Aprendizagens de um professor cristão

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Sobre o autor:

APRENDIZAGENS

DE UM

PROFESSOR

Cristão

Cristão

Francesc Guillem Chilet é casado. É professor de História na escola diocesana “María Inmaculada”, em Alfafar (Valência). Durante nove anos tomou notas sobre o que se passava nas suas aulas. É destas notas que resulta o livro “Aprendizagens de um professor cristão”.

APRENDIZAGENS DE UM PROFESSOR

Ao longo de nove anos, um professor de uma escola católica, escreveu o que aprendia diariamente com os seus alunos. Registou essas aprendizagens em folhas de papel reciclado, dobradas a meio. É desses apontamentos que nasce este livro. São uma belíssima leitura cristã da vocação do professor. Para leccionar, não basta ter um diploma. Mais do que transmitir conhecimentos académicos, o professor de uma escola católica é um educador que vive a sua fé através do ensino. Aprendizagens de um professor é para os educadores que procuram fazer dos seus alunos a melhor versão de si mesmos, levando-os a descobrir o amor de Deus e o propósito da sua vida.

Francesc Guillem Chilet

Aprendiza de um gens professor cristão

Francesc Guillem Chilet

Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto Tel.: 225 365 750 editora@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt

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Francesc Guillem Chilet

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APRESENTAÇÃO Este livro foi escrito em vinte e seis dias ou ao longo de uma década, conforme se perspetive. Em 2010, quando entrei como professor no colégio Maria Imaculada de Alfafar (Valência), uma das minhas colegas (Fina Cirujeda, hoje reformada) tinha um bloco de apontamentos em que ia anotando todos os momentos engraçados que vivia com os seus alunos. Conforme me contou, essa iniciativa já tinha começado há décadas. Como professor de História, achei interessante e apropriado fazer algo parecido, mas com factos que me suscitassem particular atenção. Pormenores que não gostaria de esquecer, por serem aprendizagens e vivências com certa importância ou d ­ ignas de serem retidas. E foi assim que tudo começou, não com um bloco de apontamentos, mas com folhas de papel reciclado dobradas a meio (porque ia tomando nota à medida que se davam os factos). Depois de um acontecimento, aproveitava a mudança de aula para pegar na esferográfica e papel e anotava-o de imediato. Quando chegava a casa, colocava a folha dentro de uma pasta, que funcionava como um baú de recordações… Nem sequer ordenava os papéis, embora escrevesse sempre as datas. Para mim, era um mero lugar de vivências. Nunca pensei, ao fim de nove anos, que todo esse material poderia ser útil a mim e a outros professores, pais ou aspirantes ao mundo da docência. Abri a pasta e ao revê-la pela primeira vez desde que existia, persuadi-me de que havia matéria suficiente para uma publicação. Depois disso, quase tudo o que se seguiu foi fácil. Nem sequer tinha de escrever o conteúdo do livro (que já estava nas dezenas de notas da minha pasta); bastava reler os apontamentos para refrescar a memória, dar-lhes forma e estruturá-los. Durante a revisão do material recolhido, apercebi-me da quantidade de vivências que, mesmo sendo relevantes, tinham 3

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c­ aído no esquecimento. Não exagero ao dizer que “resgatei” do esquecimento mais de metade das experiências que aparecem no livro. Agradecia constantemente o ter superado o incómodo de ter plasmado as impressões de tantos acontecimentos vividos. Isto também me serviu para reafirmar o valor daquilo que tantos docentes dizemos aos nossos alunos: as vantagens da persistência e do trabalho diário. Por isso, o livro foi escrito aos poucos, sem me dar conta e ao longo de anos, embora só precisasse de vinte e seis dias exatos para nascer. Curiosamente, uma das dificuldades mais sérias por que passei foi a de dar título ao livro. Deveria ser a primeira coisa a ter claro, mas foi, pelo contrário, a última a aparecer. Desde o início pensei em dar-lhe o título de Aprendizagens de um professor diocesano, para sublinhar a minha identidade enquanto professor de um centro educativo ­ pertencente à diocese de Valência. Depois, Carmina Guerola, a diretora da minha escola, aconselhou-me a mudar o título para alargar o seu horizonte e intitulá-lo Aprendizagens de um professor cristão. Era certamente um título mais apropriado, mas também um título que me incomodava, por causa do “cristão”, que muitas vezes não concordava com a minha vida. Não obstante, vinham ­acalmar-me as palavras de S. Paulo: Levamos este tesouro em vasos de barro, para que ganhe força o vir de Deus e não de nós1. Mas não duvidava em incluir no título o termo “aprendizagens”, pois foi muito o aprendido graças ao estudo e à ­análise, mas, sobretudo, a própria experiência oferecida pelo contacto diário com os meus alunos. Quanto à estrutura, pensei construir o livro a partir de breves capítulos a modo de aprendizagens, para tornar a leitura mais agradável. Finalmente, saíram vinte e cinco capítulos,

