
João António Pinheiro Teixeira
João António Pinheiro Teixeira
ensaio de terapia espiritual
Ficha Técnica:
Quer ser curado? – ensaio de terapia espiritual
© 2025 João António Pinheiro Teixeira
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Capa e Paginação: João Cerqueira
Imagem Capa: Dreamstime
1ª edição: Agosto 2025
ISBN: 978-989-9134-58-4
Depósito Legal.: 550935/25
Impressão e acabamento: Imedisa
Reservados todos os direitos. Nos termos do Código do Direito de Autor, é expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer meio, incluindo a fotocópia e o tratamento informático, sem a autorização expressa dos titulares dos direitos.
«É o amor que cura a vida, que salva»
– Papa Francisco –
«Também nós precisamos de palavras curativas».
– Timothy Radcliffe –
«Uma fé com poder curativo é aquela que vem da sua dimensão mais profunda: a espiritualidade».
– Tomás Halík –
«É de noite que brilham as estrelas; é no silêncio que se recebe a visita da Palavra que cura».
– José Motarel –
Nada é impossível a Deus e tudo é possível a quem [n’Ele] crê
Nem sempre nos sentimos saudáveis mesmo quando isentos – ou restabelecidos – de doenças corporais. Há outras patologias que nos atormentam, mas de que frequentemente nem nos apercebemos. Javier Aranguren sobrelevou três: o ruído, a pressa e a febre do êxito1. Não teremos de curar também estes e outros padecimentos?
Dita, entretanto, a experiência que diligenciamos a cura para uma gripe, para uma artrose, para uma hepatite, para um tumor ou para uma das súbitas cardiopatias. Mas quem admite que necessita de uma cura para a indiferença, para a sobranceria, para a impaciência, para a agitação, para a intemperança verbal, para a ansiedade, para a violência e para o rancor? Será apenas a doença que precisa de ser tratada? Não será igualmente a pessoa que carece de ser transformada?
Nesta noite do mundo, parece que os sorrisos se apagaram. A depressão massacra e a angústia tortura desde a mais remota infância. Descobrimo-nos como uns fracassados vitalícios, vítimas de tudo e alegadamente injustiçados por todos. Não espanta, assim, que nos tornemos consumidores compulsivos de ansiolíticos e colecionadores insaciáveis de baixas médicas. Não rendemos no trabalho, não interagimos com os colegas, não otimizamos as relações familiares.
1 In https://theosfera.blogs.sapo.pt/1640801.html
Sucede que, se não estamos bem com outros, também não há sinais de nos sentirmos bem connosco. À velocidade em que decorre a nossa vida – sempre a mil à hora – dá a impressão de que, mais que o afã de chegar, o que nos motiva é o impulso para fugir: dos outros, de Deus e até de nós.
Diante desta profusão de padecimentos, o acompanhamento clínico é vital, mas a terapia espiritual pode despontar como uma mais-valia surpreendente, com assombrosos efeitos medicinais. De facto, nas incessantes tempestades da vida, Deus está presente (cf. Jb 38, 1; Mt 8, 18). A Sua presença é a única acalmia e, consequentemente, a melhor terapia.
Sendo o homem um ser pluridimensional (corporal, psíquico, social e espiritual), a saúde é muito mais do que a ausência de doenças no corpo. Sadio será aquele que experimenta um bem-estar corporal, mental, social e espiritual. Não se trata de constituintes justapostos do organismo, mas de elementos mutuamente implicados no estado geral da pessoa.
É sabido que uma debilidade física acaba por transtornar o ser humano: mentalmente, socialmente e espiritualmente. O que talvez não se valorize tanto é que a espiritualidade pode contribuir para a saúde integral, inclusive em situações de vulnerabilidade física, incerteza profissional ou animosidade circundante.
Lamentavelmente, a experiência documenta que, não obstante os salutares recursos que fornece, a espiritualidade continua a ser subestimada. É notório o desinvestimento espiritual na nossa época, apesar de alguns sinais encorajadores. Peritos como Danah Zohar e Ian Marsall atestam que o nosso QEs (quociente espiritual) coletivo é bastante indigente.
Falta perceber que, para ser global, qualquer terapia tem de ser também espiritual. Não espiritual no sentido de desligado do mundo, levitando sobre os seus problemas; mas espiritual no sentido de comprometido com a vida, sob a condução do Espírito Santo que habita em nós (cf. 1Cor 3, 16). O orante não levita, acredita. Ainda que recolhido, não se sente demitido do compromisso de trazer a vida até Deus e de levar Deus até à vida. O orante não é indiferente ao mundo; procura ser diferente no mundo. Para todos, ele inspira Deus e expira Deus2 .
