A HISTÓRIA DO ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

Page 1

CADERNOS CULTURAIS - 2

O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE O Autor Domingos Vaz Chaves

1ª.EDIÇÃO


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

Para os meus filhos JOÃO e LUIS; Para o meu nétinho Tomás para a minha AMIGA e companheira de todos os dias.

2

e


DOMINGOS VAZ CHAVES

Dep贸sito Legal N.潞 152291/06 Tiragem: 1 000Exemplares Direitos de Autor Reservados

3


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

O AUTOR DOMINGOS VAZ CHAVES, nasceu a 3 de Agosto e foi registado a 16 do mesmo mês, do ano de 1954, na freguesia de Gralhas, concelho de Montalegre, onde foi baptizado, pelo Padre Avelino da Mota. Viveu com os seus avós maternos até aos 7 anos de idade. É filho de José Fernandes Chaves e de Teresa Vaz Chaves, neto paterno de José Fernandes Chaves e de Maria Dias e materno, de Domingos Vaz e de Maria da Glória Gonçalves Carneiro, todos naturais da dita freguesia de Gralhas, do concelho de Montalegre. Na sua aldeia, iniciou a instrução primária, tendo rumado a Lisboa, onde actualmente vive, quando frequentava a 2.ª classe e se juntou a seus pais, que aí residiam e trabalhavam. Em 1965, após concluir a 4.ª classe e efectuado o então necessário e obrigatório exame de admissão, para acesso ao

4


DOMINGOS VAZ CHAVES

ensino secundário, inicía os seus estudos no extinto Liceu Nacional de Gil Vicente, também em Lisboa. Sempre apegado às suas origens e inadaptado ao ambiente da capital, em 1969 regressa à sua terra e aí passa a frequentar o Externato Liceal de Montalegre. Após reprovação no então chamado exame do 2.º ciclo (5.º ano), é-lhe imposto o retorno Lisboa, facto que o leva à recusa de continuar os estudos. Começa então a trabalhar num escritório sediado na Avenida do Brasil, auferindo um vencimento de novecentos escudos mensais. Anos mais tarde, trabalhando e estudando alternadamente, veio a concluir o Curso Geral dos Liceus em Julho de 1974, no Liceu D. Dinis. Tinha então 19 anos de idade. Em termos profissionais, ingressou na Policia de Segurança Pública no ano de 1981, a qual surgiu no seu percurso, através de um concurso público. Após a respectiva candidatura e a prestação das necessárias provas, deu entrada na Escola Prática de Policia, em Outubro desse mesmo ano, tendo frequentado o Curso de Formação de Agentes na cidade de Torres Novas. Concluído o mesmo, é colocado em Lisboa, local onde permanece até Outubro de 1985, data em que regressa à Escola Prática de Policia, para frequentar um Curso de promoção a Chefe. Após frequência do mesmo com aproveitamento, regressa de novo a Lisboa, onde volta a ser colocado. A partir daí reíniciou os seus estudos e após conclusão do 12º. Ano no Liceu D.Pedro V, no ano de 1989 entra na Faculdade de Direito de Lisboa, onde frequentou o respectivo curso. Sindicalista desde os tempos do Estado Novo, foi um dos principais activistas da causa sindical na PSP, e enquanto co-

5


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

fundador, ainda na clandestinidade, da primeira Associação na Instituição –a Associação Sócio Profissional da Policia-, foi um dos principais intérpretes e impulsionadores da chamada “Batalha de Lisboa”, revolta ocorrida em 21 de Abril de 1989, que colocou Policias contra Policias, no Terreiro do Paço em Lisboa e que levou à demissão do então Ministro da Administração Interna, Silveira Godinho, do Governo de Cavaco Silva. Em finais de 1994, deixa a actividade operacional da Policia e passa a desempenhar funções na área da formação. Em 1995, por despacho do Ministro Alberto Costa, é nomeado para o desempenho de funções na Inspecção Geral da Administração Interna e passa a trabalhar em colaboração directa, com o então Inspector Geral, Doutor Rodrigues Maximiano. Em Novembro de 1996, através de sufrágio directo, é eleito para vogal do Conselho Superior de Justiça e em 1999, faz a denúncia no Parmento Europeu, junto da Comissão Parlamentar de Direitos Liberdades e Garantias, da violação de direitos sindicais e constitucionais, por parte do Governo português, facto que lhe valeu uma valente reprimenda por parte do ministro da tutela e um processo disciplinar, brilhantemente defendido pelo seu amigo Garcia Pereira. Paralelamente à sua actividade, leccionou na Universidade Lusiada, tendo nos últimos anos, dedicado algum do seu tempo à escrita, da qual se destacam, para além desta pequena obra, Gralhas-Minha Terra Minha Gente, uma monografia da sua aldeia natal, História da Policia em Portugal-Formas de Justiça e Policiamento, Moralidade e Ética Policial e Relatos e Crimes do Arco da Velha.

