha acabado de consolar um, outro lhe chama a atenção:

— Minha filha – disse‑lhe súplice – você parece uma boa moça. Posso te pedir um favor?

— Claro – disse meio encabulada.

— Meu nome é João. Há um mês, meu filho me

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internou aqui. Eu tive uma crise de hipertensão. Ficou duas semanas sem me fazer visitas – desabafou em prantos – quando a assistente social do hospital foi à casa dele, descobriu que ele havia vendido a casa e foi embora para outro estado. Os vizinhos não sabem do paradeiro dele. Ele é meu único filho. A mãe dele morreu quando era ainda pequeno, e eu o criei sozi nho. Agora não tenho para onde ir, e nem sei como vai ser a minha vida...

— O que o senhor quer que eu faça? – Pergun‑ tou angustiada.

— Por favor, venha me visitar. Eu estou muito so‑ zinho...

Não foi possível continuar, as lágrimas embar garam‑lhe a voz. Todos no quarto, inclusive Paula es tavam emocionados.

— Claro. Eu estarei aqui sempre que for possí‑ vel, pelo menos uma vez por semana eu virei visitar o senhor.

Terminando o horário de visitas, Paula conduziu dona Ana até o ônibus que a levaria para sua residência. Era o momento do crepúsculo, e Paula caminhava pela orla da cidade. Meu Deus! – pensava – Quanto sofrimento que não sabemos que existe, quanta dor e quanto abandono. Neste instante, surgiu‑lhe na men te as imagens da mãe e do pai, que tantos sacrifícios continuavam fazendo para que ela e os irmãos tives‑ sem uma vida melhor.

Chegando à rua onde morava, tudo parecia di‑

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ferente, era igual, mas estava diferente. A mudança havia ocorrido dentro dela. Parou diante da casinha onde morava e ficou sensibilizada com o pequeno jar‑ ro de flores na janela. Ao entrar, tudo parecia mais belo e singelo. Olhou para o pequeno sofá, e obser‑ vou enternecida a figura da mãe cochilando, com um prato no colo, uma faca na mão e um mamão verde na outra. Emocionada às lágrimas, acordou a mãe, abraçando‑a, dizendo.

— Minha mãe querida, me perdoe por tudo que eu disse, eu te amo, eu amo meu pai, meus irmãos e nos sa casa. Perdoe‑me. Vocês são a melhor família que eu poderia ter.

As duas se abraçaram misturando lágrimas com sorrisos.

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SOCORRO PROVIDENCIAL

A chuva caía fina na calçada, era noite, a rua qua se deserta. A porta de uma casa de aparência simples se abre. Um homem ainda jovem se despede de uma senhora, que o observa com veneração, beija‑lhe a mão enternecidamente.

O homem caminha a passos lentos, sentindo a brisa que lhe sussurra aos ouvidos, absorto em relação aos pe‑ rigos que rondam as grandes cidades. Em sua mão esta va um exemplar de O Evangelho segundo o Espiritismo, e no coração um desejo enorme de servir ao próximo.

Ao adentrar ao lar, é recebido pela sua mãe que o abraça com carinho dizendo:

— Adelmo, meu filho, você não vai demorar a ficar enfermo, se expondo à chuva e ao sereno. Não se es quece que já teve o pulmão muito doente – e angustia da continuou – eu já perdi seu pai, e não vou suportar perder você. Isso sem falar do risco que se expõe em ficar na rua até essas horas, sabendo como está a vio lência em nossa cidade.

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— Calma dona Josefa! – falou brincando – Eu sei minha mãe, das preocupações que afligem o teu cora‑ ção amoroso, no entanto, é necessário levar a palavra de Jesus a todos os corações angustiados e tristes. O Evangelho do Cristo é alimento para a alma, e lenitivo para todas as dores.

— Eu sei, meu filho. Você é tão generoso. Tenho medo dos homens perversos que podem fazer mal a você.

— Mãezinha, Jesus está conosco. O seu Evangelho nos convida à prática do amor, e como praticá‑lo se ficarmos com medo de sair às ruas? Lá fora, os nossos irmãos definham na solidão e no abandono, esperan‑ do por mãos amigas que os ajudem e consolem. Jesus afirmou que só os lobos caem em armadilhas para lo bos. Disse que a seara é grande e poucos são os traba‑ lhadores. Entendeu minha querida?

— Entendi, meu filho, mas continuo com receio por você.

— Nesses momentos ore, ore por mim com toda sua fé, e tenho certeza, o Pai irá ouvir e me proteger –disse isso, abraçando a mãe, enternecidamente.

— Agora venha, venha tomar a sopa que eu fiz com muito amor para você.

Assim era Adelmo, espírita convicto e dedicado à causa do amor e da caridade. No Núcleo Espírita em que atuava, todos admiravam o seu conhecimento e a forma simples com que discorria em suas palestras; mesmo quando abordava temas profundos, fazia de

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tal forma, que todos entendiam. Ele dizia que o ora dor mais eficiente, não era aquele que falava difícil, mas o que fazia o difícil se tornar fácil, utilizando pa‑ lavras que todos pudessem compreender.

Na seara mediúnica, tinha um comportamento exemplar, sendo um médium disciplinado, um ins‑ trumento dócil nas mãos dos bons espíritos. Estudo, assiduidade, pontualidade, disciplina eram o seu cli ma habitual.

Nas tarefas de assistência e promoção social era um dos mais engajados, sempre disposto a realizar cam panhas de benemerência, socorro e amparo aos mais carentes de bens materiais. No entanto, a realização do Culto do Evangelho no lar, tinha em seu coração um lugar especial. Acreditava que a implantação do Evangelho nos lares dos companheiros da experiência humana, teria grande importância na transformação da Terra em um planeta de amor e paz.

Certo dia, um companheiro de atividades espíri‑ tas, num diálogo bastante fraternal, perguntou:

— Adelmo, você caminha muito pela cidade, reali zando o culto do Evangelho no lar e proferindo mui‑ tas palestras, às vezes em localidades distantes, sabe‑ mos que você não tem automóvel, a dificuldade deve ser muito grande.

— Quando começo a pensar nas dificuldades –disse sorrindo – lembro‑me de Paulo de Tarso que, numa época, que nem ônibus existia, saiu pelo mundo vencendo o deserto com o sol causticante, as chuvas

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e todas as intempéries da natureza, caminhando, en volvido na deliciosa alegria de pregar o Evangelho do nosso senhor Jesus Cristo.

— E a violência, os assaltos, a criminalidade? –perguntou ainda desconcertado em relação à respos‑ ta anterior.