Assim sendo, o que aqui se apresenta não são técnicas de autoajuda ou métodos de concentração (voltados para uma transcendência impessoal) cujo objetivo passaria pelo alívio e pelo relaxamento. O pressuposto do que aqui se oferece configura uma hétero-ajuda, estribada na persuasão de que, sem Deus, nada conseguimos (cf. Jo 15, 5). A finalidade não é anestesiar, mas transformar, converter, curar.
Efetivamente, Deus cura como, aliás, é veiculado já no Antigo Testamento. Basta atender à significação do nome Rafael (cf. Tb 11, 1-15): precisamente «Deus cura». É, de resto, um alento que perpassa todo o Antigo Testamento: «Deus cura as nossas enfermidades» (cf. Sal 103, 3).
O Seu Filho Jesus veio para curar (cf. Mt 4, 23). É por isso que «Lhe apresentavam todos os doentes» (Mt 4, 24), aqueles que estavam «atacados de várias doenças ou tolhidos de sofrimentos» (Mt 4, 24). E o certo é que todos os que tocavam n’Ele ficavam curados (cf. Mc 6, 56).
Tendo em conta que, «para Deus, nada é impossível» (Lc 1, 37), então «tudo é possível para quem [n’Ele] crê» (Mc 9, 23).
2 Esta dupla locução é decalcada numa recomendação de São Vicente Palloti, fundador da Sociedade do Apostolado Católico, cujos membros são conhecidos como padres ou irmãos palotinos.
É o caso da cura mais decisiva: reconhecer – e enaltecer – a prioridade da vontade de Deus sobre a nossa (cf. Mt 6, 10; Lc 22, 42), tanto mais que «não nos pertencemos a nós mesmos» (1Cor 6, 19).
Orar é suplicar a Deus, não pressionar Deus. O pedido é nosso, a decisão é d’Ele. E, ainda que não compreendamos o que Deus faz, uma certeza nos acompanha e norteia: o que Deus faz, faz bem. É essa cura que verdadeiramente sara e salva. Por tal motivo, Bento XVI, ao iniciar o seu pontificado, tornou bem claro: «O meu programa é não fazer a minha vontade»3. Importante é ficar «à escuta da vontade do Senhor e deixar-me guiar por Ele»4.
O nosso maior problema é que acreditamos pouco e escutamos cada vez menos. Mas dessas debilidades também podemos ser curados. Roguemos a Jesus que aumente a nossa pouca fé (cf. Lc 9, 24). E, se escutarmos a Sua voz, não Lhe fechemos o coração (cf. Sal 95, 7-8). A esta luz, torna-se dever indeclinável dos cristãos «servir a família humana com a força terapêutica da fé»5. Acima de tudo, porque Jesus quer curar. Não foi Ele que afirmou com toda a ênfase: «Eu quero, sê curado» (Mt 8, 3)? E, em conformidade, também não foi Ele que confiou aos discípulos a missão de curar (cf. Mt 10, 8; Lc 10, 9)?
Não esqueçamos que, como lembrava Hölderlin, «com esperança, paciência e silêncio, é possível, derrotar o destino»6. E o destino – vocábulo potencialmente equívoco – envolve não só a doença que irrompe ou a calamidade que devasta. Abrange
3 https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/homilies/2005/documents/hf_ ben-xvi_hom_20050424_inizio-pontificato.html
4 L. cit.
5 TOMÁS HALÍK, O sonho de uma nova manhã. Cartas ao Papa (Lisboa 2024) 75.
6 In JOSEP MARIA ESQUIROL, A Escola da alma. Da forma de educar à maneira de viver (Lisboa 2024) 55.
igualmente a desesperança que nos desmotiva e o desalento que nos deixa prostrados.
Nem sempre se conseguirá superar uma doença ou evitar uma calamidade. Más há uma via para não ceder ao desespero e para não capitular perante o desalento: fundear o nosso coração no «Deus da esperança» (Rom 15, 13). Ele cura. Cura sempre. Cura-nos de tudo. E através de muitas mediações!
(«Os piores sofrimentos são aqueles que se receiam»)
De uma maneira ou de outra, somos atravessados pela fragilidade e todos sucumbimos à finitude. Daí que a nossa existência se assemelhe a um interminável «vale de lágrimas», desencadeadas pela turbulência do mal que fere o corpo e da maldade que se inscreve na alma. A natureza abriga-nos, mas também nos agride. E o próprio homem, que devia proteger o seu próximo, constitui frequentemente o maior perigo para o seu semelhante.
Como é possível, apesar dos avanços da ciência, esta enxurrada de mortes por cancro, colapsos cardíacos, problemas respiratórios ou fulminantes surtos de morte súbita? E como perceber, não obstante os cada vez mais aplaudidos enunciados humanistas, este estendal desapiedado de homicídios, atentados e guerras com uma volumetria de vítimas sem fim?
