Unicom Memórias

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UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - RS CEP 96815-900 Curso de Comunicação Social - Jornalismo Bloco 15 - Sala 1506 Telefone: 51 3717-7383

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EDITORA MULTIMÍDIA E EPÓRTER Sobrenome toponímico: vêm do local de origem. A quinta de Pereira, em Portugal, é a raiz da família, de onde as folhas de Pêra migraram para terras brasileiras.

JULIANA EICHWALD DAIANA STOCKEY CARPES DIAGRAMADORA E REPÓRTER Durante a Guerra das Duas Rosas (Inglaterra), um cidadão foge para a Alemanha. Em sua homenagem, um bairro alemão recebe o seu sobrenome. Este inglês foi o fundador da família alemã Stockey. Após a I Guerra Mundial, Karl busca no Brasil a paz.

EDITORA DE FOTOGRAFIA E REPÓRTER

A rápida tradução revela: Eichwald, em alemão, significa “floresta legal”. Mas nem só de deutsches o sobrenome sobrevive. Russos, americanos e britânicos também carregam consigo esta descendência.

VANESSA SHULER REPÓRTER

LUCAS SILVA REPÓRTER

De origem portuguesa, Silva, o meu sobrenome é o mais popular do Brasil. Ficou notabilizado em figuras como, o ex-presidente Lula, e Ayrton Senna

Vindos da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, os Schuler perderam a trema do nome, mas fizeram brotar raízes de um povo germânico no Rio Grande do Sul.

GABRIELA MELLER REVISORA E REPÓRTER

Nosso diálogo é em alemão. Dos “Müller, Möller” só restaram os “ll”. Em busca de solos férteis, familiares vieram da “Colônia”, para explorar terras no RS.

UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - RS CEP 96815-900 Curso de Comunicação Social - Jornalismo Bloco 15 - Sala 1506 Telefone: 51 3717-7383

Coordenador do Curso: Demétrio Soster Tiragem: 1000 exemplares Impressão: Grafocem DISTRIBUIÇÃO GRATUITA Ilustrações: Viviane Herrmann, Amanda Mendonça e Whellinton Rocha


DEMÉTRIO DE AZEREDO SOSTER

Editorial

EDITOR-CHEFE

Há 1,2 mil anos, Soster era Schumacher, sapateiro de alguma posse. Depois, transforma-se em Schuster, ainda um artífice, só que mais pobre. A transformação se dá quando imigram do sul da Áustria para o norte da Itália: italianos pronunciam “souster” no lugar de Schuster.

FABRÍCIO GOULART EDITOR E REPÓRTER

Sobrenome de origem francesa que possivelmente se refere a uma alcunha ou característica do portador inicial. A procedência é bastante discutida e possui variações.

INGRID GUEDES REPÓRTER

De Portugal para o Brasil. Os Guedes, um dos sobrenomes mais antigos da nobreza portuguesa, se espalharam, criaram raízes e fizem a história por todos os cantos.

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Para lembrarmos...

JONARA R AMINELLI REPÓRTER

Raminelli tem origem na região do Veneto na Itália. Apelido do original Raminello significa medida de grãos, já que os antepassados italianos eram donos de moinhos. Sou da 4ª geração de um imigrante italiano que constituiu família na região Centro-Serra.

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MAURÍCIO BESKOW

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REPÓRTER

A partir de 1850, carregando a esperança em suas malas de uma nova vida, os Beskow, da Prússia Oriental e da Pomerânea, se estabelecem em São João da Cachoeira, atual município de Agudo.

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JULIANA SPILIMBERGO PRODUTORA E REPÓRTER Em Friuli, os Spilimbergo estão no Elenco Oficial da Nobreza Italiana. Em terras tupiniquins, os títulos perderam valor e a nobreza remanescente é a do coração.

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VANESSA COSTA

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REVISORA E REPÓRTER

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REPÓRTER

Segundo antiga tradição oral, morávamos em Schweidnitz, na Silésia, onde prestávamos serviços militares. Éramos entre oito irmãos quando, em 1857, um deles emigrou para o Brasil e se fixou em Picada Morro Pelado, Agudo, onde casou e teve 12 filhos.

Somos portugueses, espanhois e italianos. Nascemos na Europa, em uma nobre família medieval. No Brasil, viemos da Costa Litorânea e por isso somos poucos em Minas Gerais.

JOÃO JUNQUEIRA

DAIANE HOLDEFER

Em busca de uma vida melhor, os Holdefer desembarcaram no Brasil, vindos da Alemanha. Primeiro estabeleceram-se em Ivoti e hoje estão espalhados pelo país.

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O sobrenome Junqueira é de origem portuguesa. Primeiro, os imigrantes alocaram-se na Região Sudeste do Brasil e depois vieram para o Sul. Essa família com raízes no campo também sabe fazer bonito na cidade.

CASSIANE R ODRIGUES PRODUTORA E REPÓRTER

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VANESSA KAEMPF

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SUBEDITORA DE VÍDEO E REPÓRTER

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Na Alemanha, morávamos em Mutterschied. No Brasil, qualquer lugar. Nunca tivemos nada de nobre, mas carregamos muita história numa simples caixa. Kist ou Kiste significa caixa...

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Não temos uma descendência, um sobrenome português que surgiu de “Rodrigo”. Somos brancos, negros, com olho puxado e samba no pé. Somos príncipes, somos plebeus.

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Este jornal foi produzido na disciplina de Produção em Mídia Impressa, ministrada pelo professor Demétrio de Azeredo Soster.

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A última carona /

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Angelo Bello atravessou o mar há 53 anos, mas a Itália não ficou para trás

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JULIANA SPILIMBERGO !

REPORTAGEM

Aos cinco anos, quando andava de triciclo pela Rua Aparício Borges, em Cachoeira do Sul, não imaginava que as memórias do vizinho Bello se misturariam com as minhas.

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Quando o navio Conte Grande, da Companhia de Navegação Gênova, atracou no porto de Dakar, na África, os olhos de Angelo Bello, então com 15 anos, viram pela primeira vez pessoas de pele escura. O espanto daquele momento mostrava ao pequeno imigrante que a vida simples nos verdes vales da Tortorella, província Salerno, na Itália, ficara um oceano para trás. Pelo menos 852 metros de altitude afastavam Angelo, mais conhecido como Bello, a mãe, Maria, e os sete irmãos, do resto do mundo. Do pai, Giovani Bello, que morreu em combate na 2ª Guerra Mundial (1939 -1945), Angelo não lembra nada, herdou apenas o gosto pela caça. Nascido em 8 de novembro de 1943, penúltimo dos irmãos, as únicas preocupações da infância eram andar de bicicleta, matar passarinho e puxar o cabelo das meninas na escola. A família vivia do que produzia. O milho virava polenta, a farinha de trigo virava massa e havia ainda parreiras a perder de vista. As mãos de ferro da mãe Maria trabalhavam de servente de pedreiro para garantir um sustento extra. Em casa, Bello e os irmãos recebiam os cuidados da irmã mais velha, Giuseppina. Era ela quem cortava o pão em fatias iguais no café da manhã, preparava a polenta no almoço e o minestrone (sopa da mistura de arroz, feijão, massa, pão velho e orelha de porco) no jantar. Mas os tempos de guerra trouxeram consigo a fome e a miséria. A opor-

tunidade de mudar de vida chegou em forma de carta. Um amigo da família, Giuseppe Tancredi, convidava Maria e os filhos a partirem para uma tal Porto Alegre, onde a mão-de-obra era valorizada. Com esperança e poucas malas, Maria e quatro filhos partiram em 1959 em direção à terra prometida. Foi a última carona dos italianos como imigrantes para o Brasil. Já no nível do mar, em Napoli, embarcaram na terceira classe do Conte Grande. Seguiram até Cannes, na França, e, em Dakar, na África, abasteceram o navio antes de atravessar o Atlântico. Dos 16 dias em alto mar, Bello quase não tem lembranças. “Eu nem sabia onde andava”, afirma ele. A paisagem de uma terra maravilhosa acolheu os novos imigrantes. Ao pisar em terra firme no Rio de Janeiro, logo embarcaram em um trem que rumou para Santos, em São Paulo. Chegando lá, o Brasil mostrou não ser tão generoso com os recém-chegados. O menino, acostumado com a pequena comunidade em que vivia, agora dividia um salão com duas mil pessoas. No local, camas enfileiradas e um banheiro foram o lar de Bello por cinco dias. A refeição era única: um prato de arroz, feijão e alface. Pela primeira vez, o imigrante acostumado com a fartura da cozinha italiana, comia banana. “Em todas as esquinas havia carrinhos vendendo a fruta. Era bom, barato e forrava o estômago”, lembra ele.

Uma vez por semana, o trem partia para Porto Alegre, no Sul do país, a terra prometida. Os cinco dias e cinco noites nos vagões insalubres da locomotiva não são a melhor memória que Bello guarda na vida. “Não tinha banheiro, não tinha cama para dormir e comida só comprando.” O que restou da viagem de fome e frio foram as cinzas das roupas. “A caldeira queimava o que vestíamos”, conta. Aos olhos do Guaíba, um novo rumo. A primeira tarefa dada ao imigrante adolescente foi varrer o chão de uma fábrica de joias. Com o passar do tempo, ele aprendeu o ofício de relojoeiro. Em 1978, aos 35 anos, quando sentiu que precisava de uma companheira, Bello retornou à Itália. Namorou Gemma, mas o destino fez com que a terra que lhe deu emprego e moradia também lhe rendesse um grande amor. Foram as caçadas com o sócio em Cachoeira do Sul, no interior do Estado, que marcaram o encontro de Bello com sua eterna parceira de dança, Dione. A união ocorreu em um Centro de Tradições Gaúchas (CTG). No cardápio, ao invés de massa, churrasco. Hoje, aos 68 anos, Angelo Bello visita Tortorella quando aperta o play do DVD para ver imagens da última viagem à Itália, em 2008, que mais do que simples paisagens, são as memórias carregadas de sentimento de um imigrante dividido entre a saudade das terras italianas e o aconchego dos pampas.

Angelo e o irmão Antônio Bello

Angelo e a esposa Dione

Antônio Bello, a mãe, Maria, e Angelo Bello

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Angelo Bello

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Passado negro LDEFER

ILUSTRAÇÃO: WHELLINTON ROCHA

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Para Margarida, a casa guarda o passado, o presente e o futuro da família

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Moradoras da zona rural, negras quilombolas guardam a história de uma comunidade

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DAIANE HOLDEFER REPORTAGEM

Eis a delícia de ser repórter. De ver com o coração e de se emocionar com os relatos. De contar histórias de pessoas que, mesmo sofrendo, não cansam de sorrir.