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2 Cor 4, 7

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onde procurei mostrar de forma variada aprendizagens recebidas dos meus alunos ao longo destes dez anos. Para preservar a intimidade dos meus alunos, não vão aparecer os nomes dos verdadeiros protagonistas de cada c­ apítulo. Contudo, recordo perfeitamente os nomes e os rostos de todos e cada um deles. Todos recordamos nomes e caras que em dado momento da nossa vida nos aportaram muito e isso não pode nem deve ser esquecido. Dizem que a cara é o espelho da alma, mas nem sempre é assim. Por vezes, rostos frios escondiam corações fervorosos. Talvez, como referia Abraham Lincoln, quando se ultrapassam os ­quarenta, cada um torna-se responsável pela cara que tem, mas não antes. De qualquer modo, muito mais interessante que a formusura de um rosto, é a beleza da alma e, felizmente, vi muita divindade nas minhas aulas. Espero ter refletido parte dessa beleza nos relatos deste livro. Agora, com o livro recém-terminado, apresentam-se diante de mim três elementos: alegria, esperança e bênção. Em primeiro lugar, a alegria por ter partilhado milhares de horas da minha aprendizagem com os meus alunos. Não podeis imaginar como fui feliz ao seu lado. Sinto-me um privilegiado, porque mais do que ensinar-me a ser professor, ensinastes-me a ser pessoa. Em segundo lugar, a esperança de que alguma frase deste livro possa servir de ajuda a alguém, especialmente no seu labor educativo. Também a esperança de saber que, se Deus quiser, continuarei a aprender muito destes ­maravilhosos jovens cheios de potencial. E, finalmente, em terceiro lugar, apresenta-se-me, perante mim, a bênção, porque, ao recordar todas estas vivências, vejo que Deus foi misericordioso e fiel, não só para comigo como também para com as centenas de alunos com quem partilhei uma parte importante da minha vida. Valência, dia de Santa Ana

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CAPÍTULO 1

A MINHA PRIMEIRA LIÇÃO “As primeiras horas num colégio são inesquecíveis”. C. S. LEWIS, Cativado pela alegria Edições Encontro, Madrid, 2008, pg. 75.

A minha primeira lição não foi, de forma alguma, a primeira aula que dei. De facto, aconteceu umas cinco ou seis semanas depois de ter começado a docência. Ah, e certamente, não fui eu a dá-la, foi um aluno de catorze anos cujo nome, apelido e rosto (da mesma forma que todos os exemplos que aqui vão aparecer ao longo do livro) recordo perfeitamente. Desde o dia em que comecei e durante várias semanas, cometi um grave erro de principiante: fixar-me apenas nos aspetos académicos. Lembro-me de que até esse momento, o aluno em causa já tirara negativa em dois testes, falhado na entrega de deveres em várias ocasiões e perdido várias décimas por comportamentos incorretos na sala de aula. Pois bem, ao terminar uma das aulas, pedi-lhe para esperar por mim para falarmos. Na noite anterior eu tinha preparado um sermão bem arrazoado, com a intenção de o chamar à pedra. Quando todos os seus colegas já se tinham ido embora, aproximei-me 11

