A Série Negra

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“Há um aposento que caiaram com leite.” Georg Trakl


Este catálogo foi realizado por ocasião da exposição A SÉRIE NEGRA de Waltercio Caldas Galeria Raquel Arnaud, São Paulo, Brasil 29 de março a 28 de maio de 2011.

This catalog was printed for the occasion of the exhibition THE BLACK SERIES by Waltercio Caldas Galeria Raquel Arnaud, São Paulo, Brazil March 29th to May 28th 2011.


WALTERCIO CALDAS



N OTAS R E F L E T I DAS

NOT ES ON R EFLEXION

Guy Brett Abril de 2011 | April 2011

Da superfície à profundidade existe uma progressão. O que vemos ao entrar na galeria são cinco objetos distintos que se assemelham a mesas e que sustentam vários tipos de estruturas, formando uma sequência que se estende da frente desse espaço até o fundo: conjun-

There is a necessary progression from surface to depth. What you see as you enter the gallery

tos elegantes, compactos e cool. À medida que nos aproximamos, al-

are five discreet, table-like objects supporting

tera-se nossa experiência total desses objetos. Não é que a superfície

var­ious kinds of construction and forming a se-

desapareça, mas ela se transforma em agente de uma expansão es-

quence extending from the front of the gallery

pacial e de uma ambiguidade que começam a envolver a totalidade da sala na qual nos encontramos. É como se Waltercio Caldas tivesse retirado as duas hastes de vidro de dentro da caixa de uma de suas primeiras obras dubiamente científicas e/ou ocultistas (Condutores de

to the back: elegant ensembles, compact and cool. As you approach closer your whole experience of the object changes. It is not that the surface disappears, but it becomes the agent of a spatial expansion and ambiguity which be-

Percepção) e as agitasse sobre a recente Série Negra, criando incontá-

gins to involve the whole room in which you are

veis e prazerosas confusões entre o real e o ilusório, o ótico e o ma-

stand­ing. It is as if Waltercio Caldas had taken

terial. Para além de esculturas ou estruturas, cada uma dessas obras

the two glass rods from the box of his mock-sci-

negras é uma espécie de aparelho de sensibilização.

entific/mock-occult early work, Condutores de Percepção (Perception Conductors), and waved them over the recent Black Series, creating innumerable pleasurable confusions between the real and the illusory, the optical and the material. More than sculptures or structures, each of these black works is a kind of apparatus for sensitization.

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É o reflexo que produz essas transformações – reflexos escuros

nas superfícies de granito polido, leves reflexos em placas de vidro e reflexos brilhantes na tubulação de aço. E eles se combinam, uns com os outros, para produzirem outros tipos de reflexos. Quando contemplamos uma obra de todos os ângulos, um fino fio de lã cor de la­ ranja que pende do teto parece continuar descendo até as profundezas, hipoteticamente para abaixo do nível do chão (A máquina); de determinada perspectiva, poderíamos confundir a borda de uma placa de vidro com um fio (O mar); visto através de um orifício circular,

o chão de concreto acinzentado da galeria torna-se mais uma região

formations – dark reflections in the surfaces of

ne­bulosa (A paisagem); uma superestrutura de metal negro torna-se ainda mais negra quando refletida no bloco de granito (O som). Pode tornar-se ainda mais negra? Linhas que se assemelham a ranhuras

It is reflection which produces these trans­

polished granite, faint reflections in sheets of glass and brilliant reflections in steel tubing. And these combine with one another to pro­ duce further qualities of reflection. As you look

na superfície de um bloco de granito deitado sobre a ‘mesa’ são re-

into a work from all its angles a thin orange

flexos da iluminação da galeria que – à medida que nos movimen-

cord hanging from the ceiling seems to con­

tamos ao seu redor – parece estar em algum lugar dentro da pedra

tin­ue on into the depths, hypothetically below

opaca, tornando-a transparente. Pontos pálidos no granito dão ao

floor level (A máquina, the machine); the edge

re­flexo de um spot da galeria os contornos desiguais de um conjunto de galáxias (A paisagem).

of a glass sheet could be mistaken for a cord from a certain viewpoint (O mar, the sea); seen through a circular hole the greyish concrete floor of the gallery becomes another cloudy realm (A paisagem, the landscape); a black me­t ­­al superstructure becomes even blacker when reflected in the granite block (O som, the sound). How black can one get? Lines that look like scratches on the surface of a granite boulder lying on the ‘table’ are reflections of the gallery lighting which appears, as you move, to be somewhere within the opaque stone and renders it transparent. Pale specks in the granite give a reflected gallery spotlight the ragged edges of a galactic cluster (A paisagem).

