Sonho de um Menino - Trajetória, Memórias e Pensamentos de Antonio Malan Freitas Freire

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Autor: Antonio Malan Freitas Freire

Consultoria textual: Luiz Augusto Paixão da Silva

Revisão literária: Larissa Azevedo do Nascimento

Capa e ilustração: Yuri Barros

Projeto gráfico e diagramação: Daniela Botelho

Revisão: Ana Luiza Lopes de Freitas Freire

Marina Lopes de Freitas Freire

Zélia Lopes de Freitas Freire

Impressão e acabamento: Gráfica Aquarela

CIP - BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

F866 FREIRE, Antonio Malan Freitas.

Sonho de Menino / Antonio Malan: Belém, 2021

168 p.: il. ; 16x23cm.

1. Biografia. 2. Biografia 3. Freitas, Antonio Malan Freitas. I. Título.

Copyright © 2021 por Antonio Malan Freitas Freire

Capítulo 1 Primeiros passos no Sertão... 17

Capítulo 2 Eu saí do Sertão, mas o Sertão não saiu de mim. 39

Capítulo 3 Não era mais um desertão, era uma selva de cimento. 71

Capítulo 4 No Pará, meu trabalho duro, garantiu-me realização! 93

Capítulo 5 A minha família é a maior riqueza e o meu melhor patrimônio!

Capítulo 6 Seguir sempre em frente, trabalhar duro e acreditar obstinadamente nos nossos sonhos para realizarmos os nossos objetivos.

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Agradecimentos

Agradeço a Deus por todas as oportunidades a mim destinadas. Sou um homem muito abençoado, não tenho dúvidas. Agradeço aos meus queridos pais, por todos os ensinamentos e lições de vida, por me moldarem e participarem da minha construção. Aos meus irmãos, pela parceria e torcida, por estarem ao meu lado. Agradeço imensamente a minha esposa Zélia, pelo companheirismo e cuidado com a nossa família. Aos meus filhos e minhas filhas, pelo apoio incondicional ao longo da minha vida. Finalmente, e mais uma vez, imensamente grato a minha amada Zélia, aos meus tesouros Ana Luiza e Marina, pela ajuda e apoio na elaboração desse projeto, sem vocês isso não seria possível. Minha eterna gratidão!

Dedicatória

Dedico este livro à memória da minha mãe Orminda e do meu pai João Freire de Sá, aos meus filhos, netos, amigos, à minha família sertaneja e em especial, ao meu amigo de caminhada, compadre e camarada Paulo Rocha, cujo apoio e amizade eu valorizo imensamente.

“Sem as rochas das praias, as ondas não seriam tão belas e fortes. Assim também funciona a nossa vida.”

Johnny De’ Carli

Tudo começou com um sonho de menino. Antonio Malan, desde pequeno, sonhava em ser comerciante, em crescer e vencer na vida, como se diz no sertão profundo. Ele lutou muito e fez da própria trajetória, a sua inspiração permanente, o alimento, o combustível seguro para conquistar e realizar, após muito sofrimento, solidão e resistência, o seu triunfo improvável, sua vitória sobre as adversidades, sua persistente superação extraordinária. Nada foi fácil, nada caiu do céu, nada chegou de mão beijada. Sua intrigante e magnífica jornada é marcada fundamentalmente pelo amor ao trabalho, muitas vezes como condição de sobrevivência, outras vezes como ponte para vencer o desespero. Os desafios e vendavais foram impiedosos, os debacles solaparam seus ombros sem pedir licença, mas ele não se deixou vencer, não desistiu, não recuou um passo para contornar os perrengues.

Sua luta e coragem foram testadas pela vida desde pequenininho, em centenas de caminhadas à luz do sol braseador, nas inúmeras andanças pelas veredas do sertão, acostumando-se aos imperativos das dificuldades lapidadoras do seu caráter austero e ao mesmo tempo solidário.

Antonio Malan não deixou os reveses e todas as forças contrárias à realização de seu sonho o tornarem uma figura amargurada e ressentida, pelo contrário, quanto mais avançava para firmar suas conquistas, mais o seu coração crescia generoso. Sempre procurou viver pela difícil porta estreita da vida, pelo caminho certo, sem jamais ceder às fugas dos vícios, e muito menos pela covardia de responsabilizar as complexas circunstâncias da sua laboriosa existência, como desculpa para não seguir em frente.

O grande ser humano que emerge das memórias vivas deste livro é uma rocha, de admiráveis virtudes e alguns defeitos, porque ele mesmo os afirma, demonstrando sua humildade, sua humanidade e sua sabedoria. Afinal, o que se lê nas páginas dessa fenomenal autobiografia são memórias comoventes de um herói sertanejo de carne e osso, cuja alma é mais forte que o corpo e cuja perseverança é mais forte que as dúvidas. A narrativa do livro é envolvente e agradável, verossímil e simples: “Muitas vezes sem ninguém por perto, a pedra do poço foi minha grande parceira; cansado, esgotado, estafado, deitava na pedra e algumas vezes dormia, buscando retomar as energias para prosseguir no trabalho. Pela minha mente passavam muitas reflexões e muitas delas me acompanharam pelos anos seguintes, quando a vida foi me ensinando que até mesmo as pedras, nos ajudam nos momentos extremos.”

Outro aspecto essencial e basilar na autobiografia de Antonio Malan é sua duradoura e imorredoura fé em Deus e em Nossa Senhora Aparecida do Norte, legado de sua incrível mãe Orminda, Antonio é tão devoto de Nossa Senhora, que o nome do seu primeiro comércio em Icoaraci, foi Nossa Senhora Aparecida do Norte, marcando seu magnetismo cheio de convicção no auxílio divino e demonstrando, pelo exemplo de sua própria vida, que o bom destino anda irmanado com os que têm muita fé. Seu infindável talento pragmático foi alicerçado e desenvolvido no decorrer de sua longeva e experiente trajetória, em várias profissões... Foi vaqueiro, motorista, vendedor, operário, taxista, taberneiro, estocador, entregador e empresário. Quando ele deixou o sertão pernambucano aos vinte e um anos de idade, tornando-se mais um retirante a tentar a sorte na grande São Paulo, ele já havia tentado de tudo para se firmar em Cabrobó, sua cidade natal, mas as oportunidades eram nulas no labirinto pobre da caatinga. E apesar dos fracassos naturais, ele criou dentro de si mesmo uma força indômita: “A verdade é que eu não tinha escolha... – Ou mantinha a minha firmeza de espírito em lutar pelos meus sonhos ou o medo de superar as condições adversas da vida tornariam-me alguém que viveu à sombra de si mesmo e não foi além da sua limitante cerca.”

Vencendo as condições mais adversas, agravada pela separação da sua família nordestina, sua raiz primordial, enfrentou primeiro os longos e garoantes três anos em São Paulo, onde sentiu muita saudade, solidão e naturais oscilações em sua adaptação fora do ninho. Depois, não logrando seu intento, partiu para buscar a sorte grande na Zona Franca de Manaus, mas o destino o tornou um predestinado ao sucesso em Belém do Pará, ainda que submetido e

se submetendo ao enfrentamento das maiores pelejas, trabalhando e seguindo em frente sempre. Suportou momentos muito dolorosos, muitas vezes isolado, muitas vezes ferido pelas grandes restrições afetivas: “O que você faz? Como agir quando as tempestades são realmente assustadoras? Como agir quando os muros parecem maiores de serem ultrapassados? – Essas reflexões inundaram minha cabeça, encheram meu mundo emocional de pensamentos e inquirições. Uma coisa eu sabia... jamais desistiria, poderia sempre mudar de rumo e de rota, mudar de estratégia, mudar de lugar, mas desistir nunca foi do meu comportamento. Eu me esforçava em lembrar, naquele turbilhão, que a vida dá e a vida tira, justamente para vermos o que nós nos tornamos com o que nos acontece; se gente covarde ou gente corajosa e, como na minha vida inteira eu sempre decidi seguir em frente, apesar de tudo, foi o que resolvi fazer.”

Sonho de Menino - Trajetória, Memória e Pensamento de Antonio Malan Freitas Freire, é uma história formidável, rica em superações e conquistas justas, de um homem, um nordestino, um empresário e um pai de família extraordinário. Um ser humano que forjou sua própria vida na força do braço, da fé, do trabalho e da luta, amplificando sua voz vibrante para oportunizar serviço, renda, esperança e vontade de sonhar para milhares de outras pessoas, ao longo dos seus quase setenta anos de existência. Sua dedicação, sua disciplina dia a dia, sua força, sua dignidade, sua liberdade interior, sua estratégia para vencer, trabalhando sempre a longo prazo, sua paciência, sua benignidade, sua experiência, sua parcimônia, sua madureza, sua inflexibilidade em relação aos seus princípios, seu estilo de liderar, sua coragem em assumir riscos, seu brilho natural, sua fidelidade aos seus sonhos e sua sabedoria são os seus maiores e melhores produtos.

O Antonio, por tudo o que é, conquistou o meu coração e a minha alma, felicitando-me eternamente, com as duas maiores riquezas que conquistamos juntos, as nossas filhas Ana Luiza e Marina. E ele, mais uma vez, foi além, presenteando a todos nós com esse livro comovente, emocionante e verdadeiro.

Zélia Freitas, Belém do Pará, outubro de 2021.

Primeiros passos no Sertão...

É“O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” (Euclides da Cunha, em Os Sertões)

preciso desde cedo carregar a chama de lutar para vencer os desafios da vida, os obstáculos naturais, as forças contrárias das inúmeras contradições da sociedade e mesmo, quando se amadurece muito pequeno, superar a extrema pobreza do seu nascimento em um lugar rico de força, de gente, de sonhos, mas muito pobre de oportunidades.

A região de onde eu vim tem praticamente em todo o seu solo, a predominância da Caatinga. Sua vegetação se adapta às condições ecológicas extremas, preservando-se durante o período de estiagem e voltando a ficar vigorosa no primeiro sinal de chuva. Um grande indício da natureza para o sertanejo aprender a ser resiliente em toda a sua vida. A Caatinga possui – ao contrário do que muitas pessoas imaginam -, um rico patrimônio biológico, com um verde magnífico e uma delicadeza própria.

A propriedade da minha família era um lugar repleto da alma sertaneja, bem cedo pela manhã o brilho do sol quente e o galo despertador colocavam todos nós para fora da rede. Muito cascalho, água pouca, quase nenhuma chuva, um “desertão minúsculo” e inúmeras magras e famintas cabeças de gado. A noite chegava com um luar prateado e cheio de mitos, de causos, de mistérios. Bem longe das cidades urbanas, o Sertão sempre reservou cenários bonitos, ainda que superlativamente austeros, aliviando a solidão sentida por todos nós mediante àqueles horizontes infindos, mesmo quando estávamos juntos, ao sabor do clima interiorano.

Pobreza tinha muita, mas não éramos miseráveis. Nossa casa era de alvenaria, sem reboco, com seis cômodos, e o piso era de terra. Sem cimento e mais nada que não fosse o próprio chão. Não tínhamos água encanada e muito menos banheiro, nosso casebre ficava no meio do mato, naquele ritmo e estilo de aspecto roceiro e a uns 500 metros de casa tinha uma cacimba que servia para nós garantirmos o uso da água. As mulheres eram responsáveis pelo rito de buscar a água usando latas na cabeça, mas tudo isso só funcionava quando chovia.

Na seca braba, no verão tenebroso, na estiagem prolongada, ficávamos sem água perto de casa. Então, quem salvava todos nós da sede era o magnífico rio São Francisco. O Velho Chico ficava a 9 km de onde morávamos e guarnecia nosso lar com o líquido precioso. Meu pai colocava as ancoretas – uma espécie de pequenos barris achatados usados especialmente para transportar água-, em cima do jumento e saíamos no rumo do rio sagrado. Eu com apenas 8 anos de idade, fazia o percurso solitariamente vencendo as veredas para trazer água para minha família e leite para o meu irmão Didi. Certa vez, nessas andanças, deparei-me com um tamanduá; surpreendido com a situação, tive medo achando que ele queria me atacar. Porque ele sentou, abriu os braços mostrando suas garras na minha direção e eu imediatamente, percebendo o modo dele proceder, astutamente pulei do jumento e saí conduzindo o jegue por meio da Caatinga para me livrar do inesperado perigo. A viagem me trazia surpresas, apertos, tribulações. Mas eu as vencia e voltava varando os espinhos e garranchos do caminho.