Já nos começos, o próprio Deus admite que «a maldade dos homens é grande sobre a terra» (Gén 6, 5). Não espanta,
assim, que aquilo que vemos, ouvimos e lemos nos inunde de rostos carregados, de esgares lúgubres e de almas sofridas.
Acresce que, como explica Michael Paul Gallagher, «nem a fé tira a dor; a fé carrega a dor»7. O crente, enquanto humano, também dói, também chora, também sofre. E tantos são os sofrimentos que provocam desespero não só nas pessoas diretamente atingidas, mas em todas as nossas sociedades.
Como se não bastasse a realidade do sofrimento, somos constantemente atordoados pelo pavor de sofrer. O receio de sofrer não será o sofrimento mais desgastante, mais arrasador? Efetivamente – não desacertou Etty Hillesum – «os piores sofrimentos são aqueles que se receiam»8. Não era o medo a coisa que Montaigne mais temia9?
É por isso que peticionamos na Liturgia: «Libertai-nos, ó Pai, do nosso medo»10. O sofrimento não se limita ao sofrimento suportado, envolvendo também o sofrimento temido, «que nos invade a imaginação e nos leva a adotar atitudes falsas»11.
Trata-se de uma representação, quase sempre tenebrosa, que está conectada com situações que aconteceram e podem voltar a acontecer. Quem já não se sentiu completamente desamparado perante uma ocorrência sem ter qualquer possibilidade de a reverter?
7 MICHAEL PAUL GALLAGHER, Prolongamento. Atravessar as últimas fases do cancro e apontamentos de percurso (Braga 2018) 43.
8 ETTY HILLESUM, Une vie bouleversé. Journal 1941-1943 (Paris 1985) 199.
9 Cf. in GIANFRANCO RAVASI, Conhecer o próprio coração. Aprendei de Mim (Lisboa 2014) 35.
10 https://www.canticos.pt/no-coro-da-assembleia-penitente-csilva/
11 JACQUES PHILIPPE, A liberdade interior. A força da fé, da esperança e do amor (Apelação 2003) 43.
A grande tentação é recusar todo e qualquer sofrimento, sem ter em conta que «recusar-se a sofrer é recusar viver»12. Por muito que nos custe, o sofrimento faz parte da existência, pelo que pretender eliminá-lo intempestivamente, além de uma manifesta impossibilidade, pode arruinar a própria vida13.
Recusar o sofrimento, recalcando-o, é uma das tipologias mais invasivas dos infindáveis episódios de depressão, ansiedade e solidão. Fomo-nos tornando hiperactivos e hiperneuróticos em permanente frenesim. É um expediente para não meditarmos no sentido e na finitude da vida. Paradoxalmente, esta rejeição do sofrimento constitui uma modalidade, dificilmente suportável, de sofrer. Uma das consequências mais frequentes e perturbadoras é a solidão: não a solidão-alimento para o espírito, mas a solidão-isolamento na vida.
Esta última pode fazer adoecer e até matar. Há estudos que estimam que a solidão é tão prejudicial para a saúde como fumar catorze cigarros por dia. E análises recentes garantem que a solidão pode majorar o risco de mortalidade. A solidão arrasta consigo a doença do mesmo modo que a doença acarreta consigo a solidão.
Com efeito, está sufragada empiricamente a conexão entre a solidão e as cardiopatias, a agressividade e a própria propensão suicida. Enfim, vemonos cercados pelo medo e tolhidos pela ansiedade. O nosso coração – mais do que a terra (cf. Mt 27, 51) – treme, estremece.
A ansiedade afeta a mente e o coração de um modo pluriforme. Ela é sentida pelo corpo como tensão ou rigidez e –emocionalmente – como desconforto, perturbação, medo e exaustão. A ansiedade geralmente «vem da tensão, e a tensão
12 Ibidem 44.
13 L. cit.
é causada por dependência obsessiva de nós mesmos, dos nossos próprios expedientes, dos nossos próprios planos, da nossa própria ideia daquilo que somos capazes de fazer»14.
Cognitivamente, é frequente dificultar a clareza de pensamento, empurrando as pessoas para a catastrofização dos acontecimentos, ainda antes de os mesmos ocorrerem15. Perante este carrossel de vivências, quase todos se sentem desarmados e sobretudo desamados. E é sabido que a falta de amor é a maior de todas as doenças. Importa, por isso, ter presente que Jesus é a presencialização do Deus-Amor (cf. 1Jo 4, 8. 16). E o Deus-Amor afasta o temor (cf. 1Jo 4, 18).
