Transplante Cardíaco: 50 anos depois, desafios continuam

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LISTA

MEDICAÇÃO

NOVA VIDA

PERFIL

Espera pode levar anos por falta de famílias que autorizem doação e de equipes médicas.

Imunossupressão ainda desafia médicos e pesquisadores buscam novas soluções.

A história contada por quem vive com um novo coração.

Diretor do setor de cardiologia da PUC perfila os principais doadores.

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50 ANOS DEPOIS, DESAFIOS CONTINUAM

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“Mãe, acende uma vela para mim!” Quando realizou o primeiro transplante de coração da carreira, Orlando Petrucci Jr ligou para a mãe, pedindo que rezasse. Hoje, é cirurgião-chefe da cardiologia no Hospital das Clínicas da Unicamp, além de pesquisador e professor na universidade. Foi um dos médicos responsáveis pelo primeiro transplante cardíaco feito no HC, na madrugada de 17 para 18 de agosto de 1998. A paciente, Regina de Oliveira, de 26 anos de idade, tinha uma doença do músculo cardíaco. De acordo com a equipe médica do HC, o hospital já transplantou 97 pacientes nesses 20 anos. Deles, 46 ainda estão vivos, o mais antigo com 16 anos de transplante. Quem compunha a equipe, e como foi a operação realizada em 1998? Hoje somos seis médicos, sendo que um está fora do Brasil para fazer pós-doutorado. Transplantamos de 10 a 15 pacientes por ano no ambulatório. Em 1998 - acabei minha residência em 96 na Unicamp -, os dois chefes da cirurgia cardíaca eram Dr. Braile e Dr. Reinaldo Vieira. Quando acabei a residência, queria muito fazer transplante de coração. Era um sonho meu. Havia muita resistência dentro do hospital, porque envolve o risco de fazer a cirurgia e não dar certo. Meus chefes não tinham experiência com transplante de coração. Então, de 96 para 97, fiquei três meses no Canadá. Também fui algumas vezes a São Paulo, estudando, aprendendo. Finalmente, em 98, depois de muitas tentativas de arranjar candidatos para o transplante, ou seja, pacientes que tivessem um coração sem viabilidade, credenciamos a equipe e novos sistemas de transplante. No dia 17 de agosto apareceu um doador na Unicamp. Nossa receptora era a Regina e já estava esperando. Eu estava de plantão num outro hospital, numa UTI. Liguei para o Dr. Braile, que morava em Rio Preto. Tinha seu aviãozinho e, em uma hora e meia, poderia estar em Campinas. Perguntei: “O doador está no hospital, o receptor está no hospital, vamos fazer ou não?”, e o Dr. Braile disse: “Orlando, você que vai fazer o transplante. Foi você que batalhou o tempo todo, é sua hora de fazer.” Ele brincou assim: “Só não me mata o paciente”. Nesse meio tempo encontrei um colega para assumir meu plantão. De cirurgiões para o transplante, só havíamos eu e o Dr. Pedro

Paulo, que hoje trabalha no HC também. Saí de madrugada do hospital e fui para a Unicamp. Abri o doador e o Pedro começou a preparar o receptor, que era a Regina. Eu mesmo tirei o coração dela. Mandei o outro coração pelo corredor e fizemos o implante. Antes de isso tudo acontecer, me ligou o reitor da Unicamp: “O Braile vai vir fazer o transplante?” “Não, não vai.” “Como você vai fazer o transplante?”, foi a pergunta. Fiquei irritado e disse: “Vou tirar o coração de um e colocar o coração no outro”. O reitor pediu que não chamasse a imprensa. Ligaram o chefe da cardiologia e o superintendente do hospital, com a mesma conversa. O transplante foi de madrugada, com trezentas pessoas dentro da sala. Transcorreu muito bem. De manhã – por volta das 10h – fui avisado de que haveria uma entrevista para falar do transplante isso porque ninguém queria falar com a imprensa!