— A pior violência encontra‑se dentro de nós. Quando saio para realizar uma tarefa em nome de Jesus, peço a ele a proteção, evidentemente, tomo todos os cuidados, pois não devo dificultar a tarefa dos mentores, colocando‑me em situações de perigo que poderiam ser evitadas. No entanto, o medo das agressões do mundo, não deve congelar as pernas dos discípulos decididos, pois Jesus espera deles o auxí lio para a implantação do seu reino na Terra. Por fim, se tiver de morrer quando em tarefa evangélica, para mim será motivo de honra, pois bem mais fizeram por nós os primeiros cristãos, que morreram nos circos do martírio, regando com o próprio sangue o terre‑ no onde germinaria o Evangelho, para que límpido e cristalino, chegasse às nossas mãos. * * *

Alguns dias depois, Adelmo estava proferindo uma palestra cujo tema era Socorro Providencial. Como sempre, seu verbo encantou os presentes, convidando os a reflexões profundas sobre a proteção Divina em nossas vidas.

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Após a palestra, vários companheiros foram abraçá‑lo. Sentado na última cadeira do salão doutri‑ nário, tinha um homem. Quando Adelmo aproximou‑ ‑se, o homem se levantou, agigantando‑se em sua frente. Mais parecia um gigante, quase dois metros de estatura, o tórax extremamente largo, os braços pareciam de um gladiador romano. Realmente era de impressionar.

Aproximou‑se de Adelmo e falou:

— O senhor é o sr. Adelmo?

— Depende – respondeu brincando para quebrar a impressão. – Sim, sou eu. Em que posso ajudá‑lo?

— Poderíamos conversar em um local mais reser‑ vado?

— Claro, meu irmão. Vamos para aquela sala. Entraram e sentaram‑se...

— O que o senhor deseja?

— Bem – começou a falar – eu sou um ex ‑presidiário. Quando saí da penitenciária, encontrei um homem do meio do crime, que me ofereceu dez mil reais para que eu matasse uma pessoa.

Nesse momento Adelmo sentiu um frio no estô‑ mago e disse:

— Mas o senhor sabe que matar é crime. – E pen sou consigo, principalmente se for eu a vítima.

— Eu sei. Eu fui ladrão e jamais serei um assassino.

Adelmo respirou aliviado.

— Mas, em que posso ser‑lhe útil?

— Eu, minha mulher e meus cinco filhos vamos

CONTOS DA VIDA — 109

viajar para outro estado, pois tenho certeza que, se não matar, vou terminar sendo morto. Já comprei as passagens, estão aqui.

Apresentou as passagens e prosseguiu:

— Gostaria se possível, que o senhor me arranjasse um dinheirinho para comprar uns biscoitos para os meninos merendarem no caminho.

— Não se preocupe – tirou a carteira do bolso, todo dinheiro que tinha entregou ao homem e disse – vá em paz meu irmão. Jesus se alegra com a sua decisão de reabilitar‑se diante da vida.

Ao pronunciar a última palavra, o homem‑gigante começou a chorar convulsivamente. Adelmo pensou ter sido pela forma com que falou, no entanto, o ho mem passou a falar:

— Perdoe‑me, por favor, perdoe‑me.

Adelmo, agora atônito, perguntava:

— Perdoar o quê?

— Por favor, diga que me perdoa.

— Eu digo, perdoo‑te. Agora me diga o que eu es‑ tou perdoando.

E para espanto de Adelmo, o homem começou a narrar:

— Há mais de um mês que eu venho seguindo o senhor. Durante o dia e durante a noite, tenho segui do os seus passos para lhe roubar. Mas aconteceram coisas muito estranhas.

— O quê? – perguntou, já emocionado.

— Toda vez que eu me aproximava para lhe roubar,

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não sei de onde, aparecia uma freira linda, toda ilumi nada. Aí minhas mãos e pernas começavam a tremer, e eu saía correndo. Comecei a ver o senhor entrar nas casas de oração, e passei a acompanhá‑lo. A sua pala vra de amor tocou meu coração a ponto de desistir da criminalidade. Obrigado, irmão, obrigado por ter me apresentado a Jesus.

Dito isso, os dois se abraçaram efusivamente.

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DO ABISMO ÀS ESTRELAS

O seu verbo esclarecia o raciocínio e encantava o coração. Em suas palestras, muitas vezes, centenas de pessoas choravam, pois ele conseguia tocar as fi‑ bras mais íntimas da alma. Falava sobre a conquista da paz, a edificação do reino de Deus na profundida de do ser, e quando falava sobre Jesus, era como se transportasse todos os ouvintes para as margens do Tiberíades, em Cafarnaum, na Galileia querida.

Era responsável por uma grande obra assisten‑ cial. Atendia famintos, doentes do corpo e da alma. O que mais encantava e enternecia era em que con dições Rafael desenvolvia todas essas atividades. Só as palestras eram mais de duzentas por ano. Todos se perguntavam: como ele consegue fazer tudo isso? Era um verdadeiro exemplo de amor. O pregador da paz. Rafael nasceu com agenesia de alguns segmentos do corpo. Não tinha o braço esquerdo, faltava‑lhe o antebraço direito, tendo a mão ligada ao úmero com uma moderada alteração na função. As pernas eram

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curtas e atrofiadas, não tinha uma das orelhas, e era cego do olho esquerdo. No entanto tinha os olhos pe‑ netrantes e quando sorria, era como uma alvorada em manhãs de primavera. A sua voz era maviosa, suas palestras encantadoras e os seus conselhos, de uma sabedoria enobrecida.

Inevitavelmente, uma pergunta se repetia nos co rações, sim, pergunta do coração, pois surgia do sen timento mais profundo dos amigos e dos que eram beneficiados pela sua presença. Por quê? Por que uma pessoa tão boa nasceu assim? Por que tanto sofrimen to em alguém que só desejava fazer o bem?

Muitas vezes questionado, ele sempre respondia: está tudo certo, tudo é como deveria ser.

Certo dia, alguém que o amava muito, sofrendo ao vê‑lo com febre e dores na coluna, inquietou‑se e perguntou:

— Rafael, eu não consigo entender esse Deus que dá corpos fortes aos maus e outros tão frágeis aos bons.

— É em nome do Deus de amor, que você ainda não entendeu, – disse sorrindo – que eu te peço: feche os olhos.

— Mas, por quê?

— Feche os olhos e ouça a minha voz.

O amigo obedeceu e aguardou. Depois de algum tempo, Rafael voltou a falar:

— Como você me vê?

— Como eu te vejo, como?

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— De olhos fechados, como você me vê?

— Eu não sei – falou confuso – eu... eu acho que não te vejo. Eu te sinto.

— Sente o quê? – Prosseguiu inquirindo.

— Sinto paz, amor, harmonia, alegria.

— Agora, abra os olhos.

O amigo obedeceu imediatamente.

— E agora o que você vê?

— O seu corpo.

— Entendeu agora? – Falou Rafael, com um lar‑ go sorriso – É um maravilhoso instrumento, mas é só um corpo. Meu querido, muitas vezes, as melhores visões, são aquelas que vislumbramos com os olhos fechados, distantes das ilusões das aparências. Assim era Rafael.

