ABSOLUT 2140 #2

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E aqui estou eu de balde e rodo na mão nesse corredor imundo inteirinho só pra mim. Lá fora os passarinhos piam nos galhos artificiais das árvores de poliuretano, a grama sintética do jardim cresce milimetricamente a cada pisão que leva, estimulada pelas palmilhas das chinelas dos loucos que sapateiam por cima dela. Mas cadê os médicos? Não tem, aqui dentro só tem louco, são os Desligados, os caras que não suportaram o apagão súbito da COM e acabaram trancafiados neste velho prédio da Paulista que cheira a chulé do século retrasado. Parece que este lugar era uma maternidade faz uns duzentos anos, no tempo em que as maternidades faziam algum sentido, depois virou hotel cinco estrelas e assim continuou, mas isso foi quando hotéis faziam sentido e até a classificação “cinco estrelas” significava alguma coisa, então faz tempo pra dedéu. Daí o diacho da COM foi atacada pelo vírus “Kinsey” e alguém — certamente uma mãe — teve a ideia de ocupar o prédio com esses desligados. Mas peraí: — Ei, seu bobão, por que não vai fazer porqueira lá na casa da mamãe? Não aguento mais. Aqui tem todo tipo de louco, os que ficam pintando paredes de marrom e os que se acham uns verdadeiros Vince Contarino e também os que se acham Yoshi Sodeoka mesmo sem ter olhos puxados, e aí nem te conto, pois além de retardado tem de ser cego, né, mas a verdade é que nenhum desses desligados aí é artista e a única grande obra que eles fazem são os montinhos largados pelos cantos do hospício Umberto Primo. Quando minha mãe me arranjou esse emprego, ela falou: — Se liga nos malucos, bota um olhão bem grande nos pirados, filhão, pois sei de fonte seguríssima que lá dentro do Umberto Primo tem um louco que é importante, um figurão aí que tá sendo procurado pela máfia dos Crazy Daisy. — E desde quando os Crazy Daisy existem, mãe, tá pirando? — Não tô pirando porra nenhuma, moleque, ou cê acha que te botei lá dentro do hospício pra ficar queimando cigarrinho de artista e limpando rastro de retardado? Eu sei o que tô falando, meu filho, e lá dentro tem um louco que vale umas paradas aí e eu quero chegar nesse maluco antes dos Crazy Daisy, falou? Então fica esperto.

— Mas o que os Crazy Daisy querem com ele? — Parece que o maluco sabe onde tá escondida a Parada ABSOLUT. A mãe é assim, quem sou eu pra contrariar. E tinha perdido o juízo de vez.

E foi assim que virei vigia de maluco e coletor de aborrecimento. Pra começar, nunca pensei que os Crazy Daisy existissem pra valer, pois sempre achei que fosse boato da época da COM, afinal um loop meio fantasma de gente obcecada por geringonça velha solta por aí e aprontando de tudo pra fazer o mundo voltar a ser o que era antes do domínio completo da COM é uma ideia meio insana até mesmo pra mim, que trampo num hospício. Pra piorar, a mãe veio com aquele papo de Parada ABSOLUT, outra lenda das antigas que falava a respeito de um negócio que ninguém sabia exatamente como era que ao ser usado transformava o usuário: a Parada ABSOLUT devolvia a memória a quem não lembrava, fazia falar quem não falava, pensar quem não pensava, sonhar quem não sonhava, transformava gente burra em inteligente, era a primeira e única maravilha do Universo. Só que ninguém fazia ideia de sua forma ou aparência. Seria uma pílula, um implante, um chapéu com antenas ou uma nuvem com aparência de girafa? Ninguém sabia, eu muito menos.


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