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Prefácio

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Quem chegou a viver as décadas da segunda metade dos anos 1900 sabe como esse fluxo transformador passou a seguir um curso sempre mais apressado. Cada nova descoberta científica solucionando um problema abriu espaço para novos problemas e para a busca de outras soluções. Era o começo de um trajeto de contínuas descobertas e sucessivas buscas de soluções, configurando um tempo de avanços na construção do conhecimento e na produção de novos instrumentos de produção, ou novas tecnologias. Uma corrida contra o tempo lento... cada vez mais distante. Hoje, testemunhamos a produção de vacinas contra o coronavírus em menos de um ano. Isso seria impossível pouco tempo atrás.

Relação recursiva na produção do conhecimento

Em poucas décadas, o mundo conheceu uma evolução recursiva na produção tecnológica em ritmo jamais visto. E essa progressão do ritmo evolutivo promete ser cada vez mais intensa, gerando transformações em usos, costumes e práticas em tempos cada vez mais curtos. Para se ter uma ideia, enquanto na primeira metade do século XX um dentista se formava e chegava à aposentadoria fazendo uso praticamente dos mesmos instrumentos, materiais e práticas, hoje esse profissional, se quiser ter uma carreira de sucesso, precisa passar por uma atualização continuada, ano a ano. Isso se ele mesmo não se descobrir eventualmente em outra profissão, pois o universo do trabalho teve consideravelmente ampliado seu leque de possibilidades, oportunidades e também novos problemas.

Com o avanço da realidade virtual e da inteligência artificial, segue-se na produção de um mundo dominado pela tecnologia.

5. A escola do século XXI: a formação do sujeito desejante

A escola que projetamos para este novo tempo deve voltar-se ao propósito da construção de um sujeito consistente. Isto é, um sujeito que consiga incorporar os aspectos da realidade em que está imerso – agora, a da pandemia –, introjetá-la em sua subjetividade e, após isso, apropriar-se em seu universo emocional e simbólico das características adquiridas, a fim de poder utilizá-las na transformação e na organização de si e do próprio social no qual está contido. Nesse sentido, psicanaliticamente falando, teremos um caminho a ser percorrido na produção do sujeito desejante: incorporação, introjeção, identificação e singularização. Esse percurso faz com que, desde os primórdios da vida até o seu final, o sujeito seja produzido nesses jogos entre a exterioridade e a interioridade, em perene desdobramento.

Em vez de a escola ocupar-se da transmissão de conteúdo, de cumprir um programa, de se prender a um modelo de ensino que, de um lado, parece ignorar a sua influência na formação da

subjetividade e, de outro, não mais se adequa à formação do sujeito para um mundo de intensa transitividade, ela precisa apropriar-se do pressuposto de que a subjetividade se dá na interação com o outro, portanto, a partir do social/cultural. Este será o principal investimento. O sujeito se constitui já no imaginário materno, no qual terá sido desejado, ou não, ou ambas as situações, portanto, o processo de subjetivação se dá muito antes da concepção da criança, pois ela habita o imaginário simbólico materno, e prossegue não só na infância, mas por todo o período de vida.

Apesar de a escola ser apenas um dos recortes que contribui para a construção desse sujeito desejante, orgânica e psiquicamente, é um de grande importância, pois, concomitantemente ao ensino dos conteúdos, propicia a incorporação de sentimentos que favorecem, ou não, a auto-organização da sua subjetividade ao substituir sentimentos de incapacidade por sentimentos de capacidade, de autoaceitação, de segurança e confiança, de autoestima, de prazer em aprender e de satisfação na realização.

Além de nossa própria vivência em escola com essa qualidade, encontramos em vários pensadores argumentos nessa direção, mas é Sara Paim (2012) que nos ajuda a expor nossa posição em relação ao que acabamos de afirmar, uma vez que nos oferece as coordenadas de que precisamos. Ao entender que à escola cabe a formação do sujeito epistêmico e do sujeito desejante, diz ela:

Como pedagogos estamos situados numa encruzilhada entre as duas formas de construção do pensamento. Nós estamos diante de um sujeito que tem de aprender e, através do aprender, se constitui como sujeito. O psicanalista, em seu consultório, pode trabalhar sem levar em conta a inteligência. O epistemólogo, em seu laboratório, pode não se preocupar com as identificações do sujeito.

6. Por uma escola desejante

A questão do desejo já é de grande complexidade por si só. Torna-se mais complexa ao se querer inseri-la como condição de boa educação, ou educação de qualidade. Pois, como fazer da escola um lugar atraente e desejante em um cenário que procura dar ênfase à importância da satisfação dos desejos, chegando a um clima de excitação que conduz ao consumo volátil?

Um paradoxo: de um lado, assunto visto como de valor para a educação atual e, de outro, no entanto, pouco considerado no modo de pensar a educação em seu viés racional, técnico, eficientista. Aos acostumados a esse viés, parece que o ato de educar não comporta noções de afetividade, relações de reciprocidade amorosa, jogos, brincadeiras. Essas questões parecem “bijuterias”, como dizem, e não joias raras. Ou, quando tratadas, falta adequação para aplicá-las. Desse modo, as questões relacionadas ao afeto ficam encarceradas a temas de menor importância.

