Relações de Objeto

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O pensamento das relações de objeto é, sem dúvida, uma das correntes mais marcantes da história da psicanálise. Este livro se propõe a destacar as “sementes” deste pensamento, que podemos localizar nas obras de Freud, Abraham e Ferenczi – sua “fundação” – e, em seguida, dedica-se a apresentar, de modo detalhado, as três principais obras que constituíram o seu “edifício” principal: os trabalhos de Balint, Fairbairn e Winnicott. O objetivo é oferecer ao leitor um vasto panorama sobre o assunto e proporcionar uma compreensão crítica da presença marcante deste pensamento na psicanálise de hoje, na qual, pode-se dizer, ele já faz parte da “água que bebemos”. Discussões controvertidas, como o estatuto do conceito de pulsão e a alternativa busca de prazer/busca de objeto, serão aqui retomadas.

Decio Gurfinkel

Relações de objeto

O autor nos oferece uma quantidade impressionante de informações, organizadas com clareza, expostas num estilo agradável – como se estivesse conversando com o leitor – e analisadas com a argúcia serena que caracteriza uma

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É psicanalista. Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), realizou seu pós-doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É membro dos Departamentos de Psicanálise e de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae, onde também é professor dos cursos “Psicanálise”, “Psicossomática psicanalítica” e “Drogas, dependência e autonomia: o barato no divã”. É autor de diversos escritos e livros, como Adicções: paixão e vício (Casa do Psicólogo, 2011), Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe (Escuta, 2008), Do sonho ao trauma: psicossoma e adicções (Casa do Psicólogo, 2001) e A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico sobre a toxicomania (Vozes, 1995).

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PSICANÁLISE

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obra já considerável. Estamos diante de um trabalho excelente, uma contribuição notável para a historiografia da psicanálise destinada a se tornar um clássico do campo. Numa área cujo passado comportou tanto sectarismo e tanta intolerância, a lucidez que perpassa este livro é uma

série

PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA PSICANÁLISE

Coord. Flávio Ferraz

bem-vinda vacina contra essas doenças infantis do pensamento. Renato Mezan


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Decio Gurfinkel

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Relações de objeto © 2017 Decio Gurfinkel Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Gurfinkel, Decio Relações de objeto / Decio Gurfinkel. – São Paulo : Blucher, 2017. 568 p. Bibliografia isbn 978-85-212-1217-1 1. Psicanálise 2. Relações objetais (Psicanálise) I. Título. 17-0855

CDD 150.195

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise


Conteúdo

“Manter teso o arco da conversa” Renato Mezan 9 Introdução 35 1.  Da pulsão à relação de objeto

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O pulsional e o relacional: dois “modelos” fundamentais 58 Várias psicanálises em uma? 64 Por uma epistemologia regional da psicanálise 67 Psicanálise freudiana, psicanálise depois de Freud 71 Afinal, quantos paradigmas? 77 E quais novos paradigmas? 81 O “efeito Winnicott”: virtudes e desvios 87 As relações de objeto e as matrizes clínicas... em Freud! 93 A “era das escolas” e a complexidade da psicanálise contemporânea 105 A dialética continuidade/transformação e o progresso da psicanálise 115 parte i

Fundações 2.  Abraham: da ordem pré-genital à psicanálise do caráter

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Uma ordem pré-genital 129

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conteúdo

Nasce uma “psicanálise do caráter” 132 Caráter e teoria da libido: Abraham faz história 135 O estudo do caráter na era pós-freudiana 144 A psicanálise do caráter e as relações de objeto 147 Abraham: precursor das relações de objeto? 151

3.  Ferenczi: a criança e o cuidado

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O cuidado da criança: saúde e doença 160 A técnica em questão: frustração ou relaxamento? 169 A ética do infantil: uma revisão 181 O traumático na constituição psíquica e na situação analítica 189 A sexualidade infantil e a teoria pulsional em Ferenczi 197 A regressão em análise e as controvérsias sobre a técnica 203 A introjeção e a formação do Eu 211 Thalassa e a metapsicologia do princípio regressivo 222 Ferenczi, pioneiro das relações de objeto? 231 parte ii