A cura é, acima de tudo, um ato de amor. É o amor que cura, é o amor que reabilita, é o amor que faz recomeçar a vida (cf. Jo 11, 43). Na verdade, Jesus é o Deus próximo, o Deus compadecido, o Deus que estende a mão, o Deus que abraça, o Deus-abraço.
A Igreja incorporou – como atesta a «Regra de São Bento» – que, «antes de tudo, há que cuidar dos doentes, para que sejam servidos como se realmente fossem Cristo»16. Por consequência, «o Cristianismo é a religião do amor, sem incertezas, sem descontos, sem atenuações, dado a todos, oferecido a todos»17.
Quer, então, ser curado? Em qualquer circunstância, deixe-se contagiar pelo amor que é Jesus. Se não houver amor, não há cura. Quer ajudar a curar? Leve a todos o amor de Jesus: procure, contacte, visite, sorria, chore, abrace. Abraçar é
14 THOMAS MERTON, Nenhum homem é uma ilha (Lisboa 2023) 217.
15 Cf. JONATHAN HAIDT, A geração ansiosa. Como a grande reconfiguração da infância está a provocar uma epidemia de doença mental (Lisboa 2024) 44.
16 In TIMOTHY RADCLIFFE, A arte de viver em Deus. A imaginação cristã para elevar o real (Lisboa 2021) 77.
17 ANGELO COMASTRI, As últimas palavras de Jesus (Lisboa 2020) 91.
dizer tudo sem dizer nada. Há quem pense que «só dois silêncios se abraçam»18. Se olharmos para alguém com amor, «não precisaremos de lhe dizer nada. A pessoa sente-se amada e de nada mais precisa. Havendo amor, basta estar»19. E estar com alguém é começar a curar esse alguém!
Como têm coexistido, em mim, a confiança e o temor? Tem sido a confiança a vencer o temor ou não será o temor a reprimir a confiança? Não poderei padecer de uma hipocondria espiritual que me coíbe de ousar, sob o pretexto de me resguardar? Estarei espiritualmente saudável se apenas priorizar o meu conforto, entrando em pânico perante a eventualidade de sofrer uma enfermidade? Quero mesmo ser curado do pavor de sofrer?
18 JOSÉ MOTAREL, O poder do silêncio (Lisboa 1995) 69
19 Ibidem 32.
(Curar é salvar e salvar é curar)
É hábito ancestral o homem voltar-se para Deus na adversidade, no sofrimento, na doença, no pecado: «Tende compaixão de mim, Senhor, porque estou doente» (Sal 6, 2), «porque sou pecador» (Lc 18, 13). Em todo o Seu ministério, Jesus preocupa-Se com os pacientes de todas as enfermidades: «Queres ficar curado?» (Jo 5, 6). É assim que, em Cristo, Deus é visto a caminhar no meio do povo, tocando, acariciando, confortando e colocando sobre os mais frágeis as Suas mãos calorosas, sanantes, perdoadoras.
Não é por acaso que, na Bíblia, o verbo curar (sozô) também significa salvar. Do mesmo modo, o latim salus tanto se refere à saúde como à salvação. E a experiência confirma que, quando se veem livres de uma doença grave, as pessoas não só dizem «aquele médico curou-me», mas vão ao ponto de assegurar que «aquele médico salvou-me». De facto, curar é salvar e salvar é curar. A cura é salvação e a salvação é cura, a definitiva cura.
Não é, pois, em vão que o Evangelho coloca a cura de um leproso nos alvores da missão pública de Jesus (cf. Mc 1, 40-45). A lepra era não só uma ocorrência, mas também um estigma; dir-se-ia que funcionava como um significante com um impressivo significado. Além de uma doença, a lepra posicionava-se como um fator de exclusão. O Evangelho quer mostrar que Jesus vem para incluir os que estão excluídos, atraindo para o centro os que são atirados para as margens.
Tenhamos em conta que, naquela altura, a lepra impunha-se como uma doença incurável e, ainda por cima, contagiosa. O leproso era privado do convívio com as outras pessoas sendo remetido para um lugar isolado. Tinha de usar «vestuário andrajoso» e «cabelo desalinhado». Era obrigado a gritar: «Impuro, impuro». Era como impuro que costumava ser visto pelos outros (cf. Lev 13, 44-46).
Se um leproso viesse ao encontro das outras pessoas, teria de tocar um sino, para se fazer anunciar e, assim, manter as distâncias. Podemos dizer que se tratava de uma espécie de morte antes da morte. No caso – muitíssimo raro – de um leproso se curar, teria de ir ao Templo de Jerusalém para se mostrar ao sacerdote, que o examinava e lhe permitia voltar a conviver com qualquer pessoa (cf. Mc 1, 44).