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Se somos sensíveis a intensidades de negritude, do mesmo

modo nos sensibilizamos às qualidades do preto. Em um dos registros iniciais de seus diários, o artista Hélio Oiticica descreve o preto nas séries de Contrarrelevos e Unidades de Lygia Clark, do final da década de 1950, em termos que evocam curiosamente o uso que Waltercio faz do preto: O que importa aqui [naquelas obras de Lygia Clark] não é o ‘geometrismo’ nem a ‘forma’, nem óticas (como ainda acontece em Albers), mas os espaços que se contrapõem criando o tempo de si mesmos… o preto não funciona como uma ‘cor gráfica’ ao lado do branco, mas como uma cor/não-cor elementar, o limite em que a luz (branco) e a sombra (preto) se encontram e vitalizam-se pela contraposição espaço-tempo. Logo em seguida, a superfície frontal é consumida totalmente pelo preto, e o branco aparece na quina do quadro. (Diário, 13 ago. 1961)

If we are sensitised to degrees of blackness

we are also sensitised to qualities of black. In one of his early diary entries, the artist Hélio Oiticica described the black in Lygia Clark’s Counter-reliefs and Unidade series of the late 1950s in terms which are curiously evocative of Waltercio’s use of black:

Essas palavras se referem a obras como o Ovo de Lygia, no qual ela

What matters [in those works of Lygia

logrou fazer com a superfície aquilo que ela mesma descrevera co­mo

Clark’s] is not ‘geometry’ or ‘form’, or even

seu objetivo – o “vazio pleno”.

viewpoints (as still happens in Albers) but spaces in counterpoint creating their own time… with black not functioning as a ‘graphic colour’ next to white, but as an elemental colour/not colour, the limit where light (white) and dark (black) meet and vitalise each other through space-time contraposition. Soon afterwards, the frontal surface is totally consumed by black, and white appears at the edge of the picture. (Diary entry, Aug. 13, 1961) These words refer to works like Lygia’s Ovo in which she achieved with the sur face what she herself described as her aim – the “full emptiness”.

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A PA I S A G E M



Um espelho reflete imparcialmente tudo o que estiver à sua

fren­te, e a obra do artista deve se acomodar a esse fato, um dado aleatório que é preciso aceitar. Simultaneamente, o mundo espelhado se faz visível de acordo com a natureza da superfície refletora, e a noção de um espelho escuro sempre teve uma mística particular. Na América Latina, os primeiros espelhos astecas eram superfícies polidas de obsidiana, uma pedra ígnea pertencente à família do granito. Eles eram associados ao deus Tezcatlipoca, cujo nome significa ‘Espelho Fumegante’. Na Europa, os espelhos de obsidiana tornaram-se objetos preciosos para artistas e colecionadores de curiosidades. Um exemplar particularmente famoso, atualmente no Museu Britânico, pertenceu ao astrólogo, matemático e mago elisabetano John Dee,

que o usava como ferramenta para suas investigações ocultistas e para

impartially, a fact to which the artist’s work

invocar visões. Para as suas superfícies negras, Waltercio escolheu o granito por­­que, diferentemente do mármore – que gradualmente se esfare­la –, ele presta-se melhor ao polimento e mantém bordas perfei-

A mirror reflects whatever is in front of it,

must accommodate itself, a degree of randomness it must accept. At the same time the mirrored world is made visible according to the nature of the reflective surface, and the notion of

tamente retas e afiadas: aparentemente, os fios das facas feitas de

a dark mirror has always had a particular mys­­

obsidiana podem alcançar uma espessura quase molecular.

tique. In Latin America the first Aztec mir­rors were polished pieces of obsidian, an igneous rock of the same family as granite. They were associated with the god Tezcatlipoca whose na­me translates as ‘Smoking Mirror’. In Europe obsidian mirrors became a prize possession of art­ists and collectors of curiosities. A particularly famous one, now in the British Museum, belonged to the Elizabethan astrologer, mathematician and magician John Dee who used it as a tool for his occult research and for conjuring up visions. Waltercio chose granite rather than marble for his black surfaces because, unlike marble, which gradually crumbles, granite polishes better and keeps perfectly straight and sharp edges: apparently the blade edges of obsidian knives can reach almost molecular thinness.

