‘Um corpo pra chamar de meu’

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Um CORPO para chamar de MEU Cirurgias, maquiagem definitiva, tatuagens e operações transexuais são recursos para construir identidades e reduzir sofrimentos

Caderno especial produzido no âmbito da disciplina Jornalismo Especializado e Segmentado, sob orientação do Prof. Carlos A. Zanotti, pelas estudantes Anna Bonin, Amanda Furlan, Luiza Lanna, Rayssa Almeida e Victória Bolfe PUC-Campinas - Junho de 2019


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EDITORIAL

JUNHO 2019

Do pecado ao prazer Por Victória Bolfe

A

lgumas barreiras do preconceito foram ultrapassadas em relação a termos corpos com os quais nos identificamos, mas sair do conceito de vandalização para o conceito de beleza e identidade não é uma ciência exata. Na sociedade contemporânea, as discussões sobre o próprio corpo e as modificações feitas nele estão cada vez mais constantes entre famílias, colegas e amigos, muitas vezes através de estereótipos e julgamentos. Isso porque por séculos, no cristianismo, o corpo, além da procriação, está associado ao pecado e à luxúria, levando cristãos a suprimirem seus desejos e repreenderem desejos alheios. Ao longo dos últimos anos, outros pensamentos foram construídos sobre nós mesmos e cada corpo passou a ser considerado único, uma mistura de genes hereditários com questões culturais, influências dos meios externos em que vivemos e nossas próprias vontades. Cada pessoa passou a alterar seu corpo para encontrar o prazer, mudança que para muitos está diretamente associada à própria aceitação ou à sua autenticidade. As redes sociais também têm tido importante papel de transformação:

as novas mídias intensificaram a necessidade de destaque da multidão, mesmo que seja acompanhando os passos de influenciadores digitais. Diante desse novo contexto estético, cabe uma reflexão para que o excesso de exposição não torne a vontade de mudar o corpo em patologia psicológica. Todos são livres para fugirem do estereótipo e aceitar a própria forma é uma questão de saúde, mas ainda resta estabelecermos diálogos mais saudáveis e empatia. Falar para a avó que a língua bifurcada é de Deus ou contar à sogra que tatuou a lombar não é um processo simples. Há dificuldade em expormos mudanças ainda mais drásticas, como dizer ao amigo que fez a troca de sexo ou expor a quantidade de procedimentos estéticos pelos quais passou, situações que podem assustar quem vê de fora, mesmo em pleno século XXI. Essa discussão sobre as transformações do corpo e encontro da própria identidade será abordada neste caderno “Um corpo para chamar de meu”. A vida de uma travesti, o mercado de tatuagens e procedimentos estéticos, uma língua bifurcada e uma psicóloga estão reunidos neste suplemento para a reflexão de que o corpo é de cada ume que cada um escolhe qual corpo deve ser o seu.

Lucas Minucci tatuou o próprio desenho aos 18 anos, para ele expressa sua força própria (Foto: Victória Bolfe)


ENTREVISTA

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Para Karina de Carvalho Magalhães, a identidade se da desde os primeiros contatos com o meioem que o indivíduo vive (Foto: Anna Bonin)

“Não tem como separar o que é da sociedade e o que é do indivíduo” afirma Karina (Foto: Anna Bonin)

Formação da identidade começa na infância, diz psicóloga Por Anna Bonin A psicóloga, Karina de Carvalho Magalhães é atualmente professora de psicologia da PUC-Campinas, mestre em saúde mental pela Unicamp e doutora em psicologia – ciências e profissão, afirma que a formação da identidade se inicia na primeira infância quando a criança entra em contato com meio em que vive, que neste caso são os pais. Além de revelar como a identidade se desenvolve em cada ser humano e como se dá a questão de aceitação do corpo, a psicóloga expõe quais as influências da sociedade no desenvolvimento do eu de cada pessoa e os transtornos relacionados a aceitação da autoimagem que podem existir. Professora, como se da o desenvolvimento da identidade em cada pessoa? Ele se da desde da primeira infância quando o indivíduo entra em contato com o meio em vive, que nesse caso são os pais, a família e a escola. O eu, a subjetividade dele, vai se formando na medida em que ele vai se desenvolvendo e entrando em contato com esse meio. Obviamente que tem

uma parte da personalidade que é hereditária, que seria o que chamamos de temperamento. A constituição da personalidade vem da relação dele com o meio que se forma dentro da sua subjetividade. O próprio desenvolvimento não é só psíquico, é desenvolvimento físico também. A constituição do eu tem haver, também, com a minha autoimagem, a imagem que eu tenho sobre mim mesmo, meu corpo e como isso é aceito dentro de mim e da sociedade. Então, é um conjunto de fatores, não tem um único fator que determina a identidade, mas sim esse conjunto da subjetividade com a sociedade em que ele está inserido.