Ao curar o leproso, Jesus sinaliza que está no mundo para nos curar da grande lepra que é o pecado. A cura está, portanto, à nossa disposição. Mas é fundamental reconhecer que estamos doentes. Tal como sucede com a lepra, também o pecado pode criar em nós alguma insensibilidade. A zona do corpo atingida pela lepra vai caindo aos bocados, tornando-se entorpecida. Também nós vamos decaindo no pecado e, a certa altura, pode acontecer que já nem nos apercebamos do pecado.
O leproso venceu as trincheiras do estigma e as barreiras da multidão. Ele tinha a certeza de que Jesus era o Emanuel, o Deus-connosco, o Deus em nós. Percebeu – como nós devíamos perceber – que só em Jesus encontramos a cura e, portanto, a salvação. Acontece que nem sempre o pecador –isto é, cada um de nós – admite a sua doença (o seu pecado) e a consequente necessidade de cura. Também o pecado nos torna dormentes, entediantes, fazendo-nos estatelar na devassidão e –supremo desaforo – indeferindo clamar por uma mão estendida que nos levante.
«Não tenho pecados». Eis o que o se vai repetindo, a plenos pulmões, numa exibição despudorada de autodesconhecimento. Em assomos de megalomania insana, há quem não se coíba de chamar bem ao mal e mal ao bem (cf. Jer 5, 20). Sucede que, «se dissermos que não pecamos – adverte São João – enganamo-nos a nós mesmos e não há verdade em nós» (1Jo 1, 8). O pecado é o pior equívoco em que se cai e o maior erro que se comete. Aliás, a palavra bíblica que se traduz por pecado (harmartía) indica precisamente «erro».
E que maior erro haverá do que menosprezar o amor de Deus para connosco, chegando a responder-Lhe com a displicente petulância do desamor? Quem nunca incorreu neste erro sinistro? Na Sua missão curativa, Jesus cura-nos essencialmente do pecado (cf. Mc 2, 5; Ef 1, 7). Por isso, «morreu por nós» (Rom 5, 8): «morreu pelos nossos pecados» (1Cor 15, 3).
Supliquemos a Deus que nos cure desta doença, que nos cure do pecado. Ou nem sequer meditamos no que os lábios balbuciam: «Não nos deixeis cair na tentação» (Mt 6, 13; Lc 11, 4)?
Será que queremos mesmo resistir à tentação? Que pensar de um doente que não quer ser curado?
Jesus compara Deus ao pai que está pronto a curar (pelo abraço do perdão) o filho que dele se tinha afastado (cf. Lc 15, 11-24). As portas da Casa do Pai nunca se fecharam; mantiveramse abertas. «A Casa de Deus – ficciona Valter Hugo Mãe – tem a chave do lado de fora […], em troca da oportunidade de […] um filho voltar, tomar a chave e entrar»20 .
Deus é assim: perde-Se de amor pelos Seus filhos perdidos. Reveste, com «a túnica mais bela», os filhos que voltam (cf. Lc 15, 22). Assegura que nem os que se perderam, perderam a condição de filhos (cf. Lc 15, 32). Ele não guarda rancor e não comina mais as nossas faltas (cf. Jer 31, 34).
«Deus cura as nossas enfermidades» (Sal 103, 3). Em Deus, a medicação supera sempre a doença. Se a doença é grande, a cura é maior. Se a doença é enorme, a cura é ilimitada e gratuita. Chama-se salvação.
Ponto de interrogação
Quem não está saturado de sofrer (cf. Sal 88, 4)? Vou ao encontro de Jesus quando alguma doença me sobrevém, tendo consciência de que Ele já veio à minha procura? Peço-lhe que me cure da doença aceitando que Ele cure também a minha vida, que porventura ainda estará mais enferma pelo pecado? Deixo-me curar no tempo e no modo de Jesus ou exijo que tudo se realize segundo as minhas determinações? A minha relação com Jesus nos momentos adversos é de confiança ou de ansiedade? Afinal, quero mesmo ser curado?
20 VALTER HUGO MÃE, Deus na escuridão (Porto 2024) 132.
(Jesus toca nas pessoas e deixa-Se tocar pelas pessoas)
Perante os enfermos, muitos dos quais eram proscritos, Jesus faz algo de perigoso e até proibido (cf. Nm 19, 22): toca neles. Nunca é demais recordar que Jesus curava tocando nas pessoas e deixando-Se tocar pelas pessoas (cf. Lc 6, 19). Em Jesus, Deus não age à distância, com frieza. Ele supera a estranheza ontológica, que nos distancia de Deus, através de uma entranheza pessoal, que nos amarra definitivamente a Deus.
Ele é luz para o nosso olhar e limpidez para o nosso coração. Jesus quer-nos limpar. Como ao leproso, também a cada um de nós Ele diz: «Quero, fica limpo!» (Mc 1,41). Depois de limpos, já não precisamos de gritar, como os leprosos, que estamos impuros. Agora, o grito é outro. Já não gritamos para denunciar a impureza, mas para anunciar a beleza: a beleza da Boa Nova de Jesus.