O edifício 4.  Balint: regressão e falha básica

245

De Budapeste a Londres: uma trajetória singular 246 A regressão: recapitulação e reenunciação 253 A falha básica: um conceito-chave 264 Balint e Ferenczi: uma herança direta 273 Winnicott e Ferenczi: heranças e paradoxos 282 O legado de Balint 291

5.  Fairbairn e a busca de objeto

297

Uma trajetória excêntrica 298 Busca de prazer, busca de objeto 301 Reconstruindo a metapsicologia freudiana: teoria do desenvolvimento e psicopatologia 309

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A “estrutura endopsíquica”: uma nova tópica 317 Fairbairn, Klein e Winnicott 325 Difusão em fogo lento 332 Isolamento e confrontação 340 O legado de Fairbairn 347

6.  Winnicott e a transicionalidade

357

Da pediatria à psicanálise 358 A invenção da transicionalidade 369 Wulff: um contraponto inesperado 373 Transicionalidade e relações de objeto 382 “Clínica da dissociação” 385 Dissociação e psicose 390 Uma nova matriz clínica? 402 Psicopatologia e contexto relacional 404 Bate-se numa criança, agora com Winnicott! 413 O conceito de saúde 425 O viver e a criatividade 429 Saúde e cuidado: família, escola e sociedade 432 Winnicott: entre o si-mesmo e o encontro com o outro 446 O neto de Freud 454 parte iii

Debates 7.  As pulsões revisitadas

461

A libido, o eu e o self 462 Winnicott e as pulsões: uma releitura 466 Excitação e trabalho de simbolização 468 O princípio regressivo, a pulsão de morte e a “solidão essencial” 473 Inato ou adquirido? 476 A etiologia da psicose: Bion e Winnicott 480 O “combate ao inatismo” e a pulsão de morte 493

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conteúdo

8.  Busca de objeto?

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Balint critica Fairbairn: a busca de prazer subsiste! 503 Os “modelos mistos” e a psicanálise contemporânea 507 Winnicott critica Fairbairn: não desbancar Freud! 514 O debate prossegue 525 Um Fairbairn vivo e reciclado 537

Referências 545

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1. Da pulsão à relação de objeto

Passados mais de cem anos da criação da psicanálise, vemo-nos muitas vezes desorientados diante da Babel que se tornou este campo do saber. Se a obra de Freud já é, em si mesma, extremamente complexa e multifacetada, no campo pós-freudiano observamos o surgimento de diversos pensadores mais ou menos criativos e originais que contribuíram das mais diversas formas para o desenvolvimento da disciplina, aumentando exponencialmente a sua heterogeneidade e complexidade. A pergunta sobre “o que permanece sendo ainda psicanálise” – frequente quando surgem novas ideias – não é fácil de responder. As respostas dadas são, muitas vezes, enviesadas por leituras parciais, distorções ideológicas, lutas de poder ou sensibilidade pessoal, e são, ainda, influenciadas pelo momento histórico e o contexto político-institucional em que cada pensamento surge. A partir de qual ponto novas ideias transformam os fundamentos da disciplina a ponto descaracterizá-la? E quando tais inovações podem ser compreendidas como um progresso ou como uma contribuição que faz avançar o pensamento? Até onde a psicanálise tolera seus próprios “progressos” sem se romper, sucumbindo à explosão oriunda de suas

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da pulsão à relação de objeto

possibilidades de derivação? Qual é, afinal, a elasticidade da disciplina psicanalítica? Diante dos enormes desafios levantados por estas questões, apre­ sentarei aqui a proposta de algumas diretrizes para nos orientarmos neste campo complexo e multifacetado, tendo como eixo de abordagem a evolução dos modelos teóricos da perspectiva pulsional para a perspectiva da relação de objeto. Para tanto, vou me apoiar inicialmente no trabalho de Greenberg e Mitchell (1983/2003), examinarei em seguida os estudos de epistemologia e de história da psicanálise de Renato Mezan e a “desconstrução” heideggeriana da psicanálise proposta por Željko Loparić a partir do seu estudo da obra de Winnicott, para então esboçar algumas diretrizes para abordar o problema.

