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13. A pedagogia autogenerativa e a formação do sujeito desejante
Retomando as questões do século XXI, lembramos que o ritmo do final do século recém-findo, um tempo de intensos movimentos transformativos, atinge agora um ápice e chega até a provocar a imaginação: como será o mundo daqui a vinte ou trinta anos, ou seja, quando chegarmos aos anos 2050?
O que as crianças de hoje, então adultos, enfrentarão diante da promessa de que a inteligência artificial (IA) seguirá sendo aperfeiçoada em amplitude e velocidade cada vez maiores? A robótica dispensará a força e o trabalho físico e mental do homem? O que substituirá o nosso atual computador e ocupará o lugar do modelo mais avançado de telefone celular? Como estarão as ruas já superlotadas de veículos automotivos? O automóvel como o conhecemos será o veículo mais desejado? Como será a medicina nesse futuro tão próximo, diante dos indícios de que será guiada pela robótica? A relação médico-paciente será substituída pela máquina? Como ficarão nossos jovens diante de tantas transformações? Existirão ainda
escolas como as que conhecemos hoje? Ou predominará o ensino a distância, isto é, por meio de metodologias midiáticas? Quais serão os desafios adaptativos que os adultos terão de enfrentar quando se aposentarem (se é que isso vai vigorar)? Serão como os de hoje, que não conseguem acompanhar a evolução dos recursos tecnológicos? Quais as descobertas científicas que nortearão os rumos das novas organizações sociais? A organização em rede ainda será o modelo? Enfim, como será a existência na Terra nessa velocidade com que caminha a evolução do universo e, por conseguinte, da humanidade, num mundo de total incerteza?1
Isso nos lembra o filme Assim caminha a humanidade, de 1956, em que o jovem ator James Dean faz o papel de filho que vê o pai exibindo a ele o que a humanidade deixava como herança: o cenário de uma sociedade tomada pelas chaminés do progresso industrial e, assim, contaminada pela poluição (Stevens, 1956). Hoje, um pai exibiria uma parafernália tecnológica com inúmeros dispositivos, com todos mergulhados em um mundo virtual olhando para a tela do celular ou tablet, ou com óculos virtuais que se ligam ao mundo distante, porém, como um sintoma de nossa época, desligados do seu ambiente próximo. Será este um mundo de relações cada vez mais fluidas, termo cunhado por Bauman (2008), em que tudo se dissolve na rapidez das mudanças, dominado por pressa, ansiedade, agitação, ritmos desiguais, violência, autocentramento ou individualismo, no qual se configura a busca por uma organização mais horizontalizada, com seus acertos e seus múltiplos desacertos, introduzindo nova dinâmica de autoridade, antes baseada na hierarquia vertical? O patriarcado, por exemplo, já entrou em crise há algumas décadas.
1 Autores como Bauman, Morin e Harari, entre outros, falam sobre essas questões.
Ver Prigogine (1996).
14. As relações na escola: exercício de liberdade e subjetivação
O império do meio constitui para o ser vivo não apenas limitações, obstáculos e ameaças, mas igualmente as condições de sua autonomia. Morin (2012b, p. 269)
A epígrafe insinua o quão espinhoso e desafiador é falar das relações no ambiente escolar voltado à formação de pessoas cidadãs. Almeida (2011), em trabalho sobre Arendt, a enriquece ao nos dizer que:
Um dos principais equívocos presentes na educação hoje é a pretensão de libertar as crianças da autoridade dos adultos, como se fossem “uma minoria oprimida”, e, por consequência, isentar os adultos de decisões – que somente a eles cabem – a respeito do processo educativo. Essa postura está vinculada à recusa quase geral de assumir responsabilidade pelo mundo. (Almeida, 2011, p. 43)
Contudo, apesar de ser uma questão espinhosa, não dá para falar das relações no ambiente escolar sem que haja compreensão do exercício da liberdade, implicando associações entre liberdade, determinismo e autonomia, conceitos recursivos que se interligam em enorme complexidade. Assunto de extrema importância, pois se há nas últimas décadas um ponto muito frágil na organização da instituição escola, e também das famílias, é sua falta de compreensão do que seja liberdade e, consequentemente, do processo de formar pessoas para o exercício da liberdade, no contexto de um mundo em acelerado processo de mudanças que atinge com a pandemia um ápice indescritível, rico em diversidade e possibilidades, que torna muito mais complexa as escolhas e as tomadas de decisões. E como é difícil falar de identificação diante da complexidade do contemporâneo!