O que era leproso – desobedecendo à ordem de Jesus (cf. Mc 1, 44) – começou a anunciar a boa nova da cura da sua
lepra (cf. Mc 1, 45). Nós somos chamados a anunciar a boa nova da cura de todas as lepras. Evangelizar é gritar que estamos curados, que estamos limpos, que estamos salvos. Jesus é a Cura e o Curador, o Médico e o Medicamento, o Salvador e a Salvação.
As Suas curas são o primeiro sinal da vinda do Reino de Deus. A doença e a deficiência não eram somente problemas físicos. Eram um sinal de que o Reino ainda não chegara. Jesus cura, de forma criativa, o Adão inacabado que é cada um de nós. Destarte, não espanta que, em conformidade com o Mestre, a prioridade dos discípulos seja cuidar dos enfermos.
Os próprios habitantes de Roma surpreendiam-se com o facto de os cristãos cuidarem dos doentes que não eram cristãos. Alguns chegavam mesmo a morrer no exercício desta missão de cuidadores. Numa calamidade que irrompeu em 260, quando um terço da população morreu, os cristãos mereceram o maior apreço pela sua dedicação heroica.
Ao cuidarem dos doentes, «com eles partiram felizes e tranquilamente desta vida; foram infetados por outras pessoas com a doença. Muitos, ao tratarem dos outros, tomaram aquela morte sobre si mesmos e morreram na sua vez. Vários presbíteros, diáconos, leigos e mulheres mereceram assim os maiores louvores, porque uma tal morte se assemelha, em todos os sentidos, ao martírio»21.
Daí que os hospitais tenham sido uma criação cristã: os primeiros terão sido erigidos por São Sansão em Constantinopla, por São Basílio em Cesareia, e por Santa Fabíola, em Roma. Como se sabe, a palavra «hospital» deriva de hospes, que tanto pode significar «hóspede» como «hospedeiro». Ou seja, as pes-
21 CARTA DE DIONÍSIO, in TIMOTHY RADCLIFFE, A arte de viver em Deus 76.
soas eram acolhidas não como pacientes ou utentes, mas como hóspedes e até como representantes de Cristo22.
Deixo-me tocar por Jesus quando estou doente? E como intervenho com os doentes? Procuro cristificar as minhas atitudes junto deles, sendo afetuoso com eles, rezando por eles?
Ou entro em autojustificações do género tenho a minha vida, como se a vida dos outros não me dissesse respeito? Quero mesmo ser curado da frieza?
22 Cf. TIMOTHY RADCLIFFE, A arte de viver em Deus 76.
(Como reaprender a ser lento?)
O mundo em que vivemos é, consabidamente, «o mundo da velocidade, da rapidez, do pouco tempo, das muitas coisas que temos de fazer, dos muitos compromissos que pesam sobre nós»23. A pressa tornou-se o nosso modo habitual de passar – ou correr? – pela vida. É insofismável que «vivemos numa época marcada pela aceleração e automatização do tempo, de modo que é cada vez mais grave o modo patológico de viver a relação com o tempo»24.
Já não sabemos parar nem pausar; andamos continuamente apressados. Se repararmos, hoje quase não se passeia vagarosamente. «Todos caminham a passos largos, plenos de energia»25. Mas, no fundo, a pressa sinaliza que andamos a fugir de nós próprios, sem procurar saber para quem vamos. Aprofundando
23 ALFONSO MILAGRO, Dia a Dia com Deus (Apelação 2017, 2ª edição).
24 ENZO BIANCHI, Aos presbíteros (Salamanca 2005) 17.
25 SUSAN CAIN, Silêncio. O poder dos introvertidos num mundo que não pára de falar (Lisboa 2022, 2ª edição) 68.
a situação em que nos encontramos, a pressa pode denunciar um mal-estar não só em nós mesmos, mas connosco mesmos.
Resultado? Até o tempo de oração é valorizado quando é acelerado, permitindo depreender que a sua qualidade estriba na sua brevidade. Quando iniciamos uma oração, instintivamente pensamos menos no seu conteúdo e mais na sua duração, sobretudo no seu termo. É a pressa que nos leva a não rezar; é a pressa que nos leva a rezar pouco e mal.
Também os cristãos incorporam que a pressa é uma vantagem quando, afinal, é uma doença cuja cura se encontra precisamente na oração. Quanto mais ação, tanto maior a necessidade de oração. Assim recomendava São Francisco de Sales: «Reserva meia hora por dia para rezar, a não ser que tenhas muito que fazer; nesse caso, reserva uma hora inteira»26.
