Unicom 2012-2

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JORNAL EXPERIMENTAL DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UNISC - SANTA CRUZ DO SUL VOLUME 18 nº 2/JULHO 2012

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Expediente

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MONTAGEM SOBRE FOTO DE CARINE IMMIG

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9 - Lucas da Silva Repórter

2 - Daiana Stockey Carpes Diagramadora e Repórter

10 - João Junqueira Editor de Áudio e Repórter

3 - Débora Kist Revisora e Repórter

11 - Demétrio Soster Editor-chefe

Curso de Comunicação Social Jornalismo Bloco 15 - Sala 1506 Telefone: 51 3717-7383

4 - Maurício Bescow Repórter

12 - Fabrício Goulart Diagramador

5 - Juliana Eichwald Repórter

13 - Vanessa Berger Revisora e Repórter

Coordenador do Curso Demétrio Soster

6 - Daiane Holdefer Editora de Fotografia e Repórter

14 - Vanessa Schuler Revisora e Repórter

7 - Cassiane Rodrigues Editora Multimídia e Repórter

15 - Juliana Spilimbergo Repórter

8 - Ingrid Guedes Produtora e Repórter

16 - Vanessa Costa de Oliveria Editora e Repórter

Tiragem: 1000 exemplares Impressão Grafocem DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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1 - Gabriela Meller Subeditora e Repórter

UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - RS CEP 96815-900

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17 - Jonara Raminelli Editora de Vídeo, Produtora e Repórter 18 - Leticia Pereira Editora de Vídeo e Repórter Capa e Contracapa Fabrício Goulart Ilustradores Amanda Mendonça e Whellinton Rocha Ops! Adivinha quem não estava presente no dia da foto da equipe e foi adicionado posteriormente com o uso do Photoshop?

Blog: http://blogdounicom.blogspot.com Twitter: http://www.twitter.com/jornalunicom Facebook: https://www.facebook.com/jornalunicom


Editorial

Crônica

EMILIN GRINGS SILVA

A construção do Unicom com reportagens de temas totalmente distintos, foi como costurar uma colcha de retalhos. Nesta colcha os pontos devem ser perfeitos, o corte delicado, e todos os detalhes têm de ser vistos. Ela, que mais parece aquelas que vimos na cama de nossas avós, lisas, perfeitas, sem nenhuma ruga ou dobra, é resultado de semestres de formação, teorias vistas em disciplinas anteriores que agora servem de linhas, para costurar e depois bordarmos num acabamento perfeito. A edição que agora chega às suas mãos, a segunda edição produzida pelos alunos de Produção em Mídia Impressa de 2012/1, trata-se de um Unicom sem tema, de conteúdo aberto. Diferente da edição anterior em que todos os alunos se concentraram em apenas uma temática, a memória, dessa vez houve uma liberdade maior para escolher as pautas, fazer entrevistas e escrever. Claro, dentro dos prazos estipulados. Para fazer uma colcha de retalhos, vários pedacinhos de tecido são costurados de uma maneira a dar a melhor forma para a colcha. Nessa segunda edição do Unicom, foi isso que aconteceu. Se cada repórter se concentrasse apenas em seus textos e em suas fotografias, o resultado não seria tão positivo como foi no Unicom Memórias e como ocorreu, também, nessa edição multi-temática. A maior lição que fica aos alunos é essa: não se faz jornalismo sozinho. Os alunos trabalharam individualmente, mas focados no coletivo, para que, assim como na colcha de retalhos, os pontos fossem perfeitos e todos os detalhes pudessem ser vistos. Logo no início do semestre, quando uma temática é discutida e escolhida, não se trata apenas do assunto no qual as pautas farão referência, mas também para que a edição tenha a mesma angulação. Esse exercício inicial torna-se essencial para que na segunda edição a turma esteja preparada para seguir em frente sozinha, mas ainda assim preocupada com o resultado final e total do jornal-laboratório. Aprende-se então, desde a instância formação que, assim como uma colcha de retalhos, jornalismo não se faz sozinho. Sem dúvida, trata-se de um semestre para ficar na memória. Em um primeiro momento, ainda um pouco perdida, a turma tratou de uma temática bastante ampla. Depois chegou a hora de testar os conhecimentos e habilidades para dar forma a um produto completamente diferente, e, dessa vez, sem a mesma supervisão de antes. Ficam as lembranças de um bom trabalho. Um trabalho realizado a partir da construção de conhecimento, da troca de experiências e muito trabalho em equipe.

Academia e qualidade de vida

Um semestre para ficar na memória

Se você está pensando que este texto vai tratar sobre os benefícios da atividade física para os seres humanos está muito enganado. Afinal, este assunto é lugar-comum para ser tratado em um jornal como o Unicom. O termo academia significa universidade e qualidade de vida é algo que fica em segundo plano quando você dedica anos para concluir o ensino superior. Quem precisa trabalhar enquanto estuda está fadado a ter mais dificuldades durante o tempo na universidade. Isso porque um ou dois turnos são destinados ao ofício e o outro à academia. Com uma rotina assim, as necessidades básicas de descanso e alimentação deixam de ser necessidades e passam a ser afazeres regulados pelas poucas horas de folga. Tempo livre inexiste quando se escolhe concluir a graduação. “Ah, mas você faz um curso fácil. É comunicação, não é?” Sim, é comunicação, mas exige leitura, um bom texto e muita criatividade. Às vezes, uma ideia boa aparece quando você já está deitado na cama e o que resta é levantar e anotar senão esquece. Nestas alturas o sono já foi e você começa a planejar a execução da ideia. É mais uma noite sem dormir. Para espantar o sono no dia seguinte investe no consumo de chocolates e energéticos. Afinal, o trabalho e as aulas não foram desmarcados porque você não dormiu. Esse quadro vai se agravando ao chegar o fim do semestre já que os professores combinam para programar trabalhos e provas para o mesmo período. Aí você pensa: “Imagina quando eu fizer os trabalhos de conclusão...” Vai fazer a rematrícula e finalmente marca formatura prevista para um ano. Esta decisão predestina 365 dias de tensão. A monografia exige produção constante. É como início de namoro:

você dorme pensando nela, sonha com ela, acorda pensando nela. E tem mais, dorme se consegue, come se dá tempo. Você se dedica somente a ela. É o período em que esquece da família, dos amigos, do namorado. Tem pessoas que engordam, pois dividem o tempo que está em frente ao computador com guloseimas. Tem gente que vai para o hospital de tanto consumir café ou chimarrão. Tem aquelas que caem no choro pelo menos uma vez na semana, outros que encontram atividades paralelas para preencher o tempo em que deveriam estar se dedicando a ela. É um processo que gera stress, mas que tem prazo para terminar. O dia da entrega chega, o da apresentação também e finalmente você está formado. São 4, 5, 7 ou até 10 anos de dedicação. Apesar de cansativo, a trajetória na faculdade é de muitas lembranças, na maioria das vezes positivas. Aqueles que saíram da casa dos pais enfrentam as dificuldades da vida adulta e tem inúmeras histórias para contar do lugar onde moraram e das pessoas que conviveram, seja em pensão, kitnet, apartamento. Como esquecer dos lanches e almoços com os colegas, dos trabalhos mirabolantes, das viagens, das festas? É um período regado de sonhos, planejamentos, de experiências... São momentos indeléveis. Tempo que se perde em qualidade de vida e se ganha em conhecimento. Muito mais que conhecimento técnico e teórico, é na academia que adquirimos o saber universal que vai desde os conceitos mais básicos para a convivência humana até o mais complexos relacionados a atual conjuntura da sociedade. É tanta sabedoria adquirida na academia que a falta de qualidade de vida perde importância. Afinal, com o diploma em mãos você tem a vida toda a recuperá-la.

ILUSTRAÇÃO: WHELLINTON ROCHA

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Comentário

O faro jornalístico no crime GABRIELA MELLER

ILUSTRAÇÃO: WHELLINTON ROCHA

No filme Crime Verdadeiro o experiente repórter Steve Everett (Clint Eastwood) representa um sujeito de princípios morais polêmicos, que duvida do mundo, mas confia no instinto para solucionar seus problemas. Na teoria, faro jornalístico é o que há de mais sensível na relação notícia-repórter. É justamente essa linha que une os dois objetos e que nunca deve ser rompida. Na prática, é tirar a notícia debaixo do tapete. Existem as notícias do dia, as que todos dão. O difícil é deixar o óbvio de lado e partir para o ataque sozinho, sem marcação. Contrariando tudo e todos, Everett desconfia da inocência de Beechum. Ao apurar os dados e cruzar as informações, a desconfiança se torna certeza. Mas o tempo é curto. A falta de provas e o histórico recente do

repórter não o ajudam em sua cruzada pela verdade. Ninguém lhe dá crédito, embora possua a confiança do editor-chefe Alan (James Woods). Do ponto de vista jornalístico, muitas das ações do veterano repórter são questionáveis. Baseado puramente no instinto – o faro de repórter -, ele se deixa levar por premissas que nem sempre são verdadeiras. Algo que deve ser evitado na profissão, já que não raramente, leva ao erro. Sua desobediência a ordens e dificuldade de manter boas relações com os chefes o levam a perda de credibilidade no mercado de trabalho. Porém, a capacidade de apuração e a facilidade para achar boas histórias a partir de fatos batidos o creditam como repórter de qualidade. Ao não se contentar com a simples versão oficial, os furos sem-

pre foram parte de sua carreira. Noblat destaca, em seu livro A Arte de fazer um jornal diário (Contexto, 2003), a importância do “faro”: “há que ter faro para identificar a notícia onde quer que ela esteja. Faro. É o faro que faz a diferença entre um bom repórter e um repórter medíocre”. A noção de “faro” está ligada à idéia de instinto, de naturalização do trabalho jornalístico, e se associa à metáfora da caça, muitas vezes utilizada para descrever a busca pela notícia. A ideia de vocação surge, inclusive, para definir o que é notícia, identificada naturalmente pelos “reais” membros da profissão: “Quando você estiver diante de uma, saberá’. É isso o que costuma acontecer. Se vocês levam jeito para o ofício, saberão distinguir entre o que é notícia e o que não é.”

das as minhas informações (inclusive o peso), pois precisava consultar minha ficha a fim de criar um treino de musculação para mim. Enquanto ele sabia tudo a meu respeito, nem o nome do meu futuro namorado eu sabia. Ao chegar em casa a noite, vi que havia recebido um convite de amizade no Facebook. Aquele menino com olhos lindos, sorriso cativante, músculos sarados, me queria como amiga em uma rede social! E o que mais me impressionou foi o sobrenome latino que ele carrega, confesso, sempre amei sobrenomes latinos. O amor de musculação começou a

aflor a r nas conversas no MSN e nas risadinhas disfarçadas na academia. Todos já notavam aqueles olhares apaixonados. Foi na festa de sábado a noite que realmente descobri a força daquele sobrenome latino. Como foi bom aquele beijo, como foi bom aquele carinho e aquela companhia. A primeira noite juntos, que ficará para sempre na memória. O “eu te amo” veio no fim de março, cheio de emoção. A aliança de compromisso foi trocada em um domingo, no jantar mais romântico que já vivi. A história de amor, que nasceu na academia, segue. E o seu amor, onde será que vai começar?