No entanto, é chegada a hora de toda a sociedade, pais e professores começarem a entender que é preciso sintonizar-se com a essência da formação humana. Ela é uma composição interconectada da

qual fazem parte razão, emoção e afeto, elementos fundamentais para uma escola desejante.

E por que uma escola preocupada em ser desejante em um momento em que a satisfação dos desejos tem sido socialmente superestimulada? Tornou-se obrigação não frustrar a criança em seus desejos, mas quando o alimentar incessante dos desejos pode ser perigoso? Vejamos.

Por que a incessante satisfação dos desejos?

A sociedade vive um momento de busca incessante pela satisfação dos desejos. A aceleração das informações associada à produção de novidades para o consumo, que muitas vezes não fazem o menor sentido para aquele “sujeito” que está se auto-organizando no seu dia a dia, na escola ou fora dela, tem sérios efeitos. Nessas condições de excesso não se aprende, nem se apreende, e pouco ou nada se incorpora. O retido é apenas uma angústia que não tem nome.

Bastante intrigante é a ideia de que o conhecimento sempre implica um sujeito potencialmente capaz de conhecer, pois condensa no desejo o afeto e a razão. No próprio ato de desejar está presente o afeto. Dar um abraço é uma forma de afeto. Dar uma bronca é outra forma de afeto. E ambos têm força e intensidade na vontade de aprender o que o professor ensina, ou, ao contrário, podem bloquear a sua manifestação.

Afeto1 é sempre uma qualidade pulsional investida de uma quantidade de intensidade, o movimento que propulsiona nosso

1 No português europeu, a palavra afeto é escrita “afecto”. Ousamos pensar que este “c” no “afectivo” seria algo da ordem da contaminação e da disseminação.

Assim, essas intensidades caminhariam em ondas atingindo as relações subjetivas. É nesse sentido que tratamos do afeto neste texto.

7. Escola e o desejo de aprender

A marca existencial da necessidade e do desejo cresceu com o homo sapiens, . . . ao mesmo tempo o mais acabado e menos completo de todos os animais, cada vez mais sacudido por necessidades insaciáveis e desejos infinitos. Edgar Morin

Morin trata dessa questão visando não apenas à relação epistemológica sujeito-objeto, mas ao engajamento da consciência na existência e da existência no conhecimento – relação entre conhecimento e psique, aspecto individual-subjetivo do espírito, em que a psique implica e sempre engaja a identidade pessoal e os problemas existenciais do indivíduo-sujeito.

Seguindo essa concepção, nosso interesse é ressaltar o desejo de aprender como uma qualidade inerente ao ser humano, que se manifesta na curiosidade da criança em conhecer o mundo, pela articulação entre desejo, curiosidade e aprendizagem. A ciência define curiosidade como

uma emoção de transcendência pessoal, um sentimento de admiração e de elevação diante de algo que supera a própria pessoa . . . E se a curiosidade não fosse um mero sentimento? E se fosse, como diz Tomás de Aquino, o princípio do conhecimento? (L’Ecuyer, 2015, pp. 24-25)

Mais adiante, L’Ecuyer acrescenta:

Com o avanço da neurociência e da pedagogia, cada vez mais pessoas acreditam que o motor da criança, a origem do que a coloca em movimento, vai além da organização neurológica [e] acreditam que a origem do movimento é algo intangível e imaterial . . . os gregos já diziam que o princípio da filosofia era a curiosidade, a primeira manifestação daquilo que é intangível e move o ser humano: o desejo do conhecimento (L’Ecuyer, 2015, pp. 24-25)

Pensar que a escola tem de se preocupar com a formação do sujeito desejante pode parecer algo estranho. Porém, é justamente a ausência do desejo de aprender que a escola tem demonstrado no ensino a crianças e jovens, a falta de emoção e de um sentimento de admiração e elevação ao intangível, que nos leva a trazer este tema aqui. O prazer de aprender, tema tão candente para Rubem Alves (2014).

A escola tem como tradição, muito presente ainda no século XXI, inculcar os saberes nos alunos pela prática instrucionista. Se essa prática funcionou em tempos passados, digamos, até meados dos anos 1900, quando a escola ocupava o papel de grande centro difusor do saber, hoje isso já ficou ultrapassado, graças à evolução do conhecimento científico sobre a relação entre os desenvolvimentos

8. Motivação, motivo, interesse

A tarefa do educador não é, simplesmente, a de construir sobre desejos existentes, mas a de mostrar o que vale a pena desejar, de tal modo que isto crie novos desejos e estimule novos interesses. Hannah Arendt (citada por Almeida, 2011)

Acabamos de ver a relação entre necessidade e desejo. Hannah Arendt nos incita a falar da relação instigante entre desejo, motivação e interesse, termos que, relacionados no ambiente formal da escola, têm feito da motivação para o aprender uma pedra angular. Esse fenômeno se manifesta de modo predominante como falta de interesse dos alunos para com o aprendizado dos conteúdos escolares, com as práticas educativas monótonas, ou até mesmo com professores que não sabem criar uma dinâmica desejável na sala de aula. Curiosamente, é muito comum ainda ver a escola e os professores colocarem sobre os alunos e a família a responsabilidade por essa falta interesse em aprender. Isso mostra um olhar para fora, ou a falta de um olhar interior.

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