. . . 6


DOMINGOS VAZ CHAVES

INTRODUÇÃO O HOMEM E A SOCIEDADE

Em sociedade ninguém pode viver isolado. Todo o cidadão necessita da colaboração de outrém, para satisfação das suas necessidades, as quais só podem ser supridas, pela acção conjunta do colectivo. Desde os primórdios, que o homem percebeu que a vida em sociedade, tem de estar subordinada, a um conjunto de normas, que regulem a actividade dos indivíduos que a integram, isto é: Ninguém pode satisfazer os seus interesses, prejudicando os da colectividade. É a partir deste pressuposto, que foram criadas e aperfeiçoadas ao longo do tempo, normas de conduta do indivíduo!... Só a observância dessa disciplina social, permite a harmonização entre os homens. Contudo e face ao incumprimento desses princípios, agrupamentos humanos houve, que delinearam determinados conjuntos de meios, por forma a que o desrespeito e os lesasociedade, fossem forçados ao seu cumprimento. A essa acção dos agrupamentos humanos se chamou "contrôle social", o qual era e continua a ser, exercido através da aplicação de sanções, que variaram desde uma simples reprovação, até à pena de morte, muitas vezes envolvida de extrema crueldade.

7


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

Tais sanções sucederam-se durante séculos e séculos, transmitindo-se de geração em geração, embora como é óbvio e ao longo do tempo, tenham sofrido significativas alterações e sido objecto de múltiplos aperfeiçoamentos!... Enquanto a justiça dos primórdios aceitava a "Pena de Talião", ou seja, o direito de um indivíduo se vingar de quem o tivesse ofendido - causando-lhe dano idêntico ao cometido pelo seu agressor - actualmente, raros são os povos que adoptam este costume penal. Nos dias de hoje, cabendo ao Estado criar regras consideradas justas, para que todos possam viver em segurança, cabe-lhe também a prerrogativa de fazer cumprir essas mesmas regras, baseando-se para tal, não só na justiça da Lei e nos "instrumentos" ao seu dispor, que a própria sociedade adoptou ao longo do tempo, como também na experiência da vida em comum, dos diversos grupos sociais e na imposição de novos conceitos e aperfeiçoamentos, designadamente numa maior humanização e moralidade. Neste caderno, procurarei relator um dos vários exemplos, que a História me deu a conhecer: A História do, Último Enforcado em Portugal, de seu nome, José Fernandes Begueiro, cidadão natural do lugar de Codeçoso da Venda Nova, que em Setembro do ano de 1844, na actual Praça do Município, da Vila de Montalegre, viu concretizada, a sentença de condenação à Pena de Morte, por homicidio.

. . .

8


DOMINGOS VAZ CHAVES

OS ÚLTIMOS ENFORCADOS EM PORTUGAL

Zé Begueiro de seu nome, foi executado em Setembro de 1844

Pese embora em muitos sectores da sociedade da época, se tenham desenvolvido protestos, tendo em vista a abolição da pena de morte, esta só veio a ser efectivamente consumada, para crimes de natureza comum, por lei de 1 de Julho de 1867, ano em que reinava D. Luis I.1 Segundo alguns historiadores, o último enforcamento realizado em Portugal, terá ocorrido em 15 de Abril de 1842, tendo sido vitima do mesmo, o alto cadastrado Francisco de Matos Lobo, por quádruplo homicidio na Rua de São Paulo em Lisboa . Argumentam outros, que tal não corresponde à verdade: Em carta datada de 18 de Setembro do ano de 1844 e dirigida à revista Universal Lisbonense, de que era correspondente assíduo, 1

Para crimes politícos, a pena de morte, havia sido abolida, em 1852.