Ela tem nome de flor. Mas, ao contrário da flor, que é branca, ela é negra. Negra como o chão da casa onde vive com os cinco filhos, nas terras distantes do quilombo Quadra da Palma, em Encruzilhada do Sul. Há anos, negros remanescentes de escravos procuraram refúgio no local, que hoje abriga quatro famílias. Dentre os que ali chegaram, estava a mãe dela. Nascida e criada na terra negra do quilombo, Margarida Machado Castilhos, 76 anos, não conheceu o pai. Com um sorriso banguela, suas gargalhadas abafam as lembranças tristes da infância e cicatrizam as feridas da época em que andava de uma casa para outra lavando, varrendo, cozinhando. “Trabalhei desde criança fazendo faxina nas casas, para ajudar a minha mãe. Quase não brinquei.” Ela, que foi conhecer as letras do alfabeto depois de velha. Queria ser pediatra. “Desejava ser médica para cuidar das crianças”, conta. Da soleira da janela, a quilombola descobre que o tempo passou rápido demais. De repente ficou adulta, casou, teve filhos e continuou lá, na mesma casa de chão batido. A vida inteira no mesmo local. Margarida perdeu o marido quando a filha caçula Nalzira ainda era bebê. Sem a companhia do pai das crianças, ela precisou trabalhar ainda mais. Foram anos respigando arroz nas lavouras. “Como era longe o trabalho, eu chegava só de noite em

casa. Tinha que deixar as crianças na casa de alguém”. Ao pé do fogão à lenha vermelho, a negra lembrase do prato preferido da infância, a canjica. Diante de sua casa, a sorridente Margarida viu quase todo o povo do quilombo ir embora. Há muito ela só vê os sobrinhos pelos retratos que ficam na mesinha de madeira, ao lado do fogão. Mas a quilombola resistiu e ficou, assim como a energia elétrica resistiu, mas chegou. Lá se vão quase três anos que o candeeiro e as velas foram abandonados de vez. As mãos da negra, que tanto deu lucros ao patrão, hoje descansam. Afinal, já estão calejadas demais. Margarida gosta mesmo é de remendar as lembranças, de costurar o tempo com retalhos de saudade. Tempo em que os filhos eram crianças e ela mesma fazia as roupas que vestiam. “Aproveitava os pedaços de pano e costurava as camisas que elas usavam no colégio”, diz orgulhosa. As lembranças e a saudade estão espalhadas pelo quintal, onde ciscam galinhas e pintinhos. Todo dia, ao acordar, Margarida joga milho aos animais e recorda que adora viver ali, na casa simples, onde criou os cinco filhos. O desejo dela é morrer na terra negra do quilombo, que lhe acolheu quando criança. Aos 70 anos, Elza Barbosa, única irmã viva de Margarida, mora sozinha em uma casa de dois cômodos, também no quilombo Quadra da Palma. Viúva, mãe de uma filha e avó de

três netos, toma chimarrão todos os dias, sempre às 10 horas. Uma cerca de arame e algumas árvores separam as casas das duas irmãs. Elza, uma mulher de riso fácil, acorda bem cedinho, pela manhã, para cuidar da plantação de mandioca. Desde criança trabalhou na roça. Cortava trigo, respigava arroz e milho. “Eu trabalhava para ganhar dinheiro, graxa e um saco de arroz. Uma patroa minha, dona Roni, essa pagava bem”, conta. Elza lembra que as brincadeiras, na infância, eram improvisadas. Como não tinham dinheiro para comprar brinquedos, as roupas viravam bonecas. “A gente enrolava uma blusa, dava um nó ali, outro aqui e surgia o corpo de uma boneca. Aí a gente brincava assim.” Foi no colégio, mas não conseguiu aprender a escrever sequer o próprio nome. O que importava mesmo era trabalhar, e foi isso que ela fez. Trabalhou nas lavouras igual homem, ou até mais. Durona, não perde para qualquer um na enxada. “Hoje em dia a negrada nova fica falando que faz isso, faz aquilo, mas eu dou uma surra neles no serviço”, afirma. Assim como Margarida, Elza nasceu e se criou nas terras do quilombo. Com uma vida sofrida, o que mais temeu foi não ter saúde para trabalhar. Há pouco largou o cigarro porque andava muito magra. Ficou com medo de morrer e deixar as terras distantes do quilombo que tanto ama.

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INGRID GUEDES

Recordações de uma tarde triste Felipe Hertz Vargas não deixou se intimidar pelo tamanho de seus desafios

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INGRID GUEDES REPORTAGEM

Afinal, o que aconteceu em julho de 2011? Foi essa inquietação que me levou até a matéria. Os veículos locais discutiam o porquê da explosão, e eu queria saber além disso. ARQUIVO PESSOAL

momento do acidente. Os funcionários da empresa correram para ver o que havia acontecido e as pessoas que moram perto se aglomeraram em frente à empresa em busca de respostas. O socorro e a reação inicial foram rápidos, mas não o suficiente para apagar a tragédia que viria a acontecer. A notícia não foi boa. O dia 27 de julho marcou para sempre a vida da família Hertz Vargas. Os meninos foram surpreendidos. Queimados, eles foram socorridos imediatamente pela Samu e levados ao Hospital de Caridade e Beneficência (HCB) de Cachoeira do Sul. Os dois foram atendidos numa sala de emergência, lado a lado. Felipe teve 88% do corpo queimado. Mesmo com fortes dores, Felipe permaneceu acordado por algumas horas. Ele conta que via em seu irmão uma grande luz que iluminava seu rosto. Felipe foi transferido para uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) móvel para o Hospital de Pronto Socorro (HPS) de Porto Alegre, onde começou uma batalha pela vida. Todos os médicos confirmavam que havia 1% de chance de sobreviver. Nesse instante, o pai Jorni, a mãe Marildes e o irmão mais novo, Samuel, inconsolados, não sabiam que rumo tomar. Iam para Porto Alegre juntamente com Felipe ou permaneciam em Cachoeira do Sul com Jorni Júnior. Infelizmente, veio a notícia que Jorni havia falecido no HCB. “As horas se passavam e se tornaram confusas, cansativas, dolorosas e muito desgastantes para todos os envolvidos. Pensava no que fazer. Sepultar um filho em uma cidade e correr para Porto Alegre para estar ao lado de Felipe contando as horas e

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os minutos, torcendo por sua recuperação. Muitas dúvidas povoaram em mim”, diz Marildes. A oração aliada à fé foram o carro forte para a família amenizar e superar a dor. Felipe permaneceu por dois meses na UTI pediátrica e depois quatro meses na UTI de queimados. Passou por 20 cirurgias. “Ele chegou sem pele. Primeiro teve que curar as queimaduras da barriga para retirar pele do local para assim fazer enxertos em outros lugares comprometidos. Foram retiradas três vezes pele de sua barriga”, afirma Marildes. Hoje, após um ano, a expressão do jovem é de perplexidade e aceitação. “Foi tudo muito rápido. Estávamos na empresa e resolvemos abrir o cofre.” Felipe queria voltar ao tempo para consertar tudo. Agora é tarde. “Infelizmente aconteceu, não tem volta.” Ele não pronuncia as palavras explosão, cofre, acidente. Fala apenas na sua recuperação, que ele e a família consideram um milagre. Apesar das inúmeras marcas pelo corpo, não se importa com elas. “É por Deus que estou aqui.” As cicatrizes deixadas pelas queimaduras e enxertos precisam de cuidados especiais: pomadas, fisioterapia, massoterapia e remédios fazem parte de seu dia a dia. Felipe faz brincadeiras, navega na internet, escuta música, brinca com os amigos, anda a cavalo na chácara e vai à escola. “Essas coisas me distraem e me fazem esquecer o que aconteceu.” Se tragédia é a palavra que não diz, viver é a palavra que repete. Felipe está quase recuperado. Não cantou em praça pública ou tirou 10 em matemática, mas teve uma segunda chance. INGRID GUEDES

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Os irmãos Felipe e Jorni Júnior

Recuperação

Felipe, Jorni, Marildes e Samuel

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Eram aproximadamente 15 horas de uma quarta-feira de 2011. Um dia de inverno normal. A dona de casa Neueli Ribeiro, 69 anos, estava lavando roupa em sua casa, localizada no Bairro Oliveira. A artesã Lucimar Rodrigues, 47 anos, moradora do Bairro Ponche Verde, decorava 50 potes pequenos de “papinha” de bebê para lembrança de um ano do sobrinho. O frio daquela tarde não fez o aposentado Derli Moises, 71 anos, do Bairro Noêmia, ficar embaixo das cobertas. Durante o dia ele trocou uma parte do telhado de sua casa. Já Elisa Molinari, 48 anos, moradora do Bairro Drews, conversava com sua vizinha. Essas pessoas ouviram uma explosão ao longe que identificaram de várias formas. “Achei que fosse um botijão de gás”, diz Derli. “Era semelhante a uma bomba”, lembra Lucimar. “Achei que um caminhão estivesse tombado”, comenta Neueli. “Parecia ser de algum equipamento que caiu aqui da fábrica ao lado”, acreditava Elisa. Nada do que essas pessoas comentaram aconteceu. O estrondo era em um cofre na empresa Marino Hertz Implementos Agrícolas, no Bairro Otaviano, distante 5 km desses bairros. A curiosidade de adolescentes levou os irmãos Jorni, 17 anos, e Felipe 13, a se aproximarem de um antigo cofre que estava há cerca de 10 anos abandonado na empresa do pai. Para arrombar o cofre eles usaram uma esmerilhadeira, que provocou uma fagulha em contato com a pólvora que estava dentro do compartimento. Nesse instante ocorreu uma explosão. “Algo ruim aconteceu”, disse Jorni Hertz, pai dos meninos, que estava no local no

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ARTE SOBRE FOTO DE FABRÍCIO GOULART

Lembranças de um menino diferente Luiza mudou de sexo e deixou no passado uma identidade estranha e desconhecida FABRÍCIO GOULART REPORTAGEM

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As lembranças de minha entrevistada fazem também parte de minhas memórias: as de uma época em que nada se falava sobre bullying e os efeitos em nossas vidas.

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O pai parou o carro em frente à loja. A mãe, Lúcia, olhou o filho no banco de trás e, sem titubear, lançou: - Suas roupas estão muito estranhas, são uns trapos. É hora de comprar coisas novas. Entraram na conhecida loja no centro da cidade e foram para a seção feminina. Era hora de, digamos, Luiza, se desfazer das roupas andróginas, pouco masculinas, e comprar algo mais adequado ao seu gosto. A garota de 17 anos já não conseguia mais fingir ser um garoto. A formatura do Ensino Médio já havia ocorrido e, no passado, ficaram as lembranças de alguém que tentou ser por muito tempo. “Desde pequena quis ser mulher, mas no colégio tive que me adaptar, tinha que manter o cabelo curto, me vestir como queriam. As pessoas eram preconceituosas. Além de sofrer ofensas, tinha que cuidar para não apanhar.” Luiza não mora mais em Santa Cruz do Sul, onde nasceu, mas costuma visitar os pais com frequência. Ela sorri e agradece ao lem-

brar que eles sempre a apoiaram. Para trás, deixou a cidade e outra identidade. Hoje, Luiza tem 24 anos e há dois fez uma cirurgia de troca de sexo. O nome também não é mais o mesmo nos documentos. O atual acompanha sua devida aparência física. O fato é que a Santa Cruz de Luiza é dura e repleta de recordações desagradáveis. “É sempre estranho visitar a cidade. Quando volto, as más lembranças retornam. Quando ando na rua, percebo pessoas que me conhecem tecendo comentários maliciosos e me olhando de forma estranha.” A jovem estudou em colégio particular, iniciou um curso de nível superior também no município, mas hoje, por vocação, faz programas por todo o Brasil. Sim, vocação. A prostituição foi uma escolha de vida. “Estou me recuperando de uma lipoescultura. Quando estiver bem, vou para Cuiabá”, conta, alegre. Apesar de ter passado por diversos questionamentos na infância, ela diz que hoje sabe muito bem o que quer. Já quis outro emprego? No início, não tentou por medo de sofrer repressão. Com o tempo, contudo, foi descobrindo na prostituição algo com o que se identificava. “A minha profissão me ajudou a me descobrir como mulher. Acho que por sair com diversos homens e eles não me verem como transexual, me tratarem com carinho.”