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dele, d ­ isse-lhe que estava muito desiludido com ele e comecei a inventariar-lhe as suas más notas nos testes realizados, os dias em que não apresentara os trabalhos marcados, as vezes que o tinha chamado a atenção na sala por estar a perturbar... Depois de uns minutos de monólogo, perguntei-lhe se tinha alguma coisa a dizer-me. Vi que começava a ter os olhos húmidos e quando, por fim, falou, foi para me dizer simplesmente: “E o senhor, que sabe dos meus sofrimentos?” Então, já em lágrimas, deu meia volta e saiu da sala a correr. Fiquei completamente só, a olhar para o chão com cara de parvo. Foi essa a minha primeira lição, que nunca mais vou esquecer: não se pode educar a quem não se conhece. A partir de então, interessei-me particularmente por este rapaz. Perguntava-lhe como é que iam as coisas lá por casa, como se sentia, quais eram as suas aspirações, os seus medos. Foi-se abrindo a pouco e pouco e mostrando um universo enorme que ninguém podia imaginar. Como podia ir bem nos estudos com tudo o que se passava na sua vida nessa altura? Os estudos eram, para ele, um problema secundário, quando para mim eram não só o fundamental, mas o único. Se eu perguntasse a qualquer um dos meus alunos de Geografia, qual era a parte mais importante do planeta Terra, ­talvez me respondesse que era o seu interior, e certamente teria falado do núcleo onde residem as altas pressões e o calor. Se não fosse o núcleo, não se geraria a corrente magnética ­terrestre, essencial para que o planeta seja habitado. Com certeza, a superfície terrestre (chamada crosta terrestre) é a parte mais vistosa, mas seria um erro tomá-la como a parte mais importante. Com efeito, se o planeta Terra fosse um ovo, a superfície terrestre seria mais fina que a sua casca. Imaginem esta insensatez… andar por essa finíssima casca com ares de grandeza… O mesmo sucede connosco fixamo-nos na epi12

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derme, sem ter em conta os processos que ocorrem no interior, aqueles que permitem e configuram a vida. Somos capazes de mudar de estrada se vemos que se aproxima alguém andrajoso, ao mesmo tempo que nos deixamos deslumbrar quando nos apresentam alguém com boa aparência. Ouvi uma vez num congresso Enhamed Enhamed (nadador paraolímpico com um grande palmarés internacional) dizer que a sua cegueira nem sempre era uma deficiência. Referia-se a que nós, quando falamos com alguém, deixamo-nos condicionar pela sua aparência, enquanto que ele, por ser cego, só se podia fixar no interior; por isso os ­deficientes éramos nós. Que acham? Se um cego vê mais que nós, é porque estamos muito cegos. E podemos ser professores cegos que não veem para lá dos resultados e das notas. Deveríamos olhar para os alunos como se fossem ovos Kinder, quer dizer, deliciosos, delicados e, além disso, com um brinde no seu interior7. Se dermos um desses ovos a um pequeno, de certeza que a primeira coisa que faz é partir a casca para ­descobrir o que há no seu interior. É verdade que o próprio sistema educativo nos obriga a reduzir tudo a uma cifra numérica, mas isso não justifica que caiamos nesse erro. Eu caí, mas este aluno deu-me uma lição tão séria que, passada uma década, continuo a tê-la presente. Cometer um erro de principiante quando se é principiante, é embaraçoso, mas compreende-se; ridículo seria cometer um erro de principiante quando já se tem vários anos de e­ xperiência. Dizia Sto. Agostinho: “errar é humano, perseverar no erro é ­diabólico”. Para terminar, informo-vos que este aluno, graças a Deus, com o tempo, pôde acabar os estudos e conseguir um emprego naquilo que gostava e, além disso, ajuda muitas pessoas diariamente. À sua vida atual não faltam sofrimentos, mas é um rapaz completamente autónomo. Dizem os seus colegas que mudou 7

De facto, a palavra alemã Kinder, significa “meninos”. 13

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tanto que parece outra pessoa. E assim é, porque as pessoas mudam (ao contrário do que pensam e comentam muitos pais). Sinto grande orgulhoso nele. Aprendeu a voar mesmo carregando pesados lastros.

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CAPÍTULO 2

ATENÇÃO! VÃO CHAMAR POR TI “Mas, como vamos escolher, se primeiro não somos escolhidos?”. Sto. AGOSTINHO, bispo, Sermão 34.