Era uma jornada de muita dificuldade no lombo do jumento, embaixo de um sol escaldante e de um desconforto proeminente. Já era, portanto, um grande teste de paciência e perseverança para o meu ser. Apesar dessa natureza de extrema adversidade para uma criança de apenas 8 anos, não era somente um privilégio meu passar por tudo isso. Muitos filhos do sertão não tinham outra alternativa, a não ser enfrentar o clima, os desafios e recolher a água no São Francisco. Com os anos se passando e o amadurecimento vertiginoso chegando pela escabrosidade da vida, eu aprendi ser o infortúnio professor de muita coisa. No exato momento em que passei a me entender por gente. Eu decidi dentro de mim, que eu queria era ser padre. Não sei explicar o real motivo dessa vontade, não sei afirmar se foi admiração pela vida levada pelo padre da nossa região. Mas foi meu avô Antônio, todavia, o responsável pela minha desistência mirim de ser um sacerdote Católico. Ele começou a me pôr muito medo quando afirmava: “todo padre tem que ser castrado e você também será castrado.” Mesmo sob os protestos de minha tia Odete que corrigia bastante com meu avô, por ele ficar falando isso aos meus ouvidos, fui tirando essa ideia da minha cabeça e depois acabei perdendo o interesse.

Desde pequenininho, sempre observador, admirava o rosto das pessoas próximas a mim, porque falavam comigo de um jeito diferente. Mostravam suas feições e sem explicitar os motivos pelos quais, suas constantes preocupações estavam marcadas ali, nas curvas das suas faces, eu conseguia perceber o que estavam expressando. Rugas da lavoura, marcas do trabalho, dobras de alegrias, cenho cerrado, expressões que me diziam o quanto eu teria que ser forte para vencer na vida. A influência do Sertão contribuiu muito para a minha formação, sempre um mormaço permanente, um sol ardente e na visceral seca, os esqueletos das árvores criavam um cenário no qual eu me fazia menino, depois “moleque” e mais à frente, um jovem ao mesmo tempo viril, amigo do trabalho, muito danado e pelas imensas dificuldades, um tanto descontente com tudo aquilo. Afinal, qualquer raivinha que me faziam, eu dizia logo: – Quando eu crescer, vou-me embora desse lugar!

“A minha rotina de trabalho árduo nas veredas sertanejas, proporcionavam-me momentos emblemáticos e – para uma criança espichada, educada na coragem, dar de frente com um tamanduá era sempre um instante exigente de habilidade e destreza para desviar de sua natural investida.”

A secura e a aridez da região onde dei os primeiros passos na minha existência comunicavam-me muitas coisas... Às vezes, eu olhava para o horizonte e percebia mil nadas, outras vezes parava meu olhar em um açude e conseguia sentir alegria e me conectar com tudo ao redor.

Minha infância rural foi de muito suor, o meu tempo seguiu o ambiente dos meus pais... O tempo era usado sempre para o trabalho em sobreviver. E toda aquela conjuntura me legou doces e amargas memórias. O brilho natural dessas lembranças me seguiu até hoje, e tais recordações me ajudaram a perceber que a intensa aflição das dificuldades, e algumas vezes da desdita, ensinam salutares experiências.

Até onde me lembro, as condições adversas encharcaram minha existência de ansiedade. Secas frequentes, folhas ausentes pela longa falta de chuvas, intenso calor pela alta temperatura, o sertão ao meu tempo era vasto e cheio de incertezas. O sol parecia querer morar dentro de casa e, naquele ambiente, eu ia descobrindo no desenrolar da minha infância ativa e laboriosa, não ter tempo para outra atividade, a não ser cumprir a rude jornada naquela terra exausta, ainda que sempre generosa, de garantir o pão de cada dia.

O fato é que a vida no roçado impôs uma dureza permanente, uma escola campestre para provar ser todas as conquistas bem difíceis. Mas também decretou em minha vida uma determinação em seguir em frente, permeada de uma esperança baseada na realidade e num aprendizado verdadeiro: – nada cai do céu, tudo é esforço, tudo é luta, regado a uma boa pitada de fé.

A longa seca nas paragens sertanistas põe nossa alma à prova de muita coisa, muito tempo sem viço, sem verde, com imensas léguas de areia torrada pelo rei solar. E somente os postes de juazeiro para acalmar o terrível calor. De alguma forma, todo esse contexto de desafios foi moldando o meu jeito de ser, como não sobrava muita provisão em casa, eu tinha quer ser econômico com o que tinha em minhas mãos. E como em muitas ocasiões a seca era avassaladora, eu tinha que me tornar previdente.

O juazeiro, joá, laranjeira-de-vaqueiro, juá-fruta, juá e juá-espinho, é uma árvore típica do semiárido brasileiro. Espécie abundante da Caatinga e atrai pela sombra generosa. Tão importante para o Sertão e o nordeste do Brasil que deu nome a duas cidades famosas do país. Juazeiro do Norte, no Ceará, e Juazeiro, na Bahia.

No meu espaço de vida infantil, o juazeiro fornecia bondosamente uma rica sombra para aliviar o intenso calor do viajante, do vaqueiro, do povo sertanejo e mesmo dos animais. Seu fruto de cor amarelada, com polpa bastante encorpada e cascas finas é muito conhecido como juá. O fruto do juazeiro é comestível e recheado ao mesmo tempo, pelo seu sabor doce e ácido e é possível encontrá-lo às margens do Rio São Francisco.

É um poste robusto e resiliente, porque pode medir até 10 metros de altura, apresenta raízes profundas que auxiliam na captura de água do subsolo, fazendo com que tenham a capacidade de estar sempre com as folhas verdes.

O juazeiro colabora também na alimentação dos bodes, do gado no período da seca e supera com maestria os longos períodos de falta de chuva.

Por muito tempo eu me perguntava... “Para que local ia a água? Por que as gotas de orvalho sumiam? O rico riacho de maré desaparecia e por onde se escondia? O açude já não tinha a sua vida e o que era morno ficava sob o reinado da brasa do sol. Uma atmosfera rigorosa, incandescente e galopantemente adversa.”

Meu universo, portanto, até deixar o sertão pernambucano, era uma civilização rural rica de um mundo vaqueiro, com os gibões fazendo moda, o embornal sagrado, na vida de gado marcada como uma profissão. Com novenas, chapéus, sanfonas, violas, missa, a lida constante com os bois, o serviço na agricultura familiar, sempre um trabalho de campo para fazer, a relação com os vaqueiros embutida no espetáculo das realizações das necessidades de cada dia e meu jeito travesso de encarar todo aquele clima da vida sertanista.

Nasci no Sertão pernambucano em 1951, no interior da cidade de Cabrobó, município distante 531 km da bela capital Recife, graças ao encontro afetuoso tradicional dos meus pais nas andanças que faziam pelo chão de terra batida e pelo impulso do destino em unir casais solapados pelo regime climático da seca, ligados por um sentimento semiárido, caracterizado pela busca incessante da sobrevivência, do trabalho e da dignidade. Meus pais se conheceram em uma cidade chamada Orocó, se encontraram pela primeira vez na festa de São Sebastião na quermesse do lugar e desse encontro vieram as gerações da nossa família.

Fui criado por meus pais juntamente com meus irmãos na zona rural, em uma casa simples; e lá, ao meu tempo de criança, não tinha energia elétrica, não sabia o que era geladeira, televisão, não tínhamos nem o radinho de pilha. Matava a sede com água de pote e minha primeira professora foi a minha mãe. Nosso lar era iluminado por uma lamparina que nós chamávamos de candeeiro, não havia vela disponível, somente a chama do velho quebra-luz, a tão importante luminária interiorana das nossas antigas noites tristes, naquele breu circundante.

A labareda no pavio tremulava em uma cor amarelada produzindo dentro do nosso casebre, um pouco de alívio para mitigar a grossa escuridão do clima noturno. Ao convite das noites enluaradas, sentávamos para jogar conversa fora consumindo com causos uma parte do véu da noite.

Meus irmãos e irmãs compuseram os ninhos de afetividade naturais do meu mundo sertanejo. Com eles tive “momentos gloriosos” naquele tempo infantil. Maria das Graças – chamada carinhosamente de Daça –; a Ninha ou Maria do Carmo; a Maria Auxiliadora ou Dora; a Maria da Paz também conhecida como Menzin; o Didi ou José Edílio; o Pedro Francisco ou também Pepê; a Maria do Socorro ou Corrinha me ajudaram a suportar e conviver numa imensidão de acontecimentos duros, cascudos e algumas vezes complexos.

Perto deles eu vivi também uma vida suprema, muita traquinagem, muita solidão compartilhada, muita alegria em meio ao clima hostil... Minha irmã

mais velha, Daça, relatou-me que em 1952 todos nós fomos passar o período da moagem da cana-de-açúcar, realizada por um engenho de madeira puxado por bois, numa canga para processar o melaço e a rapadura na propriedade Ponta da Ilha, às margens do Rio São Francisco.

Lá havia um senhor cujo nome era Dudu, trabalhador de moagem e sempre presente no local, no qual estávamos. Daça, muito pequena, acabou se apegando ao senhor Dudu e ele também a ela. Em virtude disso, Daça começou a me chamar de Dú e esse apelido acabou pegando, permanecendo até os dias atuais. Muitos não me conhecem pelo meu nome de batismo, Antonio Malan, somente por Du ou Du de Orminda, por causa de minha mãe ou mesmo por Du de João de Toinho de Josa por causa de meu pai e de meu avô e bisavô.

Daça me contou ainda que eu tinha apenas 3 anos de idade e aprontei uma traquinice dentro da nossa casa que quase me levou à morte. Havia uma mesa grande de madeira com duas gavetas e meu pai à época, comprava veneno para rato e guardava em uma dessas gavetas. Num certo dia, segundo ela, eu dei um jeito de abrir uma dessas gavetas, peguei o papel que embrulhava o veneno e fiz um cigarro – enrolando como de fumo –, fumando o embrulho em seguida.

Então, foi um Deus nos acuda... Imediatamente comecei a arquejar, vomitando absurdamente e exaustivamente, além de obrar, como dizem no Nordeste. Fiquei desfalecido e consumido por intenso suor; naquela aflição medonha, minha mãe Orminda me tomou em seus braços e passou a cuidar de mim, usando sua sabedoria medicamentosa e seu carinho salvador. Depois de um tempo, no qual mãe Orminda não se permitiu arredar o pé de perto de mim, fiquei curado dessa travessura. Posso dizer, portanto, com muita gratidão em meus pensamentos que ela salvou a minha vida conjuntamente com auxílio do Pai do Céu e vivi aí o meu primeiro milagre.

Meus irmãos dizem que eu era muito danado e nesse aspecto eu não tenho como me defender, porque realmente foi recorrente ocorrer situações de muita traquinice. Relembro, por exemplo, que minha mãe Orminda guardava um pote de água no quarto da despensa para que a água do pote ficasse mais fria servindo para beber na casa do sítio, já que o mesmo era um local onde passavam e paravam viajantes e estes bebiam água nas ocasiões oportunas.

Um certo dia, entretanto, fazendo algazarra dentro de casa e brigando aos tapas com minha irmã Maria das Graças, acabei derrubando e quebrando o pote com água que foi ao chão e se espatifou. Foi água para todo lado da casa e um desespero imenso se apoderou de mim, senti um medo intenso da provável pisa que levaria e uma vergonha tenebrosa, porque nesse dia chegou um primo nosso em casa. O mais interessante era que mãe Orminda para amedrontar todos nós, ficava dizendo que nós teríamos que pagar pelo pote.

Minha outra irmã Maria do Carmo que chamamos com afeto de Ninha, narrou-me certa vez, que quando eu tinha 6 anos de idade, exatamente no momento no qual nossa mãe começava a arrumar nossas redes para nós dormirmos, eu não aceitava nem por decreto que os punhos da minha rede

ficassem embaixo dos punhos da rede dela ou de qualquer outro irmão. Ela me disse ainda, que no ato dessa traquinagem, eu fazia um escândalo e não me aquietava até conseguir pôr os punhos da minha rede sobre os punhos da rede dela, posto que eu não aceitava ficar por baixo de maneira nenhuma e tinha que ficar do jeito que eu queria.

Eu tinha um certo aborrecimento entranhado em mim que me deixava um tanto implicante, não gostava que me triscassem, fosse quem fosse. Quando isso ocorria, mesmo sendo sem querer da parte de quem me encostasse, eu revidava. Com o desenrolar das circunstâncias, fui superando essa irritação inexplicável.

A vida no Sertão sempre foi muito difícil, complexa e extrema, por conseguinte, trabalhava muito e por mais que fosse pouco o provimento, jamais faltou comida dentro de casa. E quando me sentia muito contrariado ou passava uma raivinha maior, continuamente falava que quando crescesse, iria embora daquele lugar.