* * *

Numa noite, Rafael estava em seu quarto, muito pensativo. Refletia sobre sua vida. O seu nascimento em condições especiais, que quase custou a vida de sua mãe, o extremado carinho que recebeu daquela que ele sentia, como verdadeiro anjo em sua exis‑ tência. Lembrou‑se das inúmeras vezes que ouvira comentários inconformados dos amigos, sobre sua condição física. Emocionou‑se e chorou... entrou em estado de profunda oração. De repente, o seu quar‑ to que estava em penumbra, foi invadido por intensa luz. Aos poucos a figura de um homem foi toman‑

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do forma. Era um mentor espiritual a irradiar uma luz cristalina.

Rafael estava encantado, muito emocionado, não sabia precisar qual motivo trouxera entidade tão no bre ao seu aposento. O companheiro da espiritualida‑ de o envolveu num sorriso paternal, e disse:

— Meu irmão, Jesus nos abençoe. Há muito acom panho seus passos, alegrando‑me pelo seu crescimen to na atual jornada. Sei de suas angústias e solidão. Ob‑ servo que os comentários dos companheiros, que por amor e apesar do amor, não compreendem o seu atual estado, estão causando o aninhar de sentimentos, que poderiam em médio prazo, dificultar o bom desempe‑ nho das tarefas sob sua responsabilidade. Resolvemos com autorização dos irmãos mais nobres, visando o seu fortalecimento, abrir os canais do seu passado, para que melhor entenda o presente, e ilumine o futuro.

À medida que o irmão espiritual falava, como que uma tela cinematográfica, começou a ser projetada na parede do quarto de Rafael. Imagens, a princípio confusas, mas que em segundos, tornaram‑se nítidas, passando a apresentar o cenário desolador de uma re‑ gião de sofrimento do mundo espiritual. Árvores com os galhos retorcidos e sem folhas, animais estranhos que voavam, enquanto outros se arrastavam no chão. Uma neblina que, ao mesmo tempo que dificultava a visão, à média distância apavorava. Vez por outra, gemidos dolorosos se faziam ouvir, entrecortados por gritos de impropérios e sarcasmos.

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Rafael a tudo observava estupefato. Quando o mensageiro da luz orientou:

— Meu filho, observe aquele homem sentado na‑ quela pedra, próximo àquela gruta escura. Imediatamente Rafael se detém na figura, e mui‑ to impressionado, nota no homem tristonho e deso‑ lado as mesmas limitações do seu corpo. Antes que pudesse se recuperar da forte impressão, o mentor afirma paternal:

— Sim, meu filho. O homem é você. Dessa região de sofrimento, você foi retirado, para preparar‑se em uma colônia, com o objetivo de retornar ao cenário do mundo, em busca da própria redenção.

— Mas, como? – Perguntou, entre surpreso e an gustiado.

— Continue observando a cena e entenderá. Voltando a observar as imagens...

— Meu Deus – dizia o homem – eu não supor to mais tanta dor, tanto sofrimento, tanto remorso. Olha o que aconteceu com o meu corpo, está todo deformado. Eu sou um pária. Não mais aguento o tormento de ouvir o clamor de vingança das minhas vítimas. Meu Deus! Sei que não há mais solução para minha vida! Sei que meus crimes são imperdoáveis! Eu apenas peço a misericórdia de não mais pensar, sentir ou ver. Senhor! Se existe de verdade – clamava desesperado – me mergulhe no nada, me faça deixar de existir!

Rafael estava profundamente emocionado, ao

CONTOS DA VIDA — 117

observar onde e como se encontrava antes da atu al existência. Atentamente observava o desenrolar dos acontecimentos.

— Eu sei que mereço o inferno – continuava em desespero – no entanto, depois de tantos anos de so‑ frimento, estou verdadeiramente arrependido.

Quando o homem acabou de pronunciar a última palavra, ao longe, dentre a escuridão daquela região que não era visitada pela luz do sol, um clarão surgiu e uma voz se fez ouvir:

— Meu querido filho, as zonas iluminadas se ale gram com o seu arrependimento sincero. E em nome de Jesus, o paciente pastor e amado senhor, estou aqui para resgatá‑lo.

— Quem é você, anjo de luz?

— Não reconhece a voz de sua mãe? Vem filho amado, vem para meus braços.

Enquanto na tela, mãe e filho se abraçavam enter necidamente, no quarto, Rafael não suportou a car‑ ga emocional e passou a chorar convulsivamente. O mentor tentando reequilibrá‑lo, falou:

— Chora! Chora, pois o instante é de encontro consigo, mas equilibra‑se para que possa aproveitar o momento.

Rafael respirou a longos haustos e se recompôs, passando a observar o diálogo entre mãe e filho.

— Filho – dizia a genitora amorosa – chegou o seu momento de reparação para com as leis Divinas em busca da própria redenção.

118 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

— Minha mãe, os meus crimes são enormes, eu não vou suportar.

— Claro que vai, meu querido. A misericórdia de Deus não tem limites. Todos nós somos Seus filhos, Ele nos ama enternecidamente e não nos abandona‑ rá jamais.

— A senhora não sabe! Na Segunda Guerra Mun dial, fui soldado alemão no campo de concentração de Auschwitz e depois fui para o campo de Sobibor. Fui implacável. Aproveitei do poder que a situação me proporcionava e dei vazão aos meus instintos e per versidade. Fui terrivelmente cruel com os prisionei‑ ros, com todos, sem me importar com suas origens ou crenças. Mutilei muitos, gargalhando enlouquecida mente. Colaborei com médicos em experiências dan tescas, amputações sem anestesia, isso sem comentar os estupros que cometi. Agora, creio que por miseri‑ córdia, morri no início do terceiro ano da guerra. Não, para mim – suspirou entre triste e envergonhado –não há perdão.

— Filho, não desanime, pois “o amor cobre a mul tidão dos pecados”. Pela misericórdia do Pai celeste, retornará ao palco da Terra para o resgate necessário. Claro que necessitará de um tempo para o preparo adequado. Nascerá no mundo com um instrumento defeituoso, pois os seus atos lesaram as fibras do seu corpo espiritual, no entanto, na prática do amor aos semelhantes, construirá o seu caminho para o encon tro da paz e da harmonia.

CONTOS DA VIDA — 119

— Minha mãe, a senhora não entende? São tantos os inimigos, quem me aceitará como filho?

— Eu! – disse a mãe, intensificando no amor a própria luz. – Eu voltarei ao cenário do mundo para recebê‑lo em meu regaço, pois eu te amo, no amor mais puro que meu coração pode suportar.

Novamente um abraço envolto em lágrimas e es peranças no futuro.

Rafael atento nas imagens observou a colônia para onde foi encaminhado, e tempos depois, o nascimento em terras brasileiras para que retomasse o caminho da luz, no coração do mundo.