Crônica

RAFAELA SCHNEIDER

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O amor começa na academia. Pelo menos foi assim que aconteceu para mim. Numa tarde de segunda-feira, quando minha amiga insistiu tanto, mas tanto, até me convencer a malhar, resolvi, de uma vez por todas, conhecer o ambiente suado e repleto de aparelhos estranhos que existem na sala de musculação. Segundo esta minha amiga, existia lá um “gatão” que estava estagiando e que, aparentemente, tinha o corpo mais bonito de todos. O momento mágico do amor aconteceu quando o já famoso estagiário apareceu na academia, arrancando suspiros de todas as meninas suadas que ali estavam. Naquele momento, enquanto elas prestavam atenção nos músculos sarados dele, eu vi os olhos e o sorriso do menino, que me olhou e sorrio para mim. O mundo parece que parou, não prestei atenção em mais nada que não fossem aqueles olhos castanho-escuro que em minha frente estavam. No decorrer da tarde, ele já tinha to-

ILUSTRAÇÃO: WHELLINTON ROCHA

Um amor de musculação


Conto

Mariana foi para o mar

ILUSTRAÇÃO: AMANDA MENDONÇA

LUISA WINK

Mariana era uma moça simples. Aos 26 anos, ainda morava com seu primeiro namorado com quem mantinha um relacionamento desde os tempos do colégio. Seu único trabalho era a revenda de cosméticos através de revistas, batendo de porta em porta. Era vaidosa, os produtos que vendia permitiam que cuidasse dos longos cabelos castanhos e da pele clara. Suas roupas não eram muito elaboradas ou caras. Apesar de seu companheiro, Roberto, ter condições financeiras de dar a ela itens de maior conforto, sempre preferiu a simplicidade das roupas de lojas de departamento onde encontrava suas saias longas, blusas de algodão e chinelos que compunham seu estilo. O casal tinha combinado que com o dinheiro extra que ele fazia compraria uma casa no centro da cidade, embora o sonho da moça fosse morar na praia. Enquanto isso não acontecia, moravam em um apartamento afastado do centro, perto da universidade, onde viviam também vários jovens de cidades vizinhas que vinham a Brasília para estudar. Roberto era corretor de imóveis, tinha horários flexíveis, mas trabalhava muito e por isso passava longos períodos fora de casa, mostrando imóveis por toda a cidade de Brasília. Sempre fora um bom namorado, sempre avisava aonde ia, incluía Mariana nas conversas dos amigos e não tinha vergonha de demonstrar seu amor. Nos fins de semana levava a moça aos parques da cidade, passeavam com o cachorro, saíam para jantar. Levavam uma vida calma apesar da cidade turbulenta ao seu redor. O fato de Roberto passar tanto tempo fora de casa fazia com que Mariana dedicasse seu tempo a sua melhor amiga e vizinha, a Carla, uma jovem alta, morena, magra e linda de 22 anos, que viera à cidade para estudar turismo e que, para ganhar um dinheiro extra, fazia uns bicos como modelo fotográfica. Certo dia, numa tarde ensolarada de sábado, Roberto saiu para comprar cigarros. Várias horas se passaram, mas ele não voltou. Mariana ficou sozinha, porque Carla tinha ido ao interior passar o fim de semana com

a mãe. Esperou um pouco, esperou muito, até que adormeceu. No outro dia quando acordou, Roberto ainda não tinha voltado. Resolveu chamar a polícia, que disse a ela que começaria as buscas, mas não podiam garantir resultados rápidos porque a presença do presidente americano na cidade estava no foco das atenções. Os dias passavam, a moça desesperava-se. Não havia rastro de Roberto, e Carla ainda não havia voltado da casa da mãe. Ao passar uma semana, a moça já não sabia mais o que fazer, chorava sem parar, ligava para ele, mas o celular continuava fora de área. Até que, passados oito dias, Mariana não pôde acreditar no que viu ao abrir a página social do jornal local: uma foto de Roberto e Carla sorrindo ao topo da Skytree, a maior torre do mundo, recém-inaugurada no Japão. Mariana foi ao chão, e ali ficou ao lado de seu cachorro vendo o relógio da parede girar sem parar. Não tinha mais forças para chorar. Só conseguia pensar se usava o gás do fogão ou a antiga pistola, herança de família do infeliz (agora ex) namorado. Não conseguia acreditar no que as duas pessoas em quem mais confiava haviam feito. Dois dias se passaram e Mariana ainda estava no chão. Não comera, não tomara banho, nem água consumira. Ainda com a página do jornal aberta e o casal feliz sorrindo para ela, Mariana decidiu que era hora de mudar. Ela viu que aquele luto de nada servia, que chorar não faria o tempo voltar, e que, para se vingar, teria que voar 20 mil quilômetros. Não valia a pena. Mariana queria ir para o mar. Mudou o itinerário, trocou seu próprio funeral pelo atraso do avião. Deu início à separação legal do casal, que possuía união estável, e colocou o apartamento à venda. Deixou seus bens mais preciosos com o cachorro e foi viajar. Encheu uma mala com roupas, abandonou fotos, a caixa de lembranças e as antigas roupas do namorado. Deixou uma carta ao vizinho veterinário para que cuidasse do cachorro, e em pouco tempo, seu avião pousava no Rio de Janeiro. Hospedou-se em um hotel barato, e decidiu que

procuraria um lugar pra morar no dia seguinte, mas, ao invés disso, Mariana foi pro mar. Sentou-se na areia a pensar o que restava de sua vida, sem direito a pensão, com suas manias de moça mimada, tendo em si apenas a vocação do lar. Foi numa tarde de sábado que comprou um bilhete de loteria que na mesma noite foi sorteado. Dividiu o prêmio de milhões de reais com mais 29 pessoas. Sorte no jogo, azar no amor, pensou. Com o dinheiro, seu prêmio de consolação, comprou um pequeno apartamento em Botafogo, e resolveu ficar permanentemente no Rio. Se voltasse a Brasília, seria apenas para buscar o cachorro. Apesar de ter facilitado sua mudança de vida, o êxtase pelo prêmio da loteria durou pouco. Logo voltou a pensar em Roberto e Carla, descobriu que o dinheiro apenas amenizou sua dor por certo tempo. Agora Mariana começa a se sentir culpada: “Onde foi que errei?”, perguntava a si mesma. Acreditava na sinceridade de sua vida conjugal. Sempre se preocupou em ser uma pessoa agradável e disposta a todos, talvez este tenha sido seu erro, talvez fosse simplesmente seu destino, talvez a vida a estivesse cobrando por erros do passado, de outras vidas. No entanto, foi quando desfilava pela areia branca da praia de Copacabana que um homem jovem, bonito a parou. Era argentino, e em uma mistura de português com espanhol a chamou para sair. Mariana aceitou. Combinaram de se encontrar na mesma noite, mas na hora de sair de casa, Mariana trocou o salto alto pelas pantufas e o pijama. No outro dia, enquanto se sentava na praia e mirava o mar, recebeu um bilhete de um vendedor de redes que passava. Era o número do telefone de um rapaz que jogava futebol com os amigos ali perto. Foi nesse momento que Mariana percebeu que sua vida não tinha acabado. Mesmo que olhasse com desprezo para os homens que corriam atrás dela, viu que ainda possuía o domínio do poder e da beleza da juventude. Hoje ela está bem diferente, ama ser independente. Mariana foi pro mar.

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Conto

RENATA GERHARDT PICCININ

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No meu mp3 toca Beatles – Hey Jude. Fecho os olhos e entro nas mais belas lembranças. Estou com a minha mãe, a mulher mais doce e gentil que já conheci. Ela veste roupas claras, seu cabelo curto e negro está preso, e seus olhos, azuis como o mar, brilham ao falar de meu pai. Então, ela sorri, fazendo-me perceber que ao seu lado não existe maldade. Quando começamos a conversar sobre Paris, uma forte turbulência no avião joga meu mp3 para longe e me faz voltar à realidade: minha mãe morreu há dois dias. E a tristeza dói muito, deixando em pedaços meu coração. Estou no voo AF477 da Air France, indo para Paris velar o corpo de minha falecida e amada mãe. E é só nisso que penso. Por que coisas ruins acontecem conosco? Por que temos que perder as pessoas mais importantes de nossas vidas? A raiva sobe-me à cabeça e a fé já não existe em mim. Ao meu lado há uma senhora de uns setenta anos. Traja vestido rosa claro na altura das canelas. Seu cabelo é branco feito neve e sua expressão é de felicidade. Não pude deixar de notar o colar em seu peito, com dois pingentes de homenzinhos. Curiosa, começo a conversar com ela. Seu nome é Lurdes, está indo a Paris pela primeira vez visitar seu filho mais velho. Ela me conta que ficou três anos longe dele, e depois de muito economizar conseguiu comprar as passagens. Ela fala tudo muito rápido como se quisesse apressar o voo que está no ar há apenas vinte minutos. Deixo dona Lurdes descansar e avisto uma criança. Um menino gracioso de olhos grandes e castanhos, pele clara e cabelo cor de mel. Deve ter uns sete anos. Ele brinca com um desa-

jeitado urso de pelúcia enquanto sua mãe lê uma revista de frivolidades. Parece estar odiando a ideia de passar os próximos cinquenta minutos sem correr ou brincar de carrinho. Seu olhar é distante, mas é um olhar mágico, um olhar que não conhece maldade, ganância e tampouco malícia. Sinto-me triste ao pensar que em alguns anos essa criança perderá esse olhar; ela conhecerá o nosso mundo real. Uma forte necessidade de parar de pensar em coisas tristes me atinge. Levanto para ir ao banheiro lavar o rosto, mas outra forte turbulência me joga contra a parede. Uma aeromoça apressada me ajuda a sentar na poltrona e fechar o sinto de segurança. - Senhores passageiros, aqui é o comandante. Estamos entrando em uma nuvem e peço que não saiam de suas poltronas, pois logo estaremos em segurança. Um chiado penetra em meus ouvidos deixando-me tonta e desnorteada. As turbulências não param. Avisto dona Lurdes e pego sua mão, ela está assustada, seus olhos arregalados e sua pele mais branca do que nunca. Sinto o medo em sua mão que aperta cada vez mais forte a minha. As luzes que antes iluminavam o avião, agora piscam sem parar. Ouço um choro de criança, é o menino do urso de pelúcia. Está envolto pelo abraço de sua mãe que tenta consolá-lo e diz que tudo vai ficar bem. “É apenas uma nuvem idiota”, ele responde à mãe, esforçando-se ao máximo para, de fato, acreditar nisso. As turbulências só pioram e pela pequena janela ao meu lado vejo apenas chuva e escuridão. O medo invade meu corpo, trazendo inquietações.