Gostava de implicar com minha irmã Maria do Carmo, naquela coisa da vivência natural de irmão para irmã e de irmã para irmão. Não era somente uma ligação de sangue, têm muito mais emoções envolvidas nas relações entre irmãos. Um dia fomos juntos passear para o rumo da Pedra Grande, e Maria do Carmo estava montada numa cangalha sobre o jumento Sasarica, disposta na garupa junto comigo. Fui implicando, zombando, provocando, debochando, mexendo, amolando, importunando, troçando, embirrando, cismando e batendo nela, porque eu fingia que estava batendo no jeguinho Sasarica, mas, a verdade, era que eu estava batendo nela. Chegou um momento que minha irmã começou a chorar desesperadamente, porque não suportava mais a tribulação. Nosso pai viu o conflito e disparou cavalgando sobre seu cavalo Castanho para me bater... Eu pulei da garupa do jegue Sasarica, caí na carreira dando pinote pela Caatinga e nosso pai prosseguiu em disparada atrás de mim, galopando alucinadamente. Só não peguei uma pisa daquelas bem dadas, porque nossa mãe começou a ralhar com meu pai para ele me deixar em paz. Com tal intervenção de minha mãe, meu pai desistiu de me chicotear. Também era muito teimoso, posso até afirmar ser essa teimosia de infância a base da profunda energia perseverante existente no meu ser interior. Fui aplainando ao longo da minha vida, essa energia de não desistir, criando uma capacidade de longa data em querer as coisas sempre do meu jeito. Óbvio que esse comportamento arteiro de agir desagradava os meus irmãos. Nós até brigávamos, mas era como se diz – briga de irmãos que se gostam muito, visto que não demorava nada e todos nós já estávamos unidos para outra travessura. E não é necessário afirmar que naquela época me faltavam argumentos para explicar melhor o meu estilo de temperamento. Minha irmã Ninha me relembrou que se ela ou algum outro irmão meu, estivesse, por exemplo, sentado no terreiro próximo à porta de casa e eu quisesse passar para entrar, iria pelo lado direito, mesmo havendo um grande espaço para passar pela esquerda. Eu fazia de tudo até conseguir passar pela direita, fazendo ela ou os demais irmãos se levantarem para eu atravessar.

Ninha me explanou ainda um acontecimento que não recordava mais, fato que me fez pesar o coração. Contou-me que nosso pai havia comprado um pequeno revólver de brinquedo lá para as bandas de Minas Gerais. Certo dia eu briguei com ela por um motivo bobo, e ela ficou bem azeda comigo. Passou um tempo e Ninha conseguiu pegar o brinquedo do lugar onde ele estava guardado e pôs em cima de um toco na estrada da cacimba só para me afrontar. Fiquei furioso e fui até minha irmã para tirar satisfação. Ninha estava no riacho tomando banho e quando a vi comecei a gritar indo ao encontro dela, entrei na água da ribeira e começamos a brigar. Acabei dando uns tapas nela para mostrar uma autoridade que na ocasião, eu não tinha! Me custa muito contar esse episódio, porque realmente eu sempre tive muito afeto por meus irmãos, mas mesmo assim, cometi esse erro, e da altura na qual me encontro, só posso confessar meu arrependimento deste acontecido.

O trabalho paciente do tempo me fez aprender que a história se repete mesmo no Sertão, você precisa ter o olhar em dois mundos ao mesmo tempo. Uma visão no tempo que você vive e o outra no tempo que você quer viver, sabendo que isso não deve embargar o costume das coisas do jeito que estão na sua realidade presente. É necessário, portanto, fazer amizade com o futuro, sem se deixar tomar por conta dele. É sempre vital caminhar; é sempre fundamental seguir em frente, e se cair, levantar sacudindo a poeira, avançando sempre adiante. Ainda mais se as condições da sua vida forem realmente difíceis, trabalhando intensamente no pesado desde criança, se expondo as mais diversas responsabilidades, muitas restrições, grandes aventuras mesmo tendo pouca idade. Uma lida na roça marcada por uma série de processos de muita disciplina e traquejo para realizar o duro trabalho do dia a dia.

Prematuramente eu tive que fazer amizade com a enxada, essa ferramenta agrícola me fez mais companhia do que as pessoas da própria roça que eu laborava. Quantas vezes eu levantei vaca magra nas costas, quantas vezes tive que lidar com a foice, quantas vezes o desconforto corporal na seca sempre presente, minguava meu ânimo, quantas vezes eu queria era estudar, mas não dava...!?

O trabalho extremo me causava alegria porque preenchia meu tempo, no entanto, algumas vezes, angustiava-me. O mais interessante era que eu não tinha tempo nem para sofrer muito, pois o trabalho não esperava.

Corri muito como vaqueiro nas caatingas do sertão atrás de gado, na luta prática e resignada para assegurar o sustento. A vida do vaqueiro era para mim e é ainda para os que são, um combate com pequenas tréguas, uma dura existência que mais parecia e parece uma provação. Sob o calor muitas vezes infernal causado pelo sol, meu inconsciente perguntava se o sol estava com raiva de mim.

Ser vaqueiro no interior de Pernambuco fazia parte da realidade de muita gente, como também fez parte da minha realidade. A quentura, a aridez, as centenas camadas de espinhos, o desafio e a rotina, forjaram minhas mãos habilidosas no jeito com o laço. Convertia, portanto, muito suor no ganha pão de

casa, e queiram ou não queiram aceitar, é possível formar o caráter com a vida de vaqueiro pelo muito que se é pedido de um homem naquele Sertão de Deus.

A minha simpatia à lida do gado era uma construção do efeito magnífico das “pegas de boi” e de todo àquele complexo universo cultural, não foi à toa que minha pouca cultura escolar, foi compensada pela sabedoria conquistada em busca do gado perdido. Uma ciência que para muitos é uma espécie de cultivo embrutecido da vida, mas que para mim, na verdade, fomentou coragem, destreza, respeito às condições da natureza, velocidade, zelo, paciência. Eu aprendi que o Sertão tinha o seu próprio tempo, as suas próprias leis, o seu próprio mecanismo natural, a sua própria linguagem e até mesmo o seu próprio canto, como era o caso do aboio.

No Sertão existencial profundo no qual eu vivi, o aboio suavizava a busca pelo gado nas brenhas da região e servia para tanger a boiada. O aboio é o canto do vaqueiro para guiar o rebanho em meio as pastagens e para conduzir os bois e as vacas para o curral. Um canto misterioso agropastoril como se fosse a meditação do vaqueiro para demandar a ordem da boiada.

Para mim, esse canto também serviu para pôr ordem na boiada dos meus pensamentos e ansiedades no intenso mundo psicológico da minha mente. Um canto rico de sentido com quase nenhuma palavra, linear e um tanto calma. As experiências sonoras do Sertão me habilitaram a ter um grande senso de localidade e de pertencimento, o uso do buzo, por exemplo, pequeno berrante feito de chifre de boi, servia para chamar os outros vaqueiros quando eu me perdia. Quando campeava no imenso mar de poeira, vaquejando atrás dos bichos em disparada na mata, somado a um cenário quase infinito de perigos, eu relaxava quando fumava um cigarro de palha, já que só comia à noite o tradicional feijão, o arroz, e o delicioso mugunzá. Mas eu adorava era o fantástico baião de dois, o doce de leite, de mamão, a rapadura com queijo coalho e o simbólico doce de batata de purgar.

O doce de batata de purgar era um doce feito por minha mãe que servia para depurar todos nós dos vermes que a gente tinha na barriga. Meus irmãos não suportavam nem o cheiro, entretanto, comigo era diferente. Eu passava tudo para dentro da barriga comendo com muito gosto e ainda repetia, porque realmente eu gostava muito do sabor. Muitas vezes eu até exagerava e comia o doce que servia como purgante para o organismo como se fosse um doce de leite.

O linguajar também era muito mais do que se comunicar, era um código de identidade do sertanejo e principalmente do vaqueiro sertanista para construir as relações necessárias do seu trabalho. Muitos anos se passaram daquele tempo difícil, mas eu rememoro os dizeres do sensacional dialeto do vaqueiro e de seu sertanês: - prégunto, cabra da peste; marmenino, chicotripa, arridiácho; pruquê; fóscu, nóisvévi. Uma linguagem original de um povo que tem seu jeito de viver, que tem seu jeito de resistir, que tem seu jeito de se superar.

Recuando nas malhas do tempo, embrenhando nas redes das minhas memórias, ainda consigo sentir aquele cheiro de terra, sorvendo sem querer

milhões de partículas de poeira, sempre presente no meu trecho de vaqueiro, nas sendas e caminhos na floresta seca de Cabrobó. Um mundão de luta que o cabra não vive em vão e com a tropa cansada sossegando no riacho; um turbilhão de emoções invadia o meu ser cansado com as constantes divagações, as muitas preocupações e as ansiedades recorrentes. Revivo também a extrema alegria de poder recordar ter sentido no rosto e na alma, meus olhos banhados de lágrimas, enxergar, poder ver, após um período prolongado de estio, a chuva generosa inundando as campinas aplacando o áspero tempo de aridez na Caatinga, salpicando vida para tudo quanto era lado, vencendo a agonia do que era para mim, um século de seca.

Menino de 5 anos de idade em 1956, ouvia minha mãe cantar Ranchinho Beira Chão, música fantástica da dupla caipira Tonico e Tinoco. Essa moda marcou o meu coração, porque a voz suavemente forte da minha mãe me deixava extasiado e ao mesmo tempo curioso, dado que eu imaginava ser o ranchinho cantado por ela, o nosso pedaço de terra. Também foi o ano que chegou cebola na nossa região, irrigada à mão com cuia de cabaça, bem ao estilo característico nordestino.

Lembro ainda quando eu tinha pouquíssima idade e minha professora muito jovem tinha apenas 14 anos. Muito tempo passou e só pude revê-la, após 63 anos em uma festa de casamento. A minha irmã que me relembrou sobre a professora, fazendo a ponte para nos falarmos e aproveitamos aquela prazerosa ocasião para colocarmos os papos em dia.

Minha saudosa mãe chamava Maria Orminda Freitas, mulher corajosa, trabalhadora, de muita fibra e muito à frente do tempo dela. Vez que ela sempre foi uma mulher multitarefa e intelectualmente brilhante. Era professora municipal, costurava, trabalhava na roça, tirava leite no curral, cuidava da casa, orientava a gente, cozinhava como ninguém.

As comidas eram sempre as mesmas e tudo era muito simples e gostoso. Tudo era feito com muito carinho por ela. Às vezes, minha ávida vozinha Marica preparava traíras deliciosas acompanhadas de batata doce e eu comia com tanto prazer e muito gosto... Realmente me invade uma imensa saudade desses momentos que se foram, com minha mãe. Vó Marica que eu chamava afetuosamente de mãe Dinha acariciava minha cabeça fazendo cafunés acalmadores. Os cafunés incríveis e cheios de ternura que eu recebia me deixavam realmente em uma atmosfera de extraordinária tranquilidade.

Minha mãe era uma mulher muito bonita com seu rosto plácido e rico de sorriso sem exagero. Era disciplinadora, de caráter rígido tradicional e bastante generosa. Seus olhos castanhos claros como o porte do umbuzeiro passeavam pelo seu rosto, sempre atentos ao que ocorria dentro e fora da nossa casa. Ela adorava festejar, celebrar com a família e sua religiosidade era prática e constante, muito comunicativa, gostava de conversar com as visitas, apreciava quando a casa estava cheia e estimava gente.

Tinha uma saúde de ferro e falava sempre: “Pai rico, filho nobre e neto pobre.” Ela era como mil mulheres em uma só, sempre defendia a honestidade em primeiro lugar, se amava muito porque se cuidava bastante e gostava do que era bom, gostava de fazer boas amizades. Era benevolente, valente, lutava por seus objetivos e uma pessoa supersincera, o que tinha de falar, falava sem rodeios.

Adorava ler e quando nós pronunciávamos uma palavra incompleta, automaticamente ela corrigia. “Eu chamava ri...” – Ela corrigia e dizia (rio) –, ela ajudava a nos alfabetizarmos, porque tinha um ótimo português.

Sempre deu bons exemplos e pensava grande, muito cuidadosa consigo mesma, só andava arrumada, fazia permanente, sempre estava muito perfumada, usava joias e o mais intrigante era a sua noção empreendedora de viver. Falava que a pessoa tinha que mastigar com os dentes para comer com a gengiva. Ou seja, trabalhar muito desde cedo, ser previdente e parcimoniosa, para ter um futuro tranquilo e seguro.

Acreditava na educação e incentivava todos nós a estudar. Mãe ensinava na sala de aula com os alunos ao redor dela e como tudo era difícil, resolvia tudo manualmente, porque não tinha lousa. Mas no meu caso, eu tinha que trabalhar na roça para que meus irmãos pudessem seguir estudando... Eu até queria estudar, mas meu pai queria que eu ficasse na roça, plantando feijão, milho, arroz, cebola e algodão.

Muito devota de Nossa Senhora, minha mãe me ensinou a rezar e ter muita fé em Deus. Ela adorava cantar e até hoje consigo rememorar, sentindo aquela voz açucarada e ao mesmo tempo ligeira, cantando Ranchinho Beira Chão:

“Nesses versos tão singelos

Minha bela meu amor

Pra você quero cantar

O meu sofrer a minha dor

Eu sou como o sabiá

Que quando canta é só tristeza

Desde o galho onde ele está

Nessa viola

Eu canto e gemo de verdade

Cada toada representa uma saudade

Eu nasci naquela serra num ranchinho a beira chão

Todo cheio de buracos onde a lua faz clarão

Quando chega a madrugada

Lá no mato a passarada

Principia o barulhão

Lá no mato tudo é triste

Desde o jeito de falar

Pois o jeca quando canta

Da vontade de chorar

Não tem um que cante alegre

Tudo vive padecendo

Cantando pra se aliviar

Vou parar com minha viola

Já não posso mais cantar

Pois o jeca quando canta

Da vontade de chorar

E o choro que vai caindo

Devagar vai se sumindo

Como as águas vão pro mar.”