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A MÁQUINA




Waltercio himself likes to think of these

works not as tables, or even as objects, but as ‘places’. And that makes sense because each work in the Black Series consists of three places: above the surface, below the surface and on the surface. The ‘table’ is pierced by holes, enabling the ‘above’ to be physically connect-

O próprio Waltercio considera que essas obras não sejam mesas,

ed with the ‘below’, and this fluidity and indeterminacy is hugely enriched by the reflections

sequer objetos, mas ‘lugares’. Isso faz sentido porque cada obra da

which play between the three zones. It is tempt-

Série Negra consiste em três lugares: acima da superfície, abaixo da

ing to see an analogy with heaven, earth and

superfície e sobre a superfície. A ‘mesa’ é vazada por buracos que per-

the subterranean, or even with our strange and

mitem que o ‘acima’ se ligue fisicamente ao ‘abaixo’, e essa fluidez e

equivocal position in the universe, suspended

indefinição é enormemente enriquecida pelos reflexos que brincam

at some kind of median level between the mac-

entre as três zonas. É tentadora uma analogia com o céu, a terra e o subterrâneo, até mesmo com nossa estranha e equívoca posição no

rocosm of the galaxies and the microcosm of our own cells. In this frail condition our bodies seem to dictate the words we choose, or which

universo, suspensos em alguma espécie de nível mediano entre o ma-

involuntarily come to mind.

crocosmo das galáxias e o microcosmo de nossas próprias células.

Nessa frágil condição, nossos corpos parecem ditar as palavras que

as we move from first sight of Waltercio’s con-

escolhemos ou que, involuntariamente, nos vêm à mente.

struction to an immersion in its inner workings.

Abyss is associated with looking down. The ‘ta-

‘Abismo’, por exemplo. A palavra nos vem à mente quando passa-

mos de uma primeira visada da construção de Waltercio a uma imersão no seu funcionamento interno. O abismo se associa ao olhar para baixo. As ‘mesas’ são de uma altura tal que, efetivamente, as olhamos

‘Abyss’ for example. The word is prompted

bles’ are of such a height that we do look down at them. In English the adjective ‘bottomless’ is commonly joined with abyss. The terror of a ‘bottomless abyss’ is conjured up perhaps by our

de cima. Em inglês, a palavra bottomless (sem fundo) é usada costu-

fear of falling and our dependence on gravity.

meiramente para adjetivar o abismo. O terror de um ‘abismo sem fun-

But if our gaze is straight ahead, on the horizon-

do’ talvez seja o que produz nosso medo da queda e nossa dependên-

tal, the word abyss is less likely to be suggest-

cia em relação à gravidade. Mas, se olharmos diretamente em frente,

ed to describe the experience of space. This ap-

na horizontal, é menos provável que a palavra abismo surja para descrever a experiência do espaço. Isso se aplica basicamente aos trabalhos

plies particularly to Waltercio’s outdoor works. There the gaze is primarily horizontal – indeed some of these works are specifically concerned

ao ar livre de Waltercio. Neles, o olhar é predominantemente horizon­

with the horizon line. The experience of space,

tal – é certo que algumas dessas obras lidam mais especificamente

instead of being bottomless, has no top to it, it

com a linha do horizonte. Em vez de não ter fundo, a experiência do

is uncontained, open air. A striking exception to

espaço não tem teto – é céu aberto, incontido. Notável exceção às

Waltercio’s horizontally aligned exterior works is

obras ao ar livre e horizontalmente alinhadas de Waltercio é a sua

his commission for the streets of Rio de Janeiro,

obra encomendada para as ruas do Rio de Janeiro, Escultura para o Rio, de 1996. O olhar é conduzido para cima por um poderoso (e lúdi-

Escultura para o Rio (Sculpture for Rio), 1996. The gaze is led upwards by a powerful (and playful) vortex which draws into itself all the constit­

co) vórtice que arrasta para si todos os elementos que constituem o

uents of the urban pavement, like a solidi­fied

pavimento urbano como um redemoinho de vento solidificado. A ener-

whirlwind. The city’s energy is humorously

gia da cidade é devolvida com humor à energia cósmica da natureza.

turned back into the cosmic energy of nature.