O mentor espiritual se despede com votos de paz para seu pupilo. Rafael tem um sono tranquilo. E no dia seguinte:

— Rafael – disse uma moça – eu não consigo enten‑ der, como uma pessoa tão boa como você, sofre tanto.

Num grande sorriso, irradiando luz, responde:

— Está tudo bem, pois está tudo certo!

120 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

A SURPRESA

— Ele é insuportável – dizia Ana, copeira de uma grande empresa de São Paulo – por ser o dono da em‑ presa, se acha acima do bem e do mal. Nem fala com as pessoas.

— Não é bem assim... – respondeu Luciano, seu colega – às vezes, ele é tão ocupado, deve ter a cabeça cheia de problemas que nem observa o que se passa em sua volta.

— Não entendo como você defende uma pes‑ soa desse tipo, sabendo que além de tudo, ainda é racista.

— Esta é uma acusação muito grave.

— Todo mundo sabe disso, inclusive, você já foi vítima dele. Lembra o dia em que ele estava no eleva dor e não deixou você entrar? E não adianta defender, pois o elevador estava vazio.

— Eu acredito que ele estava nervoso, naquele dia.

— Então ele fica nervoso todo dia. Ele falou: ne grinho, pegue o outro elevador, porque eu quero res‑

CONTOS DA VIDA — 121
21

pirar ar puro. Racista, isto é o que ele é – sentenciou irritada.

— Está certo – falou Luciano, tentando acalmar a colega – o filho dele, o Henrique é gente boa, tem a minha idade, vinte e dois anos. Ele é muito rico e nem parece. Toda vez que vem aqui na empresa fica con‑ versando comigo. Ele gosta de futebol, ficamos muito tempo falando sobre os jogos.

— Isso porque o pai dele ainda não descobriu, se ele se deparar com você conversando com o filho dele, é demissão na certa.

— Será?

— Não duvide. No peito, no lugar do coração, aquele homem tem uma pedra.

— Como você está azeda hoje.

— Um dia você vai ver que estou com a razão.

* * *

Na mansão dos Nogueira de Castro, durante o jantar, a conversação seguia animada. O doutor Júlio comentava sobre os avanços da empresa e os con‑ tatos com multinacionais visando à expansão dos negócios. Em determinado momento, a sua espo sa questionou:

— Meu querido, já que os negócios vão muito bem, eu gostaria de ampliar as nossas doações para as insti‑ tuições de caridade.

— Claro, Marina, minha querida, faça como achar

122 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

melhor – e brincando, concluiu – toda primeira dama que se preze, desenvolve trabalhos sociais.

— No último natal, foi maravilhoso, quando trou‑ xemos cinco crianças do orfanato para passar uma se mana conosco.

— Foi bom, mas a regra continua a mesma – falou enfático – desde que as crianças não sejam negras, está tudo bem.

— Eu não entendo – retrucou a esposa, contrariada – como uma pessoa esclarecida como você, continua a alimentar pensamentos tão retrógrados, em pleno século XXI!

— Minha querida, eu já fui bem claro sobre este assunto, eu não gosto de negros, e pronto.

— Mas, meu pai – interferiu Henrique – eu tenho muitos colegas negros e gosto deles.

— Se me fosse possível escolher, você não teria es‑ sas pessoas como colegas.

— Eu gostaria que o senhor me explicasse qual a diferença entre o negro e o branco? – Insistiu o jovem.

— Eu não tenho que explicar nada. É minha opi‑ nião, é meu sentimento e tem que ser respeitado. Va‑ mos mudar de assunto. Como vai você na faculdade?

— Primeiro semestre, é fase de adaptação. – Res pondeu o jovem, um pouco insatisfeito com a reação do pai. Após o jantar, ao se encaminharem para a sala con tígua, o dr. Júlio olha para Henrique, e pergunta:

CONTOS DA VIDA — 123

— O que aconteceu com os teus pés, tomou algu ma pancada no futebol?

— Não. Desde ontem que estão assim, e não são só os pés, as pernas também estão ficando inchadas até a altura dos joelhos.

A mãe ficou apavorada ao observar o edema e já muito nervosa afirmou:

— Amanhã você não irá para a faculdade, iremos ao médico.

— Mas, minha mãe, eu não posso perder aula.

— Nós é que não podemos perder você. A faculda de espera. – Respondeu, dando‑lhe um beijo na testa. * * *

No dia seguinte, na clínica...

— Doutor – disse Marina, angustiada – hoje as per‑ nas estão mais inchadas que ontem, eu estou fican do angustiada.

— Calma, Marina, eu acompanho Henrique des‑ de pequeno, ele sempre foi um touro, não deve ser nada grave.

O médico iniciou a anamnese. A cada resposta dada por Henrique, a fisionomia do dr. Arnaldo tornava‑se mais grave. Depois do exame físico, ele foi categórico:

— Marina não se apavore, mas precisamos interná‑ ‑lo para aprofundamento dos exames.

— Doutor, por favor, pelo amor de Deus, me diga qual a suspeita?

124 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

— A princípio, parece alguma disfunção renal, no entanto, só os exames poderão confirmar. Marina, visivelmente nervosa, pega o celular e liga para dr. Júlio, enquanto era consolada pelo pró prio filho.

Em meia hora os três estavam juntos e foram, jun‑ tamente com dr. Arnaldo, para o hospital mais equi pado da cidade. E lá chegando, Henrique foi admiti do, sendo submetido a uma bateria de exames. Desesperados, os pais notavam que a cada hora, o edema aumentava em volume e em extensão. En quanto o filho dormia, Marina desabou a chorar, sen‑ do consolada pelo marido, que também, se emociona‑ ra às lágrimas.

O quadro patológico de Henrique evoluiu muito rápido e para aumentar o desespero dos pais, o médi‑ co sentenciou:

— Vamos ter que submetê‑lo a hemodiálise. Ele está entrando em insuficiência renal aguda, é neces‑ sário este procedimento, enquanto ganhamos tempo para elucidar o caso.

O chão havia desaparecido sob os pés do ca‑ sal. Uma sensação de impotência e insegurança assenhoreou‑se dos dois. Júlio aproximou‑se do mé dico e falou enfático:

— Doutor, não se preocupe com os gastos, o que for necessário gaste em favor do meu filho.

O médico, mesmo sensibilizado com a dor de um pai angustiado, afirmou categórico:

CONTOS DA VIDA — 125

— Faremos todo possível para recuperar a saúde do seu filho, no entanto, não devemos esquecer que nem tudo é possível comprar com dinheiro.

— Claro, claro, eu sei – respondeu cabisbaixo.

Algumas horas depois...

— Infelizmente – disse o médico – após a obser ‑ vação dos exames, não apenas os de laboratório, como também os de imagem, somado à evolução do quadro clínico, chegamos à conclusão de que, se Henrique não reagir bem às medicações e a hemo ‑ diálise, nos próximos três dias, só um transplante para salvá ‑lo.