9


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

o padre José Adão dos Santos Álvares, abade de São Vicente da Chã, do concelho de Montalegre, dá noticia do enforcamento nesta vila de Barroso em Trás-os-Montes, do enforcamento de José Fernandes Begueiro, concluindo a sua noticia, para aquele periódico de Lisboa, dizendo: "Concluímos fazendo votos para que esta execução seja a

única e com que os presentes, lá para o futuro, nas noites geladas dos invernos de Barroso, a façam lembrar a seus netos". Em boa verdade, assim terá sido durante muitos anos. Porém e passado que foi mais de século e meio após este trágico acontecimento, poucas referências existem sobre o mesmo e as que restam, pouco ou nada dizem. Ainda segundo Pinho Leal, o enforcamento de Montalegre, terá sido o antepenúltimo ocorrido em Portugal. O penúltimo terá ocorrido em 8 de Maio de 1845, no lugar de Vila de Rua, do concelho de Sernancelhe, do qual terá sido vítima, o conhecido assassino e salteador Manuel Pires, também conhecido pelo Pires da Rua. Ainda e segundo o autor já referido, o último enforcado terá sido um tal José Maria, mais conhecido pelo "Calças", o qual foi "justiçado" em 19 de Setembro do ano de 1845, no Campo do Tabulado, na cidade de Chaves, isto é, um ano e dois dias depois da morte de ´"Zé Begueiro". De referir ainda, que dez dias antes do enforcamento de Montalegre, mais concretamente em 7 de Setembro de 1844, foi supliciado na Cordoaria do Porto, Manuel Moutinho Pereira, conhecido por "Manuel Custódio", que na altura tinha 24 anos e havia sido condenado à forca por ter assassinado dois homens e uma mulher, sendo curioso notar, que a Portaria que comunicava ao Tribunal de Relação do Porto, que sua Majestade o Rei, não usara de clemência, é datada do mesmo dia,

10


DOMINGOS VAZ CHAVES

da que se referia a José Fernandes Begueiro, isto é de 28 de Agosto de 1844. Supõe-se por isso, que as execuções teriam sido simultâneas, se as respectivas sentenças, as não tivessem marcado para lugares diferentes, facto que justifica, que "Begueiro" tenha vivido mais dez dias, isto é, os necessários para efectuar a viagem do Porto a Montalegre. Por razões óbvias, debruçar-me-ei sobre a estória do último enforcado nesta vila Barrosã, a qual concerteza não será muito diferente de outras estórias ocorridas, noutros pontos do país. Nesta época e como já foi afirmado, havia já em certos sectores de opinião, um forte movimento contra a pena de morte. A revista Universal Lisbonense, sobre este assunto, dizia o seguinte: ... " Deixemos a difícil questão da justiça e da

conveniência da pena de morte: enquanto ela existir e se aplicar covém dar a tais actos a maior solenidade e publicidade. Se um dos fins, e o principal fim de uma execução patibular é o exemplo, e o saudável terror dos que a presenciam, releva que a toda a parte do povo, que por seus olhos a não pode ver, entre ela ao menos pelos ouvidos. É por isso que por mais de uma vez, havemos descrito comtoda a possível miudeza e com toda a verdade de circunstâncias o julgamento e o suplício dos grandes facínoras". A BIOGRAFIA DO CONDENADO “BEGUEIRO” Codeçoso da Venda Nova, é uma aldeia do concelho de Montalegre, povoação antiquíssima, onde chegou a funcionar um presídio militar no tempo dos Romanos. Alguns autores da

11


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

antiguidade, chegaram inclusivé a chamar-lhe cidade e ficava situada na via militar romana, que de Braga por Chaves seguia para Astorga. Segundo o itinerário de Antonino Pio, ficava entre Salácia1 e Caladuno2. No século passado, a vida desta pacata aldeia transmontana, nada tinha a ver, com os áusteros tempos do passado longínquo. Codeçoso não passava de uma pequena povoação pobre, como tantas outras de Barroso. Na época, os crimes, sobretudo os roubos eram frequentes, muitas vezes praticados por necessidade e acima de tudo por falta de assistência moral e educação das pessoas mais pobres e miseráveis. As invasões francesas primeiro e a guerra cívil entre Miguelistas e Liberais mais tarde, vieram ainda criar mais miséria e ódio. Nesta altura, abundavam igualmenteos filhos naturais dos lavradores mais abastados, os quais quase na totalidade dos casos, eram lançados num abandono completo, que os traumatizava, tornando-os não só odiosos, como até revoltados. Foi neste ambiente, que em 1815 nasceu José Fernandes Begueiro, filho natural da viúva, Senhorinha Fernandes Begueiro, que vivia num pobre casebre conjuntamente com seu filho e uma sua irmã. Tudo indica, que a miséria em que viviam era aterradora. Foi talvez este ambiente de fome e pobreza moral, que o levou às paixões, vícios e crimes, quando ainda jovem, fazendo dele um criminoso, em vez de um cidadão pacato. Sobre a sua conduta enquanto rapaz, escreveu o padre, José Adão dos Santos Álvares, pároco da aldeia ao tempo:

1

local onde hoje se situa Salamonde 2

hoje Gralhas

12


DOMINGOS VAZ CHAVES

... "Em todo o tempo do oratório e execução mostrou bons

sentimentos e felizes lembranças, sobretudo uma grande humildade e santidade. Pode ser que, se a educação cultivasse aquela índole houvesse sido um homem virtuoso e um excelente cidadão". Mas infelizmente e por culpa duma sociedade inculta, imoral e pobre, tal não aconteceu e assim ainda pequeno, se associou a marginais, assassinos e ladrões, tornando-se autor de muitos e variados crimes e homem muito temido e mal amado, naquela região transmontana. Em Abril de 1838, ofereceu-se como homem de bem, para companhar e indicar um caminho a uma mulher, Inácia Joaquina e a um rapaz, Francisco Baptista que vindos da cidade de Braga, passavam pela localidade. Enganou-os e desviou-os dos caminhos certos, para veredas recônditas e matagosas, com o fim único de os roubar e assassinar. Se assim o pensou, melhor o fez!... Num sítio ermo e matagoso assassinou-os barbaramente, vindo a ser encontrados muito mais tarde já putrefactos. Begueiro tinha nessa altura 22 anos de idade. Um chapéu velho a ele pertencente, encontrado junto dos cadáveres, o ter sido visto nos finais de Abril, com um capote que foi reconhecido como pertencente a uma das suas vítimas, o facto de transportar uma faca de ponta, estar armado de "pau com choupa" e a má fama de que já desfrutava, foram motivos suficientes para que elementos da Policia Municipal, o prendessem numa taberna da Venda Nova, em 25 de Maio de 1838. Inicialmente negou o crime, mas levado à presença das vitímas, veio a confessar o acto criminoso, com o detalhe de todos os pormenores. Após ser presente ao Tribunal, esteve preso durante cerca de quatro anos, tendo sido julgado no Tribunal de

13


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

Montalegre em 21 de Janeiro de 1842, pelo Juíz Dr. Carlos de Oliveira Pimentel. SENTENÇA DE MORTE CONTRA O RÉU

"... Vistos estes autos.... é acusado o réu José Fernandes Begueiro, solteiro, trabalhador, filho e natural de Senhorinha Fernandes Begueiro, de Codeçoso da Venda Nova, primeiro de se ter associado desde a infância, com ladrões, salteadores e assassinos; segundo de ter em um dos dias do mês de Abril de 1838, na Serra das Alturas, assassinado e roubado Inácia Joaquina, viúva de António José da Costa e Francisco Baptista, filho de João Baptista e Maria Ventura da cidade de Braga, havendo-os previamente enganado e conduzido por veredas transversais, e fazendo crer que havia passagem de tropas nas alturas e que deviam evitá-las; terceiro, de ter, na ocasião em que foi preso, em uma taberna do lugar de Codeçoso da Venda Nova, no dia 25 de Maio de 1838, sido encontrado com um pau de chuço, uma choupa e uma faca de ponta aguda. Acrescentam-se no libelo algumas circunstâncias agravantes, como de se ter encontrado junto dos cadáveres dos assassinados um chapéu velho pertencente ao réu e de se ter visto a este, nos últimos dias do mês de Abril do mesmo ano, um capote velho cor de pinhão que algumas pessoas asseveraram tê-lo visto ao falecido Francisco Baptista; e finalmente de que, sendo conduzido o réu ao lugar em que se achavam os cadáveres dos assassinados já meio consumidos e devorados, ali confessou ter acompanhado os referidos indivíduos assassinados por caminhos transversais e veredas não seguidas; diz finalmente o libelo, que o réu padece de nota e opinião de ladrão, salteador e assassino .

14


DOMINGOS VAZ CHAVES

Perante este rol de acusações, defende-se o réu, alegando

" que é um cidadão bem comportado, que ganha a sua vida honestamente por meio de trabalho, e que nunca padeceu a nota de ladrão, salteador ou assassino e que nunca usara de armas de defesa, e que as que foram encontradas na casa em que foi preso, não eram suas". Assim, havendo-se preenchido todas as solenidades legais, e proposto ao júri os quesitos que pareceram necessários, o júri achou provado que o réu cometera os crimes de que vinha acusado, declarando provadas igualmente todas as circunstâncias agravantes de que se faz menção no libelo acusatório. Perante estes factos, o Juíz, João Carlos de Oliveira Pimentel, deu por terminado o julgamento no próprio dia em que tivera início, não sem antes fazer saber que " o principal crime de