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O SOM







Two developments in Waltercio’s work have

gathered strength over the years and seem to me to be of particular significance. These are, firstly, his elaboration of the ‘exhibition’ as a composite work, an integrated whole, made from a selection of individual pieces from various dates which each have a meaning as part of the whole. The second is a steady increase in the extent of his outdoor work, its relationships and differences with work conceived for indoors.

To walk through Horizontes, his exhibition

Dois desdobramentos da obra de Waltercio têm se afirmado ao

in the galleries of the Gulbenkian Foundation

longo dos anos e me parecem ter uma significação especial: em pri-

in Lisbon in 2008 – a composite work of this

meiro lugar, sua elaboração da ‘exposição’ como uma obra compos-

kind – was an experience of extraordinary beau-

ta, um todo integrado, constituído por uma seleção de peças individuais de datas variadas, cada uma das quais possui um sentido como parte do todo. O segundo desdobramento é uma constante prolife-

ty. Wit, refinement, elegance – qualities so essential to Waltercio’s sensibility – are not trivial matters when we are given by means of them a new experience of space. One was spiritually

ração de seus trabalhos ao ar livre, e das relações e diferenças entre

lifted the moment one entered the rooms, on

essas obras e aquelas concebidas para interiores.

the one hand by the purity of his abstraction, his

Perambular por Horizontes, sua exposição nas galerias da Fun­

economy, his delicacy of placement, and on the

dação Gulbenkian em Lisboa em 2008 – uma obra composta desse

other by the intensity of material presence, be it

tipo – foi uma experiência de extraordinária beleza. Espírito, refina-

of wood, stone, steel, glass, string or paper. One

mento e elegância – qualidades tão essenciais à sensibilidade de Waltercio – não são assuntos triviais quando nos trazem uma nova

had the impression that the artist was working in sculpture, drawing and painting simultaneously, to take them beyond themselves into

experiência do espaço. Desde o momento em que entramos nas salas,

some sort of unknown, rarefied world where

fomos nos sentindo espiritualmente elevados pela pureza de sua abs-

they are all part of each other.

tração, de sua economia, da delicadeza de sua colocação e, também, pela inten­sidade da presença material da madeira, da pedra, do aço, do vidro, do fio de lã ou do papel. Tinha-se a impressão de que o artista trabalhava simultaneamente a escultura, o desenho e a pintura para levá-los para além de si próprios, até alguma espécie de mundo desconhecido e rarefeito onde cada um deles faz parte dos outros.

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O ESPELHO




Sônia Salzstein fez uma observação notável: toda a obra de

Waltercio tenta tocar o solo, ou encontrar a base, do modo mais leve possível. Por certo isso vale para a instalação da Gulbenkian, a começar pelo conjunto de bolas de pedra e de madeira visivelmente pesadas e correspondentes, e que se valem por uma única vez do mesmo material na Escultura para todos os materiais não transparentes, de 1985. Parecem leves e flutuantes porque a área do ponto em que tocam a base é tão pequena. Essas esferas talvez contrastem com um conjunto de ‘desenhos’ emoldurados: caixas de papel amarelo claro

Sônia Salzstein has made the remarkable

obser­vation that all Waltercio’s work tries to

e branco enfileiradas sobre uma prateleira contra o cartão pautado.

touch the ground, or meet the base, in the light­­­

Quando chegamos ao fim da mostra Waltercio parece estar traba-

est possible way. This was certainly true of the

lhando apenas com os recursos típicos dos espaços museológicos:

Gulbenkian installation, beginning with the

paredes divisórias e um pedestal. Pintou dois grandes retângulos em

group of obviously very heavy balls of stone

azul claro e pequenos pontos pretos em duas paredes opostas e ligadas por fios de lã, e localizou um pedestal vazio descentrado entre as paredes. À medida que nos aproximamos do pedestal, é possível ver

or wood which are paired and use the same material only once, in Escultura para todos os materiais não transparentes (Sculpture for all non-transparent materials), 1985. They seem

sua parte superior pintada de azul claro, ligando imediatamente to-

light and floating because the area of the point

dos os elementos para produzir um espaço encantado ao mesmo

at which they touch the base is so tiny. These

tempo em que proporciona o coup de grâce do ambiente.