Ela recorda que a adaptação de troca de sexo não foi fácil. “Tenho a data anotada, mas não lembro. Não é algo tão importante, porque eu já me via como mulher.” As lembranças da operação estão nos dias subsequentes. Luiza precisou fazer uma nova cirurgia para dar forma ao canal vaginal. Sexo, só conseguiu depois de um ano de tratamento. “Foi uma fase complicada.” Quando questionada sobre as amizades de infância, Luiza diz que poucas permaneceram. Na rua, ex-colegas dificilmente a cumprimentam. “Às vezes saio em Santa Cruz e alguém comenta que troquei de sexo. Já escutei dizerem que se soubessem, nem chegavam perto. Como se eu fosse um monstro.” A jovem se diz bem resolvida, mas afirma que, às vezes, mesmo contra a vontade, é preciso manter segredo quando conhece alguém. “Acabo sendo uma mulher misteriosa para os homens, pois não costumo falar do passado. Tenho medo das reações, embora nunca tenha acontecido nada grave.” Luiza percebe, quando vê o seu passado e as modificações pelas quais passou, que se tornou bonita e desejada. Ela sorri com a situação e complementa: “Tem um lado de mim que gostaria de se mostrar, se revelar. Mas há outro que teme retaliações”. Luiza acredita que muitas pessoas ainda não estão preparadas para a mudança de sexo e a convivência com as diferenças.

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Livro reúne artigos de H. L. Mencken, o mais ferino jornalista norte-americano

Crônica Rui Borgmann.

“A democracia é a arte de administrar o circo através da jaula dos macacos.” “Decência, autocontrole, senso de justiça, coragem – essas virtudes pertencem a uma pequena minoria de homens.” “O governo ideal de qualquer homem dado à reflexão é aquele que deixe o indivíduo em paz.” Essas frases revelam o estilo mordaz, debochado e explosivo com que o iconoclasta H. L. Mencken (18801956), o mais famoso e influente jornalista norte-americano, “transtornou a cabeça” de seus contemporâneos a respeito de todos os assuntos nas décadas de 20, 30 e 40. Elas foram pinçadas de O Livro dos Insultos, um verdadeiro monumento já disponível nas livrarias. A obra, organizada por Ruy Castro e lançada pela Companhia das Letras dentro da coleção Jornalismo Literário, reúne alguns dos melhores artigos escritos por Mencken em mais de três décadas de trajetória. Filho de um alemão vendedor de charutos, Henry Louis Mencken trabalhou praticamente toda sua carreira no Evening Sun, jornal provinciano de sua cidade natal Baltimore, no Estado de Maryland (“um lugar onde as pessoas trocam de camisa uma vez por dia e de preconceitos uma vez por geração”, dizia ele). Ali montou seu front para atacar o status quo norte-americano das primeiras décadas do século XX. Trucidou por escrito de governantes (o ex-presidente Franklin Roosevelt foi um de seus alvos preferidos) a psicólogos, pintores a índios. Pelo humor que impunha em suas colunas, um dos meios que utilizava para desconcertar seus detratores, Mencken recebeu o apelido de

“o W. C. Fields (famoso comediante) do jornalismo”. “Mencken era um jornalista literário e um satírico por excelência. O espetáculo da estupidez humana ‘fazia o dia dele’,” escreveu o falecido jornalista Paulo Francis - cuja carreira foi notoriamente influenciada por Mencken – no texto escrito para a orelha da primeira edição de O Livro dos Insultos, publicada pela Cia. das Letras em 1988. Temido, mas lido por milhares, Mencken também foi proeminente na área cultural. Ao mesmo tempo em que escrevia para o Sun e colaborava com a “grande imprensa”, produzia artigos para as revistas Smart Set e American Mercury, que fundou com o crítico de teatro George Jean Nathan, e nas quais chamou a atenção para as obras de Joseph Conrad, Mark Twain, Bernard Shaw, Henryk Ibsen, Tenessee Williams e James Joyce. Nas publicações, ele também desancou ícones da literatura até então intocáveis, como Dostoiévski e Henry James. “O mais importante de tudo é que Mencken conseguiu que suas ideias não fossem embrulhadas com o peixe no dia seguinte”, enfatiza o escritor e jornalista Ruy Castro no posfácio de O Livro dos Insultos. Considerado pelo The New York Times em 1926 “o mais poderoso cidadão privado na América”, H. L. Mencken morreu de enfarte na noite de 29 de janeiro de 1956 ouvindo uma sinfonia clássica transmitida pelo rádio. Sobre si mesmo, o jornalista deixou esta pérola: “A verdade é que eu não sou um homem justo e não quero ouvir os dois lados. Sobre todos os assuntos, da aviação a tocar xilofone, eu tenho ideias fixas e invariáveis”.

Paixão pelo futebol Na década de 90, um menino fazia teste para ingressar nos juvenis do Guarani de Venâncio Aires. Com um apito entre os dedos, um certo Mano Menezes se posicionava no meio de campo. Ele era o responsável pelo peneirão dos garotos, que trilhavam o sonho de ser jogador de futebol. O estádio era o Alvi-Azul, do Cruzeiro, time atualmente extinto. - Tu arrebentou no treino de hoje como zagueiro, hein Rui? - Pois é professor Mano (somente Mano na época), marquei direitinho né? E então, fui aprovado? - E o lance aquele, teria que ter feito linha de impedimento, desse jeito não vai conseguir correr o jogo inteiro. - Pois é, mas não tem bandeirinha e o senhor não ia marcar nada. Ficaria fácil e o cara marcaria o gol. Mesmo assim, desarmei o atacante por duas vezes e saí jogando. - É, foi bem. Mas acho que tu estás me enganando. Eu te conheço e tu não jogas tanto assim. Dali, então, o garoto seguiu outro rumo e acabou se dedicando ao jornalismo, porém nunca abandonando a paixão pelo futebol. Atualmente escreve num blog e numa coluna do jornal Folha do Mate, onde prioriza os campeonatos em que o Índio da Capital do Chimarrão disputa pelo Estado. Já Mano Menezes é hoje o técnico da Seleção Brasileira de futebol.

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Moracidade por escrito

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Águas passam, momentos ficam As histórias daqueles que, de alguma forma, foram afetados pelas cheias do Jacuí

Valderi da Silva e os três filhos morreram pela enxurrada que levou a casa da família em 2003, na localidade de Cortado, Novo Cabrais. Marcia Müller fez a cobertura jornalística da queda da ponte da RSC-287, em Agudo, no ano de 2010. Ao mesmo tempo em que informava um dos mais trágicos incidentes da região, tinha de superar a dor por ter perdido um amigo na ocasião. Dona Lila de Oliveira Moraes lembra dos desastres duma distante enchente ocorrida em 1941. Em comum, elas têm como palco o Rio Jacuí e a lembrança de momentos dolorosos.

CASSIANE RODRIGUES REPORTAGEM

Não é fácil Nã fáci fá cill fa ci fala falar la de tragét gé dias. Para esta reportagem precisei instigar as pessoas e resgatar uma memória que preferem manter escondida para si mesmos.

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VIVIANE MOURA

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Tragédia foi prevista em versos “Alagou ruas e praças. Invadiu casas, carregou carros, cachorros. Destruiu barracos, plantações. Destruiu sonhos e ilusões.” Este trecho é do livro de poesias Horizontes, escrito por Valderi da Silva, como se fosse uma premonição, alguns meses antes de morrer junto com os três filhos. Tudo aconteceu no dia 6 de março de 2003. No meio da tarde, começou uma chuva amena que muito rapidamente ganhou mais força. A casa de Valderi foi levada pela enxurrada que afetou Cortado, no interior de Novo Cabrais. O pai de família tinha 38 anos e estava em casa com os filhos Valdete, 16 anos; Vi-

nícius, 13; e a pequena Valéria, 5; quando a ponte que ligava a estrada a uma escola desabou com a força da água e destruiu a residência da família. A esposa de Valderi e mãe das crianças, Odete da Silva, perdeu o marido, os três filhos, a casa e os registros de uma vida. A irmã, Irene Bertolini, conta que Odete poderia ter sido vítima da enxurrada junto com os familiares. Fazia pouco tempo que ela tinha saído de casa para visitar o pai, a poucos metros dali, de onde enxergou toda a tragédia. Restou a Odete e familiares apenas memórias de uma vida outrora tranquila.

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A enchente de 2010 foi anunciada como a maior desde 1941. Marcia, juntamente com os colegas da rádio, produziu diversos boletins e enviou informações para a imprensa regional e nacional. Aliado a tudo isso, teve de controlar o lado emocional. O pesadelo teve fim 11 dias depois do acidente, quando o último corpo foi encontrado. Foram dias de pânico, medo e total isolamento na cidade de Agudo. “O medo bate na comunidade de Agudo toda vez que vem um dilúvio. Não tem como esquecer, passa um filme na cabeça”, ça ”, finaliza ffin inal in aliz al iz a a jo iza jorn rnal rn alista alis al ista is ta.. ta jornalista.

CASSIANE RODRIGUES

A maior de todas as enchentes “Aquela foi a maior enchente do Rio Grande do Sul”, conta dona Lila, de 83 anos. Lembra de ver as louças da casa de uma tia, em Porto Alegre, sendo levadas pela correnteza. Dona Lila de Oliveira Moraes mora hoje em Cachoeira do Sul, cidade que foi igualmente afetada pela enchente histórica de 1941 juntamente com grande parte do Estado. Ao contrário da capital, não houve grandes perdas em Cachoeira do Sul. Os maiores afetados foram os produtores de arroz. Alguns meses antes, eles haviam comemorado a grande

safra do ano com a Festa do Arroz. Na época da festa, que ocorreu de 9 a 16 de março, um artista fez com areia a imagem de Jesus Cristo na praça central da cidade. Dona Lila conta que o povo dizia que a enchente havia sido castigo por terem feito a imagem com um material tão frágil. Crendices à parte, o fato é que alguns produtores de arroz perderam 100% das plantações. Prova disso foi que a segunda edição da festa, que passou a ser chamada de feira, ocorreu somente 27 anos depois, em 1968.

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O papel de jornalista aliado aos sentimentos de amiga. Esse foi o desafio da jornalista Marcia Muller, em janeiro de 2010, com a queda da ponte de Agudo, que liga Santa Cruz do Sul a Santa Maria. A ponte desabou devido à enchente no Rio Jacuí. No dia 5 de janeiro de 2010, exatamente às 9h03, a Rádio Agudo, por meio do repórter Márcio Nunes, relatou aos ouvintes de maneira emocionada e desesperada que a ponte havia caído. “Amigos nossos estavam lá em cima, o vice-prefeito também, tem gente descendo pela água...” Com a queda da ponte, 15 pessoas so as caíram; ccaí aíra m; destas, aíram; aí des d esta tas, tas, 10 foram ffor oram or am resgatarres esga gata tadas. da s. Entre Ent E ntre nt re os os cinco cinc ci nco nc mort mo rtos rt os,, um amigo os ami a migo mi go mortos, da jornalista. jjor orna or nali na list li sta. st a.