ILUSTRAÇÃO: AMANDA MENDONÇA

Caminhos diferentes, destinos iguais

Deus tirou a vida de minha linda mãe, e agora quer tirar a minha? Isso me parece muito egoísta. De fundo ouço outro aviso do comandante: - Agradeço a colaboração de todos. Estamos tentando acabar com as turbulências, mas esta nuvem é mui... A transmissão foi bruscamente interrompida e agora só o que ouço é um zunido ensurdecedor. Todas as pessoas do avião estão gritando, apavoradas com a situação. De repente o avião começa a descer, muito rápido, descontrolado. Dona Lurdes me olha e grita: “espero ver meus filhos no céu”. Meus olhos se enchem de lágrimas que parecem jorrar em minha face. Estou aqui, sentada sem poder fazer nada por essas pessoas. Isso não é justo. A vida não é justa. Seguro-me firme na poltrona e o impacto acontece. O avião vira migalhas e só o que vejo é água. Ela enche meus pulmões e a dor é indescritível. Abro os olhos pela última vez e na escuridão do oceano vejo uma menina num balanço em movimento, ela está de costas. Sinto uma sensação boa, reconfortante. Aproximo-me dela, era minha mãe quando criança. Confusa, tento entender o que está acontecendo comigo e num piscar de olhos vou para outro lugar, um ambiente sereno, calmo e branco. Um mundo paralelo. Respiro fundo e lembranças ocupam a minha mente, em uma fração de segundos tudo fica muito claro. Estou destinada a cuidar e proteger essa menina, que em outra vida fora minha linda mãe. _ O voo 447 da Air France (Rio – Paris) caiu no Oceano Atlântico em 1º de junho de 2009, matando 228 pessoas.


Artigo de Opinião

Os loucos não eram tão loucos assim

FOTO: VANESSA COSTA

VANESSA COSTA

Imagine uma pedreira. Pense um lugar devastado pela exploração de basalto, com um grande buraco de onde o minério era extraído. A cor do lugar é alaranjada, nada de vegetação, nada de vida. Agora responda: o que você faria com um lugar desses depois de retirar toda a riqueza que havia ali? Sim, o basalto acabou e a vida também. Um lixão seria a solução. A propriedade de 30 hectares, no interior de Pantano Grande, serviria de depósito de lixo para a região. Mas não foi isso que aconteceu. José Lutzenberger, à época já um ecologista reconhecido, ao tomar conhecimento do local e do que seria feito com ele, investiu o prêmio de U$ 25 mil que recebeu do Right Livelihood Award, em 1988. Trata-se do Prêmio Nobel Alternativo, que homenageia as pessoas que trabalham em busca de um mundo melhor. O Rincão Gaia, como é chamado, se tornou referência na recuperação de áreas degradadas. Em sua biografia, Sinfonia Inacabada, da jornalista Lilian Dreyer, publicado pela editora Vidicom em 2004 o ambientalista explica que queria provar ser possível recuperar qualquer área, desde que o seu tempo e suas características fossem respeitadas. Para entender melhor sobre o movimento ecológico, nada melhor do que visitar o Rincão e conversar com as pessoas que trabalham lá. Fui

acompanhar um grupo de alunos que iria empinar pipas a fim de prestar uma homenagem ao ecologista, pelos dez anos do seu falecimento, e tive uma grata surpresa. O lugar estava diferente das outras vezes em que estive lá. Estava com visitas ilustres. Cerca de cem pessoas estavam reunidas no Rincão Gaia para ouvir a ativista indiana Vandana Shiva. Para a indiana, que é física e doutora em filosofia, existem mudanças na forma como as pessoas se relacionam com o planeta. Disse que mais pessoas estão envolvidas na causa ambiental, mas que a qualidade dessas ações estão associada ao nível de consciência de cada uma. Há mais informações do que trinta anos atrás e as evidências de que o planeta inspira cuidados estão aí para todos verem. O que há 40 anos era considerado assunto de hippies, idealistas ou até mesmo loucos, hoje é palavra de ordem. Por outro lado, o termo desenvolvimento sustentável é usado, na maioria das vezes, apenas no discurso e não na prática. Quando, na década de 70, teve início o movimento ecológico no país, mais precisamente em Porto Alegre, os loucos eram liderados por ninguém menos que José Lutzenberger, que ficou conhecido por seus discursos irônicos. A luta pela proteção do planeta, desde o corte de uma árvore

até a criação de leis de proteção ao meio ambiente era, no século passado, algo fortemente relacionado a militância. Era praticado quase que exclusivamente por pessoas da área das ciências e que, muitas vezes, não eram ouvidas. Hoje sabe-se que muito do que foi dito há 30 anos se concretizou, provando que os loucos não eram tão loucos assim. Se, antes, as manifestações eram por meio de panfletos e publicações de forte impacto, ou então de discursos cheios de argumentos, hoje a indignação da população diante algumas práticas pode ser vista em redes sociais, como a recente pressão feita pelos internautas para que as alterações no Código Florestal brasileiro fossem vetadas. Naquela tarde no Rincão Gaia, Vandana Shiva também falou sobre a necessidade das pessoas reconhecerem a biodiversidade do mundo e também a diversidade cultural. Grande parte da sociedade já não aprova mais quem polui ou não tem um mínimo de cuidado com o meio ambiente. A consciência da necessidade de mudança está crescendo, falta crescer nas pessoas a vontade de fazer e de colocar em prática tudo aquilo que se sabe. O planeta não vai deixar de existir, mas a vida nele sim, assim como um dia acabou no lugar que hoje é o vivo Rincão Gaia.

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Depoimento

Como se fosse a primeira vez LUCAS DA SILVA

SSOAL FOTO: ARQUIVO PE

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Em uma madrugada quente e mal dormida de novembro, recebi uma notícia que mudou minha vida. Após realizar um teste de gravidez, minha esposa diz “deu positivo, estou grávida”. Apesar do tempo, essa frase continua presa em minha memória. A partir deste instante vários sentimentos vieram à tona. Perplexidade, espanto, preocupação. Como contar aos nossos pais, se realmente, naquele momento, não estávamos preparados? Então, partimos para a confirmação exata, através dos testes laboratoriais, que ratificaram a nossa certeza. Após o susto, chegou o momento de resolver as questões relativas à chegada do bebê. Nesse momento aconteceu uma reversão de sentimentos, entra a alegria e expectativa pela evolução da gravidez. Ao longo dos meses, o afeto e o amor pelo bebê vai crescendo, a cada ultrassonografia - exame em que somente os pais conseguem enxergar o seu bebê, em meio a cada imagem escura e rabiscada - uma n o v a emoção. Ent ã o chegou u m d o s m o men-

tos mais esperados: a hora de descobrir o sexo da criança. Apesar de todos os palpites de tias e outros parentes, até com poderes de vidência, baseados em fatos como o tamanho da lua e da barriga, todos achavam que seria uma menina. Em meus pensamentos algo me falava: “Vai ser menino”. A obstetra prepara os equipamentos, aplica o gel e desliza aquele aparelho (semelhante a um leitor de código de barras) sobre a barriga, e, após alguns intermináveis segundos de suspense, a confirmação: “Pai, mãe, o bebê de vocês vai ser um menino”, disse a médica. Desta frase também nunca me esquecerei. Após alguns sustos na gravidez, devido à formação de um cisto no ovário, a hora do parto ia se aproximando. Com a cesárea marcada para a quarta-feira, dia 22 de junho, tínhamos um último compromisso no sábado anterior ao parto: uma comemoração de bodas de prata de tios queridos. Nessa festa, outra frase ou profecia, que também insiste em permanecer gravada em minha memória. Em determinado instante, um tio, já sob efeito de algumas cervejas, aproxima-se e diz “Não vai nascer quarta, vai nascer segunda, dia 20”. Então rimos da previsão e logo nos retiramos devido às dores nas pernas da minha esposa. Na segunda-feira, dia 20, Fran sentia algumas dores, e relatou a médica o seu incômodo. Então de bate pronto, ela determinou: “Vamos fazer hoje”. Essa frase foi como um soco do Anderson Silva, bem na boca do estômago.

Me levou a nocaute, embrulhou tudo. Após o processo e, de alguma briga, de internação, as enfermeiras começam os preparativos pré-parto. Meu coração batia em um passo de quase taquicardia. Chega o momento. Minha esposa entra primeiro na sala cirúrgica. Após uns 20 minutos sou chamado. Recebo orientações e roupas para entrar. Então me visto. Juro que nesse momento estava me se sentido o próprio “Doctor House” . Quando chego ao local do procedimento, minha preocupação está dividida entre Pedro e Fran. Pálido e suando frio, cada segundo de espera parecia um ano. De repente: um grito. Logo após, um choro. Era Pedro chegando ao mundo às 14h49min, do dia 20 de junho de 2011. Aquele dia em diante esses momentos permanecem vivos na minha memória. Ali eu descobria a arte sacrificante e maravilhosa que é se tornar pai. No exato momento em que peguei Pedro pela primeira vez no colo, todos os meus medos foram sumindo. Hoje me dou prazer de separar no dia, cinco ou dez minutos do momento de maior felicidade de minha comum e simplória vida. Depois deste dia, descobri que a felicidade se encontra em um dente que nasce, em um “papa” que se ouve, em um passo que se aprende ou um beijo que se ganha. Constatei que o grande prazer da vida são as pessoas, o amor que se sente e os valores que se seguem e se ensinam. Para você que tem dúvidas, embarque nessa viagem, pois ela é um dos grandes baratos da vida.


Parecidas, mas diferentes MAURÍCIO BESCOW REPORTAGEM

FOT OS: AR QU IVO SP ESS OAI S

Traços físicos são compartilhados, mas não se dizer o mesmo quanto à individualidade

Além de confidências, Alana e Ariela compartilham muitos gostos em comum­.

Há muitos mistérios a serem desvendados sobre o quão especial é o vínculo entre irmãos que compartilham, ou não, do mesmo óvulo durante o nascimento. O fato de carregarem traços físicos semelhantes ou idênticos representa apenas uma pequena característica da complexa relação entre pessoas que compartilham vivências e experiências desde o início de suas vidas. Um intervalo de dois minutos trouxe uma imensa alegria. Passados três anos, Laura e Sophia são o centro das atenções dos advogados Suzane Slomp Gonçalves e Lauro Rocha Júnior. Entre as preocupações com as novas integrantes da família, não pesam a falta de espaço, os gastos com mamadeiras e fraldas ou as noites insones e, sim, a de não poder acompanhar as etapas do crescimento. Cada centímetro percorrido nos primeiros passos, além de escutar a soletramento das primeiras palavras, possui um grande significado. Para curtir a maternidade, Suzane deixou o emprego e se dedicou a criá-las até os dois anos e meio. O ato de compartilhar os brinquedos ou mesmo a presença dos pais foi fundamental para que pequenas divergências não ganhassem espaço. O melhor jeito para isso foi mostrar que o amor é inesgotável. Essa situação, especialmente com irmãs, segundo Suzane, sempre deve ser feita com bom senso. “Nunca abraçar uma e deixar a outra solta. Não ficaria confortável nessa situação. Eu as amo sem

fazer qualquer distinção”, revela. Outro cuidado necessário é evitar comparações, desde as roupas com cores distintas até a diferença de personalidade: “Laura é mais independente, enquanto Sophia é dengosa e pede ajuda mais facilmente”, reconhece Suzane. Tanto quanto aprender a conviver com as diferenças, é preciso ter consciência de que decisões e motivações individuais passam a interferir drasticamente em uma relação, até então, marcada pela proximidade. Foi isso que Miriam Schauenberguer vivenciou quando a irmã Marta Kersting decidiu casar e se mudar de Cachoeira do Sul para Santa Cruz do Sul. “Dormíamos no mesmo quarto e quando cheguei do casamento chorei a noite toda por não tê-la mais do meu lado. Quando ela se mudou para outra cidade, custei a me acostumar. Mas estamos sempre nos vendo”, conta Miriam. Conviver com uma irmã com aparência idêntica traz algumas complicações: desde serem comparadas fisicamente por desconhecidos, que não sossegam até descobrir alguma característica que as diferencie, até cumprimentar e manter uma conversa com pessoas que não notam que estão dialogando com a gêmea errada. Entretanto, as recorrentes comparações transformam experiências tediosas em angustiantes. “Não achava nada confortável. Tinha vontade de gritar ao mundo que eu era eu”, explica Marta. Apesar disso, Marta consi-

