Vespeiro - Book Preview

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Irka Barrios Vespeiro

vespeiro

Copyright © Irka Barrios, 2023

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Capa e Proj. Gráfico Retina 78

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Finalização

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Sandro Tagliamento

Preparação e Revisão Retina Conteúdo

Impressão e Acabamento Ipsis Gráfica

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

Jéssica de Oliveira Molinari - CRB-8/9852

Barrios, Irka Vespeiro / Irka Barrios; ilustrações de Retina78. — Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2023. 240 p.

ISBN 978-65-5598-345-6

1. Contos brasileiros 2. Horror 3. Distopia I. Título II. Retina78 23-5979

Índice para catálogo sistemático: 1. Contos brasileiros

[2023]

Todos os direitos desta edição reservados à DarkSide® Entretenimento LTDA. Rua General Roca, 935/504 – Tijuca 20521-071 – Rio de Janeiro – RJ — Brasil www.darksidebooks.com

Vespeiro – Significado de Vespeiro. substantivo masculino Ninho de vespas. [Figurado] Qualquer lugar em que repentinamente se deparam perigos ou insídias imprevistas.

ambiente do trabalho, dos colegas, o chefe é generoso, mas é provável que a condescendência em excesso tenha outras motivações, uma curiosidade ou culpa.

Na confraternização de final de ano da empresa, sempre há alguém que olha demais para as mãos sem dedos de Sandra. Olha e fala, tenta desenvolver uma tese nada original elevando-a ao posto de grande mulher, heroína com uma cruz horrível a carregar. E há sempre alguém, mais inoportuno, que pergunta o que houve com uma moça tão bonita que não tem dedos. Nesse momento, Sandra percebe o silêncio, todas as pequenas rodas de conversa cessam suas atividades e aguardam o ápice da noite, a revelação. Sandra não se abala, responde com uma desenvoltura um tanto improvável. Dois anos atrás afirmou a seu interlocutor que se tratava de uma síndrome, e que ele não se preocupasse, a doença levara seus dedos, e só. Os médicos foram categóricos ao afirmar que era apenas isso mesmo, não havia risco de contágio, e nada mais seria roubado de seu corpo. Cinco anos atrás ela contou que fora vítima de um acidente, algo muito trágico, preferia nem lembrar. Ano passado, com o repertório escasso, Sandra disse que foi um descuido com o liquidificador. Um descuido duplo, no caso. Primeiro as lâminas deceparam os dedos da mão esquerda, que foi tragada para dentro do copo do eletrodoméstico após ela pressionar demais a tampa. Depois, os dedos da mão direita foram decepados pelas mesmas lâminas, no instante de bobeira que ela teve ao tentar conter o sangramento da mão esquerda.

Não, infelizmente não deu para reimplantar, ela disse e abaixou os olhos. Bebeu um gole do canudo verde limão que enfeitava seu drink. Sandra não destoa da maioria das mulheres de sua idade: sai para beber com as amigas na sexta-feira, maquia-se, passa batom, paquera e algumas vezes se dá bem. Conversa com homens que se aproximam antes de perceberem sua deficiência. Os mais ousados cochicham obscenidades ao seu ouvido, os mais descarados dizem as mesmas obscenidades, e até um pouco mais, após perceberem a falta de dedos.

Na maioria das vezes, Sandra rejeita propostas. Ela tem namorado, um rapaz de olhos fundos e mente desgraçada. A cada vinte dias, Regis aparece com vinho doce e bombons com calda de cereja. Sandra acha enjoativo, muita doçura. Come porque não quer desgraçar mais ainda a cabeça de Regis. Tem medo que ele se mate ou se afunde nas drogas. Para adiar esse fim quase inevitável, Sandra sorri e bebe do vinho enjoativo comentando assuntos bobos da tv. Regis não acha certo fazer planos, acha que o mundo é feio e injusto demais, demais. E acha que Sandra devia lamentar a injustiça que é alguém não ter dedos. Sandra lamenta, mas não tanto assim. Ela às vezes até finge que sofre mais para agradar Regis ou tentar compreender o que se passa naquela cabeça estragadinha. Percebeu que quando acontece isso, de ambos, em sintonia, odiarem o mundo, a situação não melhora. Em geral, piora. Regis traz uma aura que se impregna no sofá, nas almofadas e cortinas da casa de Sandra. Quando ele se vai, ela abre os vidros e não os fecha por três ou quatro dias.