— Como? – Perguntaram os pais, sem acreditarem na informação.

Aquela informação teve o impacto de uma grande explosão. Em questão de horas, uma família começa‑ va a desmoronar. Sonhos, planos, objetivos, estavam em risco. E uma pergunta silenciosa, ficava no ar: o que fazer agora? * * *

Após três dias, o quadro era o mesmo. O casal foi chamado pela equipe médica e notificado, que, realmente, só um transplante poderia salvar a vida de Henrique. Sem deixar qualquer margem para dúvi‑ das, Marina afirmou:

— Eu vou doar meu rim ao meu filho.

— Eu também doarei – falou Júlio, convicto.

126 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

— Faremos exames nos dois para verificarmos o maior grau de compatibilidade para menor risco de rejeição. Sabemos que em relação ao corpo humano, tudo é possível – concluiu o médico.

Após uma bateria de exames, Marina foi a escolhi‑ da, e alguns dias depois, a cirurgia foi realizada sem intercorrências. Henrique estava bem e os pais numa alegria contagiante.

Uma semana havia se passado, quando Henrique começou a apresentar febre alta, preocupando fami‑ liares e a equipe médica. Rejeição? Alguma infecção? Não foi possível detectar de imediato a causa, a ver‑ dade é que o novo rim foi diminuindo a função. Te‑ mendo o pior, os médicos aventaram a possibilidade de um novo transplante, que infelizmente por ques tões clínicas, não poderia ser o do pai.

O desespero tomou conta do casal, que retornou para a residência com o objetivo de programar os pró ximos passos, daquela que se tornou uma dolorosa aventura. Conversavam:

— Vamos comprar um rim!

— Não, meu querido. Isso é um crime e ao mesmo tempo, é o tripudiar da miséria alheia. – E concluiu Marina – Deus vai nos dar um sinal.

Abraçaram‑se emocionados.

No dia seguinte, Marina vai à empresa, conversar com Júlio sobre o quadro de Henrique, que havia pio‑ rado nas últimas horas. Ao sair, estava visivelmente transtornada, chorando muito, em uma palavra, de‑

CONTOS DA VIDA — 127

sesperada. Ao entrar no elevador, encontra‑se com o copeiro Luciano, que nota de imediato o seu estado emocional, e um curto diálogo tem início:

— Bom dia, senhora.

— Bom dia.

— Eu poderia ajudar em alguma coisa?

— Infelizmente, não. Qual é a sua idade?

— Vinte e dois anos.

Assim dizendo, ela aumentou o pranto...

— Por que a senhora está chorando?

— O meu filho também tem vinte e dois anos, e está muito doente.

— O que o Henrique tem?

— Você o conhece?

— Claro. Toda vez que ele vem na empresa, fica mos conversando sobre futebol. Mas o que houve? –Perguntou sincero.

— Ele está com um problema sério nos rins, preci sando de um transplante.

O elevador abriu e o diálogo foi interrompido. Ma‑ rina saiu, sendo observada por Luciano, que estava consternado. Ela atende o celular, aumenta o pranto e sai desesperada. Luciano estranhou, pois ela foi em direção à via pública e não ao estacionamento. Incon tinente acelerou o passo e a seguiu. Assustado, ele nota que ela se preparava para se lançar à frente de um automóvel. Em uma fração de segundos, ele se ar‑ roja e cai com ela em seus braços, evitando o suicídio. Após o susto, ele a observa, penalizado, a chorar:

128 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

— Deixe‑me morrer, por favor, eu não vou supor tar ter que enterrar meu filho. Não é natural os pais enterrarem os filhos...

— Não fique assim, senhora. Não há realmen te solução?

— Não conseguimos doadores.

— Eu posso doar o meu rim, se isso for possível.

— Você faria isso?

— Faria – disse resoluto.

— Vamos ao hospital... * * *

Luciano foi submetido a uma bateria de exames e para alegria de Marina, houve compatibilidade. O médico avisou que na área da saúde, nem tudo pode ser garantido, principalmente em relação a transplan‑ te. Após tudo resolvido, ela telefona para Júlio, que vai imediatamente para o hospital. No entanto, para surpresa de todos:

— Eu não vou aceitar que meu filho receba o rim de um negro – disse categórico.

Todos ficaram estupefatos. Ele repetiu a frase como uma sentença irrevogável. Luciano de cabeça baixa saiu da sala, indo em direção à via pública e re tornando para seu lar, onde residia com seu pai, inca‑ pacitado por uma doença neurológica, em um bairro pobre da cidade.

Na mesma noite, o quadro de Henrique se agra‑

CONTOS DA VIDA — 129

vou. Marina sacudiu Júlio, completamente enfureci da, dizendo:

— Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus, nosso filho está morrendo. Vá buscar Luciano ou vou eu!

Por alguns instantes, Júlio vacilou, mas vencido pela dor da possibilidade de perder o filho, que esta‑ va diante dos seus olhos, venceu o próprio orgulho e foi buscar Luciano.

Diante da casa pobre de Luciano, Júlio não sabia o que fazer. Ficou alguns minutos parado, olhando para a porta, como a esperar que algo acontecesse para evi tar aquela situação. Não tendo alternativa, respirou fundo e bateu à porta...

— Senhor Júlio?! – Disse Luciano surpreso.

— Eu estou aqui – falou entre humilhado e súplice – para lhe pedir que me acompanhe até o hospital, – e desabou chorando – meu filho está morrendo.

Sem pensar duas vezes, Luciano entrou em casa, falou com o pai, pegou alguns pertences e acompa‑ nhou o patrão.

A cirurgia foi um sucesso. Após três dias, Hen rique e Luciano estavam lado a lado, no quarto do hospital. Um branco e um negro, unidos para sempre pelos laços da solidariedade. Após um mês, ambos já estavam vendendo saúde.

Ana em visita a Luciano comentou:

— Até hoje, eu não entendo a sua atitude doando o rim para o filho daquele homem.

— Ana – disse convicto – existem momentos em

130 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

que o raciocínio deve dar lugar ao sentimento. Eu apenas ouvi o que falava o meu coração.

No mesmo instante, para surpresa de ambos, che‑ garam à casa Marina, Júlio e Henrique. Doutor Júlio tomando a iniciativa falou:

— Luciano, estamos aqui para agradecer pelo seu gesto de amor e solidariedade que salvou a vida do nosso Henrique. Não entenda o que vou dizer, como um pagamento, pois não há dinheiro no mundo capaz de compensá‑lo em seu gesto. No entanto, sabemos que viver com um rim, não é a mesma coisa que vi ver com os dois. Certos cuidados devem ser tomados, principalmente em relação à alimentação e estilo de vida. Por isso tomamos algumas iniciativas, e sincera mente, gostaríamos que você aceitasse. Volto a dizer, não é um pagamento.