Sophia e Laura não gostam de ficar afastadas durante muito tempo.

dera especial a relação mantida com a irmã. “Seria difícil imaginar minha vida sem ela, realmente partilhamos quase tudo, desde o início no ventre de nossa mãe”. Uma pinta na bochecha, um aparelho ortodôntico e a recente mudança na cor do cabelo, são alguns indícios que diferenciam Ariela e Alana Dornelles. Porém, isso não as impede de estarem sempre juntas, tanto no grupo de amigos, no curso de Administração da Ulbra em Cachoeira do Sul ou no trabalho na loja de calçados Nova Grécia, empresa de seus pais. É no relacionamento com os clientes que alguns episódios engraçados acontecem. “Às vezes alguém me pede para buscar algo e em seguida veem a Alana atendendo outra pessoa. O cliente fica esperando que ela faça alguma coisa. Aí, eu apareço e eles se assustam”, sorri ao lembrar. Embora, não possam provar, Alana e Ariela acreditam que uma seja capaz de sentir o que a outra sente. Ambas lembram que quando adoeciam a vontade de serem amamentadas no mesmo instante e até de pensarem nas mesmas coisas - sem a necessidade de comunicação - era surpreendente: “É algo bem diferente”, diz Alana. A busca pela compreensão deste intenso laço de afetividade está longe de terminar, mas uma conclusão já pode ser feita: poucos têm a oportunidade de nascer, viver e amadurecer com alguém que o conheça tão bem quanto você mesmo.

A distância não diminuiu a ligação entre Miriam e Marta.

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“Foi tudo questão de consciência e amor”

FOTOS : ARQU IVO PE

DAIANA STOCKEY CARPES REPORTAGEM

Buscando qualidade de vida melhor, casal gaúcho deixou sua terra e foi morar em uma ecovila

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Você já pensou em largar tudo em sua cidade e ir para um lugar onde o contato com a natureza ainda é extremo? Onde ainda se pode beber água direto dos riachos? Onde a mata ainda é virgem e animais e homens vivem em plena harmonia? Sim, esse lugar existe e se chama Cavalcante, uma cidadezinha de nove mil habitantes, no interior de Goiás. Foi pensando neste ideal de vida que o casal Daniel Poletti, 25, e Débora Reckziegel Granja, 22, deixaram Venâncio Aires e embarcaram rumo a este lugarejo. Pasmem, o casal só ficou conhecendo este paraíso por meio da internet, através de um grupo de ecovila vegana, da qual faziam parte no Facebook. “Este grupo compartilha assuntos sobre ecovilas e técnicas ecológicas, nas redes sociais. Foi através dele que nos interessamos pela Aldeia Luz”, lembra Débora. Um dos participantes deste grupo faz parte desta pequena cooperativa, e encaminhou o estatuto a eles. Débora e Daniel leram e se encantaram com a proposta. Então, a família decidiu arrumar as malas e embarcar nesse novo desafio. Daniel foi o primeiro a encarar Cavalcante. Já Débora e Aurora, filha de um ano e quatro meses do casal, foram em fevereiro deste ano, somente depois que a casa da família estava com as paredes erguidas e com

o telhado construído, é claro, nos moldes da sustentabilidade. De acesso difícil e feito quase que exclusivamente no lombo de um burro, o novo lar do casal ainda preserva locais onde a natureza não foi tocada pelo homem. Em uma simples caminhada pela cidade podemos apreciar o voo das araras, contemplar o passeio dos micos, nadar junto com os peixes nas águas cristalinas ou ainda ficar admirado com a diversidade da fauna e flora do local. Juntos há cinco anos, Débora e Daniel seguem a linha da dieta vegana, onde não há consumo de alimentos e produtos de origem animal. “Não consumimos nada de origem animal, isto foi um questão de consciência e amor”, esclarece Débora. O casal também está passando estes princípios a Aurora, que segue a mesma alimentação dos pais. E por falar na pequena Aurora, o bebê só usa fraldas de tecidos, pois as descartáveis geram resíduos e acúmulo de sujeira no meio ambiente. Fundada em fevereiro de 2011, a ecovila ainda está em fase de construção e os trabalhos são realizados por mutirões, de acordo com as demandas. Qualquer pessoa pode fazer parte da Aldeia Luz, desde que siga uma alimentação vegetariana, acredite na evolução espiritual e busque a cura integral do ser.

SSOAL

Débora conta que a família está gostando muito do lugar, apesar de ser uma cultura diferente dos gaúchos. “Sempre gostei de ter a natureza por perto. Aqui não passamos por nenhuma dificuldade, apenas sentimos a falta de algumas pessoas e coisas das quais já estávamos acostumados”, reflete. O pai de Débora, o ator Raul de Brito Granja, não se surpreende em nada pela escolha da filha. “Já tinha ideia do tipo de vida que ela queria ter: a busca pelo espiritual mais do que material”, explica. O ator e sua filha mais nova, Melissa, 14, foram na Páscoa, conhecer a nova casa de Débora. Segundo Raul, o lugar é especial, lindo e possui uma energia fantástica. Mas o que mais chamou sua atenção foram os cristais que existem em Cavalcante, além das diversas cachoeiras. Enquanto aqui no Sul, nós apreciamos o tradicional churrasco, os integrantes da Aldeia Luz acreditam que possam ser feitas delícias na cozinha, sem precisar explorar os animais. Como uma pizza de tomates secos e rúcula, sem queijo é claro, ou um sorvete de frutas que não leva leite em sua fabricação. E ainda, frutas, geleias, cereais, verduras e legumes estão nas principais refeições deste grupo. E você, abriria mão de uma dieta que possui alimentos de origem animal em prol do meio em que vivemos?


O dom da Fênix LETICIA PEREIRA REPORTAGEM

Da paixão pelo futebol ao acidente, Betinho renasceu várias vezes na mesma vida

FOTO: L ETICIA

Como a fênix, um pássaro da mitologia grega que, quando morre retorna à vida das próprias cinzas, Carlos Alberto Fonseca, o seu Betinho, se adaptou as limitações que o destino lhe impôs. Fruto da pontualidade britânica e da rigidez alemã teve educação severa e rigorosa: “não andei de pé descalço, não tomei banho de chuva, mal saia na rua”. Na década de 40, em Cachoeira do Sul, os pais, que ainda sofriam com a morte do primogênito, não mediam esforços para manter a saúde do segundo filho. “Eu ficava na janela da minha casa vendo a gurizada na rua jogando bola”. Aos 6 anos, a liberdade. A escola era um mundo novo para Betinho. “O primeiro dia de aula foi a primeira vez que joguei bola.” Betinho cresceu e o talento para o futebol também. Aos 16 anos já era um jogador conhecido na região. Em 1961, o convite: jogar no Grêmio, em Porto Alegre. Humilde, resolveu adiar o futuro promissor. Optou pelos estudos. Em 1965, já com 20 anos, a decisão. “Quando recebi a última nota que me aprovou no curso de Contabilidade, resolvi aceitar o convite do Grêmio”. Betinho ia atrás de seu sonho. “No domingo ia para a capital. Eu sonhava alto, queria estudar e jogar no Grêmio”. Sábado era dia da final do campeonato municipal. A vitória seria uma bela maneira de se despedir de sua cidade e de seu time. Foi o último jogo de

ILUSTRAÇÃO: WHELLINTON ROCHA

Betinho. Naquele dia uma lesão na cabeça fez o jogador sair de campo em coma profundo. “Não gosto de recordar desse jogo. Nem posso. Meu subconsciente apagou as lembranças traumát ica s”. O lapso de memória faz com que a causa do acidente durante a partida seja um mistério. Após dois dias no hospital local, foi transferido para Porto Alegre. O acidente e a remoção do paciente em um avião da Força Área Brasileira (FAB) movimentaram a cidade. Ao ver o avião partir, Elaine, aos 14 anos, rezava: “Jesus, faz ele sobreviver pra vir casar comigo.” Na capital o diagnóstico: traumatismo crânio encefálico. Após duas neurocirurgias e quatro meses em estado de coma, Betinho renasceu. “Em fevereiro de 1966 eu acordei. Voltei cego, mudo e paralitico”. Ele lembra que ouvia os médicos e a família, “mas não podia falar, nem me mexer, então ninguém sabia que eu estava ali”. Nas visitas do neurologista, Betinho recorda que o doutor arranhava seus pés em busca de alguma reação. “Ele dizia: belo adormecido, não quer mais nada, hein? Então um dia respondi. Eu quero sair daqui.” Os médicos consideraram um milagre o jovem acordar sem problemas mentais. A paralisia nas pernas foi curada em sessões de fisioterapia. “Fazendo exercícios eu fui melhorando. Andava dentro de casa, sem-

pre com a ajuda da família. Cerca de dois anos depois do acidente já estava caminhando bem. Mas ainda não aceitava o fato de estar cego.” Foi na sua cidade natal que Betinho enxergou sombras na escuridão. Ele percebeu que estava distinguindo luzes acesas de apagadas. Após vários testes, os médicos confirmaram que a visão do olho esquerdo estava retornando. “Voltei a trabalhar, sonhava com a faculdade! Mas, explorei demais meu olho”. As sombras tomaram conta novamente. Depois, a escuridão. O oftalmologista confirmou: dessa vez a cegueira era irreversível. Os olhos não enxergam, mas expressam com lágrimas a dificuldade de viver com quatro, dos cinco sentidos. Aos 28 anos, Betinho era figura frequente nos bailes da cidade. No Natal de 1972, cansado de conversar sempre com os mesmos “brotos” ele resolveu deixar a sorte escolher sua próxima conquista. “Contei nove meninas e me aproximei da décima. Era ela. Meu anjo da guarda”. A escolhida foi Elaine, a menina que da porta de casa rezou para que Betinho sobrevivesse. Ao recordar da coincidência, Elaine afirma emocionada: “Naquele dia, há 47 anos, um anjo passou, me ouviu, e disse amém.” Cinco meses depois da primeira dança, o noivado. Em 1974, o casamento. No ano seguinte, o desejo por filhos e o medo de que eles herdassem a falta de visão. Em 1975 nasce Carlos Alberto, e em 1980 Ana Tessia. “Nasceram perfeitos” conta Betinho, mostrando no sorriso e nos olhos cegos o orgulho e o amor que sente pela família.

