Escondidos no caminho
Aisthesis da pareidolia
InVersões: arte e tecnologia, ciência e religião
Faço arte digital1 desde 1996, mas foi no início dos anos 2000, que produzi minhas primeiras exposições. Fiz algumas instalações com objetos e pessoas sobre o scanner e as digitalizações se desdobraram em impressões, projeções etc. Utilizei o software Adobe Photoshop para fazer o tratamento e pequenas interferências nas imagens. A versão do Photoshop que eu utilizava continha plugins ou filtros artísticos que me possibilitaram colocar em alguns trabalhos gotas flutuantes, texturas e trançados. Dessa forma, o programa da Adobe foi coautor na produção final de algumas imagens, pois o software inseriu, de acordo com sua lógica de programação, as gotas que, aprovadas por mim, permaneceram na obra (veja na página 54)
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Este campo da arte também ficou conhecido como Arte Computador, Arte Multimídia ou Arte de Novas Mídias. Para potencializar a fruição dos meus trabalhos é possível associarmos também movimentos que se fortaleceram conjuntamente à arte digital, a exemplo da Optical Art, que teve o início de suas teorias visuais com artistas como Kandinsky, também com a Bauhaus etc., na década de 1920 e da Arte Cinética, inaugurada como tendência na década de 1910. Todos esses movimentos se tornaram internacionais na década de 1960. A Optical Art nos remete à tradição do ilusionismo na arte e à história da representação de aparências físicas, as quais podem ser articuladas à produção dos trabalhos que compõem este livro.
Depois de um tempo me dedicando ao desenho e a pintura em Chapada dos Guimarães, MT, voltei a pesquisar arte digital em Brasília, em 2011. A migração de Chapada para Brasília fez reduzir muito o espaço físico de trabalho, de uma casa com quintal para um pequeno apartamento. Internamente, podia apenas fazer pequenas pinturas, desenhos e arte digital, como havia deixado muitas ferramentas de pintura para trás, acabei me dedicando majoritariamente à arte digital. Como o tempo/espaço era de mudanças de várias ordens, dei o nome a um conjunto de imagens que produzi em Brasília de InVersões (2012)2. Para Ludmila Brandão, curadora do Prêmio Jovem Arte em Cuiabá, o que nos impacta em InVersões é esse encontro transtemporal do passado mais longínquo com o presente cibernético, que se evidencia na combinação entre as imagens digitais estilizadas projetadas sobre diversos materiais como madeiras, folhas, pedras etc. inscrições rupestres contemporâneas. Para Ludmila “os afetos das matérias e das imagens reorganizam o espaço-tempo de nossas vidas, de tal modo que parecem nos colocar em contato imediato (não saberia dizer em que grau), com aqueles que fizeram o trabalho pesado da invenção da espécie, quiçá permitindo-nos um devir ancestral jamais experimentado.” O processo de criação de InVersões foi diversificado, passou pela captação de imagens com uma máquina fotográfica digital em diversas caminhadas pelas superquadras de Brasília; depois vieram os desdobramentos e manipulações das fotos no computador; e então projeções; fotografias das projeções; impressões; projeções com performance de dança e música etc. Ao mostrar esses trabalhos nas redes sociais e em exposições, amigos virtuais devolviam algumas referências, e depois a crítica de arte Aline Figueiredo também o fez, analisando os trabalhos do período. No trabalho Jogo da Velha (2011), por exemplo, que foi feito com a utilização de fotografias digitais de lâmpadas led´s coloridas, a referência que surge é a de Vladimir Bonacic (1938 - 1999), em especial a obra DIN de 1969, isso acontece também com o trabalho TV de Tubo3 (2011). Já em InVersões (2012) e Pixel (2011) a referências são as “pinturas de luz” de Karl Holzhauser (1944) e Gottfriend Jager (1937), com os desdobramentos em fotos e pinturas de Gerhard Richter (1932). Menciono também como importantes referências internacionais John Whitney (1917 - 1995), Andy Warhol (1928 – 1987) e Nam June Paik (1932 - 2006). Tanto em Pixel quanto em TV de Tubo, as fotografias digitais macro de tubos de imagem são trabalhadas e desdobradas no computador. Em ambos os casos, Pixel e TV de Tubo, há uma expansão de campo artístico quando as imagens são projetadas em fundo preto com performance de dança e música do vídeo Off Air (2020).
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InVersões, 2012, é um trabalho composto por um conjunto de 108 imagens fotográficas de paisagens urbanas de Brasília, que passaram por variados processos de manipulação (desfocamento, inversão para o negativo, tratamento digital etc.) e que, a princípio, foram projetadas em looping em blocos de granito em estado bruto, suportados por uma coluna de vidro, depois em madeiras, árvores etc. As primeiras exposições foram feitas na Galeria de Arte do Palácio da Instrução em Cuiabá, MT, e na Galeria Athos Bulcão em Brasília, DF. A última versão foi feita em Fortaleza, em 2023, ganhando formas circulares (próximas páginas). 3 TV de Tubo, 2011, é um trabalho que se originou a partir de macrofotografias digitais de uma imagem de tubo de TV. As fotos foram trabalhadas, retrabalhadas e desdobradas no computador, finalmente projetadas no performer e tornando-se o vídeo Off Air (2020). Participação especial do performer Emyle Daltro.