O pulsional e o relacional: dois “modelos” fundamentais Greenberg e Mitchell se propõem a realizar, em Relações objetais na teoria psicanalítica (1983/2003), um estudo do tema das relações objetais na história das ideias em psicanálise, almejando uma “psica­ nálise comparativa”, que coloque a concepção dos principais teóricos psicanalíticos quanto a este tema fundamental frente a frente, de modo a evidenciar suas semelhanças e diferenças. Como os autores esclarecem, não se trata de abarcar todas as ideias e modelos psicanalíticos; na verdade, a escolha dos “principais teóricos” a serem trabalhados não deixa de ser influenciada pelo viés dos autores, também condicionado por questões regionais. Assim, além do exame cuidadoso da obra freudiana, o livro enfoca principalmente psicanalistas britânicos e norte-americanos; a ausência de comentários a respeito da psicanálise na França e na América do Sul cria uma lacuna incômoda. No entanto, e apesar desta limitação, creio que a

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2. Abraham: da ordem pré-genital à psicanálise do caráter

Examinaremos, em seguida, alguns aspectos centrais da contribuição de Karl Abraham para a psicanálise, a fim de destacar sua participação na história da construção do pensamento das relações de objeto. O recorte principal que faremos em sua obra terá como foco sua parte mais conhecida: o estudo sobre o desenvolvimento da libido, em conexão com a questão do caráter.

Uma ordem pré-genital A revelação da existência de uma sexualidade infantil muito antes de sua organização em torno dos genitais e em franca divergência com o senso comum do olhar “adulto” e “civilizado”, foi uma das maiores revoluções operadas pelo pensamento freudiano. Os Três ensaios sobre a sexualidade, publicados em 1905, cumpriram o papel de marco fundador e de manifesto público de tal revolução, sendo até hoje referência bibliográfica fundamental e obrigatória no estudo da matéria. Nessa obra, a descrição de formas eróticas

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abraham: da ordem pré-genital à psicanálise do caráter

variadas, ligadas a diversas zonas erógenas do corpo, ampliou sobremaneira o conceito do sexual e trouxe à luz uma série de manifestações sexuais infantis não atreladas necessariamente aos genitais, de caráter polimórfico e anárquico, e geneticamente anteriores à emergência de um processo de organização destas sob a batuta da zona erógena genital. Mas essas manifestações pré-genitais foram inicialmente entendidas por Freud como parte de um tempo primário e não organizado da sexualidade; foi apenas em um segundo momento de sua teorização, e de maneira paulatina, que Freud compreendeu que havia também organizações pré-genitais da libido. Assim, ao longo de alguns artigos que se estendem por vários anos, Freud propôs determinadas interpolações,1 no processo de desen­volvimento psicossexual, entre o estado autoerótico, polimórfico e inorganizado da sexualidade infantil e a organização genital adulta. A primeira proposta de interpolação foi a da etapa narcísica, na qual as pulsões originariamente anárquicas já se apresentam como um feixe com alguma organização inicial, ao elegerem o Eu como seu objeto e destino preferencial (Freud, 1911b/1981). A segunda interpolação foi a da organização sádico-anal (Freud, 1913a/1981), seguindo-se a da organização oral em 19152 e, por último, a da organização genital infantil, que, desde então, passou a ser distinguida da organização genital propriamente dita (Freud, 1923a/1981). É precisamente nesse sentido que me refiro aqui a uma “ordem pré-genital”. Em contraste com a concepção inicial de uma desordem pré-genital, vemos surgir, na história das ideias em psica­ nálise, um rico e diversificado pensamento sobre uma certa ordem no pré-genital, ainda que esta não seja tão “organizada” quanto a 1 Expressão utilizada pelo próprio Freud (1913a/1981). 2 Esta interpolação se deu em 1915, em seção acrescentada aos Três ensaios sobre a sexualidade em uma de suas revisões.