Podes evitar que alguém chame por ti, na rua? Pois é mesmo isso que se dá com a vocação. A etimologia é ­sintomática: do Latim vocatio; ação de chamar. Não se pode ­evitar que alguém chame por ti, mas podes decidir o que fazes com esse ­chamamento. Se alguém chamar por ti, podes voltar-te e ­ouvi-lo, ou podes fingir que não ouves e continuar o teu c­ aminho. S. Paulo, na sua Carta aos Efésios diz uma coisa m ­ aravilhosa: que Deus nos escolheu antes da criação do mundo8. Quando alguém te encarrega seja do que for, é porque te acha capaz de fazer tal coisa, acredita nas tuas possibilidades. À minha filha Blanca (cinco anos), poderei pedir-lhe que deixe o seu pijama no cabide, mas não a posso mandar preencher o meu IRS familiar. Para isso, tenho o meu irmão Juan, que é advogado e está habilitado a fazê-lo. Digo isto porque é maravilhoso que alguém tenha confiado em ti antes de teres nascido, antes de teres alcan8

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çado qualquer mérito. Quem é que confiou assim em ti? Deus nunca te pediu o currículo, nem habilitações, nem línguas, nem sequer o parecer ou experiência. Mas pensou em ti e não para um trabalho, mas para uma missão. Porque uma m ­ issão é mais do que um trabalho. Pensem na missão Apolo XI. O seu objetivo era conseguir que o homem caminhasse pela superfície da Lua e não descansaram enquanto o não conseguiram. Numa missão, os horários de trabalho, por exemplo, passam para um nível inferior e a importância centra-se no objetivo marcado. Uma missão termina quando se alcança o objetivo, enquanto que num trabalho não se dá isso, necessariamente. Já ouvistes a expressão missão cumprida? Um momento-chave na vida é o de descobrir qual é a vocação de cada um. Ouvi certa vez um religioso, padre escolápio, João de Deus Tagne, dizer que o ser humano tem dois nascimentos: o do dia em que chega a este mundo e aquele em que descobre para que veio. O padre Pio via com clareza a razão pela qual viemos ao mundo e resumia-a de forma magnífica: a vida atual foi-nos dada para conquistar a eterna. Talvez já conheças a tua vocação, mas de certeza que não é o que sucede com os teus alunos9. Dizia S. José de Calasanz que o mais importante para um jovem era descobrir a sua vocação. Sendo algo transcendental, devemos saber como podemos ajudá-los a descobri-la. Existem uns “parâmetros” que nos podem orientar: • Conhecer os dons com que Deus o dotou. E isto não é fácil. Se pedires a um jovem que te diga três coisas de que não gosta na vida, o mais certo é que responda: “só quer que diga três?” Mas se lhe pedires três De facto, a vocação de educador qualquer pessoa deste mundo a tem, porque, ao fim e ao cabo, todos somos chamados a educar de alguma forma (no seio de uma família, por exemplo). 9

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coisas que gostaria que lhe sucedessem, é muito provável que não saiba responder. Experimentei isso, muitas vezes, ao longo dos anos, e é surpreendente (para não dizer até cómico) ver como os jovens começam a perguntar-se entre si: “Olha, poderias dizer-me o que me assentaria bem na vida?” Conhece-te a ti mesmo10. Porque os dons que Deus nos dá são dádivas que têm por fim tornar-nos felizes11. Quando uma pessoa faz uma oferta a outra é porque pensa que a vai ajudar a ser feliz ou lhe vai satisfazer uma necessidade. Imaginem que grande desprezo seria entregar um presente e esse sujeito a nunca o abrir. Ou se o abrisse, não o utilizasse nunca. É o que sucede, por vezes, com os dons que temos. É necessário que o docente conheça os dons, ou como se diz na parábola, talentos, que Deus lhe deu. É o ponto de partida para encarar a vocação. Se reparardes no elenco inicial dos filmes Disney dos anos cinquenta, aparece o seguinte título: With the talents of, e a seguir, os nomes daqueles que tornaram possível a longa metragem. Literalmente traduz-se: “Com os talentos de…”, possivelmente o termo mais apropriado12. • Conhecer o que o mundo necessita. Dizia S. Francisco de Sales que a vocação de Jesus Cristo era a de salvar, e tinha razão, porque todos precisamos salvar-nos. Além disso, os talentos com que Deus nos agraciou são para produzirmos muitos outros, como se diz na parábola. Este é um bom negócio; de facto, a palavra talento vem do latim talentum e do grego tálanton e fazia referência ao prato da balança que fixava o valor das mercadorias. 10 11

Aforismo grego inscrito no frontão do templo de Apolo em Delfos. A palavra “dom” vem do latim donum: oferta.