spheres may contrast with a set of framed ‘drawings’: pale yellow and white paper boxes lined up on a shelf against a lined sheet. By the time one came to the end of the exhibition gallery Waltercio seemed to be working with just the typical props of an art gallery: dividing walls and a pedestal. He painted a large pale blue rect­angle and a small black dot on each of two facing walls, linked with a thin cord, and placed an empty pedestal off-centre between the walls. As one came up to the pedestal one saw its top was painted a pale blue, instantly linking everything in a charmed space and delivering the coup de grâce of the exhibition.

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O MAR



Os trabalhos para ‘exteriores’ surgiram aos poucos na prática de

Waltercio, na medida em que ele conseguiu reunir a quantia necessária para a produção de suas duas primeiras peças ao ar livre – O formato cego, de 1978-1982, no Uruguai, e Jardim Instantâneo, de 1989, encomendado para um parque nos arredores de São Paulo. Essas duas peças dão início a um diálogo fascinante na sua obra en­tre o interior e o exterior, processo repleto de paradoxos e de inversões. O formato do Jardim Instantâneo se assemelha ao de um tablado, do alto do qual se observam um vale e morros distantes. Waltercio se refere a ele como “um lugar invisível”, que também define “a relação do meu trabalho com a linha do horizonte, a linha que é lugar ne-

nhum”. E, como já dissemos, a maioria de seus trabalhos ao ar livre

oped gradually in Waltercio’s practice, after he

possui orientação horizontal. Embora os materiais e as formas desses trabalhos sejam frequentemente similares àqueles usados para os trabalhos interiores – plataformas, paredes, tubos de aço, pedras

Works in the outdoor environment devel-

was able to command sufficient funds to produced his first two outside pieces, O formato cego (The blind format), 1978-82, in Uruguay, and Jardim Instantâneo (Instant garden), 1989,

na­tu­r ais –, a escala desses elementos é ajustada radicalmente (ain-

commissioned for a park on the outskirts of São

da que de maneira sutil) não para dominar o humano ou a paisa-

Paulo. There then developed a fascinating dia-

gem, mas para intensificar a resposta emocional ao local, ao ar livre.

logue between the indoor and the outdoor in

São dis­p ositivos de inconfundível artifício que se referem à cultura e à construção humana, que possuem o efeito de acentuar a liberdade e a abertura dos espaços exteriores. É possível sentir essa liberdade espacial até mesmo em fotografias da obra in situ. Uma das inserções

his work, a process full of paradox and reversal. Jardim Instantâneo was dais-like in form, overlooking a valley and distant hills. “An invisible place”, Waltercio called it. It also defined “the relationship of my work with the horizon line, the line that is nowhere”. And as we have noted, most of his outside works are horizontally orientated. Although the materials and forms of his outdoor works are often similar to those used for his indoor pieces – platforms, walls, steel tubing, natural stones – the scale of these ele­ments is radically but subtly adjusted not to dominate the human or the landscape but to enhance the emotional response to the place, to the open air. These are devices of unmistak­ able artifice, referencing human culture and construction, which have the effect of accentuating the freedom and openness of the outdoor spaces. This spatial freedom is strongly felt even from photographs of the work in situ. A partic­ ularly bold insertion is of four of his favourite

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‘carafe’ forms of steel tubing on a slightly raised marble platform in a beautiful enclosed valley near Rio de Janeiro. Espelhos Ausentes (Absent mirrors), 2003, answers perfectly to Waltercio’s once-stated desire to make an object “with the maximum presence and the maximum absence”. The carafe shape is rendered as an outline of something that has no outline in reali­ ty, while the steel is reflective, giving a flui­dity to the artificial outline by reflected light. In the tubes condense the blue of the surrounding

particularmente ousadas é a de quatro formas de garrafa feitas de tubos de aço e colocadas sobre uma plataforma de mármore ligei-

landscape and sky and the continuous movement of the nearby river. The vessel is empty precisely so that it can fill itself with the na­ture

ramente graduada em planos num vale belo e escarpado, próximo

around it.