— Mas eu não preciso de nada – falou sem jeito.

— Agora o orgulhoso está sendo você – disse Júlio – observe. São apenas duas coisas, primeira, compra‑ mos um apartamento para você morar com o seu pai, bem perto da empresa, e, a outra coisa, é uma pro moção na empresa. Ficará sob sua responsabilidade o agendamento das minhas reuniões dentro da empre‑ sa. E aí, você aceita?

Ana estava boquiaberta. Luciano não sabia o que dizer, foi quando Henrique tomou a iniciativa, deu um forte abraço em Luciano e disse:

— Claro que o meu, agora, muito mais que ami go, aceita.

CONTOS DA VIDA — 131

Todos sorriram.

Será sempre assim, toda vez que o racismo e o pre‑ conceito forem vencidos.

132 — CLÁUDIO
EMANUEL Abdala

VIAGEM SINGULAR

— Posso sentar ao seu lado?

— Claro. Meu nome é Francisco e o seu?

— Desculpe ‑me por não ter me apresentado. Meu nome é André. É minha primeira viagem, estou um pouco ansioso. E você é a primeira vez?

— Não. Eu faço esse percurso três vezes por sema‑ na e faço questão em ser seu guia turístico. Você vai gostar, o lugar é muito bonito e aconchegante. Qual a sua profissão?

— Eu sou administrador de uma empresa multina cional. E você?

— Eu fui advogado.

— Por que foi? Abandonou a profissão?

— Surgiu algo melhor. Eu sou responsável por um núcleo de pesquisa social, em um departamento na ci‑ dade que você está indo conhecer.

— A viagem demora muito? – Perguntou An dré, ansioso.

CONTOS DA VIDA — 133
22

— Já estamos quase chegando, é logo ali, depois do túnel.

O veículo atravessou um túnel relativamente lon‑ go, e a paisagem que surgiu diante dos olhos atônitos de André, parecia ter saído de um conto de algum ro‑ mancista altamente inspirado. Um jardim de uma be‑ leza incomparável. A grama rasteira e macia, variadas árvores, dentre elas, amendoeiras, romãzeiras, figuei ras. Os lírios se espalhavam pelos campos, em perfeita harmonia multicolorida com as rosas, cujo aroma era inspirado a longos haustos. Bancos que pareciam ser construídos com a própria grama convidavam ao re‑ pouso e à meditação. Pássaros cantando uma melodia de sublime beleza.

André estava encantado, e logo perguntou a Fran cisco:

— Este lugar parece um pedaço do céu. Será que ainda acharemos aqui, algum lote para comprar?

— Se você trabalhar direito, com certeza – respon‑ deu Francisco de forma singular, e continuou – vamos você precisa conhecer um pouco da cidade.

Começaram a caminhar, e a cada ponto apresentado por Francisco, o encantamento de André aumentava.

— Vou levar você para ver uma das nossas biblio tecas. Temos mais de cinco mil títulos, abordando te mas variados, a história da Humanidade, filosofia, psi‑ cologia, antropologia, direito, religião dentre outros.

— E livrarias? Desejo comprar alguns livros.

— Não temos livrarias.

134 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

— Como não tem? Um lugar tão desenvolvido de veria ter várias livrarias.

— Os governantes decidiram utilizar a filosofia do compartilhar, ou seja, as bibliotecas ficam abertas vinte e quatro horas. E você, ainda pode levar o livro para casa.

— Mas, normalmente, a nossa vida é muito agita da e o tempo para a entrega do livro é muito pequeno.

— Não aqui. Como temos muitos exemplares, você tem como tempo, a metade do número de páginas, ou seja, se, por exemplo, você pegar um livro de trezen tas páginas, terá cento e cinquenta dias para entregar, o que equivale a ler duas páginas por dia.

— Muito bom!

— Pois é! Vamos. Vou levá‑lo para conhecer um dos nossos hospitais.

Em poucos minutos, André estava à frente de uma construção, que mesmo imponente, irradiava uma simplicidade fascinante. André ficou impressionado, e comentou:

— Não parece um hospital, parece um templo.

— Essa foi a intenção dos arquitetos, para que o respeito pela dor alheia, inspirasse a conduta de todos que aqui entrassem.

— Eles conseguiram! – Respondeu André, respei toso.

Entraram... O ambiente exalava um aroma delicio‑ so. Não havia superlotação, nem pacientes em macas nos corredores, a equipe de profissionais trabalhava

CONTOS DA VIDA — 135

com ordem, disciplina e muito amor. André ficou tão impressionado, que comentou:

— Tive que me beliscar para ver se estava realmen‑ te vivo, pois um hospital com esse nível, só no céu. Francisco não conteve o riso.

— Por que você está rindo?

— Se estivéssemos no céu, certamente não existi riam os doentes. Concorda?

— Ah! Você me entendeu. – E sorriu também.

— Está cansado?

— De forma alguma. Quero ver tudo que for pos sível.

— Vamos agora para minha casa.

— Sua casa? – falou surpreso. – Escondendo o ouro, hein? Então você tem uma casa aqui, como conseguiu?

— Trabalhando. Transito entre esta cidade e a que você mora. É muito trabalho. Atender pessoas, orien tar pessoas, esclarecer pessoas, não é fácil, no entanto, faço com muito amor.

— Está bem! Não precisa humilhar. – Disse sorrindo. Em alguns instantes, André estava a observar uma linda casa. A casinha dos sonhos. Espaçosa, arejada e com um belíssimo jardim. Entraram...

— Mãe – disse apresentando o novo companheiro – este é André.

— Que homem simpático – falou a senhora – veio para ficar?

— Não – respondeu Francisco. – Veio só visitar.

136 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

Ele queria um lote, entretanto, disse que só depois de muito trabalho.

— É verdade.

— Eu não vi templos religiosos. Não tem aqui?

— Claro que sim. Inclusive, hoje à noite, um ora‑ dor muito conhecido nos brindará com uma palestra sobre como aproveitar a vida na Terra. Você gostaria de assistir?

— Claro. Nos últimos dias, tenho pensado muito sobre minha vida e o que tenho feito dela. Pelo menos a palestra, vou tentar aproveitar.

Sorriram...

Quinze minutos antes da palestra, penetraram no templo. Uma estrutura em forma de pirâmide, com o ápice feito de material semelhante ao cristal. Uma mú sica suave convidava à prece e ao recolhimento. Mais de duas mil pessoas, confortavelmente sentadas. An‑ dré estava encantado com o comportamento de todos. Um silêncio profundo.