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3. Ferenczi: a criança e o cuidado

Neste capítulo, exploraremos algumas facetas da obra de Ferenczi, buscando encontrar nela pistas de elementos significativos que abriram caminho para o pensamento das relações de objeto. A fase final de seus trabalhos, centrada em uma extensa pesquisa a respeito da técnica psicanalítica, foi certamente de grande relevância para nosso tema; mas mostrou-se surpreendentemente útil recapitular algumas formulações anteriores de Ferenczi, cujo papel julgamos também relevante para essa história das ideias. O conceito de introjeção, o estudo do desenvolvimento do Eu e a metapsicologia do princípio regressivo serão os pontos principais que enfocarei nessa recapitulação, para, então, retornar ao significado e às repercussões dos trabalhos do último período. A tradição de pensamento de Ferenczi será posteriormente retomada, como veremos, por Balint; mas encontramos também na obra de Winnicott diversos pontos de afinidade, ainda que, ao contrário de Balint, ele não tenha tido nenhum contato direto com o trabalho ou a obra de Ferenczi. Penso que a obra de Ferenczi, um dos principais analistas da geração de pioneiros que criou a psicanálise

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ferenczi: a criança e o cuidado

juntamente com Freud, é uma fonte rica de fertilização da prática psicanalítica de hoje, e nos surpreendemos ao descobrir o quanto diversas concepções da clínica contemporânea já estavam presentes na sua obra. Foi, ao mesmo tempo, objeto de críticas duras, que chegaram a pôr em xeque grande parte de suas proposições, o que torna o seu estudo fascinante e difícil. O pensamento de Ferenczi sofreu um longo período de latência, e os motivos desse “esquecimento” são, por si só, um tema de muito interesse, já que estão intimamente relacionados com as vicissitudes da história da psicanálise, seja no plano institucional, seja no plano teórico-clínico. O fato é que os seus trabalhos passaram a ser mais lidos e divulgados, e hoje temos o prazer de encontrar neles pontos de vista que estão, muitas vezes, incorporados na nossa maneira de pensar e proceder na clínica psicanalítica, como se identificássemos naquilo que somos traços cujos modelos originais não conhecíamos: uma herança que subitamente descobrimos de onde provém.

O cuidado da criança: saúde e doença Se Freud trouxe à luz a presença da vida infantil no psiquismo do adulto na forma de marcas, lembranças e lacunas, Ferenczi seguiu suas indicações e acrescentou uma nova dimensão: a importância de se considerar o cuidado que é dispensado à criança e seus efeitos em tal psiquismo. Nos últimos anos de seu trabalho, ele ficou cada vez mais convencido de que o tratamento dispensado à criança é determinante para o estabelecimento ulterior de um adulto saudável ou perturbado. Em um artigo bastante contundente deste período, Ferenczi (1928a/1992b) propôs que a família deve buscar se adaptar à criança mais que a criança à família; como ele mesmo assinalou, trata-se aqui de uma proposta que produz uma inversão da posição mais usual sobre o assunto. Acompanhemos um pouco o seu argumento.

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4. Balint: regressão e falha básica

Neste capítulo, faremos uma retomada da participação marcante de Balint na história da construção do pensamento das relações de objeto. Esta participação pode ser desdobrada em dois eixos principais, estreitamente interligados. No primeiro, vemos o imprescindível trabalho por ele realizado de interpretador-curador dos impasses produzidos pelo trauma derivado do mal-entendido Freud-Ferenczi, trabalho que se deu por meio de uma reorganização da história das ideias e da história da técnica, ressituando-as e atualizando-as no âmbito da psicanálise britâ­ nica do pós-guerra (com suas escolas, “confusões de língua” e con­ flitos renovados). No segundo eixo, veremos as suas construções teórico-clínicas propriamente ditas, especialmente em relação à questão da regressão em análise e à proposição do conceito-chave de “falha básica”. Partiremos, inicialmente, de uma recapitulação de sua trajetória singular, a fim de assinalar em que ela contribuiu para a abertura de novas veredas; em seguida, nos debruçarmos sobre as questões conceituais propriamente ditas.