O senhor comentou que ficou responsável pela operação. O fato de ser a primeira cirurgia o deixou ansioso? Confesso que, quando tirei o coração e vi o buraco no peito da Regina, disse: “Nossa, será que vou dar conta de juntar tudo aqui?”. Confesso que fiquei com medo. Mas com o Pedro, que é meu fiel escudeiro, e com a ajuda da anestesia, conseguimos. Lembro que estava saindo do hospital e liguei para minha mãe: “Mãe, acende uma vela aí e reza para mim, que vou fazer um transplante de coração”. Quando o coração começou a bater, todo mundo na sala gritou – uma palhaçada (ri). Todos ficaram emocionados. Tira-la da sala e, horas depois, poder conversar foi uma sensação muito boa. E a Regina era muito engraçada. Foi uma festa, como foi a Andressa também [primeira criança transplantada no HC, em 2016]. Era tratada como uma celebridade. As emoções mudaram desde então? Hoje, como [o transplante] é algo muito bem estabelecido, tornou-se uma rotina. Transplantamos, sabemos que estamos fazendo um bem, mas é nosso trabalho. Fiz transplantes nos EUA muito mais difíceis do que eu faço aqui, e todos eram cardiopatias congênitas, crianças com cinco ou seis cirurgias cardíacas prévias. Eram transplantes muito mais complexos tecnicamente. Mas, sem dúvida, a Regina para mim foi única. Por um lado tem a alegria de ajudar alguém, mas e a pessoa que doa o coração? É alguém

que morre e que, na morte dele, ajuda o outro. Como cirurgiões não nos envolvemos com a equipe transplantada [que conduz o processo de doação do órgão]. Por lei, nem podemos ter contato. Mas tem esse lado. Nos EUA, fazia transplante em crianças., o que é até pior. Quando há uma doação, é de múltiplos órgãos: coração, rim, fígado, pulmão.... Fazer isso com um bebê de seis ou sete meses, é pior do que com um adulto. Mas, sem dúvida, o adulto tem histórias tristes. Quando vou retirar [o órgão], procuro não saber muito, apenas o que me interessa do ponto de vista médico, para não ter esse envolvimento. Alguns médicos gostam de saber tudo, mas eu não. Não vejo a utilidade disso, até para me preservar. Em 98, o programa de transplante na Unicamp já havia sido iniciado três anos antes. Avançamos quando cardiologistas começaram a se unir a nós. Tínhamos que selecionar pacientes, os que realmente precisavam de transplante. Para fazermos isso, tínhamos que fazer um exame com um aparelho da Educação Física. Levava o paciente no meu carro e o colocava para andar na esteira. Isso paralelamente ao trabalho no hospital. Por que três anos? Foi o tempo em que pudemos levar adiante o transplante. O senhor disse que havia um receio de dar errado e ter uma mancha na reputação? O coração tem uma imagem da alma do paciente, um simbolismo diferente. E a cirurgia cardíaca na Unicamp ela vinha num crescendo. Quando o Dr. Braile veio para a Unicamp, reestruturou todo o serviço de transplante. O transplante de coração seria o coroamento desse trabalho. Um fracasso poderia ser um passo para trás. O senhor já comentou das emoções. E o que mudou em questão de técnica de cirurgia de lá para cá?

Orlando usou o modelo na foto para planejar uma cirurgia cardíaca nos EUA. (Foto: Daniela Martins)

A técnica é muito bem estabelecida. O primeiro transplante foi feito há mais de 50 anos, e a técnica foi desenvolvida até antes, pelo Dr. Shumway, da Universidade de Stanford. O que mudou foi a experiência do grupo e a idade dos médicos... Médico é que nem vinho. Vai ficando mais velho, fica bom, mas depois azeda e vira vinagre. Eu estou quase virando vinagre já.