PEREIR A

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Os mortos de Santo Amaro do Sul DÉBORA KIST REPORTAGEM

Existe um lugar esquecido no tempo, com uma história bicentenária mantida por quem já se foi

FOTO: DÉBO RA K

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IST

FOTO: CA SA DE

FOTO: DÉBORA KIST

Até o século XIX, quase 160 pessoas foram enterradas na igreja

No início do filme Um certo capitão Rodrigo (1971), o personagem interpretado por Francisco di Franco troteia a cavalo por Santa Fé. O capitão Rodrigo recém chegava à vila na qual se desenrola toda a história de O tempo e o Vento, clássico de Erico Verissimo. Rodrigo percebe um lugar pacato, sem grandes movimentações e atrativos. E essa parece ser a mesma impressão para quem chega hoje à vila de Santo Amaro do Sul, que serviu de cenário para o filme em questão. Fundada em 1752 às margens do Rio Jacuí, a vila de portugueses era referência no Estado e no Brasil imperial, assim como Rio Pardo. Hoje, com algumas centenas de habitantes, Santo Amaro é uma vila de velhos e crianças. Os adultos de meia idade trabalham fora. No centro, a igreja erguida há 225 anos, com paredes tão grossas que serviram muito tempo como forte. Na frente, uma praça com grama e nela uma enorme figueira. Ao redor, 13 casas e prédios, todos tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Um lugar esquecido, que 260 anos depois de fundado, parece não ter olhos para o futuro. Quem procura, não encontra farmácia, Correios, lojas. Precisou de comida, tem nos bares. Precisou de remédios, também têm nos bares, mas guardados em caixas de sapato bem escondidas, pois “é proibido vender remédio no comércio”, conta Elenita Teresinha

CULT. DE VENÂ

NCIO AIRE S

Casal de esqueletos enterrado a cerca de 120 anos

de Souza Vianna, 62 anos, a dona Mosquita. A miúda senhora também é a responsável pela chave da igreja. A guardiã do templo lembra das histórias ocorridas lá dentro, quando funerária era algo distante e ela mesma limpava e vestia os falecidos. Quando alguém morria, tinha que ir à capela na hora que fosse. O ritual era sempre o mesmo: abrir a capela, acender as luzes, vestir o morto, colocá-lo de acordo com o protocolo (posicionar o caixão e arrumar as flores) e voltar para casa. Se a pessoa morria à noite, tinha que bater o sino logo cedo e na hora do enterro a mesma coisa. As histórias são mantidas pelas crenças nos mortos que parecem ser o cerne daquele lugar. Tudo lá está preso ao passado, à nostalgia dos antigos moradores que narram lendas. Como Francisco Pereira Rodrigues, o Seu Chico. Aos 99 anos, ele lembra quando, em 1938, Getúlio Vargas construiu um arsenal bélico em General Câmara, transferindo para lá o centro administrativo. Dessa forma, Santo Amaro deixava de ser o centro para virar distrito. Seu Chico também lembra das mortes por afogamento. O imenso rio levava embora os corpos e não davam chance aos familiares de enterrarem os seus. Para encontrá-los, depositavam velas acesas sobre pratos ou gamelas e os lançavam nas águas. As velas buscavam os mortos e onde a gamela parasse, é porque lá estava o cadáver. Além de repousarem nas águas

do Jacuí, os mortos de Santo Amaro também estão sob a igreja e ao seu redor. Conforme a professora mestre em História, Angelita da Rosa, até o século XIX, 156 registros de sepultamentos dentro da capela foram encontrados. Entre eles, o de Rita Josefa Bittencourt. Mulher de Francisco Xavier de Azambuja, o primeiro sesmeiro (dono de terras) de Santo Amaro, ela era nada menos que filha de Jerônimo de Ornelas, o fundador de Porto Alegre. Nos fundos da igreja, a poucos palmos da superfície, a ossada de um casal repousa há pelo menos 120 anos. Assim foram encontrados, em 2006, e lá permanecem, com os moradores caminhando sobre eles todos os dias. Os mortos não incomodam ninguém e os vivos também não. No início do século XX, quando os enterramentos nas igrejas deixaram de ser praticados, os mortos começaram a ser sepultados no cemitério da vila. Até aí tudo bem, não fosse o fato dos túmulos ficarem de costas para o portão principal, quando geralmente são construídos de frente. Para isso, não há explicação científica nem lendária. Viver num lugar em que as lendas têm a mesma força de uma história real parece não incomodar os que lá moram. Entre os findos e os vivos, há uma linha tênue. Em Santo Amaro do Sul, as histórias não são esquecidas. Elas repousam no rio e no chão da igreja, como os mortos que mantêm aquele lugar.


JOÃO JUNQUEIRA REPORTAGEM

Quando jogar não é mais brincadeira de criança e partidas são algo maior que apenas um gol

O sonho de três jovens tornou suas histórias parecidas a maioria dos garotos brasileiros: o de ser jogador de futebol. Felipe Berny (foto), 23, Bolívar Schuck, 22, e William Steffens, 19, cruzaram seus caminhos nos gramados de futebol das categorias de base de grandes clubes. E, hoje, no futebol amador, reduto de muitos jovens com condições de terem sido profissionais, mas que por algum motivo não conquistaram o sonho. Sem frustrações por conhecer o verdadeiro mundo da bola, os jovens ressaltam o aprendizado no tempo de boleiros. O estudante de Educação Física, Felipe, ostenta na carteira de trabalho como primeiro empregador o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, como atleta profissional. “Eu cheguei com muita moral no Grêmio. O treinador dos juvenis tinha me visto na Copa Santiago jogando pelo time da cidade, e eu joguei muito bem, fiz dois gols, inclusive contra o Inter. Tive proposta do Cruzeiro e Atlético de Minas Gerais, Goiás, Inter, Juventude e Grêmio. Como eu era gremista, escolhi o tricolor.” A assinatura do vínculo como profissional animou o atacante Felipe. “É muito raro chegar com idade juvenil, ter contrato com salário e multa rescisória.” A história de William começa mais longe. O garoto foi aprovado em testes realizados por uma academia paulista para revelar novos talentos no Rio Grande do Sul jogando como lateral-direito. Foi convidado a passar um ano na cidade de Peruíbe, no litoral paulista. “Eu

FOTO: JOÃO JUNQUEIRA

Histórias escritas pelo futebol fiquei cinco meses treinando lá, fazendo amistosos contra clubes que poderiam nos contratar. Em julho eu fui pra São Paulo sozinho para fazer peneiras e tentar realmente entrar em um clube.” As dificuldades de viver longe da família e ter que se virar para entrar num desejado mundo, foram os principais ensinamentos que William trouxe na bagagem. “Eu aprendi com a experiência de ter tentando ser jogador. Eu era menor de idade, estava numa cidade como São Paulo e tive oportunidades de conhecer muita gente e, ainda, jogar futebol.” Diferente de Felipe, William não assinou contrato com nenhum time. O jovem revela que conquistou o espaço nas categorias de base de um grande time graças ao talento e não pela indicação de empresário. “Tinha gente que não tinha condições técnicas de estar lá, mas tinham empresários, diretores conhecidos.” Os bons treinos nos juniores lhe renderam testes junto aos profissionais. “O Mano Menezes pediu um jogo-treino entre os profissionais e a base e como eu estava treinando muito bem, participei como titular do time da base.” Depois de oito meses de um sonho tudo começou a ser desfeito. “Eu treinava bem, mas não era aproveitado, aí meu contrato foi rescindido e eu voltei pra Santa Cruz. Minha mãe chorou, pois me davam muito apoio e confiavam no meu talento.” O rio-pardense Bolívar Schuck até se tornou profissional. Mas antes passou por clubes no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, como F.C. Santa Cruz, Caxias, Grêmio e

Joinville. Volante com bom drible, acredita que as experiências nos clubes foram válidas, mas, mesmo jogando apenas no futebol amador, vê espaço no futebol profissional. “Com um aprimoramento na parte física acho que teria um bom desempenho.” Depois de frequentar alojamentos de categorias de base e voltar para Santa Cruz do Sul sem realizar a profissionalização, Bolívar viu a chama reascender em 2008 quando teve o convite de um empresário para integrar o novo time da cidade de Rio Pardo. “Eu fui treinar com o grupo que ia jogar a segunda divisão do Campeonato Gaúcho. Pagaram só o primeiro mês, então voltei pra Santa Cruz e comecei a trabalhar.” Mais uma vez a bola enlaçou a vida dos três jovens. Além dos encontros dentro dos campos de futebol que percorrem nos finais de semana, o sonho de se profissionalizarem naquilo que mais gostam de fazer e o acaso do desejo não realizado, não frustram os garotos. “Eu me arrependo de não ter questionado o treinador, de não ter confiado mais em mim e cobrado uma chance de verdade”, conta Felipe. A interpretação de William segue uma linha diferente, apesar de ter passado quase um ano entre testes e treinamentos na academia paulista, o jovem acredita que a profissionalização tiraria um pouco o sabor do esporte. “Futebol por diversão é muito mais gostoso, com os amigos. O profissional é um mundo luxuoso de poucos, pois na maior parte dos casos é muito sofrida mesmo.”

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Cinturão Verde em perigo JULIANA EICHWALD REPORTAGEM

De loteamento em loteamento, um patrimônio ambiental aos poucos perde a forma

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Ela não possuiu o milagre da fala, porém, tem o dom de sentir as vibrações ao seu redor, e, a partir disso, expressar-se com seu majestoso corpanzil. Está lá, estática ou em movimento, as madeixas se movendo de acordo com a velocidade do vento. Suas vizinhas se encontram a alguns metros de distância. Com o passar dos anos, novas e indesejáveis v i -

zinhas se instalaram próximas a ela, trazendo consigo, o desaparecimento das antigas. As novas são diferentes, semelhanças entre elas não existem, sua aparência anuncia liberdade, por mais enraizada ao solo

que esteja. A aparência das novas vizinhas remete a prisão. Suas madeixas são galhos que formam uma espécie de candelabro, com milhares de folhas espinhosas meticulosamente espalhadas. O majestoso corpanzil é composto por um tronco robusto de altura em torno de 10 metros. E quem é ela? Uma Araucária angustifolia ou Pinheiro-brasileiro (foto) da família das coníferas. As


FOTOS: JULIANA EICHWALD

antigas vizinhas são árvores também, mas de outras espécies. E as novas, são casas, quase tão grandes quanto ela. Sua morada se encontra a alguns metros do Cinturão Verde de Santa Cruz do Sul - um extenso território composto por fauna e flora. Como as suas antigas vizinhas desapareceram? Por meio do desmatamento. A Araucária está protegida por lei. É proibida a derrubada, mas, na maioria das vezes, não há o respeito de todos. Presa ao solo, sem a capacidade de correr do perigo que a rodeia, ela vive a agonia do dia seguinte. Assim como os Ipês, as Aroeiras, as Corticeiras, os Cedros e as Ingazeiras -