que o réu é acusado é horroroso e faz estremecer a todo o homem dotado de alguns sentimentos de honra e religião (...) e que, "Achando-se pois, o réu convencido dos crimes de que foi acusado, e cumprindo para exemplo e manutenção da ordem social, é dever do Juíz cumprir com o seu dever. Portanto, pelo que dos autos consta em vista da decisão do júri e dos principios do Direito Criminal em que me fundo, condeno o réu José Fernandes Begueiro, solteiro, e jornaleiro do lugar de Codeçoso da Venda Nova a morrer de morte natural para sempre, levantando-se para esse fim uma forca no lugar do Toural desta Vila. Pague o mesmo réu as custas dos autos". O Tribunal da Relação do Porto, viria a confirmar esta sentença, através de um acórdão datado de 12 de Agosto de 1842. Requerendo revisão para o Supremo Tribunal de Justiça, o réu viu ser-lhe negada a sua pretensão, por decisão de 12 de Maio de 1843, a qual viria a ser confirmada em última instância pela

15


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

raínha D. Maria II, a qual "não houve por bem usar da sua real clemência em favor do réu", vindo este a ser "justiçado" na Praça do Toural em Montalegre, em 17 de Setembro de 1844. O POVO E O ACONTECIMENTO A noticia do próximo enforcamento em Montalegre correu célere em toda a região. A passagem do criminoso sob escolta de 50 homens da Policia Municipal1, desfez a pacatez e monotonia das aldeias de Barroso, naquele fim de Verão de 1844. Em boa verdade o "espectáculo" era único. Segundo o escritor Montalegrense José Jorge Àlvares Pereira, os lavradores largaram as enxadas e arados para acorrerem aos caminhos; esvaziaram-se as tabernas e as ruas; as mulheres deixaram os afazeres caseiros e saíram, sujas e descalças, a correr, dos fumarentos casebres, limpando lágrimas aos aventais e pontas de lenços da cabeça, numa gritaria para que ninguèm perdesse o espectáculo; os pastores abandonaram os rebanhos pelas serras e vieram correndo pelas encostas para verem também o trágico cortejo. À passagem, uns descobriram-se e limpavam lágrimas mal contidas, outros mantinham um silêncio de enterro e alguns admoestavam os mais novos e rebeldes para que a sua sorte não viesse a ser a mesma. Espectáculos daqueles não se viam todos os dias!... Os mais velhos, recordavam aos mais novos, o enforcamento também em Montalegre de dois Galegos que haviam roubado e assassinado um estudante de Calvão, na ponte de Vilarinho de Arco. As mulheres e os rapazes ficavam embaçados, de olhos arregalados e terrificados, quando lhes diziam que as cabeças foram cortadas 1

da arma de infantaria

16


DOMINGOS VAZ CHAVES

depois do enforcamento, e espetadas em estacas no local do crime, até apodrecerem ou serem comidas pelos corvos. Em Codeçoso, (da Venda Nova) terra natal do sentenciado, por onde passou, a cena foi lancinante com gritos da mãe, irmã, e familiares conhecidos. Alguns incluindo a mãe, procuravam acompanhar o cortejo, por cima das paredes das quelhas, pelos carreiros, para o verem mais uma vez. Isto levou os Policias a acelerar a marcha e a intimá-los ao regresso. À chegada à Vila de Montalegre, a gente aglomerou-se pelas ruas e emagotou-se acotovelando-se junto à cadeia para o verem entrar, ou ainda, se possível lobrigá-lo através das grades da cadeia, que davam para a mesma rua. Durante os dois dias, desde a chegada até ao suplício, não se falou noutra coisa e Montalegre teve um movimento fora do normal da época. No dia da execução, por todos os caminhos e atalhos que levavam à vila, logo de madrugada, vinha um mar de gente, uns a cavalo troteando, outros escarrapachados em burros e a maior parte a pé, ligeiros e suados, com receio de chegar tarde. Nunca feira nenhuma juntara tanta gente... Vieram lavradores abastados, cabaneiros pobres, criados de servir, jornaleiros, pedintes, negociantes, gente de todas as idades e classes. Geralmente, desenbocavam em ranchos na Praça do Toural, para admirar o patíbulo e tomar lugar com antecedência... Faziam-se comentários, quase em surdina, mas todos estavam ansiosos, com os corações acelerados, por ver como era. A noticia da conversão e confissão do condenado, transmitida de uns aos outros como facto fundamental, provocou um semtimento de alívio e comoção que as mulheres exteriorizaram com gestos patéticos e lágrimas.