No Brasil, a arte digital foi introduzida através da irrequieta liderança de Valdemar Cordeiro (1925-1973), com a mostra intitulada “Arteônica/O uso criativo dos meios eletrônicos em arte,” realizada em São Paulo, em 1972. Em Cuiabá, conheci pessoalmente Wladimir Dias Pino e pude entrevistá-lo no Rio de Janeiro, as trocas conceituais com esse artista podem ser percebidas em trabalhos da mostra Assimetria dos Lados4 .
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A mostra assimetria dos lados foi realizada em Chapada dos Guimarães no ano de 2011.
Como as imagens podem ser projetadas, exibidas em monitores ou impressas, quando nos referimos a essa última possiblidade, a de impressão jato de tinta sobre papel ou tela, afirmo minhas incursões pelo campo da digigrafia, técnica de impressão a partir das novas tecnologias da informação. Mostras com esses trabalhos impressos já foram realizadas em Cuiabá, Brasília, Chapada dos Guimarães e Ceará. Aliás, posso afirmar que fui o primeiro a usar tais tecnologias de impressão (digigráficas) no Mato Grosso, na década de 1990. De acordo com a crítica Aline Figueiredo, minhas digigráficas InVersões transitam “por formas construtivas [...] A rigidez geométrica é “quebrada”, ou melhor, sensibilizada pelo desfoque informal ou sensível da linha.”5 Vale lembrar que em InVersões (2011), há a mistura de elementos da natureza como a aisthesis causada pela luz e cores do céu de Brasília combinada com a geometria, espelhamento e detalhes captados em radical inversão de foco, que produz impressões e vertigens causadas pelas luzes da cidade, andaimes, tramas de ferro coloridas de brinquedos públicos em parques e praças, colunas e revestimentos dos pilotis dos diversos prédios da cidade, entre outras materialidades e sociabilidades sutilmente captadas e compartilham nas obras essas mesmas intensidades e sensações únicas do local.
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O trabalho InVersões foi exibido em Cuiabá, Brasilia e Fortaleza em exposições coletivas.
TV de Tubo. Fotografia com manipulação digital. 2011 - 2023 Brasília, DF – Fortaleza, CE 10000 X 10000 pixels
Em 2021, dando continuidade à pesquisa com a aisthesis da pareidolia, encontrei e resolvi experimentar o DeepDream. Trata-se de um programa criado pelo engenheiro da Google, Alexander Mordvintsev, com base na visão humana; ou seja, o computador é programado para adquirir, processar, analisar e compreender, em alto nível, imagens e vídeos digitais. Essa engenharia de inteligência artificial é capaz de fazer algumas tarefas similares as que o sistema visual humano realiza. Esse campo científico, interdisciplinar, é chamado de visão computacional. Ele reúne teorias, disciplinas e sistemas artificiais que extraem informações de imagens, dentre elas uma rede neural convulucional (CNN ou ConvNet), que é um tipo de rede neural profunda, também conhecida como rede neural artificial invariante, ou de deslocamento, ou invariante especial (SIANN). Essa rede neural é capaz de encontrar e melhorar padrões em imagens pela via algorítmica da pareidolia. Com a sugestão de algumas imagens, esse algoritmo cria ou sobrepõe olhos, animais e outras várias formas de modo muito semelhante ao que a sensibilidade humana é capaz de fazer. Ele literalmente vê rostos em toda a parte, dando ênfase a rostos “escondidos” de cachorros, raposas, lagartos, castores, javalis, cobras, sapos, etc. Embora a inteligência artificial tenha muitas limitações e repita padrões etc., descobrir os estudos me fez pensar em outras possibilidades de investigação e produção. Na plataforma DeepDream Google também é possível utilizar um gerador de estilo, o filtro neural DeepStyle, com o qual o programa faz a mistura ou mixagem de duas imagens. Esses tipos de programa são conhecidos no meio das artes como transferidores de estilo neural. Já havia feito sobreposição de fotografias originais no Adobe Photoshop, que na versão atual também possui filtros neurais, mas nesse caso, com uso da visão computacional Google, os resultados foram diferentes da sobreposição ou junção de imagens que fiz em outras épocas. Como o DeepDream enche a imagem de olhos e animais, sugerindo uma variedade de possibilidades de leitura e associação, trabalhei com os dois recursos. Primeiro utilizei o DeepDream sobre uma fotografia da textura de um suporte de ferro pintado, enferrujado, com marcas do tempo, que lembra um trabalho abstrato de arte, uma arte encontrada. Depois, com o resultado do efeito DeepDream sobre essa textura, utilizei o DeepStyle mesclando com a foto de paisagem. Isso diminuiu a quantidade de rostos na imagem. Algumas das imagens que produzi em coautoria com os programas Google precisaram ser recortadas, retocadas ou modificadas e outras foram descartadas, pois as imagens geradas foram de baixa intensidade. Com um pouco de tempo e dedicação passamos a entender a inteligência da visão computacional, como pensa e processa as imagens e, com alguns ajustes, os testes de baixa intensidade foi sendo substituídos por bons resultados. Em 2022, em um laboratório de pesquisa independente sediado em São Francisco, a Midjourney Inc, desenvolveu e lançou um serviço de inteligência artificial capaz de gerar imagens a partir de descrições em linguagem natural, chamadas de prompts (do inglês: roteiros), similar ao DALL-E da OpenAI e ao Stable Diffusion. Os roteiros ou textos são enviados ao Midjourney através do Discord.