12 Este pormenor pode encontrar-se em filmes como, p.ex, Alice no país das maravilhas (1952).

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Era também uma unidade monetária, já se sabe, de altíssimo valor, pois equivalia a vinte quilos de prata, aproximadamente. Na aula de História, e­xplico-lhes sempre que todas as civilizações procuravam entrar em contacto com outros povos, para, dessa maneira, poderem comerciar produtos. Isto, por sua vez, facilitava a expansão técnica e cultural de que todos saíam beneficiados. Porque Deus concebeu o homem para a relação: Não é bom que o homem esteja só13. Recordo que uma aluna, ao dizer-lhe isto, perguntou-me: “Então, porque é que as monjas de clausura não se relacionam com ninguém?” Respondi-lhe que elas não se isolam do mundo; vivem dessa maneira para poder ter uma maior intimidade com Deus. Essas pessoas, nunca estão sós. Passam o dia em relação com Deus e, portanto, unidas ao resto da humanidade, por quem rezam continuamente. • Conhecer o que amam. Quando alguém faz o que Deus pensou que devia fazer antes ainda da criação do mundo, isso torna-o feliz, e todos desejamos a felicidade. Ocupar o lugar para que foste pensado é o que te realiza como pessoa. E isso não tem nada a ver com ocupar um posto de prestígio, apetecido, bem remunerado, nem coisas parecidas. Trata-se de ocupar o teu lugar, seja ele qual for, porque se for o que Deus pensou, será o teu lugar ideal (quer dizer, o que esteve na “sua ideia”). E o contrário acontece quando ocupas um lugar que não te corresponde: sentes-te deslocado, fora de lugar. É uma sensação muito desagradável e que todos já experimentámos em algum momento da vida. Às vezes, nós, pais, intrometemo-nos para que os nossos filhos sejam o que a nós agradaria que fossem; ou pior 13

Gén 2, 18.

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ainda: que sejam o que nós não fomos capazes de ser14. E como diz a canção Esos locos bajitos de Joan Manuel Serrat, os nossos filhos carregam com os nossos deuses e frustrações […] empenhamo-nos em orientar as suas vidas sem saber do ofício e sem vocação. • Tempo de prova. Não chega saber o que é do seu agrado, mas pô-lo à prova. Quando eu estudava na Faculdade conheci vários colegas que, depois de terminar o curso e entrar no mundo do trabalho, descobriram que, afinal, não gostavam do seu trabalho, que se tinham enganado na profissão escolhida. Nunca é tarde, mas também é certo que o tempo passado, já não se recupera. Pessoalmente, quando vejo algum aluno que parece ter vocação para a docência, o primeiro que faço é propor-lhes vir à escola numa das suas tardes livres e entrar numa sala da Infantil ou do 1º Ciclo para que possa pôr à prova os seus talentos. Houve um ano em que quatro alunos pareciam interessar-se por estudar História. Que fiz? Simplesmente levei-os uma tarde à Faculdade de Geografia e História. Puderam entrar lá como ouvintes numa aula, falar com os professores, ver como trabalhavam os estudantes, conhecer a biblioteca, os gabinetes, a secretaria… até o bar. Ao terminar o dia, uma aluna dizia-me: estou a ver-me aqui, dentro de alguns anos. Pelo contrário, um outro esperava encontrar outra coisa. Bom! Missão cumprida: a rapariga confirmou a sua vocação e o rapaz descartou rapidamente um dos caminhos que não devia tomar.