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A dor da perda aliada à responsabilidade profissional

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Quando a saudade tem a forma de um brinquedo Em algumas pessoas a saudade surge das situações vividas; em outras, ela vem na forma de um brinquedo

Anos 70

Anos 40 Os cabelos brancos mostram que o tempo passou rápido para Hiltor Baumhardt, de 73 anos. O olhar embaçado mira o horizonte e busca na memória as lembranças de uma infância feliz. Quando Hiltor era pequeno, a família Baumhardt morava no interior, dessa forma, as lojas de brinquedos se tornaram inacessíveis. Os cenários de seus primeiros anos de vida eram feitos de terra, de lavoura e de campo. “Nós mesmos criávamos nossos brinquedos. Pegávamos sabugos, carretéis de linha, arames, latinha de sardinha e tampinha de garrafa para construirmos nossos tratorezinhos e trenzinhos.” Hiltor e seus primos brincavam nas horas de folga, pois, nos momentos da lida no campo, recolhiam os terneiros e alimentavam os porcos para

os seus pais. Quando a hora de brincar desabrochava, as crianças já estavam prontas para colocar em prática o que aprendiam com os mais velhos. “Como meu pai trabalhava na lavoura, nós também montávamos mini-lavouras na terra, imitando a grande que se encontrava a poucos passos dali.” Hiltor lembra também que, após construírem seus tratorezinhos e trenzinhos, os meninos negociavam entre si, boizinhos e vaquinhas, com cédulas de votação, que eles transformavam em dinheiro. “Seria tão bom se a gente não crescesse. Era tudo tão diferente, agora a maioria das crianças passa a infância em frente à televisão, sem colocar os pés descalços na lama”, lamenta.

Boné na cabeça, bolinhas de gude no bolso e a busca pelo terreno ideal se inicia. O menino magricelo, nem alto, nem baixo e com roupas de segunda linha, discute com os seus amigos sobre os pedregulhos no solo que empacam a brincadeira. “Pega aquele pedaço de madeira e vamos passar aqui, vai ficar perfeito”, grita ele. Ariovaldo Louzada lembra-se de cenas iguais a essa como se fosse ontem. Hoje, aposentado aos seus 49 anos de idade, passa a maior parte do tempo em casa com a esposa. “Tempinho bom aquele, né?! Eu tenho saudade do campo, das brincadeiras.

Hoje em dia tudo mudou.” A lavoura, as bolitas e os carrinhos de madeira nunca saíram de sua memória. Se Ariovaldo pudesse voltar no tempo, até de boneca e de comidinha brincaria com as vizinhas, se tivesse a oportunidade de novamente encher as unhas de barro ao cavocar o chão e construir buraquinhos, para lançar neles as pequeninas e inesquecíveis bolinhas de gude.

Anos 90 Enquanto as meninas do bairro brincam na rua de casinha, com bonecas Barbie, Chiquititas, Baby Barriguinha e os bichinhos da coleção Parmalat, ou cuidam, zelosas, de seus Tamagotchis (brinquedo virtual em que se cria um animalzinho), Diogo Rutsatz e seus amigos preparam seus carrinhos para colocá-los em ação na pista do Posto do Gugu, também batem os Tazos da Looney Tunes, da Animaniacs, da Master Tazos e do Máskara, que são adquiridos nos salgadinhos da Elma Chips. Ou até mesmo disputam partidas acirradas de futebol no Ro-

naldinho Soccer 98 no Videogame Nintendo e lutam para passar as fases e chegar ao castelo final do Super Mario World. Com 19 anos de idade, Diogo diz que relembrar esses momentos ainda não dói tanto. “É legal lembrar daquele tempo. A gente só pensava em brincar. Eu subia no sofá da sala, imaginava que ele era um ônibus, pegava as tampas da panela da mãe e usava como direção.” Por mais que ainda não sinta saudade dessas memórias, ele admite: “Quando eu ficar mais velho com certeza sentirei muita falta”.

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Anos 2000

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JULIANA EICHWALD REPORTAGEM

Como sou muitíssima apegada a objetos da minha infância, sejam brinquedos, cadernos ou fotos, a produção dessa matéria me fez relembrar e sentir saudade de tudo isso.

Durante as reviravoltas na nossa partida de xadrez, o escoteiro de 9 anos João Gabriel Rodrigues explica como utiliza seus carrinhos da Hot Wheels em corridas de tirar o fôlego. Ele estuda das 13h30 às 17 horas, quando chega em casa, além de brincar com os carrinhos, também brinca com a sua fazendinha de peças em miniatura. Bois, cavalos, casas, cercas e peões fazem parte da estância. O líder da matilha Preta de lobinhos do grupo de escoteiros Ibiraiaras, também lidera sua fazenda como se fosse a peça principal do jogo. “Quando eu crescer quero ser do exército, ganhar bastante dinheiro, comprar uma fazenda e cuidar dos animais.” Enquanto o sonho de comandar uma grande fazenda

não se torna realidade, João Gabriel segue liderando a pequena “propriedade”, que possivelmente no futuro será lembrada com os elementos que formam a saudade. O que Hiltor, Ariovaldo e Diogo possuem em comum com João Gabriel? Ambos viveram (ou vivem, no caso do pequeno escoteiro) suas infâncias da forma mais plena possível. Sejam os brinquedos que Hiltor construía, ou os modernos carrinhos da coleção Hot Wheels de João Gabriel. Todos lembram (ou irão lembrar) suas infâncias a partir desses objetos, que ao longo do tempo se modificam, mas no fundo não perdem o sentido que possuem. Para Hiltor, Ariovaldo, Diogo e João, a saudade tem a forma de um brinquedo.


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VIVIANE HERRMANN

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Laura Gomes

O reflexo de uma lembrança

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Crônica

Uma fotografia, um gesto, uma palavra. Uma temperatura, um abraço, uma data. Sem precisar de permissão, elas aparecem e nos prendem em algo que só nós conhecemos. Os sintomas são fáceis de reconhecer: se você encontrar alguém estático e com um olhar vago, pode ter certeza: ele está lembrandose de algo. Imutáveis, muitas memórias têm como companhia sorrisos ou lágrimas. Talvez os dois ao mesmo tempo. Não existem fisicamente, mas se fazem sempre presentes. Nenhuma palavra explica o sentimento causado por aquela imagem que só quem viveu consegue entender. Memórias mudam atitudes, mudam caminhos. Fazem perder a concentração. Quem nunca fechou os olhos antes de dormir para lembrar algo? Cantarolou uma música recordando outro momento com a mesma melodia? Memorizou cada detalhe de uma fotografia para tentar fazer com que voltasse a ser o que era? Você pode dizer o que quiser para as pessoas, mas elas não vão entender. A mágica está naquele momento que é só seu, naquela paisagem que apenas você enxerga, no comentário que só você entende. Cerca de um ano atrás escutei que os jovens não poderiam conjugar um tempo verbal que se refere a um passado distante porque eles não têm memórias para tanto. Discordo. Memórias não são dádivas de quem é mais velho. Elas são o que somos e construímos a cada dia. Uma viagem que fizemos. A tão esperada formatura. O aperto no coração ao dizer adeus. Tudo está ali, naquele precioso momento entre o passado e o presente, o que éramos e o que somos. Talvez nem tudo seja como o planejado, mas sempre podemos contar com as nossas memórias para seguir em frente.

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GILSON OLIVEIRA

Izquierdo: são 75 anos de vida, 20 livros publicados e mais de 500 artigos em revistas científicas

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Esquecer é tão importante quanto lembrar

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O cérebro vem sendo estudado por Iván Izquierdo com rigor e paixão

É impossível estar com Iván Izquierdo e ficar indiferente a esse homem. Aos 75 anos, ele fala dos complexos mecanismos da memória como quem fala sobre um assunto banal. Mas não pense que por ser um dos maiores pesquisadores da memória ele é diferente de você. “O cérebro nos trai”, explica, ao esquecer o nome de um filme. No rosto e nos cabelos brancos, as marcas do tempo. Tempo esse dedicado ao estudo da memória. Nascido na Argentina, em 1937, o neurocientista é naturalizado brasileiro há mais de 30 anos. Ser membro da National Academy of Sciences dos EUA é apenas uma de suas distinções.

mória é apaixonante”, define. Ao ser questionado sobre as suas próprias recordações, ele não sabe o que dizer. Lembra-se dos rostos e nomes das professoras e dos amigos. Recorda-se do frio que fazia na Argentina e, principalmente, em Córdoba, onde morou muitos anos. E ainda dos 15 graus negativos que enfrentou nos Estados Unidos. “Pensei que ia morrer. Não sei o que as pessoas veem de bonito na neve.” Em seu escritório, no Centro de Memórias do Instituto de Pesquisas Biomédicas da PUCRS (IPB), em meio a muitos livros e revistas científicas, Izquierdo conversou com o Unicom.

bral. Não é uma coisa que acontece, é uma coisa que existe, que vem junto com o cérebro. É função de boa parte do cérebro. E, a partir das experiências, que podem ser das mais diversas, a gente gera a formação de arquivos, onde essa informação eventualmente é mantida, conservada e evocada. A primeira aquisição de memória se denomina aprendizado. São memórias que vão mudar nosso comportamento. Aprendemos a caminhar, a falar, a gostar de ou a não gostar de coisas, pessoas, situações. Aprendemos o que fazer quando sentimos fome, medo, amor. Aprendemos tudo isso.

Iván Izquierdo é daquelas pessoas que amam o que fazem. “A me-

Como ocorre a memória? A memória é uma função cere-

A memória é seletiva? Sim, pode ser seletiva. O cérebro

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decide que memória guardar e que memória não guardar. Um dos critérios que tem é verificar se aquilo que está recebendo a cada momento já está arquivado ou não. Se já está arquivado, geralmente o cérebro rejeita o novo, guarda o que já tem. Se não está, pode guardá-lo, se acha que é interessante. O cérebro seleciona isso. Então o esquecimento também é seletivo? Sim, e isso também é uma coisa que o cérebro faz. Parte do esquecimento talvez seja involuntário. Perdemos a maior parte das coisas que recebemos. Por exemplo, quem é capaz de se lembrar da tarde de ontem por completo, cada um dos incidentes? Ninguém. Nós lembramos de fragmentos. Os idosos, mas os mais jovens também, esquecem coisas recentes, mas lembram de coisas que ocorreram há muito tempo. Por que isso acontece? Isso se nota muito nos idosos. Parte dos idosos prefere lembrar coisas de antigamente. Porque o antigamente para o idoso representa a época em que ele é jovem, era feliz, era poderoso, era bonito, essas coisas. E depois isso se perde. Eu, claramente, prefiro me lembrar de quando podia varar uma noite sem sono dançando. E não da noite passada em que eu dormi mal. Então é melhor se lembrar dos bons momentos e não dos momentos ruins. O cérebro decide isso, sem que nós possamos interferir. Geralmente poucas pessoas pensam que quanto mais velhos ficamos, mais memórias temos.

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REPORTAGEM

JONARA RAMINELLI REPORTAGEM

Tínhamos sugestões de pauta parecidas e por isso fizemos juntas. Entre a busca por novos cases, aquele que já havia confirmado morreu. Eis que surge o grande Izquierdo para dar vida e peso a nossa matéria. A conversa que tivemos com ele nunca sairá da memória.