A ferramenta que está em fase de testes beta é aberta gratuitamente ao público e possui versões pagas para experimentações mais avançadas. Além de gerar imagens a partir de roteiro, com essa ferramenta é possível gerar novas imagens a partir de fotos, desenhos e pinturas originais, basta que o comando de texto solicite as modificações para que inteligência artificial co-crie, modificando o arquivo original inserido previamente. Essa mesma tecnologia está sendo inserida em vários programas de manipulação e tratamento de imagem.
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Dança Salobra. Dan Pelegrin e Emyle Daltro. Duas fotografias manipuladas e mixadas digitalmente. 2021. Fortaleza, CE 45 X 61 cm
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Fotografia publicada na revista ARJ – Art Research Journal: Revista de Pesquisa em Artes - UFRN. 2022
De acordo com alguns cientistas7, a identificação rápida de expressões faciais acontece em uma parte específica do cérebro humano. Depois de alguns milésimos de segundo, ativamos as outras partes para uma cognição geral ou completa. Arrisco dizer que vejo a probabilidade de que alimentos, animais, insetos – sobretudo os peçonhentos – e partes do corpo, como seios e órgãos sexuais, mãos e pés, também ativem precocemente partes específicas do cérebro. Essa capacidade sensível foi e é determinante para a manutenção da vida humana. Tanto a pareidolia, quanto a apofenia8 são, com frequência, associadas a significados religiosos ou paranormais9. São muitos os artigos e textos que tratam da percepção de imagens religiosas em fenômenos naturais. Nos meus trabalhos, busco reforçar as associações relacionadas aos aspectos ópticos, à sensação, envolvendo a estesia (aisthesis), por meio da composição com a natureza, o tempo e o acaso. As associações com ícones ou símbolos religiosos – Virgem Maria, Madre Teresa, Buda, Jesus de Nazaré, Alá, Deus, Deidade Macaco etc – podem acontecer, assim como infinitas outras associações. O escritor C.S. Lewis1011 encontrou, tanto em percepções religiosas quanto em inferências lógicas e epistêmicas, caminhos que o levaram a conhecer e aprender sobre si mesmo e o mundo. Os estudos de Lewis nos levam a pensar no acaso, no fortuito, no aleatório, de modo a não os descartar facilmente.
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O cientista Carl Sagan (1934 - 1996) escreveu em 1995 o livro O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Disponível em: <https://carlsagan.com/>. Acesso em: 27 abr. 2021. A neurocientista e radiologista dra. Noushine Hadjikhani, da Universidade de Harvard, juntamente com outros cientistas escreveu em 2009 um artigo denominado Ativação precoce do córtex específico do rosto por objetos semelhantes ao rosto. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2713437/> Acesso em: 27 abr. 2021. Os neurocientistas Diana Duyser e Doris Tsao, da Universidade de Bremen, Alemanha, também indicaram a rapidez no processamento de rostos, com ativação precoce da área da face fusiforme. Tais apontamentos foram publicados no jornal The New York Times, em 2007, em um artigo intitulado Faces, Faces Everywhere. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2007/02/13/health/psychology/13face.html>. Acesso em: 27 abr. 2021. 8 Apofenia é um termo proposto em 1959 por Klaus Conrad para o fenômeno cognitivo de percepção de padrões ou conexões em dados aleatórios. É também a tendência para perceber ligações significativas entre coisas não relacionadas. Trata-se de um importante fator na criação de crenças supersticiosas,crenças paranormais, e em ilusões de óptica. Disponível em: < https://en.wikipedia.org/wiki/Apophenia>. Acesso em: 27 abr. 2021. 9 Paranormal é um termo utilizado para descrever as proposições de variados fenômenos, cujas causas ou mecanismos não podem ser explicados pelo atual estágio de conhecimento científico e que são atribuídos a forças desconhecidas, em especial, forças psíquicas. Um dos casos mais famosos são as faces de Bélmez de la Moradela, na Espanha. Muitos desses casos são estudados à luz da metafísica. 10 Foi um professor universitário, escritor, romancista, poeta, crítico literário, ensaísta e teólogo irlandês. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/C._S._Lewis>. Acesso em: 27 abr. 2021. 11
Pedra do Frade e da Freira. 2006.Fotografia manipulada. BR 101. Espírito Santo, Distrito de Itapecoá, Itapemirim e Distrito de Jaciguá, Vargem Alta. Página seguinte: Parque Nacional da Serra dos Órgãos. 2004. Fotografia manipulada. Petrópolis e Teresópolis, RJ