A mãe de Sandra também aparece, nunca no mesmo período que Regis. Não se conhecem e não se gostam. A mãe da Sandra traz flores que enfeitam o centro da mesa por uma semana. Cozinha, lava, olha para o rosto dela (nunca para as mãos). Olha-a de um modo indulgente e diz coisas que já foram ditas um milhão de vezes. Sandra quer tranquilizá-la, deixar claro que vive bem. Sempre desiste. Sua aparente vulnerabilidade é o combustível para certos ímpetos. Então suporta as visitas ouvindo sobre coisas de universo, gratidão, luz e espirrando os cheiros dos incensos que, assim como a aura de Regis, formam uma camada fina e grudenta sobre todos os cantos do apartamento. Quando a mãe se vai, Sandra torce para que chova. Sandra tem lá seus medos, que acredita serem decorrentes de traumas de infância, embora nunca tenha procurado terapia para lidar com essas questões. Lembra bem pouquinho do pai e bastante da avó, que o substituiu no afeto e na responsabilidade de sustentar a casa. Lembra-se dos vestidos desconfortáveis que a mãe comprava e das notas fiscais escondidas, dos animaizinhos de vida breve

que tiveram, da avó, toda desajeitada, explicando sobre natureza, morte e renascimento. Lembra-se das três formando uma família sem religião definida. Tem um pesadelo recorrente, em que está tocando cancã no piano do conservatório municipal enquanto a plateia toda ri de sua performance. Algumas vezes acorda com a certeza de que merecia o vexame, outras não. Fora isso, tem os medos das pessoas comuns: de o elevador despencar ou de um tsunami destruir a cidade.

Sente certa agonia ao olhar para buracos, não buracos da rua, no asfalto, mas vários buracos juntos, um ao lado do outro, como a estrutura da colmeia de abelhas. Pesquisou o assunto, soube que se isso se agravar, pode se tornar uma condição conhecida como tripofobia. Mas gosta de anéis, pensa em dedos enfeitados por anéis de prata, de ouro, com pedras coloridas, desde as mais ordinárias, ametista, quartzo, até as mais distintas, esmeralda, rubi. Gosta, em especial, do momento em que o dedo veste o anel, assiste a inúmeros vídeos de joalherias para contemplar esse prazer bobo. Gosta mais ainda de novidades, anéis unidos que se encaixam nos três dedos maiores, e (prefere guardar para si) gosta de soqueiras, o que a faz pensar que nada a ver esse negócio de tripofobia. Também lembra de um episódio, na chácara de um parente, em que foi perseguida por galinhas chocas. Numa das versões do pesadelo do piano, as galinhas bicam um dedo de mulher. Noutra versão, a mulher com o dedo bicado tem a cara tomada por verrugas. A simples aparição daquele rosto faz com que Sandra acorde e, nauseada, corra para o banheiro. Outras pessoas se sentem imprescindíveis na vida de Sandra: a síndica do prédio, o guardador de carros da rua, a caixa do supermercado, as duas amigas mais chegadas. São pessoas que, de uma forma ou de outra, juram que Sandra estaria perdida caso deixassem de ajudá-la. Sandra percebe esses sentimentos e, em troca, finge sentir gratidão em excesso. Finge tanto que nem sabe mais quando o teatro começou.

O que ninguém sabe sobre Sandra é que à noite, após se recolher em sua cama e ser capturada pelo universo dos sonhos, de forma lenta e constante, seus dez dedos voltam a crescer. Crescem e atingem o tamanho normal de dedos, com unhas, cutículas, impressões digitais. E é só então que pequenas criaturas, com bicos e cristas de aves domésticas, emergem das sombras do quarto. Elas avançam sobre o colchão e cada uma se gruda num novo dedo de Sandra. Então elas sugam, sugam, sugam, até o amanhecer.

Pássaro estúpido, mutilando-se dia após dia. Espera só Ida reparar em você. Será a tua vez de levar a bronca. Daqui a pouco ela vem, deve estar na cozinha. Logo vem com o iodo. Ela para, ajeita meu cabelo, a gola da camisa ou seca a minha baba. Faz isso para demonstrar que me ama. Bicho sortudo, uma gaiola só para você. Olha só teus companheiros da frente, um poleiro para cada. Olha o trânsito que é quando trocam de lugar. Precisam de organização: os que querem sossego ficam à esquerda, os que trocam de poleiro, à direita. A versão aviária da mão inglesa. Mas isso não vai durar muito, Teco está nas últimas. Estagnado à esquerda do poleiro três, só sai dali para bicar o chão. Não comeu nada da couve, não canta mais. Triste perder um amigo. Na clínica deve ser assim, companheiros de quarto partindo, enfermeiras acomodando quem chega. Deve ter um cemitério bem perto. É um lugar para ser esquecido, a antessala da morte. Depois, nada.