Na palavra identificação está contida a palavra idem, que significa “o mesmo”, mas é preciso dar um passo além diante de um mundo rico em diversidade e em intenso movimento. Ou seja, o contexto atual oferece múltiplas possibilidades de identificação, cuja construção dá origem a outro processo: a possibilidade de esse conjunto identificatório se singularizar, isto é, tornar-se próprio do sujeito, e a liberdade começar a ser exercida.
É possível pensar melhor sobre isso a partir de alguns exemplos. Comprar um carro era escolha fácil no tempo do Ford T, mas atualmente tornou-se mais difícil a escolha entre as inúmeras montadoras e seus variados modelos, que se multiplicaram no final do século XX. Como também se tornou difícil formar opinião sobre qualquer assunto diante do bombardeio de informações díspares que toma conta do cenário cotidiano. Para as escolas, bem como para as famílias, ficou mais difícil lidar com a capacidade de auto-organização para gerenciar a complexidade da realidade multifacetada, razão pela qual é necessária uma pedagogia autogenerativa vivenciada como
15. Liberdade e disciplina na escola
Liberdade é poder escolher. O problema é que, junto com a escolha, vem a renúncia, e aceitar esse fato requer maturidade. Eugenio Mussak apud Rovai & Brunini, 2018
Chegar a essa maturidade descrita na epígrafe exige muita disciplina. Mas, somente a disciplina imposta garante o bom funcionamento de um organismo social?
Lembremos o que foi dito anteriormente sobre liberdade: que ela não é revolta, mas pressupõe a revolta como uma etapa ou momento necessário para a conquista da autonomia e da liberdade. Então, não dá para pensar a disciplina sem pensar o que é liberdade. Estamos, pois, diante de dois conceitos de disciplina: um como submissão, outro como autonomia. No primeiro, termos como rebeldia, impulsividade, agressividade e outros similares são reprimidos, porque vistos como carregados de conotações negativas. No segundo, a compreensão é outra: trata-se de impulsos naturais que constituem
nossa totalidade humana. Nós somos amor e ódio, ambivalência, e para a organização psíquica ambos precisam de expressão.
Disciplina: submissão à ordem ou opção?
Rebeldia, impulsividade e agressividade: queremos ressaltar aqui a positividade e a potência dessas palavras. Nelas estão contidas a ideia de oposição e resistência a qualquer tipo de ortodoxia, hoje o câncer da nossa sociedade, que insiste em entender ordem como algo estático, paralisante. Porém, outra possibilidade é uma ordem em que caiba o dinamismo, movimentação necessária à não estagnação dos arranjos de qualquer auto-organização. Quando essa organização começa a não mais ser aceita porque percebida como estagnada/ coagulada, a rebeldia vai representar um sopro disruptivo para que novas formas sejam pulsadas. Aparentemente, isso pode soar como uma desordem rumo a situações caóticas, o que sempre amedronta qualquer sistema que se prende radicalmente à estabilidade.
Tomemos como exemplo o bambu, que, com suas fibras extremamente elásticas, consegue se vergar sem se quebrar ante uma forte intempérie da natureza, na medida de sua flexibilidade. Estabilidade e flexibilidade são dois contínuos que devem manter um sistema vivo em equilíbrio dinâmico, nunca estático. Assim deve ser pensado nosso aparelho psíquico em perene articulação com a cultura.
Observa-se esse fenômeno na movimentação do universo, na natureza, na biologia, nas mutações que colocam as espécies em perenes movimentos, expondo o organismo a doenças e, consequentemente, ao seu esfacelamento, bem como propiciando a oportunidade de tal organismo lutar contra as adversidades do ambiente onde vive.
