Permutação

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Edilberto Campos

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Névoa. Era a única coisa visível em Helsinque, Finlândia. O clima frio formava pequenas gotículas de água na janela da casa da família Lancaster. Caixas de papelão e caixotes de madeira substituíam os móveis da sala de estar. Com a recente mudança, a família ainda não havia arranjado tempo para organizar tudo. Charlie estava sozinha, seus pais haviam saído para resolver alguns problemas relacionados à compra do imóvel e deixaram–na tomando conta da casa. Ela estava sentada no balcão da cozinha comendo biscoitos com café, os cabelos negros estavam presos, deixando apenas sua franja exposta. Ao lado dela, Bob, seu cãozinho da raça Pomsky, latia, tentando chamar a atenção da menina. A empresa onde John, o pai de Charlie trabalhava, havia mudado de local, o que os obrigou a fazer o mesmo. Ela não conhecia ninguém da cidade, até então, a não ser Diana, a mulher da imobiliária que lhes mostrou a casa. Era uma vizinhança bem agradável. Não havia transito, barulhos altos e nem assaltos, o lugar ideal para alguém morar. No fim da rua havia uma floresta, mas pouca gente se arriscava entrar lá, com medo de se perderem, ou serem atacados por algum animal silvestre. A área era protegida por um muro, que impedia os animais de entrar. Alguns dias antes, Charlie subiu no sótão para ver o que tinha lá. Além de poeira e muita tralha, havia uma janela, que dava para ver uma boa parte do bosque.

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Edilberto Campos Batidas na porta cessaram o silêncio da cozinha. Bob saiu em disparada na direção do barulho, latindo. Charlie calçou suas sapatilhas e correu até a porta, colocou a chave na fechadura, e abriu. Seus pais entraram, carregando algumas caixas etiquetadas. – O que são essas coisas? – Perguntou a garota – Algumas caixas que ficaram no carro – disse John enquanto movimentava–se na direção da cozinha. Helena, a mãe de Charlie estava sentada no sofá procurando algo na bolsa. Bob correu até ela e saltou em seu colo. Ele balançava o rabo freneticamente e lambia o rosto dela. O pelo branco do animal se destacava nos fios negros do cabelo de sua dona. – Está ficando tarde – falou –, o que acham de pedirmos uma pizza para o jantar? – Ótima ideia! Quero de mussarela, por favor – pediu Charlie. – Também quero de mussarela! – Gritou seu pai da cozinha. – Vou ligar mais tarde, agora tenho um assunto para falar com você, filha. É sobre sua nova escola. As aulas começarão semana que vem. – Mas já? – Resmungou a menina – O mês ainda nem terminou. – Eu sei – continuou sua mãe –. Mas vai ser bom pra você, conhecer pessoas novas, fazer novos amigos... É melhor do que ficar mexendo no jardim o dia inteiro. Você precisa ser mais sociável. Um dos hobbies preferidos de Charlie era pesquisar e mexer com plantas. Em seu quarto havia uma mesa perto da janela, onde ficava um bonsai. Na parte de trás da casa havia diversos vasos com plantas e uma

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Edilberto Campos enorme figueira, cuja copa servia de apoio para uma casa na árvore, que provavelmente fora construída pelos antigos donos. – Ah, meu bem, trouxemos uma coisa pra você – anunciou Helena. – O que? – perguntou sua filha. – É um globo de neve, compramos em uma loja de suvenires que vimos no caminho – disse ela, colocando o presente nas mãos de sua filha. – Mãe, é lindo. Obrigada! Charlie manuseava o vidro do globo. As bolinhas que estavam paradas, agora se moviam sobre a água que cobria quase todo o objeto. A superfície prateada estava gelada, em seu centro havia uma árvore seca, e em um dos galhos uma coruja branca. – Vou subir para tomar um banho e depois ligarei para a pizzaria – disse Helena. – Ok, obrigado mais uma vez pelo presente. Ela abaixou a cabeça e ficou pensando nas palavras da mãe. Agora era fácil entender que era apenas uma forma de buscar algo... Dali para frente, ela se perdeu em seus pensamentos, se preocupando em como seria sua vida nos próximos meses.