No filme O discurso do Rei quando o futuro Jorge VI entra em casa do seu fonoaudiólogo confessa-lhe que sempre gostou de maquetes de aviões, mas como ao pai lhe agradava colecionar selos, foi o que acabou por fazer. 14

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Nas escolas, é costume, na Infantil, trazer os pais das crianças para falarem do seu trabalho. É desta forma que os pequenos começam a querer ser veterinários, taxistas, polí­ cias. Na minha escola, os professores procuram que os alunos ouçam missionários, casais, sacerdotes, e tenham experiências ou ­conhecimentos das diferentes vocações. Fazemos isso porque o jovem não vai querer seguir uma vocação que não conhece. ­Estou-me a lembrar de uma entrevista engraçadíssima que fizeram ao pintor valenciano Juan García Ripollés. O entrevistador, a dado altura, perguntou-lhe como se tinha ­decidido a ser ­pintor. Ripollés respondeu-lhe que desde pequeno gostava imenso de ver os trolhas a pintar casas com brochas. ­Imediatamente ­decidiu dedicar toda a sua vida a pintar paredes. E, de facto, começou a fazê-lo, até que um dia, aos onze anos, descobriu que havia outro tipo de pintores: os de brocha fina. Ainda ficou mais atraído por este tipo de pintores, e foi assim que conheceu a sua vocação. Não descobriu a sua autêntica vocação até conhecer esse tipo de ofício. Tão simples quanto isso15. Já há vários anos que organizamos excursões ao Seminário Menor de Xàtiva, ao convento Iesu Communio em Godella, experiências com residências de idosos, colaboração com a Caritas paroquial, etc., etc. Tudo isto com a finalidade de conhecerem as diferentes realidades que existem. Recomendaria este tipo de atuações nas escolas, porque há anos que vejo como vários alunos se interrogam sobre a própria vocação depois destas experiências. Temos alunas que decidiram ­fazer-se missionárias. Também temos rapazes que se interrogaram sobre o entrar ou não num seminário. E fique claro: não temos nenhum interesse particular em que os jovens se 15 Entrevista para o jornal País realizada por Miquel Alberola, a 16 de agosto de 2000.

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convertam em missionários, freiras ou padres; mas, se foram chamados para o serem, como não colaborar na descoberta da sua vocação16? Faríamos a mesma coisa com um jovem que quisesse ser enfermeiro, por exemplo. Há quem não perceba isto, e acusam-nos de querer dar-lhes a volta à cabeça. Que pena! Não percebem que significa o contrário: para ser livre, tem de se poder escolher entre várias opções, e de quantas mais opções se dispuser, maior será a liberdade. Oferecem os pais plena liberdade aos filhos de poder fazer uma experiência vocacional num seminário? Diz-me a experiência que não (que eu saiba, pelo menos a dois alunos que quiseram assistir a convívios do seminário, os seus pais não os deixaram). Não é esta uma maneira de lhes dar volta à cabeça para não se afeiçoarem pela vida consagrada? E como se compreende que essa atitude venha de pais que d ­ ecidiram levar os filhos para uma escola católica?17. É como pais que inscreveram os filhos em futebol e um olheiro lhes propusesse uma experiência de treino com a seleção nacional e negassem perentoriamente. Vemos que as experiências vocacionais são o que há de mais positivo para os nossos alunos. Porque já não falamos dos frutos que possam advir destas experiências, mas da quantidade de preconceitos que desaparecem. Recordo que numa 16 A primeira vez que contatei com as religiosas “Iesu Communio” (Godella) foi para marcar uma visita com os alunos. Expliquei-lhes que queria que os jovens ficassem a conhecer o que faziam no dia a dia, como foram vocacionadas… Ao que uma delas me respondeu: “Bom, Fran, muito mais importante do que ver como vivemos é o encontro que cada jovem tenha com Jesus Cristo”. A sua resposta situou-me imediatamente, porque já me estava a desviar do realmente importante: a vocação de qualquer cristão parte de um encontro pessoal com Jesus Cristo.

Reparastes como se fala com frequência de “crise de vocações”? Mas, se “vocação” significa “chamada”, e Deus continua a chamar, não deveríamos antes falar de crise de respostas”? Imaginem um amigo que vai a casa de um jovem a perguntar por ele, mas os seus pais nunca dessem o recado ao filho. 17