próprio corpo e da relação disso com a sociedade, o quanto isso que é aceito ou não, pois tem fazes da vida que não se aceitamos tanto, depois tem outra fase que se aceitamos melhor, principalmente pelo amadurecimento do autoconhecimento do seu próprio corpo e de você mesmo. Dentro de pessoas com depressão, ansiedade e transtornos alimentares, por exemplo, que dizem que não aceitarem o próprio corpo e que precisam passar por algum procedimento cirúrgico isso é comum, mas a reclamação é isolada e isso pode estar presente junto com outros sinais e sintomas de transtornos emocionais ou comportamentais.

Qual influência que o corpo tem em relação a aceitação que as pessoas tem delas próprias?

Doutora, até que ponto uma mudança no corpo pode ser considerada parte da personalidade da pessoa ou uma imposição da sociedade?

O desenvolvimento físico ele vai ocorrer na medida que vai tendo um desenvolvimento psicologicamente e emocionalmente. Temos alguns marcos importantes desse desenvolvimento como na adolescência quando os jovens começam a desenvolver os caracteres secundários, como os sexuais. O adolescente vai tendo que se identificar dentro do seu

Não tem como separar o que é da sociedade e o que é do indivíduo, sempre existe uma interação entre aquele indivíduo e a sociedade. Mas chegar ao ponto de fazer tatuagens ou modificações mais exacerbadas tem que ser analisado e ver dentro do desenvolvimento da personalidade daquele indivíduo

especifico, o porquê que ele precisa estar se submetendo a esse tipo de mutilação, podendo dizer até em alguns casos, para se sentir aceito e inserido ou não em uma sociedade. Isto é um linear muito tênue entre o eu me aceitar e ser aceito pela sociedade. Dificilmente você vai ter esse eu me aceitar isento de questões do que são aceitas na sociedade. Mesmo aquela pessoa que quer ser o diferente, que decide não seguir o padrão de beleza, já está se identificando como uma pessoa dentro dessa sociedade que já tem uma identidade e, isso é uma forma de aceitação. Somos seres completamente dependentes do outro, não sobrevivemos sozinhos, somos seres sociais. Há um limite para as mudanças feitas no corpo? O grande número de cirurgias e procedimentos pode se relacionar a questão do narcisismo? Há diagnósticos de transtornos mentais e de comportamento, que são os transtornos de personalidade. Dentro deles, não há um especifico para quem faz algum tipo de mutilação ou faz as mudanças grandes no próprio corpo. Tem um

transtorno que é chamado dismórfico corporal, que é o caso daquela pessoa que faz diversas cirurgias plásticas em determinado local do corpo, mas sempre continua achando que não resolveu o problema, estes tipos de pessoas tem um transtorno de autoimagem. O narcisismo não é um problema em si. Quando alguém tatua o corpo inteiro, você pode olhar de fora e pensar que ela precisa tatuar para se sentir aceita na sociedade ou que ela deve ter algum tipo de transtorno por precisar fazer isso, mas não necessariamente. Esta pessoa emocionalmente pode ser extremamente sadia, porém gosta de se tatuar e de se relacionar dessa forma com o próprio corpo. Para se transformar em um comportamento psicopatológico você precisa analisar o indivíduo, a história da sua constituição, da sua personalidade, do seu eu e relacionar isso com o contexto onde ele vive, o contexto social e cultural. Um exemplo são os índios que colocam argolas na língua e fazem aquelas mudanças no próprio corpo, por exemplo. Dentro da sociedade deles isso faz parte da identidade deles, ou seja, isso não é patológico. Diferente quando entramos no espectro dos transtornos alimentares que daí sim existe um transtorno realmente emocional que estão relacionados com a forma e o tamanho do próprio corpo. Essas pessoas que desenvolvem esse transtorno tem uma alteração da autoimagem, nestes casos deve-se ter uma atenção maior com estes indivíduos sobre os riscos que podem surgir. Há pessoas que procuram ajuda de um profissional por não conseguirem criarem uma identidade e se aceitarem? É difícil uma pessoa procurar ajudar por não ter uma identidade própria, pois a identidade se constitui no decorrer do desenvolvimento da pessoa. O que a gente encontra são pessoas que buscam a terapia para o autoconhecimento, mas não porque elas não têm uma identidade ou uma identidade não bem formada e, sim porque querem se conhecer, querem entender porque gostam de uma coisa e não de outra. Hoje em dia a questão da identidade está mais diversificada. Um exemplo são as questões de gêneros. Anos atrás não falávamos sobre isso, não era exposto na sociedade. Como profissional eu nunca atendi alguém que veio me procurar por não aceitar a sua própria identidade ou homossexualidade, mas sim pessoas que são homossexuais com medo de não ser aceito na família e na sociedade.