Charlotte e seu cão moviam–se por entre as pilhas de caixas e móveis antigos do sótão, já bastante escuro, tomando cuidado para não derrubá-las. Ela usava a lanterna de seu celular para se guiar. Como não havia energia naquela parte da casa, e já era noite, a luz da janela que

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Edilberto Campos iluminava o local não estava disponível. Dispostos sobre uma prateleira de madeira estavam os livros de botânica que Charlie separou na primeira vez que foi ao lugar, e voltou para pegá-los. Já era quase meia-noite e seus pais dormiam. Suas aulas começariam no dia seguinte, e deveria ir para a cama cedo. Ela apanhou os livros, colocou os três em uma sacola e correu na direção da escada. Bob ficou em pé arranhando um bordado antigo, preso sobre alguns arames. – Bob, vamos logo – sussurrou. Ele latiu e correu na direção da menina, que o pegou no colo e desceu as escadas. Sem fazer muito barulho, ela fechou a portinha da entrada do sótão e caminhou sorrateiramente até seu quarto. A janela próxima à escrivaninha estava aberta, Charlie resolveu fechála para evitar que o ambiente esfriasse mais. Enquanto girava o trinco, reparou que havia um movimento estranho na casa vizinha. Barulhos de objetos se quebrando eram ouvidos uma ou duas vezes por ela. Pela janela da outra casa, ela via um homem tentando pegar algum animal que voava. Não era um pássaro, pois possuía uma cauda, talvez fosse um morcego ou algo do tipo. Dava pra ouvir os grunhidos de indignação do homem. Ele saiu da casa olhando para os lados, provavelmente o animal fugira. Apanhou uma vassoura que estava perto, e cutucou os vasos de samambaias dispostos sobre uma madeira acima de sua cabeça, mas o local permaneceu em silêncio. Este desceu as escadas da varanda, pegou uma chave extra, escondida sob a grama e voltou a observar a frente da casa.

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Edilberto Campos Charlie pode vĂŞ-lo melhor, era um homem de idade, moreno, alto, e estava vestindo um sobretudo preto. Depois de um tempo, ele retornou a casa, bateu a porta e apagou a luz. A menina observou o local por mais alguns minutos para ver se o animal voltava, pois estava curiosa em saber o que era aquilo. Mas nada aconteceu. Aquela noite em especial estava um tanto fria, o que a fez ligar o aquecedor de seu quarto. Ela colocou os livros dentro de uma gaveta, desligou as luzes e se deitou. Agora desfrutava de um ambiente perfeito para um bom sono.

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Charlie passara a manhã pensando no que tinha acontecido na noite anterior. Ela havia acordado cedo para observar pela janela de seu quarto, a varanda da casa vizinha. – Charlie, vamos logo! – Gritou seu pai da sala de estar. – Já vou, só vim pegar uma coisa que eu tinha esquecido! – Vou te esperar no carro, não demore! – Ok! – Respondeu enquanto descia as escadas – Estou indo! Quando a garota chegou ao jardim, seu pai já estava com o carro fora da garagem, esperando-a. O ambiente lá fora estava mais frio do que de costume, o que fez com que ela colocasse o capuz do casaco sobre sua cabeça. O trânsito não estava tão ruim, mas a densa neblina que cobria toda a estrada, fez com que eles demorassem mais do que o esperado para chegar ao seu destino. Para evitar acidentes, a polícia orientou os motoristas a dirigirem devagar e prestar bastante atenção para não atropelarem algum animal durante o caminho. John estava atrasado para o trabalho. Ao seu lado, outros veículos estacionavam ao longo do acostamento. As pessoas que estavam dentro deles saiam e seguiam andando.

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Edilberto Campos – Charlie, precisamos ir andando – disse ele. – Não pai, nem pensar. – Eu já estou atrasado, não vamos chegar a tempo nesse ritmo. – Argh! – Resmungou – Odeio o clima nessa maldita cidade. Ele deu de ombros. Virou o carro e estacionou ao lado do meio fio. Os dois desceram. Charlie apanhou a mochila enquanto John trancava o veículo. Na frente deles, em cima de uma caminhonete, um garoto e um homem barbudo e ruivo discutiam. – Pai, me escute, isso não vai dar certo! – falou o mais novo. – Mas é claro que vai! É só amarrar uma em cada, com uma corrente. Ou você tem uma ideia melhor? – Faça o que você quiser! Depois não diga que eu não avisei. John e sua filha passaram ao lado deles. Charlie observava a briga dos dois enquanto caminhava na direção oposta. – Ei, de óculos – Chamou o garoto. – Pai, eu acho que ele está falando com você – Charlie se aproximou da caminhonete. – Ahn? – John virou-se em sua direção – O que foi? – Vocês vão para o centro? – Perguntou o garoto. – Sim, vamos. – Charlie respondeu – Por quê?