Podemos dizer, então, que é importante esquecer algumas coisas? Sim, porque sem esquecer não podemos aprender nada novo. Por exemplo, uma coisa que nós todos já esquecemos aqui é a terceira palavra que eu disse na frase anterior. Já esquecemos, não sabemos qual é. Se não tivéssemos esquecido a palavra, ela estaria ocupando meu espaço e passaria a atrapalhar. Assim como atrapalharia lembrar-se de toda a tarde de ontem. A emoção influencia na formação da memória? Muitíssimo. As memórias que mais lembramos são aquelas que estão mais carregadas de emoção. Sejam positivas ou negativas. Sejam positivas ou negativas. Todo mundo lembra onde estava, com quem estava e fazendo o quê no dia em que morreu uma pessoa muito famosa. Por exemplo, para quem tem idade suficiente, Airton Senna. O dia

A nossa memória é fiel à versão original dos fatos? Nem sempre. Geralmente é. As memórias geralmente são verdadeiras. Porém, construímos muitas memórias falsas ao longo dos anos. No momento em que a memória fica guardada, passa a poder se misturar com outras memórias. É comum uma pessoa de certa idade misturar pessoas e nomes. Para que pudéssemos ilustrar o processo da memória, seria correto dizer que a memória tem aquele determinado espaço e para que novas memórias venham surgindo, algumas têm que ser apagadas? Em parte, sim. Só que o espaço é enorme. As memórias são feitas por sinapses. Existem 100 bilhões de neurônios e cada neurônio faz sinapses com outros mil ou 10 mil. São muitíssimos. Então uma memória que ocupe um espaço de, sei lá, vários milhões de sinapses, é pequeno em relação ao espaço total disponível. Existem fatores que podem estimular a perda precoce da memória? Sim. Problemas de alimentação, a falta de leitura, a falta de estímulo. A memória, como toda função cerebral, funciona melhor quanto mais utilizada. Se não usamos os músculos da perna, ela atrofia. Por isso se recomenda atividade física. A memória é a mesma coisa. E a melhor forma de exercitar, e isso já está muito bem estudado, é a leitura. Isso eu posso demonstrar com muita facilidade. Faça-o, por favor. (Pega uma folha com o desenho do neto, onde está escrito o nome Francisco). Vamos ver essa palavra. Começo a ler e o meu cérebro lê a letra F. Imediatamente é feito um scanning pelo cérebro de todas as palavras que ele conhece com a letra F. Francisco, Fernando, Fernanda, Francisca, feliz, famoso... Essa atividade é imensa. Usa muitíssimo os neurônios, exercita. Instantaneamente depois, lê-se a letra R. E a lista anterior será apagada e será feito um novo scanning de todas as palavras que começam com FR. Cada vez se faz um inventário novo. E cada um desses inventários exige muito trabalho, muito exercício de muitos neurônios. Exercita toda a memória. Assim com cada letra seguinte. E aí chuta e acerta: Francisco. Lemos muito por chute. Arriscamos interpretações.

O que as pessoas podem fazer para melhorar a memória, além da leitura? Além da leitura? Ler mais. Não tem nenhuma outra atividade, nenhum jogo, muito menos palavra cruzada. Não tem nada que chegue perto do simples fato de ler. Aquela pessoa que fala que ler é chato, não sabe como vai ser chata a vida dela sem memória. Uma das suas linhas de pesquisa se refere às alterações da memória como envelhecimento normal. Isso é algo natural? É uma tendência acontecer com as pessoas? É tendência acontecer com todos os animais. Todos nós perdemos neurônios, perdemos células em geral. Na medida em que ficamos mais velhos, morrem mais neurônios. Nesse momento em que conversamos aqui, devo ter perdido mil e vocês talvez 500 neurônios cada uma. Isso é parte da vida. Isso explica a lentificação da memória com a idade. Outro aspecto é que a quantidade de memória passa a ser cada vez maior. E não é fácil para a mesma máquina, agora com menos células, lembrar-se de mais coisas. E na Doença de Alzheimer, como se dá essa perda de memória? Na Doença de Alzheimer a perda é muitíssimo maior e é causada por lesões. Lesões no aparelho sintetizador de proteínas. Tem duas proteínas que ele utiliza que se chamam beta amiloide e proteína tau, que são produzidas em excesso pelas células que desenvolvem Alzheimer. Das doenças degenerativas, para mim, Alzheimer é a mais grave delas, porque acompanha uma enorme despersonalização. Começa, em certo momento, por não lembrar quem são os filhos ou os amigos mais próximos. Perde os dados guardados no arquivo “meu filho, fulano de tal”. E isso é grave. E pode chegar a ser terrível no final, quando a pessoa nem da linguagem se lembra. Quer água e não pode pedir, não sabe como se chama aquilo que quer pedir. É diferente da velhice. Na Doença de Alzheimer a degeneração de determinado grupo celular causa uma perda grande e mais rápida. E o senhor, que pesquisa e entende tanto de memória, como considera a sua memória? Mais ou menos, não é nada do outro mundo (risos). Depende. Quanto mais a uso mais me lembro. Quanto mais carga emocional tem, mais me lembro, claro. É, minha memória deve ser mais ou menos normal.

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teem de das das ororda, ira miue to. r, a as, s o me, so.

VANESSA COSTA

em que ele morreu todo mundo sabe com quem estava e etc. E ninguém tem ideia do que fez no dia anterior ou na semana seguinte.

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D a M AU R

Tempo de glória e bola na rede

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O passado do Cachoeira Futebol Clube ainda provoca saudades em seus torcedores

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MAURÍCIO BESKOW REPORTAGEM

Lembro-me de assistir aos jogos das populares e, por um rádio de pilha, acompanhar um time que me ensinou que a paixão é o melhor combustível para as dificuldades.

Gols, ídolos, derrotas, vitórias e, de repente, um vácuo que predominaria durante cinco anos no Estádio Joaquim Vidal. Uma época em que a cidade orgulhava-se em ser representada pelo vermelho e branco. Sem o barulho do estufar das redes e das manifestações vindas das arquibancadas, uma torcida sofre com o silêncio de um clube quase centenário que levava o nome da cidade pelos gramados Estado afora. Como personagem dessa história, Jacy Oliveira da Rosa, “Nega Véia”, 75 anos, ex-jogador, treinador e dirigente do juvenil, lembra da partida contra o Nacional de Porto Alegre ocorrida há 54 anos, onde enfrentou uma lenda do futebol brasileiro, Tesourinha. “Não acreditava que estávamos no mesmo campo, não distinguia se era sonho ou realidade. Um jogador comparado à Garrincha na minha frente e eu com o dever de pará-lo. Em um único lance, ele driblou três jogadores, eu inclusive, para dentro com o pé esquerdo e com o direito tocou lá no ângulo”, revela, com um sorriso de quem nunca se desprendeu do futebol. O placar foi 7x4 para o Nacional. Uma arbitragem equivocada ocasiona desfechos imprevisíveis. O exzagueiro lembra-se do jogo contra o Cruzeiro de São Gabriel. Ao final da partida, a torcida se dirigiu à Rádio Cachoeira para linchar o árbitro. Com

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Jacy é remanescente do tempo em que zagueiros jogavam duro, sem serem desleais

vio, dea possibilidade, Altibano Sávio, legado da federação, encontrou uma alternativa. Ainda não existia a Ponte do Fandango, para sair da cidade era preciso ir de barca até a localidade do Seringa, proximidades da BR153. Então, Sávio avisou a delegação cruzeirense para que o esperassem lá, que ele mesmo levaria o árbitro escondido no carro para embarcá-lo com o time. “Nosso técnico, Humberto Guidugli, ouviu esse trecho da conversa e, para melhorar o ambiente do vestiário, se dirigiu à janela, e começou a exclamar: ‘Vão matá-lo, não façam isso. Estão pisoteando-o. Fomos roubados, mas ele não merece isso!’ E quando nos dirigimos à janela, ele nos impedia de ver a atrocidade. Naquele momento, nos sentimos vingados”, reitera. Era tudo mentira, claro. Considerado pelo Guiness Brasil 2009 como o maior historiador do futebol amador do país, Sérgio Cláudio pesquisou as origens de 1175 clubes amadores, sendo 145 de Cachoeira do Sul. Médico veterinário aposentado, lembra-se da comemoração realizada na vitória por 2x1 sobre o Grêmio em 1965, em que jogadores, familiares e torcedores reuniram-se na Sociedade Rio Branco numa festa animada ao som de bolero pelo Conjunto João Roberto. “Nestas ocasiões, a cidade ficava ornamentada com as cores do clube, a alegria e o orgulho

ficavam estampados nos rostos dos cidadãos”, diz. Na época em que naftalina e gemas de ovos eram usadas nas massagens e a troca de numeração da camisa era uma forma de fugir da forte marcação, pequenos detalhes, como a simples mudança da cor da bola, faziam toda a diferença. “Em um clássico “Gua-ca”, o centroavante do Guarani, Gabriel Choaire, míope, sofria com a cor escura da bola, mas, desde o instante em que a bola começou a ser pintada de branco, passou a enxergá-la melhor, virou goleador e grande destaque da região”, comenta. Delegado de polícia aposentado e ex-presidente, Roque Etges, 74 anos, acredita que para fazer futebol é preciso apoio popular, amor à camisa e entusiasmo. O ex-dirigente lembra que a soma dos três fatores levou o clube à elite do futebol cachoeirense em 1975 . “Enxergamos um mar de carros a nos esperar na Ponte do Fandango. O centro da cidade estava lotado, não conseguíamos entrar na sede do clube, então fomos carregados por cima pela multidão. Foi a maior recepção ocorrida em Cachoeira.” A saudade talvez deixe de ser saudade a partir do segundo semestre deste ano, quando o alvirrubro disputará a série A-2 do Gauchão em sua volta ao profissionalismo. Enquanto a bola não rola novamente, os torcedores sonham com dias de glória.

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Memórias de um homem que passou mais tempo de sua vida preso do que em liberdade

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VANESSA SCHULER REPORTAGEM

Brinquei pouco de boneca e muito de Lego. Juntar peças para formar objetos era um desafio, assim como a reportagem, uma reflexão sobre o significado da vida.