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balint: regressão e falha básica

De Budapeste a Londres: uma trajetória singular1 A vida pessoal e o percurso psicanalítico de Balint merecem nossa atenção por sua singularidade, ainda que reflitam o espírito da época e se assemelhem, em alguns aspectos, à saga de diversos analistas de sua geração. Nascido em Budapeste em 1896, sob o nome de Mihály Bergsmann, era filho de um médico judeu, clínico geral muito bom, mas com consultório em subúrbio da cidade, de pouca ambição científica e desapontado com a profissão. No final dos anos 1920, Mihály decidiu, para a tristeza do pai, alterar seu nome, acompanhando um movimento corrente: se no final do século XVIII os judeus foram obrigados a alterar seus sobrenomes e escolheram nomes alemães, durante o despertar nacionalista do final do século XIX, muitos judeus trocaram seus nomes alemães por nomes húngaros2 – o pai de Ferenczi (né Fraenkel) havia feito o mesmo. Leitor voraz desde o curso secundário, formou-se em medicina e, como um estudante brilhante, diplomou-se também em filosofia, química, física e biologia, além de neuropsiquiatria. Durante este período, conheceu Alice, sua primeira esposa, filha de Vilma Kovács, psicanalista pioneira e aluna de Ferenczi. Ainda estudante, Balint frequentou cursos de psicanálise dados por Ferenczi e, pouco depois de se tornar médico e se casar, iniciou sua formação psicanalítica em Berlim, no Instituto de Psicanálise (BPI), quando se analisou com H. Sachs e supervisionou-se com M. Eitingon. Depois de lermos o 1 Uma parte do material que se segue foi anteriormente publicado em “Balint e sua posição bilíngue” (Gurfinkel, 2001) e em “Balint e a formação psicanalítica” (Gurfinkel, 2010); aqui, ele foi remodelado e bastante ampliado para os objetivos do presente livro. 2 Conforme seu próprio depoimento, em carta a Jones de 1954 (apud Haynal, 1988/1995, pp. 85-86).

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5. Fairbairn e a busca de objeto

O trabalho de Fairbairn é, em geral, pouco conhecido e difundido no Brasil; se compararmos com o interesse despertado pela obra de Winnicott no nosso meio, a diferença é gritante. Mas, para aqueles que se dedicam a conhecer melhor o pensamento das relações de objeto e sua origem na psicanálise britânica, topar com sua obra é inevitável; e, em que pesem a diferenças de visão de cada estudioso da história da psicanálise, é hoje em geral bem reconhecido que ele foi um dos principais pilares da teoria das relações de objeto. Iniciemos com um breve olhar histórico sobre o início de sua trajetória, para então nos familiarizarmos com alguns aspectos centrais de seu pensamento; no final do capítulo, acompanharemos um pouco dos efeitos e repercussões de suas proposições.

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Uma trajetória excêntrica Fairbairn nasceu em Edimburgo, na Escócia, onde passou toda sua vida até falecer em 1964. Estudou filosofia, teologia, línguas clás­sicas e, posteriormente, medicina, formando-se em 1923. Após dois anos, iniciou a prática psicanalítica, sem ter tido uma formação estruturada ou qualquer vinculação institucional. O seu ingresso na Sociedade Britânica de Psicanálise foi um tanto excêntrico e teve na figura de Ernest Jones uma participação marcante. Devemos considerar que os meios de institucionalização da psicanálise, na época, não estavam rigorosamente estandardizados e que a comunidade estava ainda em processo e sedimentação – além de estar sendo sacudida pelas turbulências sociais da Europa de então –; ainda assim, o caminho de Fairbairn foi incomum. Durante os anos 1930, ele participou de alguns encontros científicos na Sociedade Britânica, mas, em virtude da distância geográfica – problema agravado pela Segunda Guerra –, nunca manteve uma participação assídua. Em 1931, Fairbairn publicou um artigo em que advertia os psicanalistas sobre algumas confusões conceituais comuns em seus trabalhos; Jones apreciou bastante este trabalho e, por admirar o pensamento e o rigor intelectual de Fairbairn, defendeu, em seguida, que ele fosse eleito como membro associado, mesmo que não tivesse se submetido ao treinamento psicanalítico usual. Jones era tido como um crítico rigoroso, mas demostrava ter também uma mente aberta que lhe permitia ver a importância potencial de novas ideias, em situações em que diversos de seus colegas reagiam negativamente ou com indiferença. Recordemos que foi também pela mão de Jones que M. Klein ingressara na Sociedade Britânica; a sua imigração de Berlim para Londres, após a morte de Abraham, deveu-se, em grande parte, ao convite e à acolhida oferecida por Jones. É preciso considerar, no entanto, que se Jones foi