Um dia foram consultar um célebre mestre espiritual acerca de uma decisão importante. Ele atendeu-os, mas nada disse e foi orar o mais possível. Acontece que o tempo foi passando –uma hora após outra, um dia após outro – sem qualquer sinal de resposta. Então, os visitantes, já impacientes, acercaram-se do mestre: «Dá-nos uma resposta, pois já não podemos esperar mais». Eis a resposta: «Que quereis que vos diga? Há cinco dias que eu ponho a questão ao Senhor e à Sua Santíssima Mãe e Eles ainda não me responderam»27.
De São Tomás de Aquino conta-se que, quando não conseguia resolver uma questão teológica depois de longas e aturadas maratonas de estudo, recorria a um procedimento que alguns apodarão de extravagante, mas que revelava uma profunda
26 In GEORGE AUGUSTIN, Deus no centro da vida. Uma conversa sobre o futuro da Fé e da Igreja (Lisboa 2025) 92.
27 JEAN LAFRANCE, Rezar com o coração. Sentenças sobre a oração (Lisboa 1992) 149.
coerência. Metia a cabeça dentro do Sacrário e pedia ao Senhor que se fizesse luz28. Não é Ele a Luz do mundo (cf. Jo 8, 12)?
O que esperamos nem sempre é concedido quando queremos, mas quando Deus delibera. O importante é que tudo aconteça não no nosso chronos, mas no kairós divino. A pressa pode distanciar-nos do fundamental, do mais necessário e do mais belo.
Como exorta o Papa Francisco, «são necessários alguns tempos dedicados só a Deus, na solidão com Ele»29. Jesus rezava longa e lentamente, passando dilatados tempos em meditação (cf. Lc 6, 12), sem pressas. Por isso, Ele também cura quando reza e nos ensina a rezar (cf. Lc 11, 2-4).
Os discípulos não O interrompem enquanto reza. Reprimem a pressa; são envolvidos pela cadência da oração do Mestre. Só quando Jesus termina é que um deles Lhe faz o pedido (cf. Lc 6, 1). É como quem diz: «Nós também queremos rezar assim!» E, sem qualquer hesitação, Jesus começa por lhes ensinar a dizer: «Pai!»30.
No fundo, nós só rezamos porque Jesus reza, porque Deus também reza. «A nossa oração enlaça na oração de Deus»31. Surpreendente, não? E a quem e onde é que Deus reza? Deus reza a Si mesmo, no oratório do Seu coração32. Estacionemos no Livro do Êxodo: «O Senhor passou diante de Moisés, e proclamou e invocou: “O Senhor, o Senhor, Deus de misericórdia e de graça» (Ex 34, 6). Ou seja, Deus invoca-Se a Si mesmo.
28 LUIZ FERNANDO CINTRA, Como orar? (São Paulo 1996) 41.
29 PAPA FRANCISCO, Gaudete et Exsultate n. 149.
30 Cf. D. ANTÓNIO COUTO, Meditação na Oração de Vésperas do dia 14 de Outubro de 2024 2.
31 L. cit.
32 Ibidem 1.
E, reforçando a afirmação de que Deus reza, basta atender a esta passagem: «Conduzi-los-ei sobre a Minha Montanha Santa e alegrá-los-ei na Casa da Minha Oração» (Is 56, 7). Os rabinos, com a sua meticulosidade, notam que, na passagem de Isaías não está escrito «a casa de oração deles», mas a «casa da Minha Oração»33.
Deus, em Si mesmo, é um oratório, rezando sem parar. Não espanta, pois, que São Paulo nos exorte a «orar sem cessar» (1Ts 5, 17). Além de rezar a Deus, disponhamo-nos a rezar em Deus. «Deus funciona como um estabilizador do tempo: assegura que o presente seja duradouro, eterno»34. Pelo contrário, a pressa impede-nos de hospedar Aquele que bate à porta da nossa vida (cf. Ap 3, 20) e faz arder o coração com a Sua presença (cf. Lc 24, 32). Quem se disponibiliza a parar – e a re-parar – antes de, pela vida, peregrinar?
Num tempo em que valorizamos as pessoas pelas atividades que executam e pelos resultados que produzem, não temos a menor predisposição para apreciar a espera, a escuta e o acolhimento. Para nosso pesar, até a oração, além de ter hora variável para começar, parece ter hora inflexível para terminar. Somos mais pontuais no seu fim do que no seu início.