ao Rio de Janeiro. Espelhos Ausentes, de 2003, realiza plenamente

o desejo manifesto do artista de produzir um objeto “com presença

doors, we find that the granite ‘tumbler’ in

máxima e ausência máxima”. A forma de garrafa é expressa como o

O Mar is also simultaneously empty and full.

delineamento de algo que – na realidade – não possui qualquer delineamento, enquanto o aço, refletindo, dá fluidez ao delineamento arti­ficial através da luz. Os tubos condensam o azul do céu e os diver-

Changing the material, and coming in-

On one hand it is apparently a marker of the ‘real’ amid the abstractions of the piece, but, contrarily, it is absorbed into the dark logic of the granite. In other works the same role is

sos elementos da paisagem ao redor. O receptáculo está vazio, jus-

played by a very real-looking apple, which is ac-

tamente para que possa ser preenchido pela natureza circundante.

tually a fake. Indoors, in the gallery, the refer-

Mudando o material e voltando aos objetos de interiores, ve-

ence to the outdoors is paradoxically carried by

mos que o copo de granito de O Mar também está – ao mesmo tem-

the works on paper which are on show upstairs.

po – vazio e cheio. Em certo sentido aparenta ser um marcador do

Here, only a tiny residue of darkness remains in

real entre as abstrações da peça, mas também é absorvido pela lógica escura do granito. Em outras obras o mesmo papel é desempe-

the shadows of pins and strings (I struggled to decide if these shadows were ‘real’ or ‘drawn’). All is light, and paper can be taken as air…

nhado por uma maçã de aparência bastante realista que, na verdade, é artificial. Paradoxalmente, dentro da galeria a referência ao exterior é endossada pelos trabalhos sobre papel em exposição no andar de cima. Neles, apenas um pequeno resquício de escuridão permanece na sombra de alfinetes e fios (lutei para decidir se aquelas sombras e­r am ‘verdadeiras’ ou ‘desenhadas’). Tudo é luz, e o papel pode ser percebido como ar…

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É interessante continuar especulando sobre as mudanças que

vêm ocorrendo gradualmente na obra de Waltercio desde a década de 1970. Naquela época ele se dedicava a pequenas alterações de objetos banais (ainda que já carregados de significado cultural) – uma aspiração consciente, como um conceito. O objeto de arte podia fingir ser outra coisa, pretexto para um humor duchampiano e uma das marcas do conceitualismo. Existem muitos atos de disfarce semelhantes: um livro de artista curiosamente denominado de Manual da ciência popular, de 1982; um minúsculo Partenon branco – objeto saturado de memória cultural – inclinado e apoiado sobre uma quina; cartões colados e suspensos, que lembram vagamente o Ready Made

de Duchamp de um livro de geometria apoiado sobre uma sacada e

chan­ges which have gradually come about in

exposto aos elementos. O de Waltercio intitula-se Objeto de arte sobressalente, com a legenda: “Objeto concebido especialmente para esta finalidade. Em tempo: todo objeto é sobressalente”. E por aí vai.

It is interesting to speculate further on

Waltercio’s body of work since the 1970s. In those days he liked to proceed by slightly altering commonplace objects already loaded with cultural meaning. It was a self-conscious pre­tence, like a conceit. The art object could pretend to be something else, a pretext for Duchampian humour, and a hallmark of conceptualism. There are many of these sleights of hand: an artist’s monograph in the guise of a Manual of popular science (Manual da ciência popular), 1982; a tiny white Parthenon – an object saturated with cultural memory – tipped up and standing on its corner; a suspended card, vaguely reminiscent of Duchamp’s Ready Made of a geometry textbook hung from his balcony and exposed to the elements. Waltercio’s is titled Objeto de arte sobressalente (Spare art object), and captioned: “Um objeto concebido especialmente para esta finalidade. Em tempo: todo objeto é sobressalente”. (An object conceived especially for this end. In time: every ob­­ject is spare). And so on.