PERFIL

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JUNHO 2019

Dois corações e duas línguas Por Amanda Furlan O rosto daquele que largou tudo num sábado à tarde para ir conhecer uma menina de apenas dois anos está marcado permanentemente em boa parte de seu braço direito. No entanto, o amor que ela sente por ele é inúmeras vezes maior. O sentimento transbordou e ela precisou de um coração a mais. Um é feito de músculos e sangue; o outro, de politetrafluoretileno, visível de longe. Essas não são as únicas homenagens àqueles que deram

uma nova chance quando alguém achou que ela não merecia. Graziella Servidone possui duas corujas, tatuadas uma em cada panturrilha, representando seu pai e sua mãe, que faleceu há alguns anos. Mas não é só o coração que ela possui em dobro. A língua, dividida em duas, também chama a atenção em sua aparência. A união de arte, estilo e cultura da tatuagem encantou Graziella e, com a influência de dois amigos, ela decidiu investir em um curso de desenho. Foi lá que ela

descobriu que não era dom, era dedicação. Pouco depois, Graziella foi convidada para trabalhar em um estúdio de amigos em Campinas, onde mora atualmente, e viu seu sonho se tornando cada vez mais possível. A paulistana de 28 anos ocupa seu tempo desenhando com traços finos, mas precisos, na pele de outras pessoas em seu estúdio no Taquaral. Entretanto, desde fevereiro, esse tempo está sendo disputado pelo Chris, seu primeiro filho. A pequena mão tatuada no peito de Graziella, per-

to dos seus dois corações, é dele. Filho de um ex-namorado, é ele quem faz companhia a ela todos os dias em seu apartamento. Hoje ela acumula vinte e seis tatuagens, o implante subcutâneo de coração no peito e a bifurcação na língua. Ela gosta de ver seu corpo como uma grande tela em branco, pronto para ser preenchido pela arte. É por isso que, se ela gosta de uma coisa, ela vai lá e faz. Graziella já participou de três convenções de tatuagem, foi jurada de diversos

Miss Tattoo e sua história foi contada na Tattoo Brasil, a revista mais importante de tatuagem do país. A tatuagem abriu portas e horizontes que ela jamais imaginou. Para Graziella, sua ocupação extrapola o trabalho, proporcionando prazer e bem estar. A tatuagem mudou sua vida, seu modo de pensar e de enxergar o mundo. Todos os dias, a tatuagem a ensina que é preciso quebrar padrões. É necessário ter a mente aberta para tudo que surge de novo, dia após dia.

Graziella Servidone acumula vinte e seis tatuagens, o implante subcutâneo de coração no peito e a bifurcação na língua (Foto: Arquivo pessoal)


REPORTAGEM

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Com demanda alta, tatuagem ganha shopping O estúdio somada a outros serviços de intervenção ao corpo, como depilação a laser, design de sobrancelhas e academia, fortalece esse mercado nos centros comerciais Por Luiza Lanna Pela primeira vez um estúdio de tatuagem abre as portas dentro do um shopping center, em Campinas. O Gatto Matto, que já tem uma unidade no bairro Cambuí, desde 1987, agora está trazendo o serviço, junto também com a implementação de piercings, para o Parque Dom Pedro, na Ala das Pedras, em junho. O dono do estúdio Marco Antonio Souza Lima diz que com a mudança e crescimento do mercado, principalmente nos últimos anos, foi preciso abrir uma outra unidade, além do Cambuí, que suportasse o número de clientes e com facilidades, como estacionamento e segurança. O estúdio do Cambuí tem aproximadamente 200 m², com sete salas e recepção, composto por uma equipe de atendimento e cinco tatuadores que trabalham com a agenda cheia o dia inteiro. O novo espaço pretende absorver o número de clientes que não conseguem ser atendidos no espaço original, por conta da grande procura. A nova loja no shopping, com um salão único de 100 m², também terá equipe de atendimento e tatuadores. Segundo o proprietário, o número de profissionais será estabelecido de acordo com a demanda. Um estúdio de tatuagem dentro desse espaço é um marco, já que a história da tatuagem começou em locais muito diferentes dos shoppings centers. No Brasil, ela surgiu em meados dos anos de 1960, em Santos, pelo tatuador dinamarquês Knud Harald Lucky Gregersen. A loja que ele abriu era nas proximidades do cais, onde na época era a zona boêmia e de prostituição na cidade. A localização contribuiu para que fosse criado um estigma de arte marginal no Brasil que só começou a ser transformado a partir dos anos 2000. Na década de 1980, ainda não era comum fazer tatuagens no país, por isso os tatuadores brasileiros trabalhavam de forma amadora e autodidata, como é o caso de Marco Antonio Souza Lima, que além de proprietário do estúdio é tatuador. Ele começou a trabalhar na área em 1984, quando não era possível nem comprar o material no país, “só nos Estados Unidos”, afirma. Dentro de um shopping, um centro de consumo moderno, a