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6. Winnicott e a transicionalidade

É bastante difícil traçar um panorama da obra de Winnicott, muito mais extensa e multifacetada que as de Fairbairn ou de Balint. A maneira peculiar como ele escrevia e transmitia oralmente suas ideias – aparentemente tão simples e despretensiosa e, ao mesmo tempo, tão delicada –, construindo paulatinamente o seu pensamento, desorienta facilmente o leitor desavisado. Ao mesmo tempo, a difusão em grande escala que assistimos hoje da sua obra torna dispensável e até pouco recomendável uma mera repetição de suas ideias, em geral bastante conhecidas. O que buscarei aqui é uma reapresentação delas segundo um enfoque próprio, com a finalidade de transmitir uma noção do conjunto de sua obra a fim de localizá-la no contexto histórico do pensamento das relações de objeto. O foco principal do capítulo será a invenção de Winnicott da noção de transicionalidade, que teve certamente um papel revolucionário na história das ideias em psicanálise. O lugar central e “mutativo” que este conceito ocupa na obra de Winnicott pode ser comparado com aquele ocupado pelo conceito de “estágio do espelho” na obra de Lacan ou de “posição depressiva” na de M. Klein:

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são invenções resultantes de um lento processo de elaboração e que provocaram, após sua emergência, uma reordenação de grande envergadura no campo da teorização psicanalítica. Poderíamos também aproximá-la da frase-ícone de Fairbairn a respeito da “busca de objeto”, ainda que a natureza, o impacto e a extensão da reordenação que ela produziu ainda nos sejam bastante obscuros. Em contraste, a revolução produzida pela ideia da transicionalidade já nos é bastante visível. E, mais que isso: ela sofre daquele desgaste inevitável resultante de um excesso – uma saturação por hiperexposição e o excesso por repetições, que tendem à estereotipia. Isto nos coloca novos desafios: como preservar e revitalizar o pensamento de Winnicott de modo a não se perder a sua força, o seu frescor, a sua originalidade e o “espaço potencial” que ele instaurou no campo da psicanálise? No presente capítulo, não me dedicarei a reapresentar os elementos básicos que compõem a teoria da transicionalidade – justamente por serem bem conhecidos –, mas me concentrarei em destacar o contexto a partir do qual ela emerge e alguns de seus des­dobra­ mentos ulteriores, relacionados ao advento do pensamento das relações de objeto. E, como fizemos nos capítulos anteriores, o ponto de partida será um breve olhar sobre a trajetória pessoal e profissional de Winnicott.

Da pediatria à psicanálise Ao contrário de Klein, Balint e Fairbairn, Winnicott era um verdadeiro inglês: ele nasceu, viveu e morreu no mesmo solo cultural e, portanto, não viveu a experiência do exílio, do desterro e das imigrações, ou mesmo da excentricidade de ser um escocês. Ele pertencia a uma família tradicional inglesa, filho de um comerciante bem-sucedido e bem relacionado em sua cidade (Plymouth)