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das visitas ao Seminário Menor de Xàtiva (Valência), os nossos alunos encontraram ali um antigo companheiro da equipa de futebol da sua terra. Não souberam, mas este rapaz tinha entrado para o seminário havia uns meses. Quando o viram ali, a preparar-se para ser padre, caíram por terra todos os preconceitos. Como os próprios alunos disseram, pensavam que os seminaristas eram rapazes esquisitos. Mas, ao que viam, não era assim, porque lá estava o seu companheiro de futebol, um rapaz normal, um apaixonado pelo desporto, pela música, pela moda. Alguém que ninguém suspeitaria que tivesse como vocação o sacerdócio. Mas ali estava ele. Feliz! Circunstâncias diversas. Além do que já foi dito, também entram em jogo diferentes circunstâncias, que aparecem na nossa vida. E temos de estar atentos, porque os acontecimentos da nossa vida, por vezes, também são chamamentos. Darei exemplos de algumas personalidades: ÖÖPedro Cavadas, cirurgião plástico, reconhecido internacionalmente. Desde pequeno queria ser veterinário, era para ele uma certeza, desde que vira os documentários de Félix Rodríguez de la Fuente. Mas em 1983, quando chegou o momento de escolher a faculdade para os seus estudos, ainda não havia Faculdade de Veterinária em Valência. Por não querer ir estudar para outra cidade, escolheu Medicina. Mas quando chegou a médico, continuava sem saber que a sua vocação ia ser a de cirurgião. Tudo mudou quando uma paciente com as duas mãos amputadas entrou no seu consultório a pedir-lhe ajuda. ÖÖJúlio Iglesias, cantor que vendeu mais de 350 milhões de discos. Desde pequeno quis ser futebolista e, de facto, 22

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chegou a ser: era o guarda redes da equipa B do Real Madrid em 1962. Mas no dia em que completou 20 anos, saiu a celebrar esse aniversário com uns amigos. Pegam no carro e têm um acidente em Majadahonda. Acordou no hospital de S. José e o médico disse-lhe que não voltaria a andar. Passados uns meses, deitado numa cama do hospital, um enfermeiro, Eladio Magdaleno, ofereceu-lhe uma guitarra para melhorar a sua reabilitação. E assim deu início à sua carreira musical. ÖÖPaco de Lucía, uma das principais figuras do flamengo. Queria ser cantor, mas era demasiado tímido para se apresentar em público e em cima dum palco. Isto inibiu-o tanto, que nunca o conseguiu superar. O máximo que conseguiu alcançar foi subir a um palco, abrigar-se atrás de uma guitarra a servir de escudo e acompanhar os cantores com esse instrumento. Foi isso que começou a fazer, até terminar a colaborar com artistas como Carlos Santana ou Camarón de la Isla e lançando discos tão míticos como Entre dos aguas. ÖÖC. S. Lewis, autor de obras como As crónicas de Narnia. Nasceu com um defeito físico: os seus polegares não tinham uma das articulações, o que o incapacitou para um grande número de atividades desde a infância (talvez nunca tenhamos parado a pensar na quantidade de coisas em que precisamos de articular os polegares). Ele mesmo dizia que não podia utilizar muitas ferramentas, como um saca-rolhas, por exemplo, uma raquete, e aborrecia-se imenso em casa. Explica no seu livro Cativado pela alegria: depois de muitos fracassos, choros e desesperos, como último 23

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recurso, acabei por escrever contos. E acrescenta: Não podia imaginar o mundo de felicidade a que me estava a guindar18. Acabou por encontrar uma grande distração e ajudou milhões de pessoas a distrair-se. Silêncio, oração e introspeção. Estes três conceitos aparecem na maravilhosa exortação apostólica póssinodal Christus vivit. No nono capítulo, dedicado ao discernimento da vocação, expõe-se que, para melhor perceber este chamamento, é importante praticar o silêncio e a oração. Uma vez percebido com clareza o chamamento, o passo seguinte para não se enganar será o de fazer uma correta introspeção. Propõe começar por fazer algumas perguntas: ÖÖConheço-me a mim mesmo? ÖÖConheço o que alegra ou entristece o meu coração? ÖÖQuais são as minhas forças e fraquezas? ÖÖComo posso servir melhor e ser mais útil ao mundo e à Igreja? ÖÖTenho as capacidades necessárias para prestar este serviço ou poderia adquiri-las e desenvolvê-las? Porque quando o Senhor suscita uma vocação não só pensa no que és, mas em tudo o que com Ele e com os outros podes chegar a ser. Depois de ter falado destes “parâmetros” que servem para descobrir a vocação dos nossos alunos, espero ter posto a claro que qualquer pessoa, e especialmente os jovens, pode estar interessada em descobrir a sua vocação, encontrar o lugar que Deus pensou que ocupasse neste mundo. E tudo isto, não só para 18