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Brasil está em 28° lugar no ranking de doações 1° 5° 22°

28°

Dados: ABTO

Técnicas

Transplante Ortotópico Bicaval: Tipo de transplante mais comum, o coração doente do paciente é retirado por meio do corte das veias cava superior, cava inferior e das pulmonares e um coração saudável é colocado em seu lugar. A técnica diminui as chances de arritmias no pós-operatório.

Transplante Heterotópico:

Artes: Daniela Martins

Conhecida também como “coração em paralelo” a técnica consiste em fazer a inserção de um novo coração ao lado do coração original. O paciente passa a ter dois corações (um saudável e um doente), que trabalham em conjunto para o bombeamento do sangue.

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Cronologia:


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Familiares e falta de equipe impedem mais transplantes Recusa familiar é de 42%; Norte do país não faz transplante, mesmo com pacientes na lista Daniela Martins

Segundo médicos e levantam- que recebeu o novo coração foi a entos da Associação Brasileira de relações públicas aposentada Vera Transplantes de Órgãos (ABTO), Maria Afonso Magalhães. Com 66 a falta de autorização das famílias anos, Vera passou 45 dias na fila e o baixo número de equipes para de espera até ser transplantada no a realização dos transplantes de HC da Unicamp. Ela já havia feito coração são algumas das principais diferentes procedimentos, como dificuldades para a diminuição da a implantação do stent (pequeno fila de espera. instrumento que evita a obstrução No ano passado, 443 brasileiros dos vasos sanguíneos) e marca-pasentraram na fila para um transplan- sos, mas, mesmo assim, precisou do te cardíaco. 86 morreram na espera transplante. Vera tomava dubotada cirurgia, o que resulta numa es- mina, um medicamento injetável timativa de que 1 em cada 5 pacien- que estimula os batimentos cardíates morre sem o transplante. Ape- cos. nas no primeiro trimestre do ano, “O meu coração estava bem ru119 novos pacientes ingressaram na inzinho, por isso os médicos foram fila pelo coração. A lista para um tentando várias coisas, mas não ia transplante cardíaco este ano che- resolver o meu problema porque ga a 261 brasileiros. ele [coração] estava muito judiado. “Hoje, por exemplo, existe uma A última opção era o transplante”, fila de espera, em média, durando conta Vera. dois anos para pacientes ambulaNo caso dela, o tempo de espera toriais. Para pacientes que estão de 45 dias pode ser explicado da segraves, internados, a prioridade guinte forma: a gravidade do caso, pode cair para a idade avançada uns três meses, e a compatibilio Brasil está muito por exemplo, dade com o órgão aquém. A gente tem mas é um período disponível são fadoações muito abaixo grande”, estima tores que podem do que deveria ter” Sandrigo Mangifazer com que o ni, médico do Inpaciente ganhe stituto do Coração (Incor) de São prioridade para o transplante. A Paulo. fila de espera, portanto, não funSão Paulo é o recordista em ciona de forma cronológica - por transplantes de coração, com 130 ordem de inscrição do paciente -, realizados em 2017. Mesmo assim, mas sim seguindo critérios médio estado tem uma necessidade de cos (gravidade do caso e compatitransplantes estimada em 358 por bilidade com o coração que surgiu, ano – quase o triplo. Nesse ano, 24 por exemplo). pessoas dentre as 125 que estavam A região geográfica onde um na lista do estado morreram sem a órgão ficou disponível também incirurgia. terfere na determinação do paciEm 2018, uma das pessoas ente que irá recebê-lo. Isso porque