Carlos*, 52, possui inúmeros motivos para ser banal e rancoroso. Mas, hoje, está focado na vida e cheio de esperanças. Ele é um dos 535 apenados do Presídio Regional de Santa Cruz do Sul. Talvez o mais antigo deles, pois entrou lá jovem, com 26 anos. Terceiro filho mais novo entre 12 irmãos, morava com sua família em Vale do Sol. Desde os 7 anos, Carlos e os irmãos trabalhavam em casas de família como agricultores, pois os pais não tinham condições de sustentar todas as crianças. A mãe era faxineira e o pai, ‘’um vagabundo alcoólatra’’, como ele mesmo descreve. Nunca foi à escola e pouco conheceu sobre limites e educação. Sempre foi dono de si. Saiu aos 9 anos de casa, por fome e em busca de trabalho. O destino traçou no tempo uma vida de amargura e pobreza no coração, na alma e no olhar de Carlos. O único cristal de vidro que Carlos nunca deixou quebrar foi a paixão pelas peladas. Por curiosidade, pegou um ônibus até Santa Cruz do Sul e foi assistir a um treino da equipe do Futebol Clube Santa Cruz. O menino de olhos atentos e encabulado foi chamado ao campo. – O que está fazendo aqui? Perguntou o treinador da equipe juvenil. – Eu vim olhar, gosto de futebol. E foi assim que Carlos deu o pontapé inicial da sua carreira como goleiro: um sonho sincero, em troca de uma chance. Bom de bola, bom de luta e bom de cama. Assim, Carlos se descreveu ao conquistar o sucesso nos gramados. – Chovia mulheres. Não sei? Todas me queriam. Na volta para casa, após um treino de futebol, Carlos ouviu atrás da porta uma conversa entre a irmã e a namorada. Escutou da boca de sua garota que não era homem o suficiente para ela. O sangue subiu à cabeça e ele estuprou a própria namorada. A falta de juízo lhe custou 44 anos, nove meses e cinco dias de pena. Carlos foi enquadrado em vários artigos, entre eles, abuso sexual e ameaça de

morte. A falta de lucidez do ato, segundo ele, foi fruto do passado, pois, na infância, a violência sempre fez parte de sua rotina. Não foram uma nem duas vezes que viu suas irmãs se prostituindo em troca de dinheiro. Nos primeiros anos de confinamento, Carlos confessa que levou na brincadeira. Até o quarto ano de prisão, arquitetou fugir com outros detentos e o fez. Afinal, o muro da penitenciária era o seu maior inimigo. Era o muro que o separava de sua liberdade. Entretanto, depois de 9 anos enclausurado, o muro passou a ser somente um muro e ele, parte da instituição. Não entende até hoje como está vivo, como suportou as agressões dos outros presos e a solidão que sentia na cela. Os anos atrás das grades fizeram com que Carlos perdesse a noção de tempo e de espaço. Na Rua Marechal Floriano, em Santa Cruz do Sul, o que antes era o bar de um amigo, hoje é um posto de gasolina. As coisas mudam em duas décadas e, agora, Carlos pouco reconhece da cidade. A única coisa que não mudou em vinte anos foi a paixão pelo futebol. O esporte lhe deu tudo, mas também lhe tirou. Para quem nunca aprendeu regras e educação, o destino encontrou na prisão, uma forma de ensinar limites. Assim como fazia nos

gramados na década de 70, o goleiro agarrou a oportunidade de ressocialização como se fosse a última jogada antes do apito final. O futebol, que foi o grito de independência de Carlos, hoje é o grito de esperança. Em 2012, Carlos respira duas vezes, conta até dez e pensa antes de dizer ou fazer. Não age mais por impulso ou rancor. Durante as oito horas diárias de trabalho na fábrica de móveis do presídio, desempenha a função com o maior cuidado. Respeita os colegas e capricha no acabamento dos pufes. Espera, ansioso, pelo dia em que a assistente social da instituição entrará pela porta de seu quarto no albergue e dirá: - Vem Carlos, você vai trabalhar na equipe de futebol do Santa Cruz. Depois de tantos anos preso é que a vida passou a ter sentido. O destino tratou de explicar as razões dos fatos e as novas vivências deram conta de semear valores bem diferentes dos antigos. As memórias de quem viveu a vida atrás das grades refletiram no significado da existência. Carlos percebeu que é o próprio ser humano quem dá sentido à vida e que sempre há uma segunda chance. *Carlos: nome fictício do apenado do regime semi-aberto do Presídio Regional de Santa Cruz do Sul

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ILUSTRAÇÃO: AMANDA MENDONÇA

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Da ascensão ao fracasso

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Augusto Cezar, 51 anos, não esquece a viagem, a canção, o programa

Depois de apresentações no “Clube do Bolinha”, viajo agora para São Paulo para cantar no palco do “Cassino do Chacrinha” no ano de 1985. Ainda sou jovem, estou com 24 anos e este é meu terceiro disco. Cinquenta mil cópias vendidas, com distribuição nacional pela Polygram. Programa ao vivo. Canto Na hora do banho para todo Brasil. Essa é a primeira vez que estou ao lado do Chacrinha, dividindo palco com Sidney Magal e Crystian & Ralf. Acostumado com Cachoeira do Sul, já morando em Porto Alegre, mas nada perto de São Paulo. Outras vezes cantei nas rádios Globo e Tupi, mas agora é a minha imagem que está no ar na Rede Globo, na tarde de sábado.

GABRIELA MELLER

O dia em que estive no Chacrinha Quem banca minhas viagens é a gravadora Acit. Meu contrato com ela já rende três discos. O primeiro é uma regravação do clássico Manhã de amor. Já o segundo Amor primeiro, e este terceiro, Na hora do banho, faz com que todas as “Chacretes” dancem minhas músicas. Falo da Índia Amazonense, Sonia Rangel, Rita Cadillac, Rose Cleópatra, Mara Prado, Sandra Veneno, Regina Polivalente, Leda Zeppelin, Kátia Pavão, Fátima Boa Viajem, Gracinha Copacabana, Gracinha Portelão e Chininha. Elas arrancam suspiros de muitos telespectadores. Comecei a carreira com 21 anos. O gosto pela música nasceu em casa. Minha família toda “bate” um violãozinho. Rodei o país. Foram dias de via-

gens, shows, participações em programas de TV. Já estive na Bandeirantes com as festejadas “boletes”, no programa apresentado por Édson Cury (Bolinha). Lembro da belíssima Loraina e da “bolete que nunca sorria”, Zulu. Década de 80. Viajo sozinho, nenhuma câmera fotográfica na mala. Meu nome de batismo é Cezar Augusto, mas há outro cantor com este nome, por isso resolvo ser o cantor do que muitos chamam de estilo brega, Augusto Cezar. Parece piada, mas como vender discos sem a mudança de nome? Hoje a única lembrança são os LPs, antigos bolachões de vinil, além de ter guardado as memórias de uma época de ouro. Fotos não tenho, mas o sucesso, este guardarei para sempre.

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Lembranças do Velho Guerreiro

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GABRIELA MELLER REPORTAGEM

Minha memória falhou no dia da reunião de pauta. Se não fosse o lembrete da repórter Leticia Pereira, esta matéria não estaria na edição do Jornal Unicom.

Lembrou do Chacrinha? E do seu programa, quando ele jogava bacalhau para o público? Não lembrou do bacalhau? Mas lembrou das moças que dançavam no programa, as “Chacretes”? Abelardo Barbosa, o Chacrinha, estreou na televisão em 1956, com o programa Rancho Alegre, na TV Tupi, na qual começou a fazer também a Discoteca do Chacrinha. Em seguida foi para a TV Rio e, em 1970, foi contratado pela Rede Globo, onde chegou a fazer dois programas semanais, Discoteca do Chacrinha e A Buzina do Chacrinha, onde apresentava calouros, distribuía abacaxis e pergun-

VIVIANE HERRMANN

tava para a plateia: “- Vai para o trono, ou não vai?”. Dois anos depois, Abelardo voltou para a Tupi. Em 1978 transferiu-se para a TV Bandeirantes e, em 1982, retornou à Globo, onde ocorreu a fusão de seus dois programas num só, o “Cassino do Chacrinha”, que fez grande sucesso nas tardes de sábado. O consagrado comunicador faleceu em 30 de junho de 1988, deixando imagens, fotografias e muitos admiradores da sua trajetória. Com seus programas fez com que singelos artistas como Augusto Cezar divulgassem seu trabalho, além de promover venda de discos e contratos para shows.

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DAIANA CARPES

GABRIELA MELLER

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Memórias de um vovô internauta Aos 85 anos, Guilherme Stockey é exemplo de força de vontade, coragem e otimismo

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DAIANA STOKEY CARPES REPORTAGEM

Meu avô é uma daquelas figuras que sempre têm histórias para contar. Após escolhermos a temática do Unicom, Memórias, logo lembrei do vô Guilherme e seus causos.

Desde cedo, ele conheceu na própria pele o significado das palavras “lida, suor, cansaço físico e determinação”. Trabalhou como leiteiro e com o pequeno salário que recebia, custeava seus estudos. Concluiu o Curso Técnico Agrícola. Mas, ele queria mais e desejava mais. Por isso, fez o concurso para Fiscal da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI) do Banco do Brasil e foi nomeado para atuar em Cachoeira do Sul. Sua aposentadoria veio há 30 anos. Entretanto, o vovô não queria descansar. Resolveu ser professor do curso superior de Economia da Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e Administrativas de Cachoeira do Sul. E por falar em graduação, ainda quando era aluno de Economia, havia uma colega para lá de especial em sua turma. Era uma de suas filhas, a Annelise, que cursou Ciências Contábeis. Como os cursos tinham disciplinas em comum, muitas vezes se encontravam na mesma sala de aula. Ambos foram diplomados no mesmo dia. Uma emoção e tanto, para um senhor que estava beirando os 60 anos! Inquieto, o vovô não parou por aí e fez especialização na área. Na gaveta dos diplomas, ele tem guardado o de Técnico Agrícola Especializado em Pecuária, Economis-

ta, Pós em Economia pela PUC (RS) e a Especialização em Curso Basic, também na PUC. E na “cuca” do senhor Stockey, ele domina a língua alemã e a espanhola, lê e entende o francês e o inglês, aprendidos por meio de muita leitura, sem auxílio de professor ou curso. Um verdadeiro autodidata. Realmente, a vida deste senhor foi e é bem agitada, só pelos seus hobbies podemos ter uma noção: criou pombos-correios, colecionou selos, foi chefe escoteiro e sócio do Lions International, é radioamador, e na época de solteiro, foi muito namorador. Hoje, se dedica à internet, às redes sociais e às suas viagens. Faltou citar seus dotes culinários: quando a família está reunida, ele vai para a cozinha e prepara um prato mais delicioso que o outro. São receitas que só de lembrar dão água na boca. Como o galeto, que só poderá ser servido acompanhado pelas polentas preparadas pela vó Helga. Mas a limpeza da cozinha é tarefa das netas e filhas, que não mostram nenhuma empolgação com tamanha pilha de louças que as esperam na pia. Como ele mesmo diz, o otimismo é a regra de sua vida. Será que foi por isso que conseguiu vencer tantos obstáculos e com tamanha energia?

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“Como faço para fotografar com temporizador?” e “O sinal do flash, dentro de um círculo e com um traço na diagonal, diz o quê?” Essas foram algumas das típicas perguntas de um senhor de 85 anos, Guilherme Stockey, meu avô. Recebi estas dúvidas em seu segundo e-mail, intitulado de Help II. Na mensagem anterior, continha uma lista de questionamentos que o vovô internauta ainda não tinha desvendado em seu novo “brinquedinho”, uma câmera fotográfica semiprofissional. O seu Stockey, além de gostar de novas tecnologias, é um amante das redes sociais. Leitor assíduo de jornais diários, expectador de telejornais e apaixonado por palavras cruzadas. Mas se engana quem acha que ele sempre teve esta vida tranquila, de sombra e água fresca. O octogenário é filho de colonizadores alemães. Seus pais passaram por grandes dificuldades até fixarem moradia no Brasil. Em busca da paz e fugindo de uma Alemanha em ruína, devido a Primeira Guerra Mundial, eles partem da cidade de Hagen, capital da Westfália, para o estado gaúcho. O vovô conta que o lote de terras que seus familiares compraram era de mata virgem e os animais selvagens eram seus vizinhos mais próximos.