Deste modo, passamos o tempo a criar o chamado «plexiglas» – isto é, barreiras – entre nós e Deus35. Na pressa, não há condições para abrigar Aquele que está no «murmúrio da brisa suave» (cf. 1Rs 19, 12), ou seja, na voz que ecoa dentro de nós. Uma oração apressada assemelha-se mais a uma fuga de Deus e a uma deserção de nós mesmos. Tal como somos, assim reza-
33 Cf. l. cit.
34 BYUNG-CHUL HAN, O aroma do tempo. Um ensaio filosófico sobre a arte da demora (Lisboa 2016) 16.
35 JOAN CHITTISTER, O sopro da vida interior 42.
mos. Sendo apressados, propendemos a rezar apressadamente. Chegaremos a rezar?36
Ponto de interrogação
Que relação estabeleço com o tempo? Procuro ter tempo ou é o tempo que me tem, lastimando constantemente que não tenho tempo? Acelero na condução automóvel, arriscando a minha integridade e fazendo perigar a segurança dos outros? Já me apercebi da incongruência entre o andar cada vez mais depressa e o chegar cada vez mais atrasado? Falo devagar e baixo? Deixo falar os outros? Quando escolho uma celebração, opto pela que termina mais rapidamente? Quero mesmo ser curado da pressa?
36 THOMAS MERTON, Nenhum homem é uma ilha 58.
9 - A cura da ansiedade (Não apressemos o dia mais importante: hoje) ............................... 53
10 - A cura da desorganização (O melhor é só fazer uma coisa depois de outra) ............................ 57
11 - A cura da obsessão de estar sempre em ação («Ninguém consegue viver feliz sem a capacidade de descansar») .. 61
12 - A cura do ruído (É o ruído – e não o silêncio – que nos impede de comunicar) ........ 65
13 - A cura do excesso de palavras (A escuta faz entrar o outro em nós: faz entrar Deus e faz entrar os irmãos) ........................................... 69
14 - A cura do egocentrismo (No fundo, todos somos pobres que não podem mais e que clamam por Deus) ................................ 73
15 - A cura da insegurança (Onde cresce a oração, cresce a clarividência) ................................ 77
16 - A cura do autodeslumbramento (A oração faz o homem descobrir que o seu centro não está em si) ..................................................... 81
17 - A cura das feridas e das mágoas (Mesmo sofridas, as pessoas que rezam não são órfãs de paz) ........ 85
18 - A cura da dispersão (Um contemplativo é alguém que acolhe o trabalho de Deus nele)................................................................. 89
19 - A cura da incapacidade de rezar [«Quando rezardes, dizei: “Pai”» (Lc 11, 2)] ................................. 93
20 - A cura das motivações que ensombram a oração (Rezemos, mas não por interesse nem com ressentimentos) ............ 97
Segundo momento
1 - A cura até ao impossível (A cura da doença da pessoa e a cura da pessoa com doença que não tem cura) .....................................
2 - A cura pela aceitação da adversidade (Uma existência sofrida não é necessariamente uma existência falida)...................................................................
3 - A cura pelo reconhecimento de que nem tudo tem explicação (O que nos acalma não são as respostas, mas a confiança) ...........
4 - A cura no encontro com Jesus (Nada como plagiar a vida de Cristo)........................................... 121
5 - A cura pela Bíblia (Uma autêntica – e surpreendente – farmácia espiritual) ...............
6 - A cura pela escuta (Nem sempre o mais importante é a língua) .................................
7 - A cura pelo silêncio (Nem sempre as palavras comunicam; nem sempre o silêncio isola) .........................................................
8 - A cura pela paz (Se o coração serenar, a vida começará a melhorar) ...................... 147
9 - A cura pela oração (Uma via sem igual para o apaziguamento total) .......................... 153
10 - A cura pela verdade (Verdadeiro não é ser como somos; verdadeiro é ser como Cristo é) .................................................... 161
11 - A cura pela humildade (A ambição desmedida desassossega a nossa vida) ....................... 167
12 - A cura pela saída do eu (Muita atenção de nós, nenhuma atenção sobre nós) ................... 175
13 - A cura pela pessoa
(O melhor presente é o presente da presença) ............................... 181
14 - A cura pelo «e» (Temos de aprender a conjugar-nos uns aos outros) ..................... 187
15 - A cura pelo amor (Os fármacos podem curar a doença, mas só o amor cura o doente) ...................................................... 193
16 - A cura pela bondade [(Apenas Deus nos cura do mal porque «só Ele é bom» (Lc 18, 19)] ............................................. 201
17 - A cura pelo perdão (Deus está disponível para o reencontro após os nossos desencontros) ....................................................... 207
18 - A cura pelo Pão (A Eucaristia faz-nos crescer em espiritualidade e em solidariedade)....................................................................... 213
19 - A cura pela esperança
(Não se trata de um analgésico, mas de um despertador) ............. 219
20 - A cura pela Mãe (É por Maria – reparemos bem – que a cura divina nos vem) ....... 227
Uma proposta irrecussável Instale o aplicativo espiritual .................................................................. 235