tatuagem passa de marginalizada a objeto de desejo dividindo vitrines com roupas, joias, eletrônicos e atingindo valores que podem categorizá-la como artigo de luxo. Marco Antonio explica que antes existia preconceito em relação a tatuagem, mas que a transformação de sentido ao longo dos anos fez com que ela se tornasse objeto de consumo de massa, “a tatuagem era considerada coisa para maluco. Hoje, é consumida por diferentes tipos de pessoas”. Dentro do centro comercial, o estúdio de tatuagem está próximo a estabelecimentos com produtos de preços variados, desde os mais baratos até os mais caros. A loja de artigos para casa ao lado, por exemplo, vende objetos decorativos de R$ 6,00 até R$ 689,90, sendo o valor mais alto pertencente a um pequeno enfeite de jogo de xadrez. A loja de tatuagem, assim como a de artigos para casa, tem opções de compras com preços diferentes, mas o mínimo que um cliente gasta é R$ 100,00. Com esse preço, é possível fazer tatuagens pequenas, que demoram até trinta minutos para serem realizadas, como um pequeno coração em preto no dedo indicador. Um corpo inteiro tatuado, de uma pessoa de porte médio, feito ao longo de anos, pode atingir o preço de até R$ 25 mil. O tempo máximo de uma sessão de tatuagem é de doze horas, sendo esse, em média, o tempo gasto para tatuar um braço inteiro em colorido. Outros serviços de intervenção no corpo Com 394 lojas, o Dom Pedro registrou público de 19 milhões de pessoas no último ano, vindas de 25 municípios diferentes, a maioria pertencentes à Região Metropolitana de Campinas. Das lojas em operação, entram também outros serviços de intervenção no corpo como academia, depilação a laser, botox, cabeleireiros, manicure, barbearia, podologia, dentista e design de sobrancelhas. A depilação a laser é um método que traz resultado definitivo no fim do crescimento dos pelos depois de algumas sessões. No centro comercial, a loja que faz esse serviço há oito anos é a Espaçolaser, com preços entre R$ 100 e R$ 6.000. É preciso fazer, em média, dez sessões com duração variável

Estúdio Gatto Matto irá abrir em junho no shopping (Foto: Luiza Lanna)

de cinco a 30 minutos, para ter o resultado definitivo, mas isso muda de acordo com as áreas escolhidas. Uma sessão nas axilas, por exemplo, custa R$ 363,30 e um pacote fechado com dez sessões nas axilas custa R$ 1764,00. A gerente comercial do estabelecimento, Lucilene Figueiredo, diz que o número de pessoas comprando o serviço é sempre crescente. São atendidos em sessões diárias, em média, 200 clientes, atingindo mais de oito mil pacotes fechados. Lucilene ainda reforça que a academia Bodytech, instalada no shopping há 15 anos, traz grande fluxo de clientes para o estabelecimento em que ela trabalha. Na loja de design de sobrancelhas, aberta há três anos, são oferecidos serviços de depilação facial, pintura com a tinta natural de henna, micropigmentação e extensão de cílios, a partir de R$ 40,00. A advogada Cristiana Gonçalves é cliente do local e faz os procedimentos de depilação facial e pintura com henna na sobrancelha, em média, uma vez por mês. Ela afirma que realiza esses serviços, apenas no shopping, por conveniência, “não preciso marcar horário e é perto da minha casa”. A gerente do estabelecimento da Sóbrancelha Kézia Matos reconhece que estar no shopping é um atrativo, já que é um local em que há grande exposição dos clientes as lojas, inconscientemente, “todo dia recebemos clientes novos”.