Essa canção penetrava a minha alma e me ofertava uma espécie de paz na mente que não haviam palavras para explicar. Mesmo atualmente somente sinto ao recordar a beleza da letra musicalizada por minha mãe, uma sensação muito boa que me deixa inteiramente à vontade nos meus pensamentos, porque imagino a grandeza da música, justamente por sua emotividade e simplicidade.

Eu acredito que a felicidade também é isso, poder recordar dentro de mim, minha mãe cantando, minha mãe sorrindo, minha mãe me ensinando e até, algumas vezes, me dedurando para o meu pai por causa das traquinagens que eu fazia.

Sentir a força daquela mulher em seu jeito de ser e de conviver comigo e com meus irmãos, isso me traz memórias pessoais há muito enterradas. Mas é preciso expressar também, que evocar o passado tem suas raízes acerbas. Eu era um menino tímido demais, observador demais, pensava demais e, portanto, sentia aquele medo humano de não ir além daquela redoma campestre. Quando eu vestia uma roupa nova as pessoas falavam: “quebrou a tigela hoje”, eu ficava me escorando pelas paredes com vergonha, parecia que eu estava sempre no coração da toca do leão.

A melodia cantada por minha mãe sempre foi algo muito forte, muito especial para mim, tinha sabor de alívio, gosto de pacificação. Minha mãe foi um grande exemplo na minha vida. Seus ensinamentos ativaram uma grande força interior na minha alma, uma força realmente excepcional.

“Rememoro que minha mãe Orminda adorava cantar uma música chamada Ranchinho Beira Chão, essa música me envolvia tanto, que ficava pensando como seria esse ranchinho na minha imaginação: – Eu sou como o sabiá, que quando canta é só tristeza, desde o galho onde ele está. Nessa viola, eu canto e gemo de verdade, cada toada representa uma saudade, eu nasci naquela serra num ranchinho a beira chão, todo cheio de buracos onde a lua faz clarão, quando chega a madrugada.”

Tudo no sertão era longe, quando resolvíamos visitar o meu avô materno Pedro Freitas, passávamos dois dias cavalgando para chegar até lá, tínhamos que pernoitar em casa de família e levar bastante água num cantil. Mas o melhor era a fritada saborosa de cabeça de porco com rapadura que a minha mãe fazia. Era uma festa geral na hora de comer, uma jornada inesquecível porque íamos juntos e não tinha sela para todos, então; eu ia no jumento sobre uma cangalha enfrentando aquela paisagem sertaneja repleta de campina. Levava o jumento à unha e ainda encontrava espaço para brigar com meus irmãos, em um conflito traquina e quase pacífico, posto que não demorava muito, todos nós já estávamos de bem. Nesse aspecto eu não era nada tímido e para falar a verdade, era meu jeito de prosear, também fazendo algazarra com todos.

Meu pai João Freire de Sá conhecido como João de Toinho de Joza, foi um homem trabalhador e gostava muito de andar, cumpria seus deveres na roça e com a gente de casa era um tanto fechado. Mas era proseador com o pessoal de fora, foi um homem produto do seu tempo, da criação que teve e das características mais arcaicas da vida sertanista.

Poderia dizer que foi um homem passeador e que sua ambição não ia além daquele tempo presente. Ele não pensava no futuro, porque era um homem prático, enérgico, rígido, introspectivo e ligado ao mundo no qual ele vivia. Muito disciplinador, peguei boas pisas dele com chicote de piá boi, o velho chicote de relho que servia para prender boi e era feito de couro cru. Acho até que mereci receber quase todas as pisas. Porém, algumas nem tanto.

É difícil dizer, portanto, se tínhamos uma relação de afeto... – A verdade era que não tínhamos... E isso se dava muito menos pelo comportamento de nós dois e muito mais pela força das circunstâncias e das injunções da vida no Sertão. Mas eu admirava meu pai, observava seu jeito pragmático de viver, algumas vezes tentava imitá-lo no jeito de lidar com os trabalhadores. Ele me ensinou muito naquele universo laboral da roça, todas as habilidades de vaquejar e uma certa independência em administrar o que conseguíamos produzir, eu aprendi com ele. Em relação a estudo, todavia, se opunha ferrenhamente. Meu pai não queria o estudo para minha vida, sua ideia básica era trabalhar, trabalhar e trabalhar. Às vezes, ele me tirava da escola para ir cuidar dos trabalhadores na roçagem e naquela época eu só tinha 10 anos. Então, eu chorava bastante quando saia da escola, era um desterro terrível para mim, imaginar perder o alento de estudar e realmente aprender muita coisa boa ali, na sala de aula. Viver as amizades, brincar, quem sabe até sonhar em ser um indivíduo escolarizado e com outra profissão. De alguma forma estar ali no ambiente educacional era uma consolação da vida rude que levava desde menino, poder ter um tempo de sossego na sala de aula, poder compartilhar um pouco da minha vida com as outras crianças do mesmo ciclo de idade, era um grande conforto. Mas meu pai não concordava com esse passar de tempo, que não visão dele, não era nada produtivo. Pelo menos comigo, já que eu deveria cumprir o papel de possível sucessor dele na roçagem.

Ele aparecia na aula, portanto, e me afastava daquele alento... Afinal, a vida e a sobrevivência não poderiam esperar pelo futuro, tinha que ser resolvida ali no presente, sem perder tempo com quimeras. Ele impôs essa realidade muitas vezes para mim e eu com pouquíssima idade e muitíssima responsabilidade, comandava alguns homens mais velhos e mais experientes na lida da roça, e quantas vezes meu pai sumia no mundo do Sertão, não dando assistência no trabalho diário e por consequência disso, a minha única alternativa era ter que me virar sozinho.

Hoje é interessante lembrar o quanto isso movimentou meu mundo psicológico, criando fendas na minha alma e causando à época um certo dissabor, um certo ressentimento com tudo aquilo, pois era um esforço além da conta para uma criança amadurecer rapidamente e criar um escudo emocional, um laço rígido de aço para suportar a densa realidade. E para lidar com todo àquele turbilhão de dor, de solidão interior, de ansiedade e algumas vezes de medo também; e tudo isso desde cedo. A única saída era ser resistente às desilusões naturais da vida, sem lamentar muito, sem reclamar exageradamente.

Minha autoestima oscilava, mas eu não deixava a peteca cair e apesar de tudo que passei, não mantive mágoa, porque meu pai cumpria seu rito ao modo que também recebeu. Hoje eu relembro tudo isso sentindo três emoções somente: “Muita tristeza, mas jamais uma tristeza amargurada; uma forte nostalgia, sem apego excessivo ao tempo que se passou, e muita gratidão, porque de tudo que me aconteceu no Sertão, eu aprendi muita coisa boa. E mais; tributo larga gratulação ao meu pai, pois aprendi com ele muitas técnicas sobre fazenda, como administrar com economia, todo o ofício do mundo dos vaqueiros, como montar com destreza, como realmente lidar com os perigos da Caatinga e como ser um forte, desde pequenininho”.

Meu pai João de Toinho de Joza era um homem dual, porque ao mesmo tempo foi muito trabalhador, porém adorava uma vida boêmia. Ele era um homem alto de cabelo bem liso com olhos castanhos claros e tinha um rosto enérgico, drástico e severo. Mas sua compleição também, marcava um feitio equilibrado, uma vez que ele sabia ser simpático quando precisava. Falava pouco dentro de casa, todavia, com seus amigos proseava pelos cotovelos e muitas vezes, nem parecia o pai metódico e introspectivo que eu tinha.

Nas muitas vezes que eu aprontava, ele cumpria com rigor a tradição de bater, não sabia ou não queria saber me corrigir com as palavras. Nesse aspecto, nunca houve economia da parte dele e quando meu pai estava me batendo demais, mãe Orminda surgia, falava com ele como uma advogada de criança, dando um basta na surra.

Ao apanhar muito, não demorava nada e lá estava eu dizendo por todos os cantos que quando crescesse, iria embora para São Paulo. No fundo era minha resposta para desabafar, meu traço pessoal clamando por um bálsamo, minha marca íntima para gritar contra aquela política educacional opressora do meu pai, porque os excessos me desagradavam. Essa propaganda toda, entretanto, para ir embora do Sertão, nunca foi somente uma ameaça da minha parte.

No interior da minha personalidade existia essa profunda vontade de deixar o torrão sertanejo, de fugir dali, de vencer aquele espaço geográfico para conquistar um novo ritmo de vida e tentar a sorte de um viver diferente com um aspecto mais promissor e melhor, distante daquele mundo que eu vivia.

Não tinha muita noção e nem sabia elucidar esse querer. O certo era que o propósito sempre foi muito intenso e fazia parte do meu jeito de ser... Partir, portanto, foi uma questão de tempo e oportunidade. Mas minha real afeição por meu pai não se alterava pelas agonias que eu vivia... Porque meus irmãos, minha mãe e mesmo ele, também tinham suas dificuldades a enfrentar. Meu pai tinha qualidades interessantes que eu gostava de apreciar.

Era uma pessoa que não suportava fofoca, não apreciava conversa fiada, era tranquilo do jeito dele e superlativamente reflexivo. Acredito que comigo ele era muito mais rígido, mais disciplinador, cobrava mais. Talvez por me ver como alguém que lhe sucederia na administração do pouco que tínhamos. Ele sempre se deu bem com as outras pessoas e sua firmeza com meus outros irmãos era mais diluída. Ele gostava de festas, de dançar, de viver. Seu legado para mim foi pouca educação e ao mesmo tempo, como ser um forte na faina diária naquele ambiente áspero.

Como já afirmei anteriormente, o Sertão para mim foi de muita tristeza, não tive tempo sobrando para fomentar no meu coração alegrias duradouras e quando a gente é novo, ainda nos falta muita consciência e vamos caminhando no automático, de cada um por si e Deus por todos.

Até fiz alguns amigos que marcaram minha infância, conviveram comigo e também me ajudaram a compreender o mundo complexo da vida sertaneja em todas as suas dimensões e realidades.

Minhas relações pessoais eram profundas, não de maneira sentimental, é claro..., mas como produto da necessidade de trocas de experiências, porque eu sempre queria melhorar, sempre queria aprender, sempre queria saber fazer, fui desde novo um fazedor. E talvez fosse uma espécie de compensação, visto que, por eu não conseguir estudar, me desdobrava para conhecer intensamente o cenário da Caatinga. A criação de gado, de ovelhas, a relação com os agricultores e pecuaristas e todo o universo do labor familiar, dado que não tínhamos dinheiro para ter funcionários.

Algumas vezes sobrava um tantinho de tempo vago e lá estava eu junto aos meus irmãos, minha relação com eles foi sempre de muita traquinagem dentro de casa. Mãe e pai iam para a feira dia de sábado e ficávamos no sítio fazendo travessuras, a minha irmã mais velha Daça tomava conta da gente, era um alarido desgraçado, peia, correria, diabrura e um tumulto dos diabos. Quando mãe e pai chegavam em casa, era menino de cabeça furada, menina de pé cortado, casebre destrambelhado, roupa pelo chão e pote de água quebrado. O tempo foi passando e sinceramente eu não me lembro de comemorar nenhuma festa de aniversário. O fato era que isso nem passava pelas nossas cogitações, muito menos pelas de meu pai. Apesar disso, vivi alguns lenitivos,

como quando ao me deitar, numa pedra próxima ao poço de casa, invadia dentro de mim uma sentida paz, uma tranquilidade prazerosa e eu viajava na imaginação.

“Na
minha primeira infância com apenas 5 anos de idade”

Boa parte da minha vida foi junto a essa pedra, porque eu ia limpar o poço próximo ao riacho ou igarapé como se fala no Pará e me deitava nela para relaxar. Interessante lembrar que o riacho só ficava cheio de água no inverno, no verão secava e parte da água era sugada, filtrada pela areia. Então, eu escavava bastante a areia e ia buscar água embaixo das primeiras camadas de terra.

O poço servia pro gado beber água, mas com o verão intenso ele secava e enchia de areia. Meu trabalho era limpar a cisterna retirando o saibro e quando já não aguentava mais, devido ao calor extremo, eu buscava ficar sombreado pela pedra nas adjacências do poço. Sentia sempre uma sensação de alívio, de bálsamo, de consolação, de refrigério e de conforto. Comecei a nomear a pedra de poço da pedra, meu verdadeiro refúgio em meio àquela solidão, porque eu trabalhava lá sozinho e a única companhia era o vigoroso sol aceso, escaldante e abrasador nos meus ombros.