A mesa diretora da reunião estava formada por seis pessoas, quatro homens e duas mulheres. Em determinado momento, entrou um senhor, que pela sua postura, semblante e doçura, envolveu a todos em uma atmosfera de paz e alegria. Barba e cabelos muito brancos, um sorriso compassivo. Tomou posição na tribuna e depois de pedir a bênção de Jesus para to‑ dos, falou:

— Queridos irmãos e filhos do meu coração. O pla neta Terra é o grande campo de experiências, onde

CONTOS DA VIDA — 137

as criaturas forjam a construção do reino de Deus no íntimo do coração. Quantas almas renascem na Terra com uma programação de redenção, e expectativas de sucesso, e depois de setenta, oitenta anos, retornam ao plano da verdadeira vida como mendigos das rea‑ lizações imorredouras? Quantas promessas antes do mergulho na carne transformam‑se em cinzas, tendo como causa a forma displicente de se comportar da criatura, diante das bênçãos da vida! Os mensagei‑ ros do Senhor se espalham pelo mundo, convidando os homens para a tomada de decisão sobre os pró prios destinos.

A assembleia estava magnetizada, embevecida e ao mesmo tempo, atenta às carinhosas admoestações do mensageiro divino, que prosseguiu:

— Reforma íntima, mudança de conduta orienta‑ da pelo Evangelho de Jesus, eis a rota iluminativa do homem na Terra, como em qualquer parte do Univer so! O passado é experiência, o futuro é esperança, o presente é ação! O momento da edificação do reino de Deus no coração é agora, não amanhã, mas já!

O mestre Jesus, ao passar pela Terra, nos deixou um rastro de luz apontando o caminho. Cabe a nós seguir‑lhe as pegadas para o encontro com a luz, a paz e a felicidade...

À medida que o ancião falava, André mergulha‑ va a sonda do pensamento em sua própria vida, no profundo do próprio ser. Verificava de forma clara, como nunca, a necessidade de mudar o rumo do exis‑

138 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

tir, transferindo os objetivos para as coisas do espíri to. Quando estava mergulhado nesses pensamentos, o orador concluiu:

— A vida no corpo é apenas um dia na eternidade, no entanto, o seu aproveitamento é de importância fundamental na economia espiritual. A semente pe‑ quenina de hoje, será no futuro, a árvore frondosa. O aproveitamento da vida na Terra garantirá a felicida de no plano da verdade.

Após a prece, todos saíram em respeitoso silêncio. Em verdade todos refletiam nos caminhos da própria vida.

Retornando para a casa de Francisco, André co‑ mentou:

— Estou muito mexido, dentro de mim está ocor rendo uma verdadeira revolução de conceitos e sen‑ timentos – e abraçando Francisco, falou emocionado – obrigado, meu amigo. Você tem sido tão gentil, que não sei como agradecer.

— Não agradeça. Somos todos irmãos, pertence‑ mos à grande família de Deus! Agora, vamos dormir, pois, amanhã será outro dia.

— Qual será a programação?

— Fica sob o comando de Deus. Vá dormir, irmão.

* * *

André teve um sono tranquilo, porém, pela ma nhã, a surpresa. Ao abrir os olhos:

CONTOS DA VIDA — 139

— Meu querido – disse a sua esposa – que bom você voltou para nós!

— Como assim? – Perguntou André, assustado.

— Há quinze dias que você estava em coma e agora, pela primeira vez, abriu esses lindos olhos castanhos.

Aproveitemos o nosso tempo na Terra!

140 — CLÁUDIO
EMANUEL Abdala

É NATAL. DE QUEM?

A cidade estava realmente linda. As árvores laureadas de luz, as casas, os edifícios, as lojas, tudo era só beleza e encantamento. As pessoas caminham agitadas, mas alegres, pelo menos na expressão exterior. Para alguns, a razão da alegria era o décimo terceiro, o sonho acalen tado o ano inteiro que estava se realizando na compra da geladeira, do sofá ou até mesmo das roupas, afinal de contas as festas de fim de ano trazem um novo ânimo. Como não falar dos shoppings, na disputa pelos clientes. Não economizaram nas ornamentações, uma verdadeira maravilha. Árvores de Natal que nos fa zem brilhar os olhos, cada uma com sua temática, a natureza tropical, os pinguins, e é claro, não pode fal‑ tar a neve de algodão ou isopor picotado.

E a grande figura: Papai Noel, que, de repente, ga nhou até uma esposa, a mamãe Noel.

Todos aguardando ansiosamente a ceia, o peru, o panetone, todas as iguarias, e, evidentemente, os presentes.

CONTOS DA VIDA — 141
23

É realmente lindo! Não existe outra festa que se iguale ao Natal.

Estava eu mergulhado nestes pensamentos, diante de uma belíssima árvore de Natal, num grande shop ping, quando senti algo puxando a minha calça. Olhei para baixo, era uma menina com lindos olhos negros, deveria ter uns cinco anos de idade.

Muito sorridente ela perguntou:

— Tio, o Natal é a festa mais linda do mundo, né?

— É claro – respondi retribuindo o sorriso.

— E Natal é o que mesmo tio? – tornou a perguntar com um brilho diferente no olhar.

— Natal significa nascimento – respondi um pou‑ co sem jeito, sentindo qual seria a próxima pergunta que não tardou.

— Nascimento de quem?

— De JESUS!

— Mas, tio – continuou a criança, como muitos adultos não conseguiriam – eu sei que papai Noel não existe, minha irmã me disse. Mas aqui no shopping tem Papai Noel. Esse algodão é neve, mas eu nunca vi neve cair do céu aqui na cidade. Se Natal é o nasci‑ mento de Jesus, cadê ele?

Dessa vez não pude responder, pois as lágrimas não deixaram. E a danada da menina não desgrudava:

— Tio, por que você está chorando?

— É que eu lembrei, minha filha – disse enxugan‑ do as lágrimas – que na noite de Natal, em Belém, as portas não se abriram para que ele pudesse nascer

142 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

dentro de uma casa, e ainda hoje, ele continua baten do na porta de nossos corações.

— E ele nasceu onde?

— Nasceu num estábulo, numa manjedoura de pa lha, cercado pelos animais e pelos pastores humildes.

Um silêncio profundo, interrompido por mais uma pergunta desconcertante da menina:

— Tio, é Natal, mas esqueceram de cantar para béns para Jesus, não foi?

Sentei no chão do shopping e fui imitado imedia‑ tamente pela menina‑anjo, e falei baixinho para ela:

— Vamos cantar parabéns para ele?

— Parabéns pra vo‑cê, nesta da‑ta que‑ri‑da...

CONTOS DA VIDA — 143
144 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

O DESEJADO

Desde o momento em que seus pés tocaram o solo árido da Palestina, ele tornou‑se o desejado de todos os povos, não pelos dogmas das religiões, mas pelo perfume de seu verbo que penetra as fibras mais ínti mas do ser.