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Edilberto Campos – Estávamos indo para lá também. Temos quatro bicicletas aqui, e não tem como levar todas. – Estamos ouvindo – disse a garota. – Bem... Então achei que podíamos ir todos juntos. É melhor do que ir andando, e vocês poderão chegar mais rápido. O que acham? John hesitou. – Nós não vamos incomodar? – Por mim tudo bem – disse o homem mais velho de cima da caminhonete. – Para que parte da cidade vocês vão? – Eu vou para o escritório da Rua 22, e Charlie vai seguir para a escola Eastwood. – Minha loja fica lá perto. Vocês podem deixar as bicicletas lá e depois seguirem para seus destinos. Charlie se alegrou. O homem ruivo desceu do veículo. – Eu sou Thomas – disse ele enquanto apertava a mão de John – esse é meu filho Peter. – John. Prazer em conhecê-los. Essa é minha filha Charlotte. – Mas pode me chamar de Charlie – ela interrompeu. – Aqui estão as bicicletas. Nós esquecemos o capacete em casa, mas se vocês não caírem nada acontecerá – Brincou Peter. Charlie deu de ombros e se voltou na direção da floresta. – A ciclovia fica do outro lado. Melhor irmos para lá antes que o movimento aqui piore – aconselhou o garoto.

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Edilberto Campos Como o ambiente ainda estava fosco, Charlie ainda não havia visto seu rosto. No entanto, agora que ele estava perto, ela pode enxerga-lo com mais clareza. Os cabelos amarronzados cintilavam diante de sua pele branca e de seus olhos azuis escuros. Era um rapaz forte, provavelmente fazia bastante esforço físico. Ela o observou por alguns segundos, tentando desvendar seu olhar misterioso. Peter parecia desanimado, mas ao mesmo tempo normal. Talvez fosse seu jeito. Enquanto a névoa cruzava a floresta, Charlie se afastou do meio fio. Ela resolveu seguir Peter na direção da ciclovia, junto de seu pai e Thom. O clima estava ruim, e tendia a piorar mais a cada minuto que se passava.

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– Peter, você podia ter me dito que estudava aqui – disse Charlie enquanto fechava a porta do armário da escola. – Você não me perguntou – O garoto deu de ombros. – Onde podemos verificar em qual sala ficamos? – A menina apoiou a mochila nas pernas e prendeu seu cabelo. – No quadro de avisos. Se eu não me engano, fica naquela direção – disse Peter apontando para a sua frente. Eles caminharam até o fim do corredor e dobraram na direita. Quando chegaram lá, notaram que quase metade da escola se amontoava no local. Pessoas se empurravam, outras se xingavam e algumas tentavam se esticar para ver se enxergavam alguma coisa. – E agora, fazemos o que? – Charlie estava confusa com tudo aquilo, ela se encostou à parede, colocou sua mochila no chão e olhou para Peter esperando uma resposta de sua parte. – O pior de tudo é que nós só podemos verificar nossos nomes lá naquela lista – comentou o garoto – vamos esperar, é o único jeito. Uma menina se aproximou ao lado de Charlie e abriu o armário. Ela pegou uma caixa de cigarros e colocou em seu bolso, depois bateu a portinha com força. Ela usava uma calça rasgada nos joelhos e uma camisa curta, que deixava seu piercing no umbigo à mostra. A touca

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Edilberto Campos branca que cobria seus cabelos roxos estava pichada com desenhos de caveiras e nomes de algumas pessoas. Peter a encarou por alguns segundos. – Perdeu algo aqui, Peter? – Ela puxou um cigarro e o acendeu, seus lábios tocaram o final do papel. A garota expeliu a fumaça de sua boca com satisfação. – Chloe, é proibido fumar aqui, você sabe disso. E além do mais você não tem idade para fazer esse tipo de coisa – disse ele enquanto se desviava de alguns alunos que passavam correndo ao seu lado. Charlie tossiu e abanou com as mãos, a fumaça que pairava perto de sua cabeça. Chloe a olhou por alguns segundos e voltou a fumar. Ela deu de ombros e observou o amontoado de pessoas que se espremiam para olhar o quadro de avisos. – Já viram em qual sala vocês ficaram? – Ainda não, e você? – Perguntou Charlie. – Não consegui. Tem quase metade da cidade naquele troço. Outra onda de fumaça invadia o ar. – Estamos esperando eles saírem de lá para podermos verificar nossos nomes. – Comentou Peter. – Querido, você e sua amiga esquisita vão morrer esperando. Eles não vão sair de lá. – Disse Chloe enquanto se espreguiçava – A administração dessa escola é uma droga, eles sabem que todo ano isso acontece, mas tornam a colocar a porcaria das listas em um só lugar. – Eu não sou esquisita. E se você tem uma ideia melhor, pode falar. Sou toda ouvidos. – Disse Charlie, irritada.