C.S. LEWIS, Cativado pela alegria, Edições Encuentro, Madrid, 2008,

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satisfação pessoal, mas também para que os talentos redundem em benefício daqueles que partilham as nossas vidas. O dever dos pais e dos professores em relação aos jovens deve ser duplo: ÖÖEstar atentos a este chamamento que mais tarde ou mais cedo, de um ou outro modo lhes será feito. ÖÖAcompanhamento incondicional, quer queiram ser advogados ou sacerdotes missionários. Concluirei o capítulo com umas citações a modo de epílogo: ÖÖPorque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis (Rom 11, 29) ÖÖPreocupai-vos para que o Maligno, o sedutor não vos atire como uma funda à pedra, para longe do que é a nossa vida (Carta chamada de Barnabé, II, 6). ÖÖProcura, pois, que o fim dos teus trabalhos seja o começo da sementeira celestial (S. Basílio Magno, Bispo, Homilia n. 6).

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ÍNDICE Apresentação.................................................................................... 3 Prólogo............................................................................................ 7 Capítulo 1 A minha primeira lição.............................................................. 11 Capítulo 2 Atenção! Vão chamar por ti....................................................... 15 Capítulo 3 Quando o sol se apagar.............................................................. 27 Capítulo 4 A beleza salvará o mundo.......................................................... 35 Capítulo 5 A pedagogia do “não”............................................................... 41 Capítulo 6 Eu era um arameu errante.......................................................... 45 Capítulo 7 490............................................................................................ 49 Capítulo 8 Tiramos os crucifixos................................................................. 53 Capítulo 9 Somos profetas........................................................................... 57 Capítulo 10 O sentido do humor................................................................... 61 Capítulo 11 Sofrimento consentido e com sentido......................................... 67 Capítulo 12 Esculturas de areia..................................................................... 73 Capítulo 13 Acta, non verba.......................................................................... 79 175

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Capítulo 14 A manifestação dos avós............................................................ 85 Capítulo 15 Ajuda-me e ter-te-ei ajudado...................................................... 89 Capítulo 16 O velho simeão.......................................................................... 93 Capítulo 17 Como educar os meus filhos?..................................................... 97 Capítulo 18 Bolas de chocolate.................................................................... 113 Capítulo 19 Estação meteorológica............................................................. 117 Capítulo 20 A arte de enxertar.................................................................... 123 Capítulo 21 Sem que o saibas, pode ser que te agrade a escória................... 131 Capítulo 22 Atletas de cristo....................................................................... 139 Capítulo 23 Mananciais.............................................................................. 149 Capítulo 24 Unidade de queimados............................................................. 159 Capítulo 25 Corrida de estafeta................................................................... 165 Conclusão.................................................................................... 169 Agradecimentos............................................................................ 173

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Sobre o autor:

APRENDIZAGENS

DE UM

PROFESSOR

Cristão

Cristão

Francesc Guillem Chilet é casado. É professor de História na escola diocesana “María Inmaculada”, em Alfafar (Valência). Durante nove anos tomou notas sobre o que se passava nas suas aulas. É destas notas que resulta o livro “Aprendizagens de um professor cristão”.

APRENDIZAGENS DE UM PROFESSOR

Ao longo de nove anos, um professor de uma escola católica, escreveu o que aprendia diariamente com os seus alunos. Registou essas aprendizagens em folhas de papel reciclado, dobradas a meio. É desses apontamentos que nasce este livro. São uma belíssima leitura cristã da vocação do professor. Para leccionar, não basta ter um diploma. Mais do que transmitir conhecimentos académicos, o professor de uma escola católica é um educador que vive a sua fé através do ensino. Aprendizagens de um professor é para os educadores que procuram fazer dos seus alunos a melhor versão de si mesmos, levando-os a descobrir o amor de Deus e o propósito da sua vida.

Francesc Guillem Chilet

Aprendiza de um gens professor cristão

Francesc Guillem Chilet

Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto Tel.: 225 365 750 editora@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt

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