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7. As pulsões revisitadas

Uma indagação que nos dias de hoje ressoa no ouvido de muitos de nós é: e como fica a teoria das pulsões após o advento do pensamento das relações de objeto? Ela deve ser suprimida, substituída, ignorada ou suplantada? Ou ela pode ser reincorporada e redescrita no âmbito de um novo contexto? É possível, interessante e desejável uma composição entre os modelos pulsional e das relações de objeto, construindo um “modelo misto”,1 ou seria mais correto tratá-los como pontos de vista inconciliáveis? Como se recolocam a questão da série etiológica e a controvérsia do inato/adquirido a partir das mudanças conceituais aqui discutidas? Estas indagações têm recebido respostas e encaminhamentos que variam bastante de autor para autor; neste capítulo, proponho-me a uma revisão de alguns aspectos relevantes relacionados ao tema, a fim de contribuir com um debate que certamente permanece em aberto.

1 Segundo nomenclatura proposta por Greenberg e Mitchell.

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as pulsões revisitadas

A libido, o eu e o self Iniciamos nosso trajeto com a seguinte pergunta: como se rearticularam as duas linhas de desenvolvimento – da libido e do Eu – no pensamento das relações de objeto, e como tal reposicionamento se refletiu no modo como os seus autores repensaram a teoria pulsional? O exame detalhado dos artigos de Ferenczi, realizado em capítulo anterior, nos deixou com esta discussão em aberto. Vimos como Ferenczi, mesmo tendo desenvolvido de modo pioneiro uma teoria do desenvolvimento do Eu, nunca deixou de considerar o desenvolvimento da libido; muito ao contrário: em Thalassa, testemunhamos um enorme esforço de articular as duas linhas de desenvolvimento. Como avançar na análise desta situação? Em primeiro lugar, devemos observar o entrecruzamento muito sutil entre as construções de Freud e de Ferenczi. Já em 1913, Ferenczi postulara um princípio regressivo no funcionamento psíquico, mas localizara-o no âmbito da formação do Eu. Em Além do princípio do prazer, Freud conferiu às pulsões um atributo novo e inverso à sua proposta anterior: elas buscariam, em sua finalidade última, o retorno a um estado anterior – estado que remontaria, no seu ponto de origem, ao inorgânico. Freud se dedicou, então, a “adaptar” as antigas pulsões – sexual e de autoconservação – a esta nova concepção, com argumentos interessantes, mas nem sempre de todo convincentes, e apresentou um novo polo para o conflito pulsional: a pulsão de morte. Esta proposição “inatizou”, de uma certa maneira, a destrutividade – evidentemente observável – na conduta e no psiquismo dos homens. Mas Ferenczi, sem descartar esta concepção freudiana tardia sobre a origem da destrutividade, da agressão e do ódio que tanto imperou na era kleiniana ulterior, atribuiu o destino da luta entre Eros e Thânatos em cada indivíduo muito

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8. Busca de objeto?

Muito se tem falado em nome da “teoria das relações de objeto”; creio que devemos falar no plural – teorias das relações de objeto –, já que não se trata de um sistema de pensamento homogêneo e unânime. A solução terminológica de Greenberg e Mitchell é inteligente: eles falam em “relações de objeto na teoria psicanalítica” [object relations in psychoanalytic theory], já que vincular tal temática das “relações” a uma teoria ou a um ou mais teóricos específicos não faz justiça à complexidade do problema. As relações de objeto emergiram como tema esforços de acomodação de Freud do modelo pulsional a novos desafios teórico-clínicos, foram ganhando corpo ao longo da história da psicanálise até se tornarem – de modo mais deliberado e consciente – o cerne da questão humana para alguns psicanalistas. Os autores britânicos que protagonizaram este movimento em meados do século passado nunca se organizaram – institucional ou informalmente – como um grupo. Esta parece ter sido uma opção mais ou menos deliberada. Em meio ao clima bélico e bastante dogmático que imperava na época das controvérsias entre os

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busca de objeto?