Miro enxerga tudo de cima, de vários ângulos, mas isso não o alegra. Janela afora um paredão amarelo repintado um milhão de vezes. Janela adentro os móveis atravancados, o velho e o cheiro de mofo. Pelo menos, de seu poleiro, Miro pode observar a movimentação de Ida. Inválido estúpido, não soube ensinar boas escolhas à filha. De repente, Ida se fez carente, envolveu-se com um homem da pior qualidade. Picareta de carros, cheio das malandragens, imagino o papo que lançou para cima dela quando se ofereceu para negociar o Uninho. Mulher bonita, solitária, com o fardo do pai doente. Presa fácil, fácil.

Ida não merecia isso. Bom, talvez ela pensasse que sim. Talvez quisesse, e até procurasse, a situação em que se meteu. Quem sabe acha que está em dívida, que precisa pagar penitência por nos ter abandonado. Sim, a explicação soa plausível. Mas não pensávamos que Ida fosse dessas. Sempre a tivemos como uma mulher sensata. E mulheres sensatas devem casar com maridos sensatos, ter filhos

sensatos e assim por diante. É a lógica ou ordem natural das coisas. Porém algo desequilibrou o mundo de Ida. É que a paixão tem desses dissabores: deixa a pessoa bobalhona. E cá estamos, assistindo à ruína de nossa princesinha, encantada por um impostor. É claro que o Impostor tem nome. E é claro que conhecemos sua dezena de apelidos. Ouvimos diariamente. Amor, amorzinho, amoreco, mô, mozão, bem, benzinho, benzão. Discordamos de todos. Impostor é o que lhe cai bem.

Hoje é um dia especial, Impostor até se barbeou. Passou pela sala há poucos segundos, e sentimos o cheiro da loção. Se há algo que admiramos, é a geometria de seu trabalho. Barba aparada, desenhada a régua. Impostor também vestiu a calça jeans escura e a malha vermelha com decote V. Cabelo com gel e uma gota de perfume. Não restam dúvidas: hoje virá um possível comprador. Caso Miro ainda os tivesse intactos, seus dedos estariam cruzados. E Claudio também cruzaria os seus, caso pudesse movê-los. Tentarão ajudar com o pensamento positivo.

Também desejamos uma nova vida. Já testemunhamos situações desoladoras, todo o carinho de Ida direcionado ao Impostor. A nós, as sobras: gotas de iodo nas feridas de Miro, fraldas geriátricas para Claudio. Dedos cruzados, logo o interfone vai tocar. Entrará a corretora amistosa, que não cala a boca um instante, acompanhada do cliente. Conhecemos o papo. Uma nova cor nesta parede, floreiras na janela, e o apartamento ficará com outro ar. Pelo preço ofertado, trata-se de um ótimo negócio, ela dirá, sorrindo e apertando os olhos.

A porta se abre, entra um casal. Pelo olhar que lançam após uma primeira impressão, fica claro que não será desta vez. Se, ao menos, fosse um comprador homem, solteiro, do mesmo estilo do Impostor. Mas não. Entrou mulher junto, a coisa complica. Mulheres são mais criteriosas.

Claudio e Miro reacendem as esperanças quando notam que Impostor decidiu mostrar o terraço do prédio. É bonito, já estivemos lá. Apreciávamos muito os dias em que Ida nos levava para tomar sol. Quase não subimos mais. Ida não tem tempo.

Dois dias depois o telefone toca e Ida comemora: o casal fez uma proposta. Claudio percebe a empolgação na sua voz. Não compreende por que ela não fala da casa que pretende comprar com o dinheiro do negócio. O combinado não era esse? Ouve Ida falar em passagens, datas possíveis, tempo fora do país. Ela desliga e dá um gritinho, entusiasmada. Claudio a ouve, agora, em chamada para outro número. Ela pede informações de preços, se tem desconto para pagamento adiantado, se recebem pessoas com graves problemas motores. Sim? E quando ela poderia fazer uma visita para conhecer a clínica?

Claudio sente o nariz coçando. Vai espirrar. Abaixa a cabeça e nota uma pluma. Abaixa a cabeça? Olha só, Miro, eu consigo me mover. Vira o pescoço em direção à gaiola e nota a gradezinha de metal aberta. Miro se foi. E Claudio, agora, se move. Impostor que vá para o raio que o parta. E que leve Ida junto, também sou livre agora. Ao voltar a cabeça em direção à cristaleira, Claudiomiro se olha no espelho e vê um prolongamento compacto, alaranjado e cônico com alguns centímetros de comprimento. O estranho apêndice parte de seu nariz e se une ao queixo. Uma fenda, ao meio, escancara, em movimento de tesoura, conforme ele abre e fecha a boca. Através do espelho, vê a plumagem amarela que cresceu em seu peito. Pode voar, como Miro. Força os braços para as laterais, quer abrir as asas, admirar suas penas antes de alçar voo. Mas seus músculos não obedecem. O único movimento que ele consegue fazer é inclinar a cabeça para baixo e bicar suas patas.

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