árvores que habitam o Cinturão - as Araucárias ajudam na purificação do ar. Quem já caminhou ou dirigiu próximo ao parque da Gruta, próximo à Universidade de Santa Cruz do Sul ou próximo a outros ambientes semelhantes a esses, sente a clara diferença na mudança climática dessas regiões em relação às regiões centrais da cidade. O motivo é a proximidade do Cinturão Verde. Esse extenso território florestal possui cerca de 450 hectares, delimitado por determinação do Decreto nº 4.117, em 26 em maio de 1994. Porém, aos poucos, a sua proporção está diminuindo, em virtude da especulação imobiliária. Com fins habitacionais, as grandes construções tomam conta da área verde. À noite, é possível avistar alguns clarões de luz dentro do Cinturão. Segundo o Secretário do Meio Ambiente e Saneamento, Francisco Antunes, o Cinturão não é uma área de

preservação, com exceção de alguns pontos de Mata Atlântica e APPs (Áreas de Preservação Permanente). Portanto, a construção de loteamentos residenciais é permitida, com o devido licenciamento. Assim, cresce o número de domicílios em busca do contato, por vezes exagerado, com a natureza. Segundo o biólogo Jair Putzke, o Cinturão segura as encostas acidentadas da área leste da parte principal e mais antiga da cidade e libera umidade no ar, que diminui a temperatura da área. Além de ser o refúgio para pelo menos 45 espécies de mamíferos, sem contar as aves e as mais de 150 espécies de árvores e arbustos. E a recém descoberta bromélia Aechmea winkleri, uma planta ilustre que só existe no Cinturão Verde. Em uma rápida passada por algumas regiões do Cinturão, uma série de operários são avistados suando a camisa em meio concreto, madeira e infinitos instrumentos de construção. As máquinas não param. Após a “limpa” rápida no terreno, função que é desempenhada por retro escavadeiras furiosas, os casarões se formam rapidamente. Em uma tarde, árvo-

res que demoram anos para se desenvolverem plenamente, são arrancadas sem piedade do solo. Há reclamações sobre a conivência da Secretaria do Meio Ambiente em relação ao desmatamento desenfreado do Cinturão Verde, mas a Secretaria rebate afirmando que somente segue as leis. Em busca da proteção desse cenário, o vereador Ari Thessing criou a Comissão Permanente Pró-Cinturão Verde, que visa discutir formas de preservação. O projeto teve início a partir de queixas da comunidade santacruzense sobre o uso irracional da área, mas até o momento não obteve resultados expressivos. “Não existe uso racional da natureza. Ou você preserva ou não. A ganância imobiliária é muito forte em cima disso”, afirma o vereador. Entre idas e vindas, quem sofre na pele, ou melhor, no tronco, não tem como se defender. As antigas vizinhas da Araucária, que outrora formavam uma vasta área verde, se foram. A morte é mais rápida que um piscar de olhos. O motor liga, como o flash de uma câmera fotográfica, e no segundo seguinte, o fim. Árvores imóveis e impotentes diante da fúria da máquina, do homem e do dinheiro. O que antes era verde, hoje está repleto de concreto.

As construções invadem as áreas verdes

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Um lugar que abriga a esperança VANESSA BERGER REPORTAGEM

Mesmo com a modesta infraestrutura, um espaço onde as pessoas de rua são valorizadas

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Muito diferente da realidade que envolve o mundo obscuro e solitário dos vícios, é possível encontrar no Albergue Municipal de Santa Cruz do Sul um lugar que aconchega a alma e o coração daqueles que precisam. É numa casa antiga, ampla e simples, que muitas pessoas encontram um novo rumo para suas vidas. O local, que funciona como albergue desde 1992, já passou por mudanças. Regras foram estipuladas para que a ordem no estabelecimento seja mantida e todas elas são severamente respeitadas pelos ‘hospedes’. Ações como tomar banho, não usar drogas e não beber, são indispensáveis para garantir a estadia por ali. O Albergue Municipal é dividido em duas alas: Casa da Cidadania, que abriga pessoas que chegam encaminhadas das clínicas e já se encontram em processo de desintoxicação, e o Albergue e a Casa de Passagem, que dividem o mesmo espaço e dão lugar a moradores de rua da cidade ou de outros municípios, que geralmente chegam no auge da dependência e muito debilitados. Neste último caso, antes de darem entrada, são encaminhados ao posto de saúde, onde recebem uma injeção de glicose para amenizar o efeito do vício. Silnara Noronha, coordenadora do Albergue Municipal e carinhosamente chamada de ‘’mãe ‘’ pelos albergados, orgulha-se do trabalho que desenvolve. ‘’É gratificante trabalhar aqui. Ver de perto e poder auxiliar na recuperação de pessoas maravilhosas, que só precisam de uma mão amiga para recomeçar’’.

Fica explícito o sentimento de gratidão que os albergados desenvolveram pela ‘’mãe’. Com os olhos marejados e sorriso tímido, um deles confessa: “Aqui temos valor. De que adianta estarmos cercados de gente se ninguém quer nos ouvir?”. No entanto, a estadia no Albergue não é gratuita. Apesar de não ser cobrado nenhum valor em dinheiro, existem tarefas a serem cumpridas para que se possa permanecer no espaço. Semanalmente são formadas equipes que trabalham na cozinha e na limpeza do local. Há hora para lavar roupa e dormir. Silnara explica que desta forma os albergados criam responsabilidades, o que é fundamental para uma recuperação eficiente. Muitas são as recaídas até encontrar a força necessária para deixar os vícios. A recuperação nem sempre é fácil. “A primeira coisa que vem à cabeça é como me deixei vencer de novo. O vicio sussurra no ouvido, fala baixinho e vai te ganhando. Tenho vergonha de me olhar no espelho no outro dia”, desabafa Renato* Retrato da vida O vício bate a porta de alguns logo cedo, muitos ainda na infância. Com Renato*, não foi diferente. Aos nove anos já experimentava goles de cerveja, oferecidos pelo padrasto. Aos onze já havia experimentado a sensação do primeiro “porre’” e também de algumas drogas ilícitas. A vida começava a pender para um lado difícil de recuperar.

FOTO: VANESSA BERGER

Aos 15 anos mudou-se para um bairro da cidade onde o tráfico e consumo de entorpecentes é pouco controlado. Já no meio da ‘’função’’, conhecer e tornar-se usuário de drogas mais pesadas foi um passo rápido. Loló, hipofagin, cocaína na veia, oxi, e a maconha foram tomando conta de seus dias, sempre aliadas ao álcool. Aos 20 anos já entornava pelo menos um litro de cachaça por dia. A mãe não lhe dava muita atenção. Por isso, ele encontrou na droga um refúgio para sua carência. Já um pouco mais velho, casou-se e teve três filhos. Hoje é deles que Renato* mais sente falta. Muitas foram as vezes que chegou em casa sob o efeito do álcool. As tentativas de agressão à mulher só tiveram fim quando ela decidiu sair de casa. Aos 27 anos foi preso por tráfico de drogas e cumpriu 3 anos de reclusão. Foram longos e turbulentos dias de mágoa e solidão. Porém, hoje, a tristeza e a dor começam a dar espaço a alegria e a vontade de viver novamente. Aos 39 anos de idade, 1 ano e 4 meses ‘’limpo’’, e ao poucos, retomando o contato com a família, Renato comemora. Tudo isto, fruto de sua força de vontade e perseverança, mas também resultado do indispensável apoio que encontrou em um lugar onde as pessoas dão as mãos em busca de um caminho melhor e são valorizadas pelo que são. As identidades dos entrevistados foram preservadas e substituídass por nomes fictícios.


Quando a solidão chega sem avisar INGRID GUEDES REPORTAGEM

No Asilo da Velhice Nossa Senhora Medianeira, em Cachoeira do Sul, Antônio aguarda uma visita

Antônio Ribeiro morava entre cinco pessoas em um casebre de quatro cômodos, no interior de Arvorezinha. Quando tinha 11 anos, Antônio, que hoje tem 72 anos, já trabalhava na roça. Acordava às 5 horas, tomava café com uma colher de farinha de mandioca e uma fatia de pão e rumava junto aos pais e dois irmãos para o trabalho. Caminhavam aproximadamente quatro quilômetros na escuridão pela rua de chão batido. No percurso só se ouvia o som dos grilos. Essa rotina permaneceu por um longo tempo. Antônio concluiu a escola, os pais morreram, os irmãos foram embora, mas ele continuou trabalhando na roça. Quando sua saúde deu sinais de que não ia muito bem, ele parou de trabalhar. Sozi n ho, s e m

filhos, até dois anos atrás morava em Arvorezinha, na terra da erva-mate. Hoje sua residência é o Asilo da Velhice Nossa Senhora Medianeira, em Cachoeira do Sul. Foi trazido por um assistente social da prefeitura. “Não fiquei lá, porque não tinha asilo”, afirma. Chegou portando uma pequena mala, que tinha roupas e alguns pertences pessoais. A sua vida estava toda ali dentro. 234 km o separam da sua casa, dos móveis, do desenho do corpo no colchão, da chaleira em cima do fogão, dos amigos, da camiseta do time de futebol do time que ele era goleiro, Os Paludos, além das alegrias e das tristezas que viveu naquela cidade. Porém, isso agora faz parte do seu passado. “Sinto falta do que fui e do que deixei para traz”, afirma. Antônio jamais pensou estar onde está. Morando em uma casa que não é sua, com pessoas estranhas, vidas que não se cruzam e usando móveis e coisas que não foram comprados com o suor de seu trabalho. “Aqui o que temos em comum é a solidão e a idade avançada. Nós aguardamos o fim da vida”, desabafa. Antônio nunca recebeu uma visita, segundo a Assistente Social do asilo, Grasiele Teixeira Lopes, os seus irmãos e um sobrinho moram em Passo Fundo e não sabem onde ele se encontra atualmente. “Eu não sei o que é uma visita. Nunca recebi. Queria ver eles, mas não dá”, lamenta. Antônio, assim como todos que estão lá, é protagonista de um tempo em transformação, onde não se perdoa

passos lentos. No asilo o que o incomoda são as horas que parecem não passar. “Eu me acostumei com esse lugar. Tive que me acostumar, se não, para onde iria?”, questiona. A rotina de Antônio começa cedo. Pela manhã, abre a janela do quarto que divide com José Lúcio Gomes, que fica na parte térrea do asilo, e faz as orações do dia. Às 9 horas é servido o café da manhã, às 11h30 o almoço, às 15 horas o café da tarde, às 18 horas a janta e às 21 horas o lanche da noite. Entre os intervalos das refeições, usando a sua inseparável touca amarela, ele caminha bem devagar pelo pátio. Suas pernas não agüentam muito. Às vezes, opta em ficar no quarto, mais reservado. Prefere o silêncio às palavras. Não gosta de TV, mas uma vez ou outra vai à sala de estar, porque tem cadeiras aconchegantes, diz ele. Para os moradores não se sentirem sozinhos é feito durante a semana um cronograma de atividades. Na segunda-feira há o grupo de convivência, onde voluntários realizam gincanas e fazem roda de conversa. Terça-feira é o único dia da semana que não tem atividade. Na quarta-feira se reza o terço. Na quinta-feira tem missa e na sexta-feira tem o grupo de atividade física. A maioria participa. Antônio é desse grupo. “Fazer algo distraí a gente”, comenta. O asilo é limpo, grande, arrumado e decorado. O quarto de Antônio é espaçoso, têm duas camas, um roupeiro, dois criados-mudo, um ventilador e cortina para não entrar muita claridade. Um lugar bom de viver se Antônio tivesse também as pessoas que fizeram parte do seu passado. Mas sua nova morada o deixa distante de tudo o que viveu. “O meu passado eu carrego na minha lembrança. Foi lá que tive muitas alegrias”, afirma com a voz embargada. A solidão é inevitável. FOTO: S GUEDE INGRID

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Muito além do hô hô hô JULIANA SPILIMBERGO REPORTAGEM