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Edilberto Campos – Sigam-me – Chamou a garota. Chloe jogou o cigarro no lixo e correu até o inicio do corredor. Chegando lá, ela abriu a porta do almoxarifado com cautela. Em cima dela, uma plaquinha escrita “Não entre” com letras em negrito, se balançava de um lado para o outro. A garota desceu alguns degraus e se abaixou na frente de uma portinha. Tirou de seus bolsos um grampo e enfiou na fechadura, tentando abrir. – Que droga! Está emperrada. Peter e Charlie chegaram logo depois. – Com licença – o garoto apertou a maçaneta e empurrou a porta com força, que se abriu com um rangido. Peter voltou-se na direção de Charlie enquanto Chloe entrava na pequena sala. – O que será que ela quer Peter? – Sussurrou Charlie – Não gostei dela. – Eu ouvi, garota! Também não gostei de você. Charlie deu de ombros e entrou na sala seguida de Peter. O local cheirava a mofo e estava coberto de poeira. No canto do cômodo, perto de uma prateleira cheia de produtos de limpeza, estava uma escada. Chloe se abaixou e puxou o objeto com força. – Peter, para de me olhar e venha aqui me ajudar! Você também, diferente. – Diferente? – Perguntou Charlie, irritada – Escuta aqui, você acha que pode chegar assim e falar comigo desse jeito e vai ficar tudo bem? É melhor parar se não... – Se não o que? – Interrompeu Chloe – Quem você pensa que é garota?

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Edilberto Campos – Argh! – Charlie socou a estante que estava perto da escada. Um pote transparente caiu no chão e o vidro se quebrou. Metade do conteúdo foi despejado em cima da camisa de Chloe, no instante em que ela puxou a escada. – Você está ficando louca, garota? – Meu Deus, me desculpe, eu juro que foi sem querer – Charlie se abaixou e tentou enxugar a pele dela com um pano de chão que estava próximo dos cacos de vidro. – Saia daqui! – Chloe empurrou a menina que caiu sentada perto da porta. – Eu juro que foi sem querer. Você pode usar minha jaqueta, se quiser – ofereceu Charlie, enquanto tirava a manga de seus braços. – Passa logo isso pra cá! – Ordenou – Peter vire de costas pra eu me trocar. – Seu desejo é uma ordem, primeira dama – ironizou Peter ao fazer uma reverência.

Chloe estava de pé no ultimo degrau da escada. Suas mãos se apoiavam no teto ao lado do corredor o qual se localizava o quadro de avisos. Ela retirou de seu bolso um isqueiro e o acendeu perto do sensor de incêndio. Resultado: Todos que estavam perto do local correram na direção da saída de emergência, gritando por socorro. – Peter, me ajude a descer daqui! Charlie vá ver em qual sala ficamos!

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Edilberto Campos A garota correu na direção da lista e checou os papeis. – Não acredito! – Ela chutou o lixeiro que estava próximo dela. Charlie virou de costas para o quadro e olhou para Peter, chateada. Enquanto caminhava até o inicio do corredor, alunos e mais alunos esbarravam nela e corriam até o local para verificar seus nomes. Ela se aproximou de Peter. – Você ficou no mesmo andar que a gente, mas em outra sala – disse Charlie ao garoto. – Como assim “mesmo andar que a gente”? Quer dizer que vou ter que aguentar você me jogando detergente até o fim do ano? – Reclamou Chloe. – Já pedi desculpas! Pode ficar com a jaqueta se quiser. – Obrigada, era isso que eu queria ouvir. O alarme soava, interrompendo a conversa dos três. – Vamos logo, antes que a gente se atrase – Disse Chloe movendo-se na frente. – Tchau Peter, nos vemos no intervalo! – Charlie o abraçou e deu tapinhas em sua costa. O garoto observou ela caminhar na direção das escadas. Ele ficara pensando no abraço que a menina havia lhe dado. Peter sorriu. Apanhou sua mochila, colocou em suas costas e partiu para sua sala.

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