Marco proprietário e tatuador do Gatto Matto (Foto: Luiza Lanna)

Cristina Gonçalves faz procedimento no centro comercial (Foto: Luiza Lanna)


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DEPOIMENTO

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Travesti, a professora Amara Moira relata a transformação de homem “nada efeminado” à conquista de “um corpo que me representa”

‘Foram 29 anos vivendo como homem’ Por Rayssa Almeida Até pouco tempo não sabia quem eu era. Aos 34 anos posso dizer que sei. Sou Amara Moira, nascida em Campinas, travesti, feminista, escritora, professora de literatura e a primeira pessoa transgênero a defender doutorado usando o nome social na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. Desde criança, me interessava por literatura. Escrevia poemas e textos, como forma de expressão, paixão que permanece até hoje e ficou aparente na defesa do meu doutorado em teoria literária. Hoje, em meio a tantas titulações, é estranho pensar que demorei tanto tempo para descobrir quem de fato eu era, quem eu sou. A cada dia eu reivindico a minha identidade feminina. Meu nome social, Amara Moira, veio à minha mente quando estava assistindo Odisseia, de Homero. Tinha a Amara, que significa amargo, e juntei com Moira que significa destino. Então meu nome, e não apenas ele em si, mas toda a minha trajetória pode ser definida como amargo destino. Desde antes de me aceitar e posteriormente me definir, meu pai me perguntava se eu era travesti e eu, sempre negava. Minha mãe me olhava com olhar amargo, misto de preocupação e tristeza, chorava muito. No primeiro momento foi muito difícil aceitar que tem uma filha, que além disso trabalhava por opção como profissional do sexo. Eles lidam com muita dificuldade, mas me deixam fazer minhas escolhas.

Meus pais continuam morando em Campinas. Eu me revezo entre o interior e a capital paulista. Moro em Santa Cecília, lugar que me acolheu muito bem, com pessoas com diferentes estilos, onde exala um multiculturalismo que me representa e me faz bem. Foram 29 anos vivendo como homem, mais especificamente como homem padrão, branco, nada afeminado, observado como hétero e não bissexual, de classe média. Nada era tão óbvio a respeito de quem eu era. Desejava que me lessem como homem. Estar dentro do padrão da sociedade era uma forma de me poupar. Foi uma descoberta muito lenta e gradual. Tem pessoas que, desde sempre, nascem com essa certeza. Eu já sabia quem eu queria ser para alcançar a felicidade. Mas ela não viria e não veio avulsa. Intrinsicamente, a opressão, preconceito e violência vieram junto. Em 2014, me assumi. Aos poucos fui me permitindo a usar roupas femininas. Lembro que escrevi um poema, no qual retratava um homem que poderia se depilar, se montar. Percebi que essa era a minha identidade, que essa era eu. As minhas palavras discorriam no sentido “corpo que não tem lugar, corpo que se fazia á revelia das regras, das normas, corpo que se prestava para a sombra”. Essa era eu. E eu não fazia sentido, sequer sabia onde queria chegar”. Ter o corpo que eu quero me faz feliz, mas também traz questões. Ser travesti é algo que me estigmatiza. Foi só me transformar e passar a ser lida como

travesti para viver minha primeira experiência de violência sexual. Eu fazia ponto no Itatinga, maior bairro da américa latina, destinado as práticas das profissionais do sexo. Desde jovem, eu já acreditava que levava jeito para sexo e escrevia sobre isso nos meus diários e produzia poemas. Então comecei a indagar por que não cobrar por isso? Afinal, eu gosto de fazer sexo. Porém, as pessoas que faziam comigo não queriam me assumir. E eu não queria me sentir um objeto. Se fosse pra ser assim, queria ser remunerada por isso. A minha atividade, nas zonas de prostituição, tem muita relação com a carência que eu sentia. A partir do momento que as pessoas começaram a me ver assim, os homens perguntavam qual era meu preço. Eles me tratavam como prostituta, mesmo quando não era. Tinha também uma pressão das minhas amigas travestis, que falavam que com esse dinheiro eu poderia comprar roupas, maquiagens, realizar as mudanças no meu corpo, como a prótese de silicone que eu almejava. Quando me assumi travesti, a minha necessidade de escrever aumentou. Eu quero que as pessoas saibam o que a gente passa, como é árdua essa vida. Acredito que a literatura pode ser um meio de transformação social. Por isso decidi publicar um livro e lecionar literatura. Enquanto professora, sofro olhares de repulsa, mas o meu objetivo supera isso. Me vejo como uma forma de representatividade, meu corpo representa muito.


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