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O peso das lembranças e o vazio da saudade Enquanto uns lembram com carinho, outros preferem esquecer para aliviar a dor

Tudo o que julgamos relevante um dia, de alguma maneira fica guardado na memória. Às vezes, mesmo sem querer, somos pegos revirando mares de lembranças sem fim, buscando reencontrar momentos que já se foram e não voltam mais. A situação é particularARQUIVO PESSOAL

Nicolas sentado no colo da mãe, Mara, ao lado dos irmãos

“Resta uma lembrança boa” Ainda que tímido, um sorriso escapa no canto da boca de Mara Pante, 52 anos, ao lembrar o filho Nícolas. No início da conversa, ela recorda os olhos verdes do menino e elogia: “Eles brilhavam, ele sorria com os olhos’’. Dos três filhos, Nícolas era o mais próximo e parecido com a mãe. O parceiro de aventuras deixa de lembrança grandes momentos.

mente complicada quando aquele que partiu é um irmão ou um filho. Nestes casos, a dor toma dimensões desproporcionais. É o que contam Elmes Edenir do Nascimento, 37 anos, e Mara Pante, 52. Para eles, memórias é tudo o que resta. A situação costurada pela vida, no dia 7 de março de 2012, ficará para sempre marcada nas pessoas mais próximas. Quando voltava para a casa do pai, com quem morava, Nícolas sofreu um mal súbito e foi acudido por pessoas que passavam pelo local, na rua Félix Hoppe. Sem qualquer documento de identificação, foi internado em coma sem que a família fosse avisada. Naquele dia, navegando por um portal de notícias da região, a namorada do outro filho de Mara se deparou com as características do cunhado divulgadas no site. “Tudo aconteceu muito rápido.” No dia seguinte, ao meio dia, Nícolas, 20 anos, faleceu, diagnosticado com leucemia mielóide M3. Os jogos do time do coração, o Internacional, paixão divida por mãe e filho, hoje já não têm a mesma graça. As aventuras de rapel e escaladas deixam agora de ser tão divertidas e desafiadoras. A vida tratou de propor à mãe o maior desafio que ela poderia enfrentar. O barulho das sirenes de ambulância remete diariamente a perda de Nícolas. Mesmo assim, Mara prefere lembrar dos bons momentos que teve a oportunidade de desfrutar ao lado do filho, das risadas, do abraço. Sem falar nos olhos verdes. Ah, os olhos, que faziam parte de seu sorriso.

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“Não há distâncias suficientes”

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VANESSA KAEMPF REPORTAGEM

Para compor a matéria, metade razão, metade coração. Sem essa de não se envolver! É importante a fonte perceber que você se importa, mas sem perder o foco.

Os instrumentos, dispostos por todos os lados da casa são, além de equipamentos necessários à profissão, uma paixão compartilhada pelos irmãos. Com o olhar vago e imerso em um tempo distante, não foram necessárias lágrimas para evidenciar a falta que Jodenir faz à vida do irmão, Elmes Edenir do Nascimento, o Edinho. ‘’Vivo uma vida de bêbado, sempre anestesiado, tentando não pensar no que aconteceu.’’ São muitas recordações de uma vida juntos, onde inclusive as brigas e bate-bocas abrem espaço para a saudade. O acidente que levou Jodenir do Nascimento, 22 anos, ao óbito, ainda é uma incógnita na vida da família. Noite de sábado, 15 de outubro de 2005, por volta das 19h20, o telefone de Edinho toca. Edinho é informado sobre o acidente de Jô e a motocicleta Honda Bis, na Avenida Paul Harris. Já no hospital, vê o irmão pela última vez em vida, e se recorda da

erior. Briga briga que tiveram na noite anterior. viam tido. feia, se não a mais feia que já haviam O irmão teve morte cerebral. Uma fuga desesperada para Austrália frustrou qualquer tentativa de apagar as lembranças e os sonhos a dois, interrompidos naquela noite. O emistério do acidente nunca foi rehusolvido. Nenhum culpado, nenhuma explicação sobre o ocorrido. Hoje casado, com dois filhos,, he Edinho vê neles traços que lhe fazem lembrar diariamente do irmão. Os trejeitos de Iago, o filho mais velho, são muito semelhantes aos de Jô. As brigas o entre pai e filho, a risada. Tudo de faz lembrar. A música, atividade ezes diária na vida de Edinho, às vezes se faz impossível de ser tocada, arranca lágrimas e transborda uma saudade que nunca terá fim.

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Pessoas que conheci, alguém que um dia fui A janela está fechada, mas posso ver entre as frestas que o sol ainda não despertou. A noite é silenciosa no terceiro andar desse prédio. 5h10, anuncia o relógio de pulso que deixara ao lado da cama. O sono me abandonou. Teria a enfermeira aplicado a dose correta do medicamento? Adriana. Os pensamentos talvez sejam os únicos a não me deixarem. Eu sinto seu doce perfume, vislumbro seus belos olhos castanhos e consigo até mesmo ouvir sua voz. Voz rouca, dos cigarros que fumava compulsivamente. As lembranças me fazem pensar. Por que não havíamos ficado juntos? Talvez fosse a nossa imaturidade. Embora, é verdade, Adriana problematizasse o relacionamento com o meu temperamento. “Você nasceu com a lua em sagitário, Marcos.” Eu fingia que aquilo fazia algum sentido e sentenciava a discussão com um beijo. Até mesmo a astrologia faz sentido quando se ama. Ainda é escuro na rua. Por que havíamos terminado? Creio que um dia ela se cansara do meu silêncio. Éramos bons amantes, é verdade, mas não nos entendíamos. “Você não compreende, Marcos, mas você é meu inferno astral. Nunca poderia dar certo.” Outras amantes surgiram, mas nenhuma me fez esquecer aquele belo sorriso. E aquela voz, rouca de cigarros. Minhas pernas doem. Não virá a enfermeira fornecer os medicamentos da manhã? Alguns sons surgem na rua, ainda tímidos, mas já deixam o ambiente um pouco mais afável. O quarto é mais alegre durante o dia, quando é possível ouvir os sons da cidade, com seus carros e caminhares apressados das pessoas. Talvez pudesse falar com Flávio quando o dia chegasse, eu penso. Mas ele não iria atender às minhas ligações. O aparelho móvel iria mostrar quem ligava e ele fingiria estar ocupado, atento aos cálculos que dispunham de toda a sua atenção. Que assuntos ele poderia ter para falar com seu velho pai? Não costu-

mávamos nos falar, afinal. Durante muito tempo eu me esquivara de minhas responsabilidades paternais. Coisas que, afinal, eram fatigantes quando o pequeno Flávio requeria de minha atenção. Estava muito mais interessado em Sônia, nossa jovem e bela vizinha. Como eram belas aquelas fartas coxas. Tão linda ficava em seu vestido azul, à francesa, roubando para si os olhares dos homens da rua. E de algumas mulheres também, é verdade. Também havia Carmen, a doméstica. Mas com ela os momentos eram mais raros, pois não era fácil manter a minha esposa longe de casa. “Miriam, você não vai ao chá na casa de Margaret?”. E Miriam se produzia para o encontro na casa das amigas, feliz por ter um marido tão compreensivo. “Cuide bem dos meus meninos”, advertia Carmen. E ela cuidava, de fato. Um dia cansou de fingir que não sabia das Sônias, das Carmens e de todas as outras mulheres que despertavam a atenção do marido. Deixou-me, dizendo que havia encontrado finalmente um amor. Eu também havia, mas pensei que seria maldade demais falar de Adriana em um dos raros momentos em que ela expunha seus sentimentos. O pequeno Flávio viveu com a mãe, é claro. Pouco contato tivemos durante o seu crescimento. Lembro de ter ido a sua festa de formatura. Não poderia esquecer a sua linda professora de Português. “Sou Marcos Vinícius”, me apresentei. Ela ficou encantada ao conhecer um jornalista tão proeminente. Bons tempos. O dia começou, posso ver por entre as frestas da janela. Talvez eu ligue para o Flávio. Na minha idade, não há de se temer os riscos. Talvez ele queira se despedir do velho pai. Talvez até Miriam venha me ver hoje. Ou Adriana. Daqui a pouco poderei trocar algumas palavras com a enfermeira. Ela teria aplicado a dose correta do medicamento? Minhas pernas doem.

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ILUSTRAÇÃO: AMANDA MENDONÇA

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FOTOS: LUCAS SILVA

O pediatra que sonhou com o museu As memórias de Flávio Seibt, um dos fundadores do museu de Venâncio Aires

LUCAS SILVA REPORTAGEM

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Ao passar em frente do museu, em uma tarde qualquer, surgiu a ideia de contar estas memórias.

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Recém-chegado de uma sessão de fisioterapia, em decorrência de problemas nos ombros, o diretorfundador do museu de Venâncio Aires, Flávio Seibt, acomoda-se em uma alta cadeira retrátil. Na parede, quadros com retratos referentes ao prédio do museu. Ao lado direito da sua mesa de trabalho, uma estante abarrotada de publicações antigas. Seibt é um sujeito afável, comunicativo e de um bom humor que nem mesmo se afeta pelos constantes toques de campainha. Ao relembrar as histórias relativas ao museu, Flávio Seibt não esconde o ar nostálgico. Parece mergulhar numa espécie de túnel do tempo e retornar aqueles dias gloriosos. Dias de sonhos que não pertenciam mais somente a ele, mas a todo povo venâncio-airense. O pediatra aposentado conta que o seu interesse por antiguidades surgiu em uma manhã de sábado, que não sabe precisar exatamente ano e mês, após receber um relógio de corda do pai de um paciente como forma de agradecimento pela consulta. Desde então, começou a colecionar objetos antigos para, segundo ele, doá-los a um futuro museu na cidade. Anos se passaram e o pediatra decidiu ceder a sala 13, do edifício Seibt, para concretizar o sonho do museu. Lembra, com brilho nos olhos, da inauguração do museu na cidade, que aconteceu no dia 26 de outubro

de 1994. O evento contou com inúmeras pessoas. Mostrou, segundo Seibt, a necessidade de uma sede maior para acomodar o acervo. Quando a possibilidade do museu de Venâncio Aires possuir uma sede mais ampla, parecia uma miragem. O então coordenador do departamento de museus, Flávio Seibt, ficou sabendo por intermédio de uma amiga que o Edifício Storck, situado no centro da cidade, estava à venda. Procurou o presidente do Núcleo de Cultura de Venâncio Aires, Lineo Felten, e sugeriu a ideia de comprar o prédio com a ajuda da comunidade. “Tínhamos um inconveniente, não possuíamos nenhum centavo em caixa”, conta Seibt. Ele lembra que, após três reuniões com a família Storck, proprietária do edifício de mesmo nome, ficou definida a forma de pagamento: a divisão do prédio em 1398 CUBs (Custo Unitário Básico da Construção Civil), com um prazo de três anos para a quitação total da dívida. A partir deste momento, a cidade presenciou uma grande campanha de arrecadação financeira para a aquisição do edifício junto à comunidade da cidade. Com a possibilidade de poder parcelar em até 24 vezes e com ampla divulgação dos veículos de comunicação do município, a campanha se tornou um sucesso. As memórias daqueles tempos de engajamento popular em torno da compra do edifício Storck causam em Seibt sentimentos de saudade, alegria

Flávio Seibt, destaca o caráter comunitário da entidade

e emoção. A história do museu e de Flávio Seibt se confundem. Há quase 20 anos trabalhando em prol do museu, esbanja disposição, empolgação e orgulho ao falar do modelo de gestão comunitária, onde o acervo é proveniente de doações, a entrada é franca e a compra do edifício foi realizada de maneira coletiva. Com orgulho, ressalta o fato de o museu recentemente ter sido tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul (Iphae/ RS). Porém, não esconde a sua indignação com o fato de não possuir, na cidade, e até mesmo no edifício Storck, uma única placa, indicando a existência do museu no local. Pai de três filhas, Seibt divide sua vida e a da família em antes e depois do seu envolvimento com o museu. Conta que após o início de suas atividades no museu, aprendeu a falar alemão, língua de origem da família, aperfeiçoou o inglês e atualmente estuda francês. Para o mês de setembro, uma folga na rotina diária de museu já está agendada: uma viagem para França, com o intuito de aperfeiçoar a língua do país e também visitar a filha e a neta que moram na “Cidade Luz”. Este é Flávio Seibt, o pediatra que colecionava peças antigas e um dia sonhou como um museu na sua cidade, e com ajuda da comunidade de Venâncio Aires, possibilitou à Capital do Chimarrão um “museu de muitos donos”.