Há mais de três décadas, Hildeu Antônio Sisnande, 60, dedica-se ao Natal

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Em um lugar bem distante do Pólo Norte vive Papai Noel. Longe da terra de neve eterna, em um País tropical. Ele não guia trenós e ao invés de renas voadoras tem como fiéis companheiros Shiva, Mickey, Frodo e Pretinha, quatro cachorros. Mas os cabelos e a barba brancos, os olhos azuis, o 1m 76 e os 116 quilos dão a Hildeu Antônio Sisnande as características do bom velhinho. Ele tem mais de três décadas de experiência como Papai Noel. Encarnou-o pela primeira vez em 1979, em um trabalho arranjado pela tia. Aos 60 anos, de velhinho Sisnande não tem nada, pelo contrário. O bom humor e a energia dão inveja a qualquer jovem indolente. Além de Papai Noel, também se dedica a encaminhar pessoas que buscam emprego no setor de Recursos Humanos da Prefeitura de Santa Cruz do Sul, cidade onde vive. O currículo de Sisnande Noel é de gente como a gente. Multitarefas, já fez o sorriso de muitas pessoas ficar ainda mais bonito quando foi auxiliar de protético. Serviu ao Exército Brasileiro, mesmo sem dar um tiro. Trabalhou em uma fábrica de bolas, mesmo não praticando esportes e de bebidas - iguaria que não deixa de lado nos finais de semana. Também andou quilômetros para recolher dados para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e

FOTO: JULIANA SPILIMBERGO

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e m descobriu a causa da morte de muita gente. Sim, por alguns anos, Papai Noel foi auxiliar de legista. Há 26 anos, ele passou em um concurso público e é funcionário da Prefeitura até hoje. Na casa onde mora com a dedicada Mamãe Noel Elaine Sisnande, 50 anos, leva uma vida tranquila, na qual o Natal nunca é esquecido. “Sempre tenho doces em casa, as crianças da rua são fascinadas por ter o Papai Noel como vizinho”, conta ele. Ao som de Julio Iglesias e do Rei Roberto Carlos, Noel brinca com os animais de estimação. “Cachorros adoram música, Shiva só não gosta de tango”, afir-

ma. Por ironia, um dos filmes que mais gosta é sobre um Papai Noel às avessas. Apesar de não ser adepto a exercícios físicos, gosta de dançar. Conheceu e conquistou Elaine nos salões há 40 anos, hábito que mantém até hoje. Hildeu também é pai de dois filhos, Fernando e Betina, e tem uma neta de 5 anos. A pequena Fernanda se orgulha em dizer que o avô é o Papai Noel. “Mas me confundiu com o lobo mal na festa de fim de ano da escolinha”, diverte-se. Assim que a véspera de Natal se aproxima, Mamãe Noel lava e passa com capricho as quatro fardas que compõe o guarda roupa de Noel. Perfumado, costuma sair de casa às 17 horas e só volta durante a madrugada, quando as cerca de 24 famílias receberam a visita do ilustre. “O mais legal é ver meu trabalho ultrapassar gerações”, afirma. Já chegou às festas de várias formas: carroça, barco e até charrete. Também levou sustos. “Correr de três cachorros ferozes não foi uma boa experiência”, conta. Quando veste o casaco e calças vermelhos - cor do time do coração -, ajusta o cinto e as botas de couro preto, Hildeu dá vida ao personagem que é. “Entro no sonho com todos aqueles que querem acreditar. Às vezes eu mesmo me confundo e acredito que sou Papai Noel.”


Nem todo conhecimento nasce na escola JONARA RAMINELLI REPORTAGEM

Existe uma sabedoria que não está em catálogos nem em dicionários

FOTOS: JON AR A R

AMINELLI

Quando o cipó cicatriza, Valacir sabe que a simpatia deu certo

Um chá de macela para dor no estômago. Se for dor no ouvido, um pano quente tira na hora. Mas se a dor for de dente, não tem jeito, enche a boca com cachaça, mas não pode engolir, espera que logo a dor passa. Os ensinamentos de Rosa Correa parecem utopia nos dias atuais, porém é preciso considerar que, num passado não muito distante, o mercado farmacêutico era limitado e caro. “Era preciso inventar soluções” diz a servente, mãe de quatro filhos, avó de dois netos e que jamais revela a idade “Hoje as crianças só usam fralda descartável. Na minha época, lençol velho a gente rasgava em pedaços e usava como fralda na gurizada.” Relembra saudosa a senhora de cabelos tingidos para esconder os grisalhos. Nem só de receitas caseiras se fazem os conhecimentos populares. No interior de Sobradinho mora Valacir Raminelli. Hoje, aos 65 anos, ele, juntamente com a esposa, Zilda, toma conta da propriedade que herdou do pai. A terra não foi a única herança que o descendente de italiano deixou aos filhos. Para cada um ensinou legados. Valacir aprendeu a fazer previsão do tempo com base nas fases da lua. Mas não qualquer uma, tem que ser no mês de setembro. Com um caderninho de anotações, o senhor de riso fácil mostra a previsão que fez ainda no início da primavera para o verão que passou. “Eu sabia que o verão seria

de muita seca, a Lua Minguante não mente, se não chover na Minguante de setembro, até março, sempre que for Lua Minguante, não chove.” E faz um alerta: “na Lua Nova não se pode confiar totalmente, é a mais mentirosa”. Na propriedade é a lua quem dita o período de plantio nas lavouras, o corte de cabelo e até o dia que uma fêmea dará cria. “Se a lua não tivesse importância, não precisaria ter quatro fases, seria sempre igual.” É também nas fases da lua que o homem magro e grisalho se baseia para realizar outro dos ensinamentos deixado pelo pai. Na primeira sexta-feira da Lua Nova é quando se pode dar início ao que ele chama de “simpatia.” Trata-se de um ritual para pessoas que tem hérnia. A tarefa não é muito simples: é preciso cortar um cipó na vertical sem desprendê-lo da base. Afastar as bordas formando um arco onde a pessoa deve atravessar algumas vezes enquanto Valacir repete em voz baixa uma oração. Após o término, as bordas são unidas novamente e um arame é amarrado ao redor. Esse ritual deve ser repetido nas duas sextasfeiras seguintes. A oração ele não revela, somente contará para quem vir a ensinar. Valacir perdeu as contas de quantas pessoas atendeu. Diz que vem muita gente de longe e nem tem ideia de como elas ficam sabendo, porque ele não divulga. Faz tudo de forma gratuita, de bom coração e sabe quando a pessoa melhorou: “Se o cipó cicatrizar é porque a hérnia também cicatrizou”. Nas redondezas não é

difícil encontrar alguém que tenha “passado pelo cipó” com resultado positivo. O caçula do descendente de italiano não é o único a conhecer a natureza. O irmão Valídio Raminelli também recebeu do pai um legado: com uma forquilha (galho de árvore em forma de Y) o velho homem sabe procurar água embaixo da terra. O ritual exige, além de percepção, muita concentração. Com as mãos firmes nas duas extremidades do galho, o senhor de 72 anos, espera pacientemente até o instrumento realizar sua função. Quando o galho se retorce levando a ponta superior para o centro da forquilha é porque, segundo ele, naquele chão existe água em abundância. O homem que conhece os segredos da lua, não esconde um descontentamento. “Quero ensinar, mas ninguém quer aprender. Acho que o que sei, desaparecerá comigo no dia em que morrer.” Segundo a tradição, ele deveria ensinar a três pessoas, de preferência para homens, mas até agora não ensinou a ninguém. “As pessoas hoje em dia, não se interessam por conhecimentos populares e o que é pior, até fazem piadas.” Ao contar estas histórias, dois sentimentos: orgulho e frustração. Orgulho por contar nas linhas de um jornal rituais que conheço desde criança. Frustração por perceber que conhecimentos não catalogados podem se perder no tempo. A menos que o conhecedor da Lua quebre a tradição e passe seus ensinamentos à uma mulher: a filha repórter.

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“No silêncio nasceu nosso amor” GABRIELA MELLER REPORTAGEM

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FOTOS: GABRIELA MELLER

Kauan vive sem os ruídos desagradáveis, mas adora ouvir a batida das músicas

Nos conhecemos há mais de 12 meses e, hoje, 4 de junho de 2012 completamos um ano de namoro. Um amor diferente, meu primeiro namorado é daqueles especiais. Com ele aprendi Libras, Língua Brasileira de Sinais, idioma oficial reconhecido por lei federal, aliás, isso nos aproximou ainda mais. Concluí o ensino médio em 2010, mas continuo frequentando as aulas da Escola Liberato Salzano Vieira da Cunha. Estou lá todas as noites, de segunda a sexta-feira. “É mais um ensinar do que aprender.” O Kauan Bica dos Reis, meu namorado, nasceu e nunca pôde falar. Sua deficiência foi ainda na formação, dentro do útero de sua mãe. Ouve apenas 7% do que nós no ouvido direito. Nós? Você repórter e eu. Ele tem os olhos castanhos, cabelo preto e pele clara. E m

altura tem, aproximadamente, 1,80 metros. Já eu, meço um pouco menos, meus cabelos são claros e encaracolados, nós dois temos a mesma idade, 19 anos. Todos os nossos amigos dizem que somos comunicativos, claro que de maneira diferente. Kauan é muito atento, presta atenção enquanto as pessoas conversam, ele lê os meus lábios e de quem conversa comigo. Ele adora ir a shows e boates, pois como o som é bastante alto consegue ouvir a batida da música. Na escola Liberato Salzano, onde meu namorado estuda, sem que eu fosse nas aulas, seria impossível para ele entender tudo que os professores dizem. Como nunca falou, a dificuldade para entender o que as pessoas estão falando, só aumenta. Hoje em dia dedico meu tempo para ajudá-lo tanto nas aulas, como na comunicação com a família de Kauan. Na casa dele nenhum familiar sabe libras, entendem o que ele diz, fazem gestos, algumas palavras quando não estamos juntos Kauan e eles escrevem. Resolvi frequentar às aulas com o Kauan porque ele não tem condições de pagar o que um intérprete cobra por aula, o equivalente a R$150,00. O custo de um profissional desses não cabe no orçamento dele e a escola Estadual não oferece intérpretes de libras. Uso a língua de sinais, que aprendi com o próprio Kauan, para passar

A tudo que é dado nas aulas. Tatiane Paixão Grings, minhã irmã, é o cupido da nossa relação. Ela é colega de trabalho de Kauan. Eles trabalham na filial 8 de uma rede de supermercados de Cachoeira do Sul, onde nos conhecemos e moramos. Conheci Kauan em uma festa da empresa que ele trabalha, fui convidada pela minha irmã para ir à festa, e essa foi a melhor coisa q u e Tatiana fez para mim.