16. Relações plasmadoras no ambiente escolar
O homem se educa porque se relaciona com os outros. Ele aprende a ser porque observa os outros. Ele se desenvolve porque faz com os outros. Maria Nilde Mascelani (citada por Rovai e Lima, 2015)
O homem é um ser comunicativo. É um sujeito em diálogo. No diálogo se realiza a si mesmo e à sociedade. Jürgen Habermas
O homem se subjetiva no outro
Ou seja, se auto-organiza nas relações cultivadas no ambiente social. A escola é um ambiente de relações sociais: esse é o fundamento para se pensar a importância da construção das relações sociais na
prática pedagógica com vista à formação do ser na sua integralidade – tornar-se pessoa em um mundo de incertezas. Aqui, assumimos isso como um dos aspectos centrais a ser repensado e que coloca a escola como um ambiente/espaço educativo. Nas relações que se conformam no espaço/tempo de convivência entre os membros da escola, do qual não estão excluídos os pais e a comunidade no entorno, está a estratégia para a educação que integra o sujeito à sua subjetividade em um mundo transitivo.
Como mostram as epígrafes, a fala em um presente generalizado serve para qualquer dimensão tempo/espaço – presente, passado ou futuro –, no desdobramento do tempo/espaço histórico.
Queremos ressaltar que na concepção de uma pedagogia autogenerativa/criativa, diferentemente da tradicional, são as relações sociais as forças plasmadoras, sobretudo entre professores e alunos, que respondem por toda a possibilidade de concretizar o objetivo de “formar o ser pessoa”. E isso pressupõe que o projeto pedagógico tenha essa intenção e a realize no propósito de torná-lo realidade. É necessária essa recorrência no dia a dia. Intenção só não basta, é preciso ação.
Para isso, a pedagogia que sustenta essa prática deve estar voltada ao desejo de abraçar uma relação que compreenda os seus sujeitos como seres humanos – espécie da humanidade –, diferenciados em suas características, seus estilos e seus ritmos de aprendizagem. Nessas relações, o professor e os demais membros da coletividade escolar estão também em perene movimento de tornar-se pessoa. Todos, em especial o professor, na medida em que contribuem com a produção da subjetividade dos alunos, estão trabalhando e diferenciando o seu próprio processo de desenvolvimento – a sua própria subjetividade.
O professor – hoje adulto – foi um dia educado por um grupo inserido em uma comunidade, no seu tempo/espaço, com
17. O novo lugar do professor
Quando lecionava nunca procurei dizer aos meus alunos, meramente, “o que eu sei”. Bem antes, o que ele desconhecia. Por outro lado, esse fato não era o principal, apesar de, por isso mesmo, sentir-me já na obrigação de encontrar algo novo para cada discípulo. Senão, esforçar-me em mostrar-lhe a substância da coisa desde o seu fundamento. Por esse motivo, jamais existiram para mim essas regras rígidas que tão cuidadosamente armam os seus laços em torno do cérebro de quem aprende. Arnold Schoenberg (1999)
Zygmunt Bauman (2009) aponta que o professor sai do trono, isto é, do lugar de dono de um conhecimento preestabelecido e vivido como verdade absoluta, e vai para um lugar onde incertezas, ruídos o colocam diante de constante busca de atualização e contextualização. O lugar não apenas de quem ensina, mas de que também aprende e apreende.
A sua formação profissional, concluída em um curso específico, não é mais fechada, pronta e acabada, mas o arcabouço de um conhecimento historicamente datado. Os conteúdos recebidos na universidade necessitam de expansão e atualização, o que caracteriza a chamada formação continuada, que hoje acontece em todas as áreas de saber profissional. A formação não pode mais ser cindida, isto é, fragmentada, estritamente disciplinar, diante de um mundo globalizado. Uma formação que comporte a integração dos saberes deve fazer parte do horizonte profissional e da vida. Os fragmentos poéticos do capítulo anterior foram utilizados com esta intenção: estabelecer uma ponte transdisciplinar entre a poética como linguagem e a construção curricular na multidimensionalidade contemporânea.