Muitas vezes sem ninguém por perto a pedra do poço foi minha grande parceira; cansado, esgotado, estafado, deitava na pedra e algumas vezes dormia. Buscando retomar as energias para prosseguir no trabalho. Pela minha mente passavam muitas reflexões e muitas delas me acompanharam pelos anos seguintes, quando a vida foi me ensinando que até as pedras nos ajudam nos momentos extremos.

Tive na minha infância alguns momentos heroicos e outros que beiravam os milagres. O pano de fundo, era a terra das veredas e suas sinuosidades ou era a água do Velho Chico e sua maré ligeira. Em 1959 eu tinha 8 anos de idade e fui tomar banho no Rio São Francisco. Estávamos passando pela seca, a região que eu morava era a fachada do grande rio e distava nove mil metros dele. Era necessário levar o gado até lá para cuidar e matar a sede dos bovinos, já que tudo ficava numa secura arretada onde a gente vivia.

Resolvi mergulhar no rio ao lado de um outro moleque morador da Fazenda Mãe Rosa que ficava geograficamente na extensão do São Francisco. Na beira da água tinha umas pedras que nós chamávamos pedras do tio zé padre, porque as pedras ficavam no terreno do meu tio Zé e ele havia estudado para ser padre. Mas antes de pular, eu estanquei e disse para o moleque que ali não pularia, senti ser um local perigoso para mergulhar e dei para trás. O pirralho, entretanto, insistiu que ali era raso, mas eu vi que não tinha nada raso ali. Então, disse que não pularia. Do nada ele pegou a minha mão e me puxou, nós escorregamos e caímos na correnteza que era muito forte. Foi uma aflição horripilante, porque nós dois não sabíamos nadar.

A correnteza começou a arrastar o moleque que se debatia e se contorcia velozmente, rumando em busca da beira do rio, mas ele era mais esperto, tinha mais tato, tinha mais malícia, e usou os pés batendo na água até conseguir se agarrar nos capins na beira da torrente e ficou lutando para se manter seguro lá.

“(...) O tempo foi passando e sinceramente eu não me lembro de comemorar nenhuma festa de aniversário. O fato era que isso nem passava pelas nossas cogitações, muito menos pelas de meu pai. Apesar disso, vivi alguns lenitivos, como quando ao me deitar, numa pedra próxima ao poço de casa, invadia dentro de mim uma sentida paz, uma tranquilidade prazerosa e eu viajava na imaginação.”

Durante o decorrer do acontecido com ele, eu estava no morre não morre, posto que a água tinha me coberto todinho e a robusta correnteza me arrastava rapidamente. Fui descendo na aguagem e foi Deus que me deu força para submergir no fundo do São Francisco que é calçado de pedra, taquei o pé na pedra tomando impulso para cima, quando estava na superfície do rio, eu vi a beira e me joguei pra lá, fui me puxando e a água me levando, me puxando e a água me levando e usando muita força consegui me aproximar da beirada com uma energia que só Nossa Senhora poderia me oferecer. Então, agarrei-me na borda do rio e depois consegui sair... Fiquei sentado na margem sentindo calafrios intensos, câimbras e meu queixo batia de tanto frio.

Eu percebi a cem metros dali que haviam homens no limiar do rio, jogando baralho numa casinha velha de taipa, todavia, eu não conseguia falar nada de tanto medo e nervosismo, pensei até na pisa que levaria de meu pai. E seria uma surra tão grande que só de imaginar, meus calafrios aumentavam de tanto pavor que eu estava sentindo.

O moleque continuava lá, agarrado nos capins da beirada do rio se debatendo para se salvar e eu atônito sem lograr fazer nada, porque se eu gritasse para os homens pedindo socorro para tirar ele dali, meu pai ficaria sabendo do ocorrido e certamente a sova no meu couro seria uma das maiores da minha vida.

Fiquei em estado de choque pensando comigo mesmo que se o moleque não conseguisse sair dali e viesse a morrer, eu não diria a ninguém que eu estava lá com ele e daria um jeito de ir embora dali sem alarido. Tanto era o medo da peia, da surra, da sova que levaria do meu pai. Naquela agonia, imaginei o chicote estalando no meu couro e a aflição de pedir por misericórdia para ele parar de bater, e em vez de parar, cada vez mais o estalado da chibata se intensificando. Voltei à realidade e percebi que o Céu ajudou o menino a conseguir sair de lá.

Ele veio caminhando até onde eu me encontrava em um misto de pavor e alívio e nós fizemos um pacto de não contar nada a ninguém. Somente após muitos anos consegui relatar para meus familiares e amigos esse momento terrível que passei na infância. E posso afirmar que se não fosse essa pedra no fundo do Velho Chico eu teria morrido, uma vez que eu não sabia nadar. Sou uma pessoa de muita fé em Deus, Nossa Senhora Aparecida e tenho certeza que foi a intervenção divina que me ajudou muitas vezes a continuar vivo superando os perigos da Caatinga. Com apenas 4 anos de idade eu fui picado por uma cobra no Sertão, eu estava no sítio do meu avô brincando com os cavacos enquanto os demais trabalhadores estavam construindo os carros de boi. Meu avô também estava lá com os carpinteiros... Então, eu ficava por lá brincando e mexendo nas coisas ao redor, comecei a cavar perto de um carro de boi que estava cheio de bagaço. De repente senti uma espécie de alfinetada forte na perna, uma jararaca tinha me acertado e se enterrou por debaixo do bagaço. Comecei a gritar avisando que uma cobra tinha me mordido na canela e vieram me acudir. Os carpinteiros começaram a procurar a cobra com um

pedaço de pau mexendo nos restos de bagaço. Mexeram, mexeram, cutucaram e finalmente encontraram a jararaca. Eles não perderam tempo e mataram a cobra a pauladas.

Meu tio Celso, irmão mais novo do meu pai, pegou a bicicleta rapidamente e saiu correndo apressadamente rumando para a casa de um curandeiro da região que morava mais ou menos 12 km de onde nós estávamos. Chegando lá, meu tio contou o ocorrido ao curandeiro que fez sua reza depois de escutar o meu nome e ainda mandou uma correia para pôr na minha perna e uma beberagem para eu tomar.

Passou uns dias e eu fiquei bom... O mais interessante foi que alguns anos se passaram, eu já estava maior e fui visitar o curandeiro misterioso; lá ele relembrou o fato ocorrido comigo quando eu tinha somente 4 anos de idade e disse: “Olha se a jararaca te mordesse hoje, seria ela que iria morrer, porque eu sou curado de nascença e a pessoa que eu curo, fica curada para o resto da vida.”

Fiquei muito impressionado com o que ele disse, visto que mais uns anos à frente, ainda solteiro, fui numa festa e em certa altura da noite comecei a ter um passamento e um profundo desconforto na barriga. Corri para o mato sentindo uma dor aguda no estômago e intensos calafrios, só deu tempo de abaixar as calças e fazer a precisão. Nesse mesmo momento, eu senti uma ferrada na minha bunda e como eu estava no escuro, não vi de onde veio. Terminei, portanto, minha necessidade e voltei para a festa. Mas fiquei sentindo um desconforto nos glúteos e no outro dia pela manhã, voltei lá e me deparei com uma cobra morta, fiquei imensamente espantado e lembrei da conversa do curandeiro. Quando eu abri os olhos paro o mundo, quando comecei realmente a ter mais consciência do universo sertanejo que eu vivia. Fui também conhecendo o valor da vida, ultrapassando os obstáculos, compreendendo que mesmo sem ter estudo. Tinha mãos, pés e cabeça para me virar. Então, se não conseguisse apoio para realizar minhas vontades, eu ia aprendendo a esperar o tempo certo para seguir rumando a mim mesmo, num sentido de superação de tudo o que me desagradava, porque eu sempre fui ávido pela vida, pela conquista, pelo trabalho.

As brisas das minhas memórias sertanistas refluem, quando passo em revista todos esses fatos. E me vem à mesa de casa desde cedinho, arrumada para o café da manhã, tudo bem simples e limpo, me vem a imagem de todos nós pequeninos, juntos para cumprir a tradição de nos alimentarmos unidos, antes de sair para a escola e o trabalho. Café, almoço e janta, marcavam nosso momento de união, de tradição familiar. Meu pai sempre na cabeceira e eu sentava sempre no mesmo lugar que ficava próximo dele. Às vezes tinha café com farinha, outras vezes o café era servido com cuscuz, batata doce, macaxeira e quando era o tempo do queijo, o queijo alegrava nossa mesa.

Na seca mais terrível até o valoroso e nutritivo feijão faltava, e para assegurar o almoço, a saída era pescar e comer muita farinha com peixe. Algumas semanas

eram bem apertadas e no almoço tínhamos: - arroz com feijão e no jantar feijão com arroz-... Com mais sorte aparecia uma caça, um bode, um animal que servia para a mistura.

Por isso era sempre vital transformar a dificuldade em aprendizagem e prestar muita atenção no que os mais velhos ensinavam. Tinha por lá o senhor Laudelino Freire, possuidor de muita sabedoria, ele dizia: “A derrota do pau verde é ter um seco do lado, o seco pega fogo e deixa o verde salpicado.” O que ele queria dizer com isso era explicar que uma pessoa boa que anda com uma pessoa ruim, vai acabar se dando mal.

O vetusto senhor postulava ainda: “Sapato ruim só procura pé doente.” Era um ensinamento para quem gostava de arengar. Porque toda vez que ele via duas pessoas que gostavam de confusão e de bagunça, de brigar com os demais, o velho voltava a falar isso.

Tudo o que ouvi quando era pequeno, eu guardei como ensinamento e sempre procurei fazer as coisas de maneira certa, conforme havia aprendido. Acredito que esses ensinamentos ficaram bem enraizados em mim. E me ajudaram a desenvolver habilidades excepcionais para prosseguir na vida.

“Eu, o segundo da esquerda para a direita, com as mãos nos bolsos fazendo pose de galã de filmes de faroeste, com meu pai, minha mãe, meus irmãos e irmãs, no município de Cabrobó, estado de Pernambuco em 1966.”

Eu saí do Sertão, mas o Sertão não saiu de mim.

“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” (Guimarães Rosa)

Os anos correram céleres conquistando meu tempo e promovendo meu desenvolvimento naquela redoma familiar, roceira, repleta de labor e intenso suor. Fui crescendo e me tornando um jovem mais astuto e mais habilidoso com o que fazia. Minha realidade prosseguia a mesma, mas eu não continuava o mesmo. E essa mudança gradual não se circunscrevia somente ao meu corpo físico. Porque para além dos meus ombros largos, das minhas mais vivas emoções da juventude e de uma cabeleira mais robusta. Eu sentia dentro de mim uma força de vontade mais firme, mais paciente e cheia de método. Isso significava uma estratégia consciente a longo prazo de deixar o sertão, no momento oportuno.

Continuava vivendo e cumprindo meus deveres como sempre perfiz, seguia o rito do nascer ao pôr do sol executando minhas obrigações sem fugir das mesmas. Nesse aspecto não criava ilusões na minha mente juvenil. Pelo contrário, avançava sendo um jovem prático, um fazedor de coisas, um trabalhador persistente, um adolescente voltado para a realidade.

Muito embora sentisse as necessidades naturais da juventude florescente, como sempre me faltava dinheiro, não conseguia aspirar um viver de mais acesso ao consumo do metiê da vida de moço. A adolescência para mim, não foi muito diferente da minha infância. Ou trabalhava para sobreviver ou estaria deserdado de herança nenhuma.

Quando o traço de ouro do sol impregnava minhas manhãs, tocando quente o meu dorso, eu estava lá trabalhando. Quando estava diante do entardecer nas primeiras despedidas dos fios de luz solar, eu estava lá trabalhando. Quando o clima oscilava feito um pêndulo de relógio construindo o cenário seco sertanista, eu estava lá trabalhando e realizando as múltiplas tarefas da vida no campo.

Nesse equilíbrio sagrado entre minha puberdade e o clima do sertão, enfrentei os desafios e dificuldades com uma indômita resolução, algumas vezes avançava no automatismo do costume, outras vezes fazia amizade com o cansaço, para não deixar a peteca cair e não me desesperar.

Da altura experiencial e da idade em que me encontro atualmente, é engraçado lembrar do meu tempo juvenil, porque é quase inacreditável que um jovem sertanista sem muita perspectiva conseguisse transpor tantos muros, convivendo com poucas vitórias e recorrentes derrotas, pequenas conquistas e grandes desilusões, alguma satisfação e fortes frustrações; um certo medo de não conseguir vingar na vida, e principalmente, não vencer as vigorosas paredes do mundo sertanejo para buscar uma vida diferente.

Tudo isso continua como boas lembranças na intimidade do meu coração. Passo em revista a sinfonia da minha vida de jovem sertanejo e realmente encontro um indivíduo que superou: - revolta, conflitos, inseguranças!

O trabalho áspero não combinava com o repouso prolongado, não esperava a fadiga passar, não negociava com a preguiça, não concordava com a pessoa que fazia cera. E quando eu campeava pelas veredas infinitas como vaqueiro, experimentava mil sensações.