VANESSA SCHULER REPORTAGEM

O contraste da cor da pele mantém brancos e negros em lados opostos até depois da morte

Dois quilômetros de estrada de chão entre duas pontes estreitas demarcam a Linha Pinhal Trombudo, no interior de Vale do Sol, cerca de 30 quilômetros de Santa Cruz do Sul. O cenário é de cidade do interior. Campos largos e vastas vegetações disputam espaço com pequenas casas. Em frente à única escola da localidade, há um cemitério colorido e outro fosco. O mesmo espaço de terra divide histórias de vida bem distintas. De um lado, descendentes de alemães de pele branca e, de outro, descendentes de quilombolas de pele negra. Há mais de 40 anos, Edi Maria Durante, 70 anos, vendeu o terreno ao lado de sua casa para a comunidade da Igreja Católica. Os moradores decidiram fundar uma comunidade e aceitaram pagar mensalidades para ter por perto aqueles que há muito se foram. Antes os moradores de Pinhal Trombudo precisavam enterrar seus familiares em Formosa ou até mesmo em Vale do Sol. Um mesmo terreno virou dois espaços onde negros e brancos convivem sem se relacionar. De um lado famílias negras, que não pagam mensalidade à Igreja, mas celebram a fé de acordo com as suas crenças. De outro, famílias brancas que

pagam mensalidade à Igreja para cultuar Deus como manda a tradição católica. Um cemitério e duas alas marcam a força de uma cultura, onde cada um sabe o espaço que pode ocupar. Por trás de um portão de ferro de cor marrom, estão os familiares de dezenas de descendentes de alemães. Do início do cemitério é possível avistar túmulos limpos, onde flores coloridas naturais transformam as lápides de granito. Já do outro lado, um portão feito de arame marca a entrada do cemitério onde são enterrados pessoas de pele negra. Flores artificiais suavizam o túmulo demarcado com uma cruz de ferro. Em um cemitério o trilho que separa os túmulos é de cimento, no outro, folhas secas escondem o barro do chão. A distinção também é percebida na quantidade de sepulturas. Do lado esquerdo são poucos os espaços sobrando no chão, são resquícios de uma vida com menos cuidado com a saúde por falta de recursos financeiros. Enquanto as famílias alemãs são donas de propriedades, onde a produção é farta, os negros trabalham pesado na terra dos brancos como empregados para sustentar suas famílias. Do contraste da cor da pele segue

FOTOS: VANESSA SCHULER

Separados por uma tradição

um histórico de costumes que ainda divide uma comunidade em dois grupos. São diferenças que refletem tradições cultuadas há décadas pelos moradores de Pinhal Trombudo. Para os moradores, a distinção feita no cemitério da localidade é sentida como característica local e não como forma de racismo ou de preconceito. “Eles não pagam mensalidade, nem frequentam a Igreja como nós. Fazem rituais entre eles”, explica Edi. Para o professor de história, José Remedi, esse costume é reflexo de uma civilização antiga: “Desde o período da escravidão tínhamos cemitérios separados para negros e brancos. Mesmo depois da abolição, existem civilizações que continuam seguindo a tradição.” Existem raízes culturais que nem o tempo é capaz de destruir. Mesmo no século XXI, marcado pela modernidade tecnológica e pela disseminação de informação, em Pinhal Trombudo as pessoas parecem não se importar com as leis contra o preconceito racial. Afinal, quando os moradores daquela localidade vêm ao mundo, aprendem cedo o seu espaço na comunidade. Por isso, negros e brancos, separados a vida toda por uma tradição, somente se unem após a morte, quando dividem a mesma terra.

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O hábito que a tecnologia não derrubou

FOTOS: C ASSIA

NE RODR IGUES

Derli lembra que rádio era a única forma de comunicação com os parentes do interior antigamente

Radialistas têm grande responsabilidade em transmitir a informação correta na hora dos avisos

CASSIANE RODRIGUES REPORTAGEM

Avisos através da rádio servem como forma de comunicação entre cidade e interior

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Pobre Manoel, se não ouvisse rádio não saberia da visita do irmão, no domingo. Lúcia soube do nascimento do sobrinho por estar sempre sintonizada na AM. Já Luis, segue esperançoso por algum retorno sobre o sumiço da vaca de estimação. Eles são objetivos e precisos. Algumas vezes inusitados e até mesmo engraçados. O fator em comum entre eles é que fazem parte do dia a dia de muitas pessoas, mesmo com o avanço da tecnologia. Antigamente, os famosos avisos nas rádios eram a única forma de comunicação entre parentes da cidade e do interior. Hoje, o meio que um dia foi necessidade, tornou-se um hábito. O aposentado Derli Rodrigues, 56, lembra de ir até a rádio anunciar o nascimento do irmão, quarenta anos atrás. O texto era sempre cheio de detalhes: “Aracília avisa aos primos de Três Vendas que deu à luz um lindo e grande menino”. Os tios do interior avisavam pelo rádio a ida para a cidade e que alguém devia buscá-los de carroça na parada do ônibus. Hoje já não é tão comum o uso de carroças já que os familiares utilizam o celular para informar sobre as visitas. Porém, a prática de escutar rádio na hora das comunicações não foi esquecida. Mesmo com o avanço da tecnologia e o uso do celular até mesmo em alguns lugares no interior, o hábito de estar com o rádio ligado na hora dos avisos permanece. Os radialistas Marcos Leal e Nilton Silveira produzem juntos o programa “Comunicações do dia” há

doze anos, na Rádio Fandango AM, em Cachoeira do Sul. Durante esse tempo, já tiveram de anunciar várias coisas engraçadas e inusitadas. Exemplo disso foi desaparecimento do cavalo Lambari e da égua Cocozinha. Em momentos como esse é preciso controlar o riso e transformar o texto o mais claro possível. Outro fato inusitado e ao mesmo tempo contraditório é ter de anunciar que alguém está na UTI, mas passa bem. A tarefa de noticiar na rádio não é feita apenas do inusitado e engraçado, pois o mais comum são anúncios de falecimento. Para os profissionais, o mais complicado é divulgar a morte de um amigo ou alguém próximo. “Nesses momentos a voz fica fraca, a gente engasga, mas tem que falar”. A rádio também tem o papel de promover encontros entre família. No ano passado, por exemplo, foi através do anúncio pela rádio que dois irmãos se encontraram, depois de 60 anos. Maria Geni Oliveira e Enio Machado foram separados ainda quando bebês. Durante anos guardaram para si a vontade de se reencontrar. Foi através de apenas um anúncio na rádio que eles se localizaram e descobriram que, apenas 40 quilômetros, os mantinham ainda separados. A filha de Maria Geni foi quem encontrou em contato

com a rádio. Ela sempre ouvia da mãe a vontade que tinha de conhecer o irmão. A mãe de Maria Geni e Enio deu à luz a quatro filhos. Logo que nasceram ela entregou cada filho para uma família diferente. Um deles faleceu e o outro, Valmor Quilião, sabia que tinha um irmão, pois sempre era confundido com outra pessoa. Cada um dos quatro filhos foi para uma casa, levando consigo apenas o nome da mãe biológica, que veio a falecer alguns anos depois. O encontro entre os irmãos só foi possível porque Enio ouviu pela rádio que Maria Geni estava procurando o irmão que não conhecia. Ele soube que era ela quando ouviu o nome da mãe. Um anúncio que trouxe emoção e realizou uma espera da vida inteira. Encontros, desencontros, felicidade e tristeza. Os avisos são de todos os tipos e permanecem mesmo com o avanço da tecnologia. São detalhes que ligam de alguma forma o presente com o passado, a atualidade com a memória. Afinal, nem tudo cai no esquecimento em uma realidade de iPods e tablets.


Vida de Mini Miss é pura diversão DAIANE HOLDEFER REPORTAGEM

Milena Stepanienco, 6, se divide entre a vida de criança e o ofício de miss

Maquiagem. Baby liss no cabelo. Coroa e faixa de miss. Algo normal para muitas mulheres, não fosse um detalhe: ela tem apenas 6 anos. Mas, se a idade é pouca, os títulos de beleza são muitos. É nas passarelas que a gaúcha se destaca. Timidez é uma palavra que Milena Stepanienco aboliu do dicionário. Comunicativa, desbancou 13 candidatas e foi coroada Mini Miss Rio Grande do Sul em 2011. A beleza da pequena, aliada a sua simpatia, rendeu também as faixas de Beleza Verão Santa Cruz do Sul, Mini Miss Santa Cruz do Sul, Mini Miss Germany Brasil e Mini Miss Alem a n h a Brasil.

Z Quando iniciou nos concursos de beleza, aos 4 anos, Milena nem imaginava que hoje teria até carteira de modelo profissional. Mas, mesmo com os seus compromissos de miss, ela leva uma vida normal. Afinal, ainda é uma criança. Nas tardes livres, a miss troca a coroa pelo jogo de futebol. Maquiagem e penteado só se veem nas bonecas. O sapato dá lugar aos patins e o vestido sai de cena para que Milena possa pular na cama elástica. “Gosto de me divertir na pracinha e de estudar”, conta. Filha de um bombeiro e de uma empresária, moradores de Santa Cruz do Sul, a Mini Miss, que adora animais, sonha em ter um zoológico. “Para conseguir comprar um cachorro, ela guarda o cachê que recebe nos eventos”, conta a mãe, Maria Helena Stepanienco Chagas, 36 anos. A tranquilidade da menina é transmitida pelo azul brilhante de seus olhos. Tranquilidade que desaparece ao entrar na passarela. “Quando chega a hora do desfile dá um pouco de nervosismo”, revela. Para vencer o Mini Miss Rio Grande do Sul, Milena caprichou no vestido de gala e nos preparativos, que juntos chegam a custar R$ 6 mil. Mas um imprevisto quase a fez desistir da disputa. O vestido, entregue pelo estilista uma hora antes do desfile, tinha muitos bordados e irritou a pele da menina, que começou a reclamar. “Ela ficou toda vermelha e falava que estava coçando muito”. Preocupada com a filha, Maria Helena foi até o quarto em que estavam hospedadas e cortou uma meia calça para colocar por baixo do vestido, só que não

FOTO: DAIANE HOLDEFER

adiantou. O problema com a roupa fez com que a miss borrasse a maquiagem, mas não a apresentação. “Milena entrou na passarela e virou outra pessoa”, diz Maria Helena. Mãe e filha encaram os concursos como uma brincadeira, o que torna o resultado bastante saudável. Para elas, tudo é diversão. “É um momento muito divertido. Ela adora desfilar, colocar um vestido bonito. Depois de pegar gosto pela passarela, Milena descobriu outra paixão: a dança. No Mini Miss Rio Grande do Sul, apresentou a coreografia que ensaiou durante os meses que antecederam o concurso. Ao som de Como um flash (Sandy e Junior), a candidata de Santa Cruz do Sul contagiou os jurados e mostrou que adora dançar. O que não gosta é ter que acordar cedo, mas precisa, pois estuda no turno da manhã. Ela, que já fez aulas de patinação e alemão, cursa o primeiro ano do ensino fundamental. Desde que iniciou nas passarelas, Milena sempre teve o apoio da mãe. Ela está sempre atenta para que a filha se vista de acordo com a idade e não use maquiagem exagerada. Deisi Meyer Lopes, 39 anos, é psicóloga clínica e acredita que a competição se torna um problema a partir do momento em que a criança tenta andar como adulta todos os dias. “É preciso trabalhar os princípios e valores, além de oferecer muito amor e carinho, já que as crianças não estão preparadas para perder”, destaca. A miss, assim como qualquer criança, gosta de batata frita e salgadinho. Gosta de pular na cama elástica. De passear com a família. De conversar com as amigas. Milena também gosta das passarelas. Dos vestidos de princesa. Das coroas e faixas. Os planos da pequena miss? Ainda é cedo para pensar. Enquanto a hora não chega, ela transforma a sua boneca em Miss Mundo.

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