17


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

Cinco mil pessoas ali se juntaram; multidão tal que jamais ali se tinha visto. Contudo o ambiente não era o das grandes romarias e feiras: sentia-se nos rostos, nos gestos, no andar, no conversar, no cumprimentar dos conhecidos, um ar tétrico de morte e tragédia que envolvia tudo e todos. À tarde, quando partiram, íam em silêncio e tristes, num regresso que lhes parecia sem sentido.

Praça do Município1 em Montalegre, local onde ocorreu o antepenúltimo enforcamento em Portugal, vendo-se em primeiro plano, o mitológico Carvalho da Forca

O SUPLÍCIO Sobre o sucedido, se transcreve na íntegra, a carta datada de 18 de Setembro de 1844, que o Padre José Adão dos Santos Álvares, ao tempo pároco de S. Vicente da Chã, enviou à Revista Universal Lisbonense:

..."O réu José Fernandes Begueiro saiu ultimamente da cadeia de Relação do Porto para sofrer morte por forca na vila de 1

Antiga Praça do Toural

18


DOMINGOS VAZ CHAVES

Montalegre segundo o determinado na sua sentença. Escoltado por uma força de infantaria 2 seguiu a estrada de Ruivães às alturas passando pelo lugar da sua naturalidade, e pelos sitios dos seus crimes e malfeitorias; consta que sua infeliz mãe, uma desgraçada viúva, o seguiu longo tempo na mais viva consternação, e que, obrigada a voltar para trás, caiu de cama onde se conserva. Ouvimos também que o réu, defronte do sítio onde assassinara a mulher e o rapaz que tão boamente confiaram nele, tirara o chapéu e orara por um grande espaço. Chega a Montalegre no dia 13 pelas 10 horas da manhã, entra na prisão, conserva muita presença de espírito, come, fuma não pouco. Julgar-se-ia que não pensava na sua sorte: declara que são inúteis as cautelas para não se suicidar: nunca o desejou e quer morrer como Cristão. Dia 15 pelo meio-dia chegam os executores; vê-os através das grades da prisão, entritece-se e não acaba o jantar1; pela 1 hora é intimado para entrar no oratório; despede-se dos espectadores, que de fora das grades o observam, pede-lhes perdão, e que orem pela sua alma, e resoluto sobe ao oratório. Havia o Sr. Juíz de Direito substituto requisitado do reverendo arcipreste quatro eclesiásticos, que ministrassem os socorros da religião ao infeliz. Era um deles o presbítero Manuel Caetano, pároco encomendado em Sta. Maria de Gralhas, que compareceu primeiro, procura o sentenciado e com ele conversa às grades da prisão quase uma hora; entra com ele no oratório, apressa-se a aproveitar as boas disposições que admira no padecente; confessa-o e o reanima com doces lenitivos; que só a religião de 1

hoje almoço

19


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

Jesus subministra para tais lances: coadjuvado por alguém que carinhosamente concorre e pelos outros três padres, o conforta o restante do dia: conserva-se resignado e com muito ânimo: - Come e dorme uma boa parte da noite, mas sobressaltado. No dia 16 comunga, ouve três missas com recolhimento, come alguma coisa, deita-se em uma cama: vai perdendo muito do primeiro alento, mas sempre resignado; perto da noite o vimos sobremaneira compungido às suaves exortações do seu digno confessor e mais eclesiásticos; declara que os seus pecados são muitos, e que só um Deus de tanta misericórdia os poderia perdoar, o que firmemente esperava: -deseja ouvir os martírios da paixão de Jesus; e a conversão de algum pecador: -repete breves jaculatórias e beija frequentemente um crucifixo: -pede amiudadamente água fria; -o semblante indica grande abatimento; de noite dorme mais sossegado; -cada vez que dão horas, conta-as e nota aos assistentes quanto o prazo se lhe vai encurtando. Chega a madrugada, conserva-se no mesmo estado e com a mesma resignação: não come: -só deseja refrigerar-se com água fria; indica receio de não chegar com força ao patíbulo. Tudo faz acreditar uma verdadeira conversão, duas vezes se havia já reconciliado depois da confissão. Dão 11 e meia; chega a Irmanade da Misericórdia e os executores com alva1 e corda, entram, não desanima; vestem-no cingem-lhe o braço; ele se presta com toda a resignação e ajuda a acomodar as voltas da corda na prisão das mãos; saem para a Praça do Toural, a pequena distância a misericórdia com um painel de Nossa Senhora, um minorista com um crucifixo voltado para o padecente: -segue este caminhando a pé acompanhado dos eclesiásticos P. Manuel Caetano, P. João Gonçalves pároco de Santo André e P. J. Batista Rosa etc. e os 1