kleinianos e seus opositores, a conservação de um espírito independente era uma postura bastante cultivada – hoje podemos acrescentar: talvez de modo também reativo. E, ao lado disto, devemos lembrar das características pessoais dos personagens envolvidos: a escolha de Fairbairn de se manter à distância do fogo cruzado de Londres, a “teimosia” de Winnicott em dizer tudo com suas próprias palavras e de conservar seu “self psicanalítico” como um valor maior, ou mesmo a peculiar “posição trilíngue” ocupada por Balint – entre a linhagem húngara herdada de Ferenczi, a sua passagem pelo ambiente germânico e a construção da psicanálise da qual participou como protagonista em solo inglês –, que lhe deu condições de uma visão mais equilibrada e crítica das grandes paixões que ali se desenrolavam. Mas algo se passou entre estes homens de grande talento e senso crítico que limitou o estreitamento dos vínculos recíprocos que seria de se esperar; não encontramos sinais de grande entusiasmo quanto aos pontos de contato evidentes entre seus diversos pensamentos e, em alguns casos, notamos uma certa observação fria e à distância que põe em relevo, antes de tudo, as divergências e os “pontos fracos” dos colegas. Este estado de coisas deixou, por um lado, mais trabalho para os estudiosos da história das ideias em psicanálise e, por outro, um campo muito menos viciado de conluios e falsos acordos que costumam engessar o livre pensar – bem como o “livre associar-se” e o livre associar. Nós nos nutriremos, neste capítulo, dos benefícios deste “espírito independente” preservado por nossos autores-personagens e retomaremos diversas polêmicas e críticas que circularam entre Fairbairn, Balint e Winnicott. A proposição de Fairbairn sobre a busca do objeto expressa bem o projeto de revisão da psicanálise próprio das “teorias das relações de objeto” e merece ser mais uma vez retomada neste final do nosso percurso. Se, no capítulo anterior, estivemos discutindo as decorrências do pensamento das relações de objeto do lado das pulsões,

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O pensamento das relações de objeto é, sem dúvida, uma das correntes mais marcantes da história da psicanálise. Este livro se propõe a destacar as “sementes” deste pensamento, que podemos localizar nas obras de Freud, Abraham e Ferenczi – sua “fundação” – e, em seguida, dedica-se a apresentar, de modo detalhado, as três principais obras que constituíram o seu “edifício” principal: os trabalhos de Balint, Fairbairn e Winnicott. O objetivo é oferecer ao leitor um vasto panorama sobre o assunto e proporcionar uma compreensão crítica da presença marcante deste pensamento na psicanálise de hoje, na qual, pode-se dizer, ele já faz parte da “água que bebemos”. Discussões controvertidas, como o estatuto do conceito de pulsão e a alternativa busca de prazer/busca de objeto, serão aqui retomadas.

Decio Gurfinkel

Relações de objeto

O autor nos oferece uma quantidade impressionante de informações, organizadas com clareza, expostas num estilo agradável – como se estivesse conversando com o leitor – e analisadas com a argúcia serena que caracteriza uma

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É psicanalista. Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), realizou seu pós-doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É membro dos Departamentos de Psicanálise e de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae, onde também é professor dos cursos “Psicanálise”, “Psicossomática psicanalítica” e “Drogas, dependência e autonomia: o barato no divã”. É autor de diversos escritos e livros, como Adicções: paixão e vício (Casa do Psicólogo, 2011), Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe (Escuta, 2008), Do sonho ao trauma: psicossoma e adicções (Casa do Psicólogo, 2001) e A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico sobre a toxicomania (Vozes, 1995).

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Decio Gurfinkel

PSICANÁLISE

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obra já considerável. Estamos diante de um trabalho excelente, uma contribuição notável para a historiografia da psicanálise destinada a se tornar um clássico do campo. Numa área cujo passado comportou tanto sectarismo e tanta intolerância, a lucidez que perpassa este livro é uma

série

PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA PSICANÁLISE

Coord. Flávio Ferraz

bem-vinda vacina contra essas doenças infantis do pensamento. Renato Mezan


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Relações de Objeto Decio Gurfinkel ISBN: 9788521212171 Páginas: 568 Formato: 14 x 21 cm Ano de Publicação: 2017 Peso: 0.610 kg


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