Suas mãos como pétalas de rosas orvalhadas nas manhãs de primavera, pinçavam as feridas do corpo e da alma. Sendo Anjo, tornou‑se homem, e sendo ho mem, transformou‑se no caminho para a angelitude. Durante séculos, fora incompreendido, e ainda o é nos dias dolorosos do presente. Utilizaram o seu nome para a aquisição do poder transitório da Terra, moldaram o seu verbo às conveniências das ambições materiais. Adulteraram a sua Doutrina para o domí nio e para o massacre dos mais fracos.

Como Pedro num momento de fraqueza, o nega‑ mos todos os dias, não diferentes de Judas em instan‑ tes de invigilância, o traímos com nossos pensamen tos, palavras e atitudes.

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Desejamos a felicidade, entretanto recusamos a oferta. Queremos a luz, e desviamos do caminho que a ela conduz. Pensamos que ele está longe, e não o percebemos tão perto. Fantasiamos que ele se encon tra no Céu entre luzes e anjos, entretanto ele continua renunciando para estar entre nós.

Sua é a maior história de amor que o mundo já viu, amor pelos irmãos, pois carinhosamente cuida de suas ovelhas, que ainda atordoadas pelas próprias imperfeições não acertaram o caminho do aprisco.

Ele, entretanto, não se fadiga. Continua no doce trabalho de nos conduzir. É ele o desejado e não en‑ tendido, o adorado e não obedecido, o amado e ainda não verdadeiramente seguido. O jovem que sonhou um mundo de amor e paz, e por causa do sonho se ofereceu como um cordeiro, se transformando no “Ca‑ minho por onde devem trilhar os nossos pés” – Jesus.

E o que fazer? Deixar nos seduzir e arrastar por essa força irresistível que impele o nosso coração ao encontro do dele, pois ele desceu da luz às trevas para nos ensinar a subir das trevas para luz. Vamos, sigamo‑lo, já!

146 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

BENDITO SEJAS*

Bendito sejas, coração amigo, Pelo pão que dás, à porta, Ao companheiro que se desconforta, Na aflição da penúria sem abrigo!...

Deus te faça feliz pela roupa que ofertas

Aos torturados do caminho, Que tanta vez se vão no desalinho Das feridas que trazem descobertas...

Deus te conceda o prêmio da ventura

Pela ternura sorridente Com que levas ao doente O amparo do remédio e a esperança da cura.

* Mensagem psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier, do livro Antologia da Espiritualidade, FEB, 5ª edição, Rio de Janeiro, 2002.

CONTOS DA VIDA — 147
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Deus te guarde na fonte da alegria, Para lenir, no esforço a que te dês, A orfandade e a viuvez Que vivem para dor de cada dia.

Deus, porém, te abençoe, coração brando e pasmo, Com a mais sublime recompensa, Quando olvidas a intromissão da ofensa, O golpe da injustiça e a pedra do sarcasmo.

Deus te exalte no santo esquecimento Do mal que te golpeia, Reduzindo a extensão da chaga alheia Sem cogitar do próprio sofrimento.

Bendito sejas, coração submisso, Embora sábio entre os mais sábios, Pela palavra boa de teus lábios, No exemplo da bondade e do serviço,

Porque o amor transforma a sombra em luz

E o perdão, onde ampare, nunca erra, Auxiliando a vida em toda Terra

Para o Reino Divino de Jesus.

MARIA DOLORES

148 — CLÁUDIO
EMANUEL Abdala

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O perispírito e suas modelações

Luiz Gonzaga Pinheiro

Doutrinário | 16x23 | 352 p.

Com este trabalho o autor vai mergulhar mais fundo no fascinante oceano espiritual. Obra imperdível para conhecer sobre o perispírito, suas modelações e os reflexos das atitudes no corpo espiritual. “Uma notável contribuição para o espiritismo brasileiro”, no dizer do escritor Ariovaldo Cavarzan

Perispírito - O que os Espíritos disseram a respeito

Geziel Andrade

Doutrinário | 16x23 | 216 p.

Por meio de uma linguagem fácil, Geziel consolidou neste livro, tudo o que os espíritos disseram a respeito do perispírito.

Além de utilizar-se das informações contidas nas Obras Básicas e na Revista Espírita, Geziel visita também a vasta bibliografia de Léon Denis, Delanne, Emmanuel/ Chico Xavier, Manoel Philomeno de Miranda/Divaldo Franco. Não se esquecendo do consagrado repórter do Além, mergulhou fundo também na extensa obra de André Luiz, dedicando-lhe uma das quatro partes deste trabalho.

CONTOS DA VIDA — 149

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O segredo das bem-aventuranças

José Lázaro Boberg

Doutrinário | 16x23 | 336 Quem não busca a paz e a felicidade? O autor procura mostrar, ao longo desta obra, que todos temos o potencial da perfeição permitida ao ser humano. Mostra o que devemos fazer em nossa jornada evolutiva, para merecer as bem-aventuranças prometidas por Jesus em seu célebre Sermão da Montanha, enfatizando com convicção que precisamos apenas colocar em prática as mudanças de atitude propostas pelo Mestre.

Reportagens da vida

Júlio Cezar Grandi Ribeiro / O Repórter Contos e crônicas | 14x21 cm | 208 p.

O Repórter, a exemplo do espírito Humberto de Campos, apresenta crônicas agradáveis e irreverentes, que retratam os mais variados aspectos do cotidiano, como relacionamentos familiares, educação de filhos, comportamento no centro espírita e postura diante da mediunidade, levando a importantes reflexões.

150 — CLÁUDIO EMANUEL
Abdala

Conheça também!

O Evangelho segundo o Espiritismo

Allan Kardec / Tradução Matheus R. de Camargo

15,5x21,5 cm | 288 p.

Os Espíritos do Senhor, que são as virtudes dos céus, como um imenso exército que se movimenta, ao receber a ordem de comando, espalham-se sobre toda a face da Terra. Semelhantes a estrelas cadentes, vêm iluminar o caminho e abrir os olhos aos cegos. O Espírito de Verdade

Getúlio Vargas em dois mundos

Wanda A. Canutti / Eça de Queirós

Romance mediúnico |16x23 | 344 p.

Getúlio Vargas realmente suicidou-se? Como foi sua recepção no mundo espiritual? Qual o conteúdo da nova carta à nação, escrita após seu desencarne? Saiba as respostas para estas e outras perguntas, agora em uma nova edição, com nova capa, novo formato e novo projeto gráfico.

Mensagens de saúde espiritual

Wilson Garcia e diversos autoresMensagem / autoajuda |10x14 cm | 124 p.

Segundo o escritor Jorge Rizzini, “toda pessoa, sã ou enferma, do corpo ou da alma, devia ter esse livreto luminoso à cabeceira e ler uma mensagem por noite. Estava eu hospitalizado e os dias se passavam, lentos... A leitura (e releitura) muito me ajudou na sustentação do nível vibratório elevado”.

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CONTOS DA VIDA — 151
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CLÁUDIO
EMANUEL Abdala
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