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Os objetos de Waltercio são sempre surpreendentes e, por ve­

zes, de uma simplicidade devastadora, como o Prato comum com elásticos, de 1978. Até mesmo em fotografia esse objeto mantém uma indescritível sensação de espaço. Embora haja um elemento de sátira social nessa e em outras obras do período, Waltercio parece estar tentando alcançar uma grande amplitude natural através do espaço (no seu sentido cosmológico), e é isso que tem se desenvolvido com tanta grandeza em sua obra madura e mais recente. Ela ainda possui o humor das concepções originais – algo sob o disfarce de

Waltercio’s objects are always surprising

and sometimes of devastating simplicity, like

outra coisa – e talvez se valha de experiências ainda mais antigas. O

Prato comum com elásticos (Ordinary plate with

artista já descreveu a força da natureza no Rio de sua infância, e, ao

rubber bands), 1978. This object, even the pho-

contemplarmos a Série Negra na nova galeria de Raquel Arnaud, ele

tograph of it, imparts an indescribable feeling

recordou uma experiência vivida em algum momento da déca­da de

of space. Although there is an element of so-

1960. Ele havia ido até algum lugar remoto (a umas doze horas de automóvel do Rio de Janeiro) para contemplar o céu noturno. Deitado de costas sobre o solo, sentiu-se como que alçado pelo conjunto infi-

cial satire in this and other works of the period, Waltercio seems to be reaching for the great expanse of nature, for space in the cosmological sense, and it is this which has developed so

nito de estrelas, como se o céu pesasse mais do que a terra. Teve de se

greatly in his later and recent work. It still has

agarrar à grama para impedir a sensação de estar sendo esmaga­­do

the humour of the original conceit – something

por essa revelação de uma nova visão de mundo.

in the guise of something else – and perhaps draws on even earlier experiences. He has described how very present nature was in the Rio of his childhood, and as we stood in Raquel Arnaud’s new gallery looking at the Black Series, he recalled an experience he’d had in the 1960s. He had gone to a remote place some twelve hours drive from Rio de Janeiro to look at the night sky. As he lay on his back on the ground he felt that the panoply of stars was lifting him up and that the sky was heavier than the earth. He had to cling to the grass to save himself from being overwhelmed by this revelation of a new world view.

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“There is a room that they daubed with milk.” Georg Trakl


L E G E N DAS

CAPT IONS

págs. 11, 13, 14-15, 17

pages 11, 13, 14-15, 17

A Paisagem, 2005.

A Paisagem, 2005.

Granito, aço inoxidável e fio de lã.

Granite, stainless steel and wool yarn.

págs. 18-19

pages 18-19

Vista da exposição.

Exhibition view.

págs. 21, 22, 24, 25

pages 21, 22, 24, 25

A Máquina, 2005.

A Máquina, 2005.

Granito, aço inoxidável e fios de lã.

Granite, stainless steel and wool yarns.

págs. 27, 28-29, 30, 31, 33

pages 27, 28-29, 30, 31, 33

O Som, 2005.

O Som, 2005.

Granito, aço inoxidável pintado e fios de lã.

Granite, painted stainless steel

págs. 35, 36, 38-39, 41

and wool yarns.

O Espelho, 2005.

pages 35, 36, 38-39, 41

Granito, aço inoxidável e fios de lã.

O Espelho, 2005.

págs. 42–43 Vista da exposição. págs. 45, 47, 48, 51, 52-53, 54-55, 56-57

Granite, stainless steel and wool yarns. pages 42–43 Exhibition view.

O Mar, 2005.

pages 45, 47, 48, 51, 52-53, 54-55, 56-57

Granito, aço inoxidável, vidro, acrílico

O Mar, 2005.

e fio de algodão.

Granite, stainless steel, glass, acrylic and cotton yarn.


F I C H A T É C NI CA

PRODUC T ION C R E DITS

agradecimento

acknowledgement

Andréa e José Olympio Pereira

Andréa e José Olympio Pereira

texto

text

Guy Brett

Guy Brett

fotografia

photography

Romulo Fialdini

Romulo Fialdini

versão para o português

portuguese version

Steve Berg

Steve Berg

revisão

proofreading

Armando Olivetti

Armando Olivetti

projeto e produção gráfica

graphic design and print production

Danowski Design

Danowski Design

Fernanda Groetaers

Fernanda Groetaers

Gabriel Netto

Gabriel Netto

Sula Danowski

Sula Danowski

pré-impressão

prepress

Danowski Design (tratamento de imagem)

Danowski Design (image treatment)

IPSIS Gráfica e Editora (provas digitais)

IPSIS Gráfica e Editora (digital proof)

impressão e acabamento

printing and finishing

IPSIS Gráfica e Editora

IPSIS Gráfica e Editora


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