Democratização do Tribunal do Júri

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Democratização do Tribunal do Júri O juiz José Henrique Torres afirma que o sistema penal é o reconhecimento de um fracasso da sociedade. Por Giovana Zeuri e Nicolle Januzzi O tribunal do júri no Brasil surgiu em 1822 para julgar crimes contra a imprensa. Hoje a competência é de julgar crimes contra a vida para que a sociedade detenha a decisão das consequências de quem pratica atos criminais mais graves. De acordo com o juiz José Henrique Torres, “os integrantes do júri representam o povo”. Entretanto, grande parte do júri no país é elitizado e composto por cidadãos de classe média e alta. Campinas tenta há quase 30 anos mudar essa realidade através do trabalho de democratização do júri adotado pelo juiz da cidade. José Henrique Torres é juiz titular da 1ª Vara do Júri de Campinas e professor de direito na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Formado em direito pela Faculdade de Direito de Bauru, possui especialização em Direito das Relações Sociais também pela Faculdade de Direito de Bauru e em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

José Henrique Torres, juiz titular da 1ª vara do Tribunal do Júri de Campinas (Foto por: Giovana Zeuri e Nicolle Januzzi)


Na primeira semana de junho concedeu uma entrevista exclusiva para o Digitais.net sobre a democratização do júri em Campinas. Numa sala no Palácio da Justiça, na área central do município, o juiz ressaltou a importância de uma maior representatividade dos jurados: “Precisamos ter mais mulheres, negros, representantes de todas as etnias, todas as classes sociais”. Aqui, os principais trechos da entrevista. O reconhecimento de um fracasso da sociedade “O direito penal cuida dos bens mais sérios, das lesões mais sérias da sociedade. Devemos ter uma visão em um sistema democrático que o direito penal é uma última alternativa da sociedade, última ratio em latim, que significa última razão ou último recurso. “Isso por que nós podemos resolver nossos problemas com políticas públicas com políticas privadas, no âmbito da família, escolar, pessoal, clubes, enfim uma serie de estruturas sociais que tentam resolver nossos problemas e reorganizar a nossa sociedade. “Quando a sociedade não consegue resolver um determinado problema, ela é obrigada a apelar para o direito penal, que é um direito muito violento, ele prende, tira a liberdade das pessoas é muito drástico. De maneira grosseira, o sistema penal é o reconhecimento de um fracasso da sociedade. ” Investigação criminal “Quando um crime ocorre a primeira medida a ser tomada é a investigação policial. A chave do negócio é a investigação do fato. Ao contrário do que muitos pensam a polícia não faz a acusação contra ninguém e é isso que as pessoas precisam entender, a polícia somente colhe as provas e as reúne em um inquérito policial para entregar a um promotor que representa o ministério público. “É o promotor, o ministério público ou o procurador na justiça federal que faz uma análise na investigação policial e decide se há ou não razões para então fazer acusação sobre o réu investigado. Vale ressaltar que o promotor precisa produzir novamente as provas de tudo aquilo que a polícia já coletou, caso contrário o réu é absolvido. Caso a acusação seja instaurada, começa a existir defesa. ” Presunção da verdade


“Independente de todas as provas até que se encerre o processo todo mundo é presumidamente inocente. E o que merece um cara que mata alguém? Ele merece o que a lei diz que ele merece e o juiz não fixa a pena que ele quer, existe todo um sistema na lei que determina essa pena. “Então não é porque um cara foi preso em flagrante que ele é um homicida, existe todo um processo envolvido e o crime não é somente o fato, o crime é típico ilícito e culpável, porque existe a legitima defesa, os menores de idade, doente mental. Não é tão simples assim. ” Determinação do júri “Após todo o processo o juiz ainda pode escolher se manda para o júri ou não, caso o crime julgado seja doloso e contra a vida. Homicídio doloso (tentado ou consumado), abortamento nas suas várias modalidades, instigação, induzimento, auxílio ao suicídio e infanticídio são julgados pelo júri. Na prática, estando aqui há 30 anos os casos de homicídio doloso e tentativa de homicídio representam 99,99% dos casos julgados pelo júri. “A minha decisão de mandar o julgamento para o júri é chamada de pronuncia. A partir do momento que a pronuncia é definida, o juiz marca uma data, convoca os jurados e faz o julgamento. E são os jurados que vão decidir se condenam ou se absolvem o réu. ” A escolha dos jurados “Existe uma regra estabelecida pelo processo, o juiz não tira nada da cabeça dele. Todo final de ano uma listagem de 2000 pessoas para serem juradas é realizada. Qualquer pessoa pode estar nessa lista, desde que preencha alguns critérios (maiores de 18 anos, pessoa idônea, etc etc). Desse total, 25 são sorteadas. Um julgamento é marcado e essas 25 são convocadas. No dia do julgamento, sete pessoas entre as 25 são sorteadas e serão os jurados do dia. 25 é o número necessário para se ter uma margem para salvar o júri. 15 precisam estar presentes. Se aparecerem 14, o júri não acontece). ”


Infogrรกfico da pesquisa realizada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiรงa)


Democratização do Júri “Houve um tempo que o tribunal do júri era elitizado por classes em Campinas. Quando cheguei na cidade era comum encontrar professores, bancários, médicos, engenheiros... o juiz colocava pessoas que tinham teoricamente um bom conhecimento, boa formação e boa educação para julgar. Mas aquela máxima popular acabou prevalecendo: matem-se entre vós e nós o julgaremos entre nós. Ou seja, nós da classe dominante vamos julgar.

Matem-se pobre vocês entre vós e nós ricos sábios conhecedores da educação vamos julgá-los. “Por conta disso, o que que nós pensamos: precisamos abrir isso, se geralmente os crimes são praticados por classes economicamente inferiores, geralmente por pessoas pobres e simples é preciso ampliar a representatividade desses jurados, preciso trazer representantes dessas classes. Precisamos ter mais mulheres, homens, negros, representantes de todas as etnias, todas as classes sociais. Como fazer isso? Pedimos ofícios para empresas, para que elas indiquem funcionários, operários, pedimos para que os comerciantes indiquem balconistas, ascensoristas dos prédios, peço para os sindicatos dos frentistas e das empregadas domésticas, para sindicados rurais e também para professores, engenheiros e etc. A gente tenta dar uma amplitude maior na representatividade para compor o conselho dos juris. É assim que eu penso que temos alguma condição para redemocratizar o tribunal do júri. ”

Resultado da democratização “É difícil comparar a situação do antes e depois da democratização e afirmar uma melhora já que é difícil ter esses dados. Mas a gente percebe que há um conhecimento muito maior da realidade. Por exemplo: você traz uma pessoa do Cambuí para julgar um caso que aconteceu lá na Vila Brandina, o jurado nem sabe como as pessoas vivem por lá. Ou seja, quando você traz pessoas mais próximas da realidade do réu a possibilidade dela entender melhor o que acontece é muito maior, de saber como funciona a vida daquele que está em julgamento. Isso tudo é levado em consideração. “Certa vez entrei em um determinado prédio e no elevador a ascensorista do prédio falou: “Ô doutor semana que vem temos júri lá hein, to lá com o senhor”. Achei muito legal isso. Também um dia eu estava em uma cafeteria e a moça que veio me servir um café


falou: “Ô doutor semana que vem tem júri né, eu sou jurada, sou jurada! ”, olha só que legal. É a intenção de você trazer as pessoas de todas as classes. “A essência do tribunal do júri é a democratização, ele é uma garantia constitucional das pessoas e se ele não for democratizado no nosso sistema penal, vamos perpetuar um poder de elites dominantes. ” Cenário Brasileiro “Pelo que eu tenho visto, acho que o júri do nosso país é muito pouco democratizado. Acho que nós deveríamos ampliar a participação popular no julgamento e acho que deveríamos simplificar o julgamento cada vez mais para ficar mais fácil de entender. Mas não é só o júri, isso aí é uma dimensão muito maior. “As pessoas criticam muito o júri pela falta de representatividade por falta de democratização, mas eu lhes pergunto: “E o juiz? Tem representatividade? Por que veja, o vereador, o prefeito o deputado, o presidente da república, são eleitos, eles põem o currículo deles e são eleitos, tem mandato, saem e entram. O juiz não é eleito, ele é uma pessoa do povo, então ele não representa o povo, ele é o povo. Agora, qual é a representatividade dele como povo? Qual é o perfil do juiz no Brasil? Primeiro, provém das classes dominantes. Segundo, o juiz é branco e terceiro, o juiz é homem. ” Necessidade de mudança “Hoje existem cotas na magistratura, cotas para negros e negras inclusive, então isso começa a mudar. Eu tenho dado aula para juízes no Brasil inteiro e tenho visto que o número de mulheres tem aumentado bastante, não de maneira muito significativa, mas tem aumentado. Agora como que os negros chegam se não for pelas cotas? Como que os pobres chegam se não for por cotas nesse momento? Nesse momento tem que ser por cotas, não tem jeito. A cota é uma forma poderosa de democratização – “a é justo ou injusto” – não interessa tem que ter cota e pronto. A cota é discriminatória, mas é uma discriminação positiva. Ou você faz cota ou você vai esperar 200 anos para acontecer. “Agora a longo prazo, precisa melhorar o ensino, melhorando a democratização ao acesso à universidade. Quando você pensar em juiz e pensar no júri, pense neles representando a sociedade como um todo e por isso precisam ser democratizados. ”


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