Vera Magalhães (esq.) e Lígia Scaranari (dir.), sua irmã, cardiologia (foto: Dorothea Rempel)

o transporte e a cirurgia precisam acontecer dentro do chamado tempo de isquemia. Esse tempo refere-se ao total de 4 horas em que o coração pode permanecer fora do corpo antes de ficar inutilizável. Embora os números de potenciais doadores (aqueles que, tendo a morte constatada, possuem órgãos em condições de serem doados) tenha tido um aumento de 52% entre 2010 e 2017, os índices de recusa familiar à doação continuam elevados. O percentual de famílias que negaram as doações foi de 42% em 2017, com um total de 2.740 famílias que não permitiram a doação dos órgãos. “Ninguém está preparado para perder um ente querido, mas campanhas de conscientização aumentam as doações. O Brasil está muito aquém e a gente tem doações muito abaixo do que deveria ter”, considera Orlando Petrucci, médico cardiologista do Hospital de Clínicas da Unicamp. Outra dificuldade para o aumento do número de transplantes cardíacos, segundo Mangini, é a questão da falta de equipes

preparadas para a realização dessas cirurgias. “No Brasil, a gente tem um potencial muito grande de aumentar o número de transplantes, se a gente cuidar melhor desses doadores e aproveitar, tendo mais equipes que façam transplantes – não só em centros como São Paulo, que tem várias equipes, mas pelo Brasil todo”, explica. O aumento do número de equipes, apontado por Mangini, reflete-se em uma grande lacuna no país. No caso dos estados do norte brasileiro e alguns do nordeste – Bahia, Alagoas e Maranhão – nenhum transplante cardíaco foi realizado. No Maranhão, a estimativa por ano chega a 56 pessoas com necessidades de transplante cardíaco. No Distrito Federal a situação é outra. Foi a única unidade federativa a superar a estimativa da necessidade de transplantes cardíacos. Com base em sua população, seriam necessários 24 corações por ano, mas 37 transplantes foram realizados ali em 2017. Mangini explica essa superação como um bom aproveitamento dos órgãos disponíveis. “Brasília teve a disponibilidade de transporte aéreo mais efetivo e conseguiu aproveitar de uma forma bem expressiva os doadores disponibilizados. São Paulo tem um valor razoável, mas daria para dobrar os transplantes. Só que isso impacta em custo e vivemos um momento econômico”, afirma o médico.


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Medicina ainda busca medicamentos ideais Efeitos colaterais da imunossupressão preocupam e pesquisadores buscam soluções Dorothea Rempel Medicamentos imunossupressores podem causar doenças como arteriosclerose, diabetes e até câncer, e levam a um sistema de defesa comparável ao de HIV positivos. Médicos apostam na bioengenharia e em tratamentos com células tronco e tentam otimizar o uso dos medicamentos. Nos primeiros dois anos da história do transplante cardíaco - 1967/68 - foram feitos 150 procedimentos no mundo, por 50 equipes, de acordo com a International Society for Heart and Lung Transplantation (ISHLT). Mas, em semanas, os pacientes morreram devido à rejeição do órgão. No Brasil, o paciente do Dr. Euryclides Zerbini, da USP, morreu após 28 dias. Somente com a introdução da ciclosporina A, uma droga imunossupressora isolada de um fungo, no início da década de 80, a rejeição pôde ser controlada de maneira efetiva e os transplantes, retomados. “Consegue bloquear mais a criação tanto de anticorpos quanto de células inflamatórias que atacam o coração. A ciclosporina engana o organismo”, diz o coordenador do ambulatório de cardiologia do Hospital das Clínicas (HC) da Unicamp, Otávio Rizzi Coelho-Filho. Nos anos 80, alcançou-se uma sobrevida de mais de 70% no primeiro ano após o transplante – o mais crítico - segundo o médico assistente do Núcleo de Transplantes do Instituto do Coração (InCor), Sandrigo Mangini. Três décadas mais tarde, a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) aponta uma sobrevida média de 74%, a partir de dados para 2017. No primeiro ano, os pacientes são monitorados mensalmente. “Metade dos pacientes tem algum grau de rejeição que precisa ser tratada com intensificação da imunossupressão ao longo