Muitas vezes o trabalho era pesado demais, o dia demorava passar, a noite não chegava de jeito nenhum, era como se cada segundo demorasse o triplo do tempo. Mas eu já começava a compreender o que tudo aquilo significava... – Somente recebe um grande prêmio, quem consegue suportar muita coisa, quem consegue pensar a vida a longo prazo, quem encara os sofrimentos de peito aberto.

Percebia que não deveria me tornar um escravo do trabalho, mas administrar o trabalho como um meio de seguir em frente, de sorver o tempo sem ociosidade desnecessária, aprendendo e aperfeiçoando as habilidades que eu já possuía desde a minha infância repleta de injunções laborais. Agia pensando a longuíssimo prazo, para evitar ser um sujeito muito imediatista. Mas é preciso confessar ter tido muitas vezes, um estranho estado de inquietação que varava meu ser como um punhal que rasgava a minha alma. Não sei explicar com precisão o que se passava interiormente comigo àquela época. Talvez fosse uma profunda ansiedade em ter uma rotina implacável, talvez fosse um aviso de que todo o automatismo daquele mundo vaqueiro não seria suficiente para contentar o meu ser, talvez a inquietação recorrente fosse uma espécie de remédio para eu lutar com unhas e dentes contra o abismo da amargura. Talvez fosse alguma mensagem do meu inconsciente dizendo que eu realmente não tinha nada ali, mas sempre teria Deus comigo.

A caatinga tem seus mistérios e ilusões, dores e consolações, solidão e cooperações. Num tempo a seca domina imperialmente e avassala toda a terra, deixando todos nós num perrengue desgraçado, calejando os olhos da gente, cobrando um tributo pesado de um jovem que apesar de toda matutice, queria ser um jovem sem tantas cobranças. Tudo ficava tão árido que meu

olhar passou a ser desde aquele tempo, um olhar penetrante; como se eu sempre procurasse algo muito mais além daquela terra torrada pela quentura e sofreguidão medonha. Noutro tempo a chuva chegava e a caatinga ficava tão bela como a madrugada cheia de estrelas, forte e viçosa como as ondas das praias e uma grande satisfação me enchia o peito. Já era possível saciar a sede da gente e dos animais sem tantas peias pelos caminhos, renascendo um grande entusiasmo, uma força de vontade em querer modificar as paisagens da minha própria vida. O tempo foi passando, meu corpo espichando, minha mente foi ficando mais consciente, minha conduta mais prática, minha palavra mais econômica e meus pensamentos mais estratégicos.

Se eu pudesse naquele tempo juvenil sair de mim e conseguisse me ver do lado de fora; acredito, com certeza, que enxergaria um sujeito já formado em uma conduta austera desde menino, com uma voz firme, quase uma pedra para suportar os dissabores da vida e as pelejas existenciais, formado num senso de responsabilidade sempre presente, com o coração cheio de sede de conquistar muito mais que as belezas incomuns do sertão, aplacado pela ideia de encontrar minha própria felicidade.

Em 1966, os meus pais resolveram vender um gado dos filhos e conseguiram comprar uma casa simples para todos nós estudarmos em Cabrobó e nas férias voltávamos para a lavoura, na zona rural, distante vinte e um quilômetros da cidade, com o objetivo de prosseguir na lida com a nossa roça, no nosso sítio. No meu caso, entretanto, era um pouco diferente, visto que por ser o mais velho, eu tinha maiores responsabilidades e mesmo antes das férias, lá estava eu na roça novamente. Tinha exatamente catorze anos quando se deu a ocasião da aquisição dessa propriedade pelos meus pais.

No primeiro semestre eu ficava totalmente na agricultura e campeando, permanecia em casa porque era quando chovia, tinha que aproveitar o clima favorável para adiantar o serviço, somente os meus irmãos continuavam estudando integralmente em Cabrobó. No segundo semestre, eu tinha uma certa folga, porque o trabalho no arado diminuía em função da seca. Seguia, portanto, para Cabrobó a fim de estudar. Trabalhava o dia inteiro na ilha da Assunção, lugarejo vizinho da cidade de Cabrobó e para chegar até lá era necessário atravessar uma antiga ponte, permanecia na ilha até à tardinha retornando à cidade para estudar à noite. Para não ficar parado durante o dia, eu plantava tomate, trabalhava como meeiro numa roça de tomate na ilha da Assunção.

Um conhecido meu que era casado com a prima do meu pai, havia arrendado um pedaço de terreno onde fez a irrigação da gleba, então eu plantava tomate com ele no regime de “meia”, tudo era dividido pela metade entre nós. Eu plantava, colhia e ele vendia... Ele descontava o defensivo agrícola e as despesas da roça e me dava a minha parte. Porém, a roça era tão pequenininha que o dinheiro apurado era tão pouco, só dava para comprar o básico, material de higiene pessoal e uma simples roupa. Mas essa condição não durou muito tempo, porque não tive escolha para seguir estudando, eu não tinha tempo sobrando para estudar e me preparar para os exames.

Vivi pequenas peripécias quando estudava à noite na zona urbana. Rememoro, por exemplo, um fato no qual ficamos reunidos no canto da escola conversando e esperando a professora chegar. Eu tinha pouco tempo de cidade, pouco tempo de escola, pouco tempo de camaradagem com os estudantes de lá. Ainda muito matutão, não manjava a mania dos jovens de Cabrobó. Os caras da cidade queriam limpar a mão em mim, queriam mostrar que eram durões e os donos do pedaço, eles me olhavam como um forasteiro naquele ambiente considerado por eles como uma propriedade inalienável. Um dos caras se alterou e veio para me bater, ele era muito maior do que eu, bem mais corpulento e mais forte. A minha saída para não apanhar na rua, foi tirar do bolso uma faca pequena que eu mantinha comigo, por motivo de segurança. Ele veio ferozmente para cima de mim e eu, astutamente, meti a faca na mão dele, cortando de leve a palma da mão do indivíduo. Fiquei me tremendo igual uma vara verde, mantendo-me firme mesmo assim. Foi uma algazarra medonha e uma gritaria histérica de ambas as partes. A sorte que a professora chegou e botou ordem no ambiente, tomou a minha faca e ralhou com todos ali. Minha professora ameaçou que entregaria a faca a uma prima da minha mãe, dona Maria Amélia, diretora da escola que eu estudava, e foi aí que eu implorei, supliquei e quase chorei para ela não fazer isso. Pois se ela entregasse a faquinha dedurando o ocorrido, meu pai saberia da baderna e me daria uma surra tamanha e tão intensa que eu nunca mais iria esquecer a pisa que levaria. No final da aula ela me procurou, deu-me um sermão dizendo para nunca mais fazer aquilo novamente e me devolveu a faquinha. Eu fiquei tão constrangido, tão encabulado e com tanta vergonha e mesmo com um certo receio de tudo aquilo, que voltei pro sítio ficando um tempo considerável sem estudar após esse fato.

Houve um fato na minha juventude de uma certa traquinagem que ao relembrar, eu caio na gargalhada, porque a noção das coisas era praticamente nenhuma, principalmente ao realizar travessuras do jeito que nós fazíamos. Tinha um clube em Cabrobó chamado Miraselva e naquele tempo como tudo era atrasado, ainda tinha a distinção do clube dos brancos e do clube dos negros. O dos brancos era denominado de Alvorada clube e o dos negros era o já mencionado Miraselva. Eu, mais uns primos, nos misturávamos e íamos para o famoso clube Miraselva. Todos nós muito lisos queríamos entrar, todavia, não tínhamos o precioso dinheiro para comprar o ingresso. Então, a saída era pensar, arquitetar e executar um jeito de todos entrarem sem pagar. Nós abríamos os bolsos e juntávamos as poucas moedas existentes numa espécie de vaquinha entre todos, objetivando adquirir uma entrada somente, porque era o que dava para conseguir. – Interessante lembrar que os ingressos eram feitos à mão, eram datilografados, porque realmente tudo era muito atrasado. A verdade, entretanto, sobre a nossa real intenção de comprar precisamente um ingresso, era que conseguindo uma entrada, nós saberíamos como ele era feito. O único ingresso chegava às nossas mãos e corríamos à casa de um primo nosso que tinha uma velha máquina de datilografar. Meu primo datilografava

cópias do ingresso original para nós todos e voltávamos lá para invadir a festa no Miraselva. Mas antes eu ainda assinava as entradas praticamente do mesmo jeito da assinatura original feita pelo cobrador da festa. Eu treinava tanto, que já tinha essa habilidade de burlar o tipo da assinatura do dono da festa nos ingressos de papel. Antes de chegarmos à frente do clube, cada um de nós rasgava metade do seu ingresso, justamente para o porteiro pensar que nós já tínhamos entrado na festa e havíamos saído para tomar um ar ou comer alguma coisa.

O clube Miraselva tinha um apelido também, o povo chamava de Mirabala, porque algumas vezes rolava umas brigas mais tenebrosas e alguém dava um tiro pra o alto. Teve uma noite que estávamos lá e começou uma confusão violenta... Um furdunço desgraçado, uma briga grande que eu tive que correr para escapar de pegar uma cadeirada. A peia não era causada por nós, porque nunca fomos de confusão. Mas como estávamos lá, as cadeiras voavam e nós tínhamos que nos defender de alguma maneira.

Recordo ainda, do meu primo Ariovaldo, conhecido pela galera como tatu, porque ele era astuto demais em conseguir entrar e ajudar a todos nós invadirmos por debaixo da lona, um circo que tinha lá em Cabrobó. Eu lembro que ficava um guarda arrodeando o circo para não deixar ninguém entrar sem pagar. Mas a molecada era mais esperta e os jovens bem mais ágeis. Meu primo dava um jeitinho quando o guarda não estava reparando, levantava a lona com uma habilidade parecida com a do 007 e então, era uma fila de jovem passando e raspando o peito na terra até conseguir ir para as arquibancadas. E Ariovaldo ficava lá até todos passarem para enfrentar o guarda se fosse preciso. Com a minha juventude explodindo naquela época, eu rememoro ainda que tentei fumar cigarro, mas era caro de comprar. Quando conseguia um que fosse, fumava apenas a metade e guardava para fumar depois. Eu via os outros jovens fazerem isso e como não era diferente deles nesse aspecto, seguia o ritmo da moçada. Nem deu tempo para eu criar uma relação de admiração por ninguém, só tinha tempo para viver o exercício cotidiano da vida. Não prestava atenção nos comerciantes da zona urbana, porque as mercearias eram módicas, simples e sem muitos atrativos. O que sempre me chamou atenção era a vida de fazenda e os trabalhos desenvolvidos dentro delas. Ao ter mais consciência da minha existência no mundo e seus fundamentais e reais valores, passei a admirar uma pessoa que não havia conhecido, que era o meu bisavô José Francisco de Sá conhecido como Joza Caló. Até hoje o nome dele tem fama lá no Sertão, porque ele foi um homem que ajudou muita gente, sobretudo, quando estavam difíceis as coisas e muita gente não tinha nem o que comer. O nome do meu bisavô era forte demais, porque ele tinha fazenda e muitas terras pelas bandas do Rio São Francisco, tinha casa alugada na cidade e era muito trabalhador. Um sujeito ativo, benquisto por todos e nunca foi tido como uma pessoa sovina. Até os peões das terras dele, os trabalhadores das roças do meu bisavô, tinham um apreço fora do comum por aquele velho artífice nordestino. Eu cheguei a conhecer alguns peões que trabalharam com meu

bisavô e todos com quem conversei foram unânimes nos elogios ao vetusto Joza. Era uma verdadeira e forte admiração porque se dependesse do venerado homem, ninguém passava fome perto dele. Quando chegava o verão, e a seca se espraiava pelo semiárido, muita gente corria lá para as terras de Joza para tentar um emprego. Mas já existiam por lá os trabalhadores e suas famílias, já tinha muita gente trabalhando para ele e não tinha como pôr mais ninguém. Só que as pessoas estavam realmente desesperadas por causa da falta de comida. Meu bisavô, todavia, para não deixar de ajudar quem corria atrás do auxílio dele, dizia: “Olha pessoal, não tenho como empregar mais ninguém, porque todos os espaços funcionais já estão preenchidos...”. As pessoas retrucavam, dizendo que precisavam pelo menos comer; então, meu bisavô, arrematava em seguida: “Mas comida tem, ninguém passa fome perto de mim, de maneira nenhuma!” Assim, as pessoas iam se integrando na fazenda dele e acabavam ajudando os funcionários de lá, só pela comida, porque não tinham de onde tirar sustento nenhum até a seca passar.

“Meus saudosos e amáveis avós paternos, Marica Bium e Antonio de Joza.”

Quando eu nasci, o meu bisavô Joza já havia partido para junto do Pai celestial, não tive a honra de conhecê-lo, não tive a felicidade de conversar e aprender muita coisa com ele, não tive a ventura de observar o seu jeito humano de tratar todas as pessoas que se aproximavam dele. Guardo uma profunda

e intensa admiração pelo grande homem que ele foi, proveu muita coisa para nossa família e acudiu centenas de pessoas quando as mesmas passavam por precisão extremas. Penso que a alegria, a satisfação e o alívio de uma pessoa era uma bênção para ele.