Túnica

20


DOMINGOS VAZ CHAVES

dois executores de casaco e calça preta, indo em último lugar o Juíz de Direito substituto. Delegado interino, escrivão do processo e administrador do concelho, e achando-se formada em duas alas uma força militar e 50 homens, enquanto outros tantos da Policia armados formam em roda do patíbulo. Chegam à capela de S. Sebastião na dita praça, onde o capelão da misericórdia celebra o santo sacrifício da missa; aqui o Padre Manuel Caetano faz uma alocução ao réu e ao povo, toda de sentimento e compreensão em que sobressaem a par de um estilo claro e suave ideias mui apropriadas e mui ternos pensamentos. Foi pena que o murmurinho do povo a não deixasse ver distintamente percebida de todos. Dirigem-se para o centro da praça onde se erguera o patíbulo, e dando uma pequena volta para o lado norte chegam junto dele; aí ouve de reconciliação ao padecente o P. João Gonçalves e ajoelhado sobre uma tábua se conserva firme um quarto de hora, sem desfalecer, quando todos os sinais indicavam não poder completar tanta constância; ouve depois a sentença que o escrivão do processo lhe lê: escuta, a um dos sacerdotes que o anima, pede água. O P. Rosa o exorta a uma firme confiança na protecção da Senhora e com breves e patéticas orações o anima a subir. Simões, o executor mais novo, esperava já no cimo do patíbulo, o padecente acompanhado dos padres Gonçalves e Rosa, e senta-se nos degraus superiores; virado daí mesmo para mais de cinco mil espectadores o P. J. Gonçalves recita um discurso improvisado mui patético e análogo à triste cena que ali se dava, convidando a aproveitar-se de tão severa lição a todos os que presenciaram; e conclui pedindo em nome e por insinuação do padecente, perdão a todos, à aflita mãe, uma irmã, parentes,

21


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

amigos, justiça, etc. excitando assim uma geral comoção de afecto. O padecente pede novamente água, e depois ele próprio, com vóz sonora intelegível pede perdão a todos: dá adeus ao mundo, implora a protecção de Maria Santíssima, e que lhe alcance misericórdia do seu Divino Filho, cujas chagas ele padecente abrira. Cede custosamente o crucifixo, lança-lhe o algoz o capuz. A execução não a vi; mas um choro geral e extraordinários alaridos dos espectadores anunciaram que tudo estava consumado. A execução diz-se que fora pronta; mas não tanto quanto por ventura pede a humanidade. O cadáver foi pela Irmandade da Misericórdia conduzido ao cemitério da Matriz, acompanhado de quase todos os espectadores, que em seus sombrios semblantes indicavam o terror. Este recolhimento e a melancólica compreensão, com que assistiram aos últimos momentos do padecente, serviram de antítese ao donaire e distracção com que uma grande parte concorreu a presenciar espectáculo tão lutuoso". O já citado Padre José Adão, o grande "repórter" deste acontecimento, relata ainda, que "esta procissão não era mais que um cortejo de solenidade macabra e sádica para mostrar e fazer desfilar ignominiosamente por entre a multidão o desgraçado com alva1 e corda dependurada ao pescoço e mãos atadas. Estes aparatos eram por vezes bem mais trágicos e tétricos do que a própria execução, sobretudo quando os condenados, quase desfalecidos, tinham de percorrer longas distâncias, com paragens para o pregão ler a sentença...

1

túnica que era vestida aos sentenciados

22


DOMINGOS VAZ CHAVES

Faltou coragem por comoção ao Padre Santos Álvares para ver os pormenores do enforcamento. Contudo a execução não foi diferente das que eram usuais na época. A morte dava-se por estrangulamento, devido à suspensão do condenado pelo pescoço por corda com laço. Para ser mais rápido, mas nem por isso menos ignominioso, um dos carrascos lançava-se sobre o supliciado para aumentar o peso e apressar assim o estrangulamento. POSSIBILIDADES DE FUGA DO RÉU Sobre a possibilidade de fuga que o réu teve na véspera do enforcamento, escreveu o Reverendo José dos Santos Moura, abade de Caires, em informações dadas a Pinho Leal, para o "Portugal Antigo e Moderno ", dizendo:

"Já que vem de molde, permitam-me que exponha um facto, tal qual me foi narrado por um dos sacerdotes que no oratório assistiu ao suplicado. Foi o Rev. João Gonçalves reitor de Serraquinhos, venerando ancião falecido em 12 de Junho de 1883. Na noite de 16 de Setembro de 1844, véspera do dia da execução (disse ele) encontrando-se bastante fatigado, com o trabalho do dia no oratório, pedi a um dos meus colegas para me substituir por algum tempo. Assim me prometeu e fui deitar-me um pouco: Adormeci logo, mas em breve acordei sobressaltado; sentei-me no leito lançando os olhos por toda a sala do Tribunal que servia de dormitório vi os meus colegas dormindo profundamente! Levanteime logo; atravessei a sala onde estava a força militar e esta dormia também; dirigi-me ao oratório encontrei o réu só, de

23


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

joelhos e como em êxtase, com os olhos fixos num cricifixo, balbuciando algumas orações. Saudei-o comovido e ele disseme: - Padre, se a Raínha Nossa Senhora me perdoasse, eu não aceitava o perdão. - Não só aceitava o perdão (repliquei eu) mas até se evadiria se pudesse. - Tanto não me evadiria que, oferecendo-se-me ocasião para isso, a não aproveitei. Já estive na rua e voltei para a prisão. Objectei-lhe que na sala contígua estava a força militar e ao fundo da escada uma sentinela. - As praças que ali estão na sala - respondeu ele - dormem todas e ao fundo da escada não tinha sentinela. Já vê, pois, que se não fugi foi porque não quis, nem quero. Sinto-me contrito e arrependido dos meus crimes e deles perdoado pela infinita misericórdia de Deus; espero estar com ele no paraíso brevemente, enquanto que fugindo tinha de andar escondido, sobressaltado e, associando-me talvez às más companhias de outrora, tornar-me-ia réu de mais crimes e desamparado da graça de Deus. Dito isto, beijou o cricifixo e chorou.Aproveitando tão boas disposições de novo o exortei à confiança na misericórdia divina e louvei ao senhor pela conversão de um tão grande criminoso. Depois, para me certificar de uma revelação tão estranha, saí do oratório e vi que efectivamente as praças todas dormiam e não estava sentinela na escada". OS EXECUTORES Infelizmente, não foi possível saber quem foram os dois carrascos que procederam à execução. O Padre José Adão dos

24


DOMINGOS VAZ CHAVES

Santos Álvares, já referênciado, diz que o Simões, o executor mais novo, esperava o condenado no centro do patíbulo. Pensa-se que esta referência tem a ver com o tempo de permanência no "ofício" e sendo assim, tudo leva a crer tratar-se de José Ramos, filho de Francisca Simões, o qual era na altura da execução, o último condenado à forca a quem o rei comutara a pena de morte por enforcamento, em Executor de Alta Justiça. Este José Ramos (Simões), era natural de S. Salvador do Mondego e residia na Boavista de Loivos, concelho da Figueira da Fóz. O Tribunal de Relação do Porto, havia confirmado a sentença por decreto de 2 de Julho de 1837. O último executor nomeado em Portugal foi Luis António Alves, mais conhecido pelo "Negro", carpinteiro de profissão e natural de Capeludos de Aguiar. Foi condenado à forca em 1842, tendo-lhe sido comutada a pena, em Executor de Alta Justiça, por decreto do rei, em 14 de Julho de 1845. Este carrasco, veio a morrer na prisão do Limoeiro em Lisboa, já depois de abolida a pena de morte.

...

25


O ÚLTIMO ENFORCADO EM MONTALEGRE

-ÍNDICE GERAL-

Notas do Autor...................................................................

O Homem e a Sociedade .......................................................................... Os Últimos Enforcados em Portugal .................................................... A Biografia do Condenado ...................................................................... Sentença de Morte contra o Réu Begueiro ........................................ O Povo e o Acontecimento ...................................................................... O Suplício ................................................................................................... Possibilidades de Fuga do Réu ............................................................... Os Executores ..........................................................................................

26

4

8 11 13 16 18 20 25 26


DOMINGOS VAZ CHAVES

-BIBLIOGRAFIA-

A Abolição da Pena de Morte em Portugal - Guilherme Braga da Cruz Revista Universal Lisbonense (Setembro/1844) - Biblioteca Nacional de Lisboa A Gazeta de Lisboa (Maio/1845) - Biblioteca Nacional de Lisboa A Gazeta de Lisboa (Setembro/1845) - Biblioteca Nacional de Lisboa A Guarda Municipal Cumpre - José Eduardo de Noronha Enciclopédia Portuguesa Ilustrada - Maximiano de Lemos História do Direito Português - Marcelo Caetano História da Policia em Portugal – Domingos Chaves

FIM

27


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.