do transplante”, afirma Rizzi. O obje- ciclosporina, tivo é reduzir gradualmente as visitas o tacrolimus, ao hospital e o uso de medicamentos. aprovado para Mas, salvo raras exceções, não é possí- uso nos EUA nos vel deixar de toma-los. anos 90, apresenta “O desafio é o seguinte: ter uma leves diferenças em podroga ideal, que não dá efeito colate- tência e efeitos colaterais, ral, na menor dose possível”, afirma mas não substitui o antecessor. No Rizzi. Na opinião do médico, o efei- Brasil, a droga não é financiada pelo to colateral mais grave da imunossu- Sistema Único de Saúde (SUS). pressão é a suscetibilidade à infecção. A classe de imunossupressores O medicamento impede a rejeição do mais recente foi desenvolvida nos órgão, mas também dificulta a defesa anos 2000. Os inibidores da mTOR. do organismo contra enfermidades. “É (proteína associada à proliferação cecomo se tivessem uma doença da imu- lular) são drogas com menor toxicidanidade, como HIV”, diz. Hoje, a mor- de, de acordo com Mangini, mas ainda talidade por infecção supera a morta- não se sabe a melhor forma de usá-los. lidade por rejeição. O médico defende que a medicação Há ainda outros acompanhantes já existente poderia ser aplicada de indesejados da mediforma mais personacação, como pressão lizada e, assim, trazer alta, má função dos É como se tivessem resultados melhores. rins, anemia, diabe“É meio que uma reuma doença da tes, osteoporose, doceita de bolo que não ença vascular ou até imunidade, como HIV” consegue ser extrecânceres. São fatores mamente adequada frequentemente aspara cada paciente”, sociados à mortalidade tardia, que já afirma. não está relacionada a um problema O médico afirma que são necessáde rejeição do órgão. rios marcadores melhores para ajudar Ainda assim, desempenha um pa- a guiar o tratamento. Cita uma platapel importante. “A imunossupressão forma já em uso nos EUA, que permite tem efeitos colaterais, mas ela permite medir a atividade das células de defeque uma pessoa que tinha uma condi- sa e, assim, dosar o imunossupressor ção de vida muito ruim - com insufi- com mais precisão. Outro auxílio seciência cardíaca, que não podia fazer ria a análise genética do paciente para nada - melhore muito a qualidade de avaliar como o organismo reagirá aos vida. Mesmo com esses fatores de ris- medicamentos. co”, afirma Mangini. No Brasil, 60% “Precisamos minimizar os efeitos dos pacientes que receberam um cora- colaterais e maximizar a ação”, afirma ção vivem por ao menos mais oito anos o médico. Nesse sentido, o InCor de(ABTO). senvolveu um tratamento que utiliza A ciclosporina A e a azatioprina nanopartículas para transportar as – já conhecida na década de 60 – ain- drogas a um alvo específico, estratégia da são importantes componentes no que reduz efeitos adversos. Mas, por tratamento. Uma das evoluções da ter um custo alto, a técnica ainda não é aplicada. Hoje, os médicos tentam adaptar a prescrição ao paciente sem o auxílio dessas técnicas. Mangini exemplifica: “Cada medicamento tem um perfil de efeito colateral. O tacrolimus, por exemplo, dá mais diabetes que a ciclosporina. Se eu tenho um paciente diabético, talvez vá considerar o uso da ciclosporina ao invés do tacrolimus”. Rizzi também diz ter esperança na evolução do coração