Bisavô Joza... Sinto muita saudade dele – e nem ao menos o conheci –; no entanto, sua presença emocional ilumina minha vida até os dias atuais. Sua grande alma deixou um legado cheio de energia, força, rigidez, trabalho e um rastro de sentimento de generosidade por onde ele passou. Todas essas qualidades me inspiram muito na jornada diária da minha simples vida.

Com dezesseis anos, tive que fazer a obrigatória prova de admissão escolar, era necessário tirar uma boa pontuação para conseguir uma matrícula no antigo ginásio, mas eu não tinha tempo nenhum para estudar em casa, para me preparar, para olhar o caderno. Então, fiz a prova e como era esperado por mim, não passei e definitivamente abandonei os estudos. O que me restou foi continuar trabalhando e cumprindo minhas obrigações de irmão mais velho e braço direito do meu pai nas questões do sítio.

Uma irmã minha chamada Auxiliadora, contou-me um fato interessante que já não recordava mais. Relatou-me que eu estava na roça trabalhando, e ela com mais três irmãos estavam na cidade estudando; eles tinham que fazer na manhã subsequente, um exame de admissão e era necessário pagar pela realização da prova, era uma escola municipal, mas todos tinham que pagar uma taxa mensal. Meus irmãos não tinham dinheiro e nem de quem emprestar. Então, após muita luta, meu pai conseguiu arrumar o dinheiro para pagar a taxa necessária na escola e liberá-los para realizar a prova. Tive que deixar a roça pela madrugada, justamente no dia que estava marcada a avaliação deles e seguir vinte e um quilômetros montado no jumento para chegar o mais cedo possível antes da escola abrir, a fim de concluir o pagamento e acalmar meus irmãos pela grande expectativa que estavam sentindo, em função da ansiedade que estavam passando. Fiz o percurso montado no jumento o mais ligeiro possível, enfrentei uma parte fria da madrugada e consegui chegar a tempo para pagar o valor do exame e meus irmãos puderam fazer a prova.

Todos os meus irmãos estudavam e eu tinha que trabalhar na roça para ajudar nas despesas deles na cidade, por isso eu dava meu jeito e me virava. Recordo que havia plantado muita melancia no arado do sítio e deu melancia a fole. Desse modo, resolvi vender melancia na cidade para ganhar um troco. Instalava a carga em cinco ou seis jumentos e partia para Cabrobó, algumas vezes colocava a carga na caminhonete do meu avô, porque meu tio ia para cidade toda sexta-feira e passava lá por casa. Eu enchia a caminhonete de melancia e no sábado colocava na calçada para vender. Às vezes, eu escolhia boas melancias para vendê-las na feira de Cabrobó, aproveitava a grande freguesia do sábado. O sábado é um dia especial da semana para quem faz comércio no interior, o povo todo sai de suas roças buscando fazer compras para passar a semana, fica um mundaréu de gente na feira, um grande leriado, velhos na gaitada e aquela diversão.

Eu até possuía uma banquinha na feira, mas como não tinha dinheiro para trabalhar os produtos e as vendas, eu procurava meu primo Zé Carlos que detinha uma mercearia e conseguia com ele mercadorias emprestadas. Ele me dispunha os artigos e eu os vendia com um preço maior para ter lucro na negociação. Fazia o balanço, pagava o que havia emprestado, e o que restava, ficava comigo.

Lembro bem que eu colocava os gêneros alimentícios na banquinha e vendia o que era possível, conseguia uma pequena renda, como já disse era pouca coisa, tanto que só sobrava para comprar lápis, cadernos, canetas e os demais itens do material escolar que serviram até o momento no qual eu frequentei a escola. Ou se tivesse um pouquinho a mais de dinheiro sobrando, eu me enchia de doces. Gostava absurdamente do doce de batata de umbu, a famosa “cunca” de umbu, cocada de buga. Até hoje, o cheiro, o gosto e mesmo o jeito de preparar continuam na minha memória num espaço com destaque. No inverno sertanista o umbuzeiro que é uma benção do sertão, colhe a água da chuva, armazenando-a em suas raízes que tem batatas como se fossem caixas d’águas. Essas batatas ficam com uma seiva forte e suculenta. Então, fazia-se doce de cunca e era realmente delicioso. No meu tempo de moleque esse doce era feito com muita abundância, mas atualmente está proibido fazer, porque faz morrer os umbuzeiros, já que suas raízes são retiradas.

A árvore do umbuzeiro se destaca de toda a vegetação e prospera na seca, justamente por ter em suas raízes, essas batatas cheias de água. A palavra vem do Tupi-Guarani imbu que significa “água que dá de beber”, referência ao seu extraordinário método natural de ter água para superar a estiagem. O umbuzeiro alimenta as abelhas, além disso seus frutos servem para matar a fome do sertanejo e dos seus animais, além de poder vender uma parte da produção dos seus pomos.

É o símbolo de vida do sertanejo, seu tamanho é avantajado e robusto e dá muita sombra, sua tonalidade é sublime e sua existência pode passar de cem anos. O umbuzeiro floresce e frutifica apenas uma vez ao ano, vencendo a seca extrema e garantindo a sobrevivência de muita gente no semiárido. Nas trilhas da caatinga o umbuzeiro socorre, alivia e fomenta a vida também, e ao seu redor, no chão tórrido recai seus frutos, forrando o assoalho da terra de esperança e sabor. Inclusive arquiteta a possibilidade de melhoria de renda da população com a produção e venda de licor e doces.

Sempre fui apaixonado por doces, em casa, por exemplo, quando não tinha nenhuma rapadura eu tacava açúcar na farinha e ficava lá comendo alucinadamente. Relembro até que num daqueles sábados na feira, fiz um apurado bom e comprei tudo de cocada, comi praticamente toda cocada adquirida por mim e exagerei tanto, mas tanto que tive uma enxaqueca tão medonha, que passei 5 anos sem comer doces depois desse episódio.

Contemplando em retrospectiva, eu consigo identificar desde a minha juventude o imenso aprendizado sobre empreendedorismo. Era a universidade da vida me ensinando desde jovem, o real caminho para um homem lutar e

conquistar seus sonhos. A verdade era que realmente eu não tinha uma real percepção da importância do que estava aprendendo. Aprendi muita coisa sobre comércio, sobre negócios, sobre como organizar o lucro, como planejar vendas, como ser parcimonioso, como saber até a dizer não.

Eram lições práticas, não havia teoria, a teoria era praticar sempre na luta diária. Empreender, portanto, era a característica da minha vida juvenil, vendendo melancias, vendendo gêneros alimentícios, zelando pelo sítio, organizando o trabalho rural, coordenando os trabalhos na agricultura, fazendo balanço, campeando. E não tinha outra alternativa que não fosse dar conta do recado da carga brutal de serviço.

Minha trajetória como vendedor, negociante, empreendedor não se deu quando a vida me presenteou com o sucesso. Tudo veio como consequência do meu tempo proativo de jovem resiliente e obstinado nas lutas de cada dia. Isso vai formando o hábito de um verdadeiro empreendedor, mesmo que a princípio, não tenhamos consciência de tudo isso.

Ainda na década de 60 um acontecimento marcou a minha adolescência, foi quando meu irmão Pepê veio ao mundo. Seu nascimento foi uma grande alegria para mim, fiquei realmente extasiado. Minha mãe Orminda começou a sentir as dores, as contrações e meu pai estava preparado para ir ao campo desempenhar seus compromissos rurais.

Ela disse a ele: “Não vá mais, pois o bebê está próximo de nascer.” Imediatamente depois, meu pai chamou um vaqueiro para que o mesmo buscasse a parteira. Dona Isabel Viana era a parteira da nossa região, uma mulher maravilhosa, prestativa, habilidosa e muito prudente. Ela era uma parteira paciente, com muita experiência, dava muita atenção ao que fazia e fornecia calma e conhecimento para a minha mãe.

Para mim foi um evento interessante de se notar, de se perceber, havia uma atmosfera de mais tranquilidade e de profundo respeito. E também uma grande curiosidade, porque não dava para saber se era menino ou menina. Somente depois que a criança nascia, seria possível descobrir o sexo do bebê. Assim sendo, quando o neném nasceu foi anunciado pela dona Isabel, ser um menino. Daí foi uma grande festa, meu pai consequentemente cumpriu a tradição de soltar fogos, quando nascia um menino o costume era soltar 3 fogos para toda vizinhança saber. Quando era uma menina o costume era soltar dois fogos para os vizinhos se informarem do ocorrido. Como na região as casas eram afastadas umas das outras em torno de dois a três quilômetros de distância, com a soltada de fogos, as pessoas se informavam ter havido ali por perto mais um parto, e pela quantidade de fogos, sabiam se era do sexo feminino ou do sexo masculino.

Algum tempo depois, o batizado de Pedro Francisco de Freitas Neto, chamado por todos nós afetuosamente por Pepê, foi desempenhado pelo padre da paróquia da região. Meu pai o convidou e o sacerdote foi lá para casa realizar o rito sacramental. No dia do batismo do meu irmão a casa estava cheia de

convidados e ocorreu uma festa exuberante para todos nós; matavam criação, porco, carneiro, para alimentar todos que participassem da missa e depois do batizado. A missa era celebrada dentro de casa, com gente dentro e fora do nosso casebre.

O passar do tempo foi construindo seu cenário natural e eu espichando cada vez mais, o que ia acontecendo por fora de mim, eu tirava de letra! O que ocorria por dentro da minha paisagem afetiva, eu segurava, tentava controlar, às vezes reprimia, outras vezes estourava e quase sempre queria esquecer. Ainda assim, o esforço em desejar esquecer me conduzia sempre a lembrar pela metade... Não sei dizer precisamente se eu chorava internamente e ninguém via. Acredito ter chorado por dentro e nem eu mesmo percebia, visto que efetivamente na minha consciente intimidade, clamava uma insatisfação forçando minha subjetividade, minha identidade, minha autoestima, a um dia, mudar completamente meu estilo de vida em outras paragens. Fui me tornando mentalmente uma espécie de madeira de lei que o cupim não rói. E por varar a meninice e chegar aos dezesseis anos, comecei a querer passear pelas noites sertanejas.

No interior tinha aquele bailezinho que eu desejava ir, mas não tinha coragem de pedir a meu pai. Ele muito ignorante, certamente não endossaria minha pretensa aventura. Usava, entretanto, uma estratégia infalível. Corria com minha mãe e convencia ela a pedir para meu pai João Freire que me liberasse para dar uma volta. Minha mãe sempre conseguia meu passe junto a ele. Então, lá estava eu com meus primos transitando com pouquíssimo dinheiro no bolso pelas festas e nos bailinhos dos sanfoneiros nas casas e quintais do interior. Nós dávamos um jeito de tomar uma cachacinha para esquentar e no furdunço do baile no meio do salão, aparecia o cobrador da cota para pegar de cada um a parte do dinheiro do festejo que funcionava como a quitação da entrada do arrasta-pé. A gente ficava rodando, circulando, se escondendo, dançando com a dama de um jeito que ele não chegasse até a gente, fugindo para não pagar, porque o dinheiro era tão pouco que não sobraria para mais nada. Porém, algumas vezes o cobrador da cota já estava na entrada da festividade e não havia como escapar do pagamento.

Realmente o dinheiro era tão miúdo que nós nos juntávamos fazendo coleta e somente conseguíamos comprar meia garrafa de cachaça, cada um tomava um gole e quando a pinga fazia efeito, nós escondíamos a garrafa numa moita lá no mato que ficava próxima da festa, para depois irmos tomar o restante. O mais interessante era existir por lá um cabra mais liso do que todos nós, ele ficava observando de longe onde nós havíamos escondido o casco de cachaça, e quando nós saíamos dali para ir dançar, ele avançava sobre a botelha de cana, tomava tudo e quando nós retornávamos não tinha mais nenhuma gota.

Ficava imaginando como era possível ter gente mais lisa do que eu, porque o meu dinheiro era apertado, era contado, mas no meu bolso tinha algum tostão. O cara lá, todavia, não levava nada; chegando ao ápice de surrupiar nossa

bebida. E ficava por isso mesmo, nada de confusão, nada de arengagem, nós levávamos na esportiva e eu ficava sorrindo pensando na situação inusitada.

A festa de forró procedia e tinha por lá umas senhoras que aproveitavam a aglomeração da cambada para vender um tipo de tira-gosto numa panelinha, pedaços de galinha cozida, cocada e bolo de milho. Quando dava nós comprávamos, quando não tinha dinheiro sobrando nós só ficávamos na vontade. A galinha era deliciosa, quase frita, bem sequinha e ainda tinha o famoso cafezinho preto estupidamente quente rolando pelo copo de boteco.