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Memórias póstumas do Palácio dos Sonhos Em 1953, Cachoeira do Sul olhava pela primeira vez para um mito: o Cine Ópera Astral

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REPORTAGEM

Antes de começar a escrever eu já estava apaixonada pela pauta. Gosto muito de cinema e também guardo boas lembranças do Cine Astral. O difícil foi escrever tudo no limite estabelecido.

cola humilde e o cinema no centro da cidade não incomodava a professora e os alunos. “Íamos a pé, uma enorme fila indiana cantando e pulando na rua. Era uma festa. Muitos nunca tinham ido ao cinema.” Para os alunos, a emoção era a mesma. “Eu fui com a minha escola assistir ao Titanic. A cada dia uma turma diferente ia e a expectativa pra chegar a minha vez era muito grande”, lembra Cristiano. Para os apaixonados por terror e suspense, o Palácio dos Sonhos também abria as portas e se tornava um pesadelo. Maria Marques, 58 anos, lembra com horror de sua primeira e única visita ao cinema. Foi a convite da prima Elza, que “mentiu que era um filme de amor”. “Imaginei um romance, um conto de fadas. Só abri os olhos na hora de ir para casa”, recorda. “O noticiário tu assistiu”, brinca Elza, lembrando das notícias que antigamente passavam antes do filme. “Só!”, retruca a prima e as duas se perdem em boas lembranças. O Canal 100, cinejornal fundado por Carlos Niemeyer, mostrava imagens “de gols do Flamengo, Fluminense e São Paulo”, lembra Zé. Entre as propagandas, se destaca a Condor Filmes. “Antes da exibição do filme, aparecia um Condor. Aí todo mundo gritava: Schii, schi! E o pássaro sumia e aparecia o título do filme”. Para os que perdiam a sessão, a saída era gravar. “Meu amigo entrava com um gravador embaixo do casaco.

A gente gravava as pessoas conversando, as propagandas e principalmente a música que passava antes do filme”, coisa de adolescente, afirma ele, com olhar distante e saudoso. Nos anos 90, sem emplacar nenhum grande sucesso, o Palácio dos Sonhos começa a ruir. Em 1993, o cinema entra em recesso e retorna, no ano seguinte, graças ao Clube de Cinema, iniciativa da comunidade cachoeirense para manter a sétima arte na cidade. Três anos depois, mais uma vez o Astral é ameaçado, mas consegue retornar em 1997. Em 99 o cinema reduz as sessões e deixa de ser diário. Em 2002 a direção aluga o primeiro andar do prédio e resume o cinema às 800 cadeiras da galeria do andar superior. Era o lugar preferido dos jovens. “Nunca assisti filmes no astral na plateia, sempre subia para o segundo andar que deixava a enorme tela na altura dos olhos”, lembra Fernanda Fernandes, 22 anos. Em 2003, já cansado e sentindo o peso do cinquentenário, o Cine Ópera Astral encerra as atividades. “Até hoje me emociono com o prédio”, diz Elza. A arte perdeu a batalha para o progresso. “A cidade na época tinha uma vida cultural fervilhante, rica. Hoje em dia não vejo isso”, lamenta Zé. No dia 29 de setembro, em sua última sessão, cerca de 100 crianças assistiram à animação Procurando Nemo. O Palácio dos Sonhos fechava as portas para a arte.

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LETICIA PEREIR A

29 de janeiro de 1953. O projetor fabricado em Londres, o quarto a chegar ao país, tomou vida às 15 horas para exibir a comédia musical Vênus, a Deusa do Amor. Na tela, a paixão platônica de um homem por uma estátua. Nas 1.060 cadeiras novas, a paixão dos telespectadores pelo cinema que abria as portas. A construção do Astral teve início em julho de 1951. O prédio em estilo Art Déco encantou a cidade. “A fachada, as janelas, tudo tinha aquele brilho de grande cinema”, lembra Cristiano Maxwell, 25 anos. A decoração ousada, em tons quentes, dava asas à imaginação. “A escada acarpetada era um pedaço de Hollywood em Cachoeira”, brinca. Para Elza Pereira, 56 anos, o cinema era um lugar mágico. “Me encantei com as cadeiras estofadas, o tamanho da tela, a escada iluminada, a decoração.” José Esber, o Zé, 51 anos, se diverte ao falar do local. “A gente passava a semana inteira juntando garrafa e osso pra vender, pra garantir a bala Chita.” O prédio imponente era carinhosamente chamado de Palácio dos Sonhos. Na década seguinte, a apresentação do Palhaço Carequinha marcou o início das matinês infantis. Na década de 90, os baixinhos da Xuxa lotaram o cinema para ver sua rainha em Lua de Cristal. “Eu fui um deles”, admite Cristiano. Elza, professora aposentada, lembra dos alunos. “Levei várias vezes eles ao Astral.” A distância entre a es-

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DAIANA CARPES

A história contada pelas imagens A família Kuhn guarda na genética a arte de fotografar paisagens santa-cruzenses

O ditado popular diz que fotografar não é apenas uma arte, mas sim uma paixão. E é essa paixão que foi passada de pai para filho na família Kuhn. Tudo começou em 1895, quando o imigrante alemão Wilhelm Kuhn fixava moradia em Santa Cruz do Sul. Aos 18 anos, Kuhn tinha como hobby tirar fotos das paisagens de sua nova terra. Hobby este que foi passado ao seu filho, Hugo Kuhn. Assim, percorreu mais uma geração e hoje quem atualiza e cuida do acervo fotográfico da família é o

neto do imigrante, Luiz Hugo Kuhn, e o bisneto, Charles Guilherme Kuhn. Luiz conta que sempre teve interesse nessas fotos, mas por falta de tempo a paixão pela arte ficava para depois. Agora, com a aposentadoria, ele cuida das 5 mil imagens em preto e branco de uma Santa Cruz que poucos conheceram. E, com sua lente, revela paisagens que agora são coloridas. Atualmente Luiz e seu filho produzem as fotos antigas de seus antepassados a partir do negativo original.

DAIANA CARPES

H Luiz: “A fotografia contamina”

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ACERVO FOTOGRÁFICO DA FAMÍLIA KUHN

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DAIANA STOKEY CARPES REPORTAGEM

Pensar em memória é pensar em fotografia. E conhecendo a história da família Kuhn, nada mais justo do que publicar isto na edição temática do Jornal Unicom.

“A fo


ARQUIVO PESSOAL

ARQUIVO PESSOAL

DÉBORA KIST

DÉBORA KIST

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Homenagem ao Homem-orquestra “Aquilo que apresentou foi simplesmente único” Jornal Die Rheinpfalz, Alemanha, 1959

REPORTAGEM

Sempre gostei de música e sou autoditada nos teclados. Isso me ajudou na construção da matéria.

zeihten Instrument, fabricado pelo tio. Daí surgiu-lhe a ideia de construir uma caixa, com cordas sobre uma prancha. Um piano, com um mecanismo para tocá-lo com os pés. Além do piano, completava a peça um bandoneon, uma gaita de boca e um tambor. Levou cerca de quatro anos para a construção do conjunto e ensaiou mais um ano para tocar os quatro instrumentos. O corpo e a mente também tinham que ser sincronizados. Exercícios com os dedos dos pés e das mãos, além de ter muita concentração para coordenar melodia, ritmo e harmonia. A primeira apresentação pública foi em Porto Alegre, no centenário da Revolução Farroupilha, em 1935. Nos jornais, os repórteres o chamaram de “Homem-orquestra”. Foi ali que surgiu o apelido. Nos anos 50, depois de já ter percorrido todo o Rio Grande do Sul, realizou apresentações na TV Tupi e percorreu algumas cidades alemãs. Desde a construção da primeira peça com os quatro instrumentos, até fechar os sete tocados simultaneamente (bandoneon, flauta, pratos, piano, pistão, violoncelo e gaita) foram 40 anos de aperfeiçoamento. Uebel compôs apenas uma música, uma valsa alemã chamada Sonho de amor, ainda hoje executada por Ernivo Sulzbach, 80 anos, músico folclorista de Estrela e aprendiz do Homem-orquestra. Henrique Uebel faleceu em 1973 e no seu enterro um conjunto de trombones tocou A valsa do adeus. Antes de morrer, fez a pro-

messa aos filhos Erno, Yris e Herbert: quem conseguisse tocar seus instrumentos, os receberia de presente. Isso não aconteceu até hoje. Depois de mais de 30 anos de sua morte, a família e a comunidade resolveram que Henrique Uebel não deveria ficar apenas na memória de quem o conheceu. Em 1993, a prefeitura de Teutônia construiu o museu que leva seu nome, onde se encontra, hoje dentro de uma caixa de vidro, a peça única do Homem-orquestra. Em 2007, Ademar, filho de um primo de Uebel, escreveu um livro sobre a história de vida do músico, O Homem Orquestra. A primeira e única experiência de Ademar como escritor e justamente sobre algo que vem servindo como fonte de pesquisa para músicos interessados em aprender sobre sistemas, tons e melodias. Já em 2010, Airton, neto de Uebel, funda o Instituto Henrique Uebel, com sede no município de Teutônia. Uma associação para promover a cultura e conservação do patrimônio artístico. Segundo seu presidente, a essência do IHU é a história de vida e o legado deixado pelo avô. Projetos culturais dentro de escolas, como o Música na escola e Jovem cantor, ambos desenvolvidos com crianças de Westfália. Dessa forma, manter viva a memória daquele que foi chamado por muitos de gênio e de louco, é manter viva uma história sem igual. O Homem-orquestra ainda não foi superado, seja na loucura ou na genialidade.

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DÉBORA KIST

O que representa uma pessoa a uma comunidade? Depende do que ela fez. No Vale do Taquari, um equipamento é mais do que o passado e a memória do seu criador. Ele hoje é presente de uma história quase centenária. Henrique Uebel tinha um sonho: construir uma peça única. O agricultor de poucas letras, nascido em 1906 em Linha Schmidt, interior de Estrela e hoje Westfália, alcançou seu objetivo porque ficou doente. No início dos anos 1930, uma inflamação nas costelas e três cirurgias o impossibilitaram de trabalhar. Foi ali que o projeto pensado teria a chance de ser executado. Amante da música, Henrique Uebel aprendeu na adolescência sobre tons, notas, sinfonias e a sistemática de Bach (sim, o Bach famoso). O jovem foi pupilo do tio, homônimo de Uebel. O primeiro instrumento foi um bandoneon, principal peça numa orquestra de tango. A propósito, além das valsas alemãs, o ritmo característico da Argentina sempre foi um dos seus favoritos. Ele acreditava ser possível harmonizar instrumentos de corda, sopro e percussão, além do piano, numa única peça. Com essas características tinhase uma orquestra completa. Na sua cabeça, tudo era claro, mas como fazê-lo? Adolfo Hollmann, marceneiro de Linha Schmidt, foi a solução. No início relutante, nunca tinha feito nada do tipo, mas com a insistência de Uebel, se prontificou a ajudá-lo. Uebel lembrou-se do Klavier-

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