Imunossupressores inibem a ação do sistema imunológico, evitando rejeição do novo órgão

artificial para simplificar o tratamento. O dispositivo é fabricado de materiais inertes, como resina e metais, e não provoca rejeição. Atualmente, em países como os EUA, apenas cobre o tempo de espera até o transplante. “Se o device [dispositivo] melhorar muito, talvez ele vá ocupar um pouco o espaço do transplante.”, afirma o cardiologista. Mas ressalta que não há como garantir que isso será possível, nem que haverá recursos para tanto – Rizzi estima que o custo se aproxime de R$ 1 milhão por aparelho. Já a médica nefrologista e pesquisadora Samirah Abreu Gomes, da Universidade de São Paulo (USP), estuda a imunossupressão através de terapia com células tronco mesenquimais (CTm) retiradas de tecido adiposo (gordura) de adultos. A ideia é que complementem ou até substituam outros medicamentos. Hoje, segundo dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), essa é a única pesquisa envolvendo a imunossupressão pós-transplante no Brasil, entre 880 projetos na área da saúde.

Otávio Rizzi é otimista em relação à bioengenharia (Foto: Dorothea Rempel)


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“Você precisa de um coração novo para não morrer”

Depoimento de Maria Angelina dos Santos Silva, 61, aposentada e receptora de um coração transplantado em julho de 2017, no Instituto do Coração, em São Paulo. idosos, na qual eu sou diretora e coordenadora de projetos. Eu acompanho as atividades desenvolvidas na casa, acompanho os professores nas atividades, faço as reuniões pedagógicas, faço relatórios e acompanho os passeios externos quando acontecem. Voltei a me sentir útil! Ainda não estou dirigindo, ainda não posso fazer exercícios porque os médicos não liberaram exercício de impacto na academia, então estou somente nas pequenas caminhadas de meia hora por dia, mas está tudo muito tranquilo. Não vejo a hora de voltar a dirigir para poder ter a minha independência de volta. Mas já estou indo ao supermercado, já fui passear no shopping, passeei no sítio, e já estou conseguindo retomar minha vida normal, e o melhor: sem sentir nenhum dos sintomas com os quais eu convivia.

Marina Fiori

Um dia, aos meus 18 anos, participei de uma campanha de doação de sangue como voluntária. Ao receber o resultado dos exames, eu descobri que tinha a Doença de Chagas. Foi um balde de água fria, querendo ajudar na saúde das outras pessoas, descobri que era a minha saúde que não ia bem. Eu sofri muito com a notícia e tive, num primeiro momento, a sensação horrível de que teria pouco tempo de vida. Quando você descobre que está doente e, principalmente, que essa doença é incurável, não tem como não pensar na morte, mas eu precisei encarar. Durante quarenta e dois anos eu convivi com a doença e levei uma vida absolutamente normal. Por mais que estivesse sempre acompanhada de cardiologistas e tomando medicações para controle da doença, posso dizer que tive uma boa qualidade de vida. Mesmo com os cansaços que eu sentia, dificuldade para respirar, tosse e inchaço, eu sempre fiz de tudo: estudei, trabalhei até me aposentar, casei, tive minha filha e pude criá-la. Podia caminhar, dormia bem, cuidava da minha casa e tudo que qualquer pessoa normal e saudável faz. Sempre tive esperança de que um dia a medicina iria encontrar meios de dar uma vida maior e melhor aos portadores de Chagas, então eu vivi acreditando que ficaria bem, porque eu sempre tive muita vontade de viver.

Complicações

Depois de tanto tempo, já aos 60 anos de idade, as coisas começaram a mudar e as limitações chegaram. Chegou ao ponto que a doença não podia mais ser controlada através de remédios, nem oral, nem venoso. Por se tratar de uma doença progressiva, principalmente quando ela ataca o coração, chegou um momento que não tinha mais o que fazer. O coração vai dilatando, dilatando, dilatando, e a única saída para continuar viva é realizar um transplante. Nesta época eu fiquei muito debilitada e precisei passar por várias internações. Eu só piorava. Visto a gravidade do meu caso, me colocaram na fila prioritária de órgãos, onde fiquei aguardando o transplante por três meses. Passar três meses internada, com o coração parando de funcionar e esperando um novo para poder viver. Não é fácil ser otimista quando você ouve que precisa de um novo coração para não morrer. Não é fácil saber que alguém precisa morrer para você continuar vivendo e, mesmo assim, necessitar de um ato de bondade.