Não tinha confusão nessas festividades, o pessoal ia mesmo para se divertir, para dançar, para namorar. Quando por algum motivo ocorria alguma arenga com quem bebia e não se aguentava, a turma do aquieta, aquieta, entrava em ação e apaziguava a questão e o conflito se encerrava pacífico. Comigo somente uma vez sucedeu um alvoroço, porque eu estava namorando uma moça e tinha um rapaz lá que queria namorar ela também. Ele ficou me cercando num modo de quem queria tirar satisfação, de quem planejava vir para cima e querer brigar, eu no meu estilo observador fiquei mirando o comportamento dele e de repente, ele resolveu partir para cima de mim.

Quando ele veio, eu acabei pegando-o num golpe, segurei ele com força e de uma maneira na qual ele ficou preso. Imediatamente a turma do deixa disso se aproximou e fez nós nos distanciarmos com cada um olhando cerradamente para o outro. Depois, contudo, as coisas se asserenaram e cada um seguiu seu caminho.

Recordo que não possuía nada além do necessário, tinha um chinelo velho de casa, pouca muda de roupa e sempre uma pequena economia no bolso, o sapato era o famoso Vulcabras, calçado com sola de borracha vulcanizada que me servia para praticamente todas as ocasiões. Verdadeiramente, eu aprendi desde jovem a ser um sujeito econômico e seguro com as coisas que estavam sob minha posse.

Com dezesseis anos eu fui tentar fazer o exame de admissão do antigo colegial para o ginasial, o que seria hoje uma espécie de pré-vestibular, estudei juntamente com um primo meu, ele estava com a face cheia de espinhas e eu estava começando a ter algumas espinhas também. Resolvemos juntos, portanto, comprar leite de colônia para que as espinhas desaparecessem. O dinheiro era tão curto que compramos apenas uma unidade de leite de colônia e um pacotinho de algodão. Dividíamos o produto esfregando-o na nossa cara para tentar vencer aquelas espinhas tenebrosas. Não deu muito certo, porém era o que dava para fazer. Tentei passar na prova de admissão, mas eu não alcancei o resultado esperado para prosperar no teste! O motivo era sempre o mesmo; não conseguia usar meu tempo somente para estudar, sempre tinha que trabalhar e arrumar uma oportunidade sobrando para aprender as lições. No entanto, essas chances eram continuamente difíceis de decorrer. Foi a partir desse evento que decidi largar os estudos totalmente e definitivamente nunca mais estudei dentro dos padrões oficiais do ensino, segui em frente e fiz do meu

trabalho, a minha escola, a minha maneira de aprender o que a vida tinha para oferecer e tudo que vivi naquele tempo juvenil, foi a minha real sala de aula.

Os meus olhos se ampliaram, começava a brotar em mim os grandes valores da vida, comecei a compreender ser fundamental saber cortar a corda na hora certa, para jamais se apegar ao mundo no qual me servia de aprendizado, mas que não correspondia às minhas mais profundas aspirações, vontades e desejos. Isso significava que eu continuava querendo sair do sertão em busca de uma vida melhor lá por São Paulo.

Eu sempre pensei, desde criança, em deixar o sertão e ir embora dali, naquela época ir para São Paulo era uma febre, o povo de lá só falava nesse assunto. Desde pequenininho ouvia conversas de gente que tinha ido para lá. Meu tio e padrinho Geraldo, inclusive, tinha ido embora para cidade de pedra, a selva de concreto que o povo falava, a tão famosa locomotiva industrial do Brasil e residia lá, no mundo paulistano.

Em mim sempre vibrava uma permanente e recorrente convicção na qual um dia, sairia de Cabrobó. Essa concepção era muito intrigante e forte dentro do meu ser... – penso até ter sido obra do destino também, dessas situações em que as circunstâncias colaboram para conseguirmos acessar cometimentos de vontades –, tanto era que ao final dos meus dezesseis anos eu já havia comprado um malote na feira, uma maleta, uma mala estilo valise de mão feita de compensado e forrada com papel de presente, para quando eu precisasse ir embora, tivesse como e onde transportar minha roupa. Eu, entretanto, sempre mantinha minha intenção de partir no momento certo daquele universo pastoril, a sensação sentida na minha alma era a de não conquistar satisfação pessoal, de ininterruptamente faltar alguma coisa que eu não achava por ali. E por mais que estivesse acostumado no meu espaço roceiro, era um costume incompleto, não integral, não contemplado como eu queria que fosse. Minha mente trabalhava também, arquitetando mentalmente a maneira de como agiria fora daquele mundo agrícola, sonhando em prosperar distante da zona rural, num ambiente urbano mais propício para crescer materialmente.

“Com apenas 18 anos de idade, nos meus idos tempos de juventude interiorana e pastoril.”

“Com 20 anos de idade, fixando obstinadamente, a estratégia para deixar o Sertão e rumar para São Paulo.”

Comprei a mala e guardei... E como constantemente tinha muito zelo com minhas coisas, a malinha sempre ficou nova, porque eu sabia que mais cedo ou mais tarde, ela me serviria! O mais interessante era a maleta ter uma chave e todas as vezes que eu dava uma espiadinha nela, minha imaginação se enchia de pensamentos e ideias de como seria o meu real trânsito da zona rural para uma cidade realmente grande e rica de possibilidades. Mas, ao mesmo tempo imaginando tudo isso, eu refletia e pensava sobre os desafios e dificuldades que seria migrar para São Paulo, sendo ainda um jovem tímido, meio matuto, sem estudo e com certa dificuldade até para conversar com as pessoas, principalmente se elas fossem desconhecidas. O querer, ainda, não era poder, naquela idade! Fiz da paciência, uma boa companhia na minha vida, porque ela passou a fazer parte do meu tempo campeando pelas trilhas, veredas e vielas da vida de vaqueiro e agricultor.

Como nossa família tinha um gado familiar no sítio da gente, eu me tornei um vaqueiro cuidador, um vaqueiro profissional, um vaqueiro corajoso. O trabalho era difícil, arriscado e perigoso, sempre tinha o risco de cair da montaria e quebrar alguma parte do corpo, ser dilacerado pelas patas dos animais, ser picado por cobras peçonhentas e tentar escapar dos espinhos sempre presentes na vegetação sinuosa. Precisava de muito fôlego, perspicácia, trato com o animal e caber bem no “terno de couro”, a farda, a vestimenta, o traje obrigatório de todo bom vaqueiro.

O uso da roupa pelo vaqueiro não era importante só culturalmente, ela aumentava a proteção do corpo, dava um certo conforto abaixo do sol extremo e muita segurança na hora do trabalho. Primeiro, entrava a perneira, depois o guarda peito, as botas, o gibão, as luvas e por último o chapéu de couro. – Até ao presente momento tenho marcas, cicatrizes e manchas de sol nas minhas

mãos, porque eu não usava luvas e o motivo de não as usar, não era por não querer, era por não poder... A verdade era que não tinha dinheiro para as comprar. O gibão, por exemplo, protegia os braços, os peitos e as costas, visto que a carreira atrás do gado era pelo meio do mato e se o vaqueiro caísse, poderia se ralar muito, por causa das pedras no chão, dos espinhos e ramadas de galhos na caatinga. Além de sustentar a pele no atrito com o boi, porque quando o peão ficava agarrado ao bovino, o sujeito se estatelava pelo terreiro e necessitava estar com essa defesa imprescindível. Rememoro, por exemplo, um ocorrido comigo lá pelos meus diligentes dezessete anos de idade. Eu estava correndo atrás de uma novilha que à época estava mojada, ou seja, na nossa linguagem sertaneja significava que ela estava prenha, estava bem próxima de parir, uma vez que lá na roça quando a vaca ia gerar o bezerrinho, era fundamental colocar um chocalho na mesma para facilitar o encontro da cria para curar ou executar outra necessidade do bezerro pela campina, já que nós criávamos o gado totalmente solto pelo mato durante o ciclo de chuvas e só os prendíamos no verão para lutar em salvá-los da seca braba.

Cavalgava atrás da novilha no meu cavalo e meu pai ia montado no burro dele. Eu bem mais veloz, porque o burro não corre muito, fui me aproximando da vaca e ficou aquela tensão do “pega e não pega”. Quando já estava quase conseguindo encurralar a vaca, foi que o inesperado aconteceu, enrolei-me pela presença da carqueja no terreno – carqueja é um arbusto ramificado, com coloração verde-clara; folhas pequenas e muito abundante nos pastos e serve até de comida para os bodes. O tatu cavou por debaixo da carqueja e deixou um buraco bem raso, ficando somente a casca da escavação do lado da folhagem. Então, a vaca deu um pinote e saltou a moitinha e meu cavalo atrás se preparou para realizar o pulo também. Mas quando ele foi forçar para saltar, a pata dele desceu vertiginosamente, afundando precisamente no buraco feito pelo tatu, que não suportou o peso dele e o meu cavalo acabou tombando em cima de mim.

“Minha alma sertaneja, caminha comigo por todos os lugares em todos os momentos, por todos os cenários. Minha primeira profissão, a de vaqueiro, outorgou-me um ensinamento raiz e substancial: - Vaquejar é aprender a lutar sempre pela sobrevivência, é uma extensão da luta da vida, só que por outros meios!”

O cavalo com cela e tudo veio com toda força e peso sobre as minhas costas... Aí foi uma aflição medonha, porque eu perdi o fôlego ficando imediatamente sem fala. Procurava o ar de todo jeito e nada, virava de lado estorcegando e nada, forçava o peito sentindo uma dor aguda nas costas e nada. Nem gritar por socorro eu conseguia, muito menos conseguiria pedir ajuda ali por perto, visto somente o meu pai estar nas adjacências das paragens chegando lento em seu burro que caminhava como uma lesma pelas trilhas, rumando ao meu encontro. O ar que me faltou foi tão violento que eu só arquejava e já estava quase à beira do delírio quando uma gota de oxigênio varou os meus pulmões, após um esforço dilacerante da minha parte em lutar para recuperar a respiração. Por consequência fiquei ali no chão caído rolando para um lado e para o outro, sem fala e respirando com muita dificuldade. Foi aí, todavia, que meu pai apareceu em seu burro bem devagar, olhou para mim com um aspecto atravessado pela contrariedade em me ver todo retorcido no piso da terra, desceu do jerico dele jogando a corda do animal para que eu segurasse o burro, mesmo eu me revirando de dor e com imensa atribulação para conseguir manter minha respiração. Como meu cavalo já havia se levantado, o meu pai montou nele e saiu em disparada atrás da novilha, deixando-me lá na terra quente em uma situação à beira do desespero.

Continuava lá na superfície do solo e os minutos passando morosamente, parecia uma eternidade que não se findava, parecia existir um clima de luta para eu não suportar aquela crise, um desmedido desconforto ainda reinava sobre minha estrutura física. A agonia, contudo, foi se amainando, estava se diluindo e mesmo em apuros, já conseguia respirar melhor perpetrando muita força para alcançar esse êxito. Entretanto, prosseguia sem fala e rodando no terreiro, porque a dor ainda era bem intensa e meu corpo estava envolvido em uma fraqueza pelo efeito da queda. Meu pai conseguiu amarrar a vaca e retornou lá para ver em qual situação eu me encontrava. Falou algo que não consigo me lembrar, todavia, a dor não me permitia responder. Ele desceu do cavalo, esperou eu parar de me torcer pela terra, e fazendo um esforço hercúleo, pôs-me sobre o dorso do animal, conduzindo-me para nossa casa em busca de ajuda para eu melhorar.

No retorno para casa, minha mente oscilava em mil pensamentos aflitivos... Sentia muita dor, fraqueza e um exorbitante medo, porque realmente pensei que tinha quebrado o espinhaço. Remoía nas ideias não poder mais caminhar, exercer a montaria e mesmo correr pelos campos. Em um grande turbilhão de pavor, seguia montado e refletindo muita coisa rumando para minha casa. Naquele momento, minha alegria estava suspensa, a brisa cálida não existia e somente a natureza do sertão me acompanhava. Só Deus para explicar tudo o que realmente ocorreu, só Deus em seus infinitos mistérios para ter me concedido um milagre.

Quando cheguei em casa não tinha remédio para dor, era uma sexta-feira à tardinha e fiquei deitado numa esteira me recuperando. A respiração já

funcionava naturalmente e a dor passou definitivamente pela noite. Foi no sábado que busquei tratamento na cidade auxiliado pelos meus familiares; eu já estava andando devagarinho e sem experimentar crise alguma. Lá, no sertão, quando por qualquer motivo, torna-se necessário ir para a cidade, nós falamos que vamos para a rua. Então, indo para a rua, não encontrei medicamento nenhum para tratar o meu baque, nem recurso ambulatorial e muito menos médico. O mais notável nas cidades do interior de Pernambuco, é que todos sempre têm uma receita na cabeça para qualquer tipo de sucedido com a gente. Foi nesse contexto que alguém me orientou a tomar cerveja preta, em razão de servir para curar as carnes doídas do meu corpo e servir de remédio para qualquer decorrência negativa pelos órgãos no meu organismo dolorido.

Não pensei duas vezes e dei a mim mesmo o consentimento de seguir a orientação de quem havia me dado o conselho para beber cerveja preta e curar a pancada