Se o lugar do professor muda, naturalmente o do aluno também muda. Outra sinergia ocorre entre professor e aluno. Ambos têm seus papéis, que, embora opostos, são complementares. O que isso significa? Que agora são vistos como polos de potencialidade que interagem. Por que polos de potencialidade? Porque ambos fazem parte de papéis arquetípicos e estão em perene movimento e produzindo novidades. As oposições e os antagonismos, que sempre existiram, mas eram desconsiderados ou até reprimidos, na atualidade precisam ser tomados como extremos que se articulam mediante o diálogo. Agora é momento de professor e alunos se verem na possibilidade de interações transformadoras, na expressão de que nunca devemos ocupar um lugar de forma coagulada, mas em construção/ desconstrução intermináveis mergulhadas no devir.
Se no paradigma antigo se produzia uma cisão entre professor e aluno – o conhecimento ficava no polo do professor e o aprendizado no polo do aluno, o que rompe com uma oposição criativa –, na atualidade essa postura muda, abarcando a relação de ambos e trazendo nova configuração, marcada de modo processual pela
18. Professor-aluno: relação transformadora dos afetos
Direcionando um olhar criterioso à nossa volta, é possível observar que a sociedade passa por vivências que mostram sua auto-organização embasada em relações de afeto, mas afetos como medo, horror, insegurança, desconfiança, tristezas, incertezas e dependências de diversas ordens, que, por consequência, também pulsam no micromundo das relações escolares e familiares. Quando cindidas e desconectadas, essas relações fatalmente trazem para o universo escolar, e também familiar, uma vivência de desamparo, como acontece na sociedade. Desamparo tanto emocional quanto cognitivo, pois, ao cindir o emocional do cognitivo – emoção/razão –, não se chega sequer a desenvolver os aspectos da cognição dos alunos, a não ser na sua superficialidade, na falsa aparência de que a acumulação de informações leva ao conhecimento. Ledo engano! Hoje, teorias sobre a evolução humana, bem como o avanço da biologia, da neurociência e da psicanálise mostram o poder das reações emocionais sobre o comportamento racional, com repercussão inclusive na manifestação de doenças psicossomáticas.
Na prática escolar vigente, de visão ainda conservadora, sem se dar conta de que a questão disciplinar pede novas configurações, a dimensão afetiva, sobretudo nas relações professor-aluno, está mais voltada para o controle comportamental centrado no metabolismo dos afetos de medo, insegurança, menos-valia. Porém, é possível e desejável transformá-los em afetos de alegria, autoconfiança, segurança, desejo de aprender, pois o forno que aquece a relação com o outro é o lugar onde esse metabolismo se produz. Basta observar propostas pedagógicas em andamento que escolheram essa direção, com excelentes resultados.1 Portanto, central no projeto pedagógico é pensar a escola como lócus de transformação dos afetos que regulam a auto-organização social de fora para dentro e pelo medo e seus derivados, mesmo pela virtualidade de acrescentar novos desafios.
Na atualidade, não há mais fundamentos para se pensar em afetos como sinais positivos ou negativos. Ambos são potencialmente criativos e o fundamental será como orquestrá-los no cotidiano do contexto escolar. No universo da violência, existem planos altamente criativos, o que nem sempre acontece na criação de planos de amorosidade. Portanto, quer na família, quer na escola, quer em qualquer instituição educativa, como a Fundação Casa, prisões, e outras, as manifestações afetivas devem ser levadas em conta e sempre articuladas com os aspectos racionais que estão sendo pulsados. Não se pode dar hierarquia de superioridade ao racional apenas, pois é na articulação razão e emoção, pensar e sentir, que se chega ao conhecimento. O ato de conhecer está mais ligado à percepção que à razão propriamente dita, e a percepção se volta ao que provoca interesse, portanto, ao que emociona.
Acostumada a um padrão de escolarização baseado no racional, a escola dedica até hoje grande espaço ao ensino dos saberes
1 Ver alguns exemplos já citados neste texto, como Casa do Zezinho e Instituto Baccarelli. O documentário Quando sinto que já sei traz ainda outros exemplos.