Maria Angelina recuperada, 10 meses após o transplante

Cirurgia

levarei para sempre comigo essas palavras. Você já pensou como é ter um Eu pensei em não realizar a cirur- coração novo batendo dentro do seu gia, mas meus familiares e a minha corpo? É um sentimento inexplicável. vontade de viver me ajudaram. Eu estava internada na UTI do Incor quando recebi a notícia sobre um possível doador. Era uma quinta-feira, 20 de Depois da cirurgia eu ainda fiquei julho de 2017, às 6:30 da manhã, quan- quarenta e quatro dias no hospital sob do a minha filha foi comunicada que supervisão. Nos três primeiros meses havia um possível doador de 18 anos de alta as consultas eram quinzenais, na cidade de São José do Rio Preto e depois mensais e, por fim, trimestrais. que o coração seria avaliado. Foi um Eu preciso ter mais cuidados agora, momento de muita emoção, tensão e principalmente com alimentação. Não alegria. posso comer alimentos crus, tenho que Às 12:20 o coração chegou ao hos- comer pouco sal, gordura, enlatados, pital e eu já estava totalmente prepa- evitar comer fora de casa por receio de rada para a cirurgia, que começou às alimentos mal preparados e com pou13:30. Foram aproximadamente oito ca higiene, e evitar refrigerantes. horas de total apreensão. Quando eu Preciso evitar, também, o contato voltei da anestesia, tive a sensação de com animais ou com outras pessoas, não estar no meu corpo e uma sensa- ou seja, sempre que saio para lugares ção muito estranha, parecia que eu es- fechados, preciso fazer o uso de mástava em um outro universo. Eu ouvia caras. Os meus exercícios físicos degritos, via vultos, mas eu não conse- vem ser leves, não posso pegar peso e a guia distinguir o que era real. Depois medicação agora também é diferente, eu via um clarão, muitas figuras pre- visto que faço uso somente dos imutas formando um quebra-cabeça, uma nossupressores. sensação horrível que não passava. Eu queria me mover e não conseguia, queria falar e parecia que a voz não saía, tive momentos de muita agitação. Lembro vagamente da minha família falando no meu ouvido que eu estaEu estou va com coração novo, que havia dado retomando as tudo certo, mas o momento mais im- coisas que eu portante foi quando vi o médico res- sempre fiz e, ponsável. Ver o doutor Fábio, com um apesar de estar sorriso de orelha a orelha, dizendo que a p o s e n t a d a , a minha cirurgia tinha sido um suces- eu continuo so foi reconfortante. trabalhando. Ouvir “coloquei o seu coração, está Trabalho em pulsando, lindo, e parece que foi feito uma ONG que exclusivamente para você” foi mágico, cuida de

Cuidados

Vida nova

Doação de órgãos A doação de órgãos é extremamente importante, mas ainda necessita de um grande trabalho de conscientização. Quando você não precisa de um órgão, não existe esse olhar. Muitas, muitas, muitas pessoas realmente precisam de um órgão para viver, sobreviver, ter um pouco mais de tempo de vida. Eu fiquei em um hospital e eu senti isso na pele. Você está ali, dependendo de uma consciência, de uma pessoa que tenha um bom coração, que queira realmente doar os órgãos dos seus entes queridos. Somente as pessoas como eu sabem o que é ficar em uma fila de espera, morrendo, na esperança do gesto de amor da autorização e doação de uma familia. Eu sinto uma imensa gratidão pela família do meu doador, são pessoas que tem uma sensibilidade muito grande pela vida e foram capazes de realizar um gestao tão grandioso. A doação de órgãos salva vidas. Se não fosse isso, eu não estaria contando a minha história para vocês. Família de Maria Angelina celebra sua volta para casa, em Carapicuíba, SP


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Jovens do sexo masculino são principais doadores Para ser um potencial doador, os pacientes devem ter sofrido uma lesão irreversível do encéfalo, tipicamente provocado por acidentes de causa violenta dano cerebral grave, como acidentes vasculares isquêmicos ou hemorrágicos, traumas, ou infecções como meningite, dentre outros”, explica o médico. Mas ao contrário de outros órgãos, as boas condições vitais do paciente para transplante de coração, são fundamentais. “Comparado com outros órgãos que podem ser transplantados, como rim, fígado ou córneas, o doador de coração tem que estar em condições muito estáveis e favoráveis, apesar da morte encefálica”, explica o cardiologista. De acordo com a Central de Transplantes, CETRANS, de janeiro a dezembro de 2017, foram 125 os receptores de coração apenas no estado de São Paulo. Do total apresentado, 83 dos transplantes foram realizados em pacientes masculinos e apenas 42 transplantes em pacientes do sexo feminino. Chefe de Cardiologia do Hospital da Puc-Campinas, Aloísio Marchi da Rocha Os dados ainda apontaram os De acordo com os dados esta- nificativa nas doações, o país che- principais diagnósticos dos pacientísticos de uma pesquisa realizada gou ao número atual de quase 5 mil tes que necessitaram de um transpela Associação de Transplante transplantes por ano e expectativa plante de coração. de Órgãos, ABTO, de 90% de sucesso entre os meses de A pessoa deve ter uma no procedimento. janeiro e março de São aproxisaúde em boas condições. 2018, foram realimadamente 380 Assim, os doadores são zadas 84 cirurgias transplantes por geralmente pessoas de transplante de ano, e os jovens coração. São Paudo sexo masculino jovens” lo ainda é o estado com morte encefáque mais realiza lica representam esse tipo de procedimento, com 29 a principal categoria dos doadores transplantes realizados nesse mes- de coração. mo período. Segundo o Chefe de DepartaDe janeiro a março desse ano, mento de Cardiologia do Hospital foram realizadas cerca de 84 cirur- da Puc-Campinas, Aloísio Marchi gias de um total de 336 cirurgias da Rocha, esse perfil representa as estimadas. No ano passado, foram principais vítimas de morte violen380 cirurgias realizadas. ta. “Para os doadores de coração, a Apesar dos resultados apresen- pessoa deve ter uma saúde, em getados, a queda nos transplantes ral, em boas condições. Assim, os cardíacos foi superior à diminuição doadores são geralmente pessoas na taxa de doadores, revelando me- jovens ou de meia idade, vítimas de nor aproveitamento desse órgão. traumas crânio-encéfalicos ou heOs Estados do Paraná e do Espí- morragias cerebrais graves”, aponrito Santo foram uns dos que apre- ta. sentaram a menor taxa de cirurgias Ainda segundo o médico, as caurealizadas entre janeiro e março sas da morte encefálica podem ser desse ano, com apenas uma cirurgia conseqüência de qualquer dano em cada um dos estados. cerebral grave. “A morte cerebral E embora haja uma queda sig- pode ser consequência de qualquer

Nathalia dos Santos Lino

Arte Nathalia Lino

Principais diagnósticos: - Doença de chagas, com 29%; - Cardiomiopatia isquêmica com 26%; - Cardiomiopatia Idiopática com 25%. - A principal faixa etária dos transplantados é de 50-64 anos, com 46% das cirurgias, seguido pela população de 3549 anos, representando 25% dos pacientes. As doenças foram: • Doença de chagas, com 29%; • Cardiomiopatia isquêmica com 26%; • Cardiomiopatia Idiopática com 25%. A pesquisa ainda mostrou que a principal faixa etária dos transplantados é de 50 a 64 anos, com 46% das cirurgias, seguido pela população de 35 a 49 anos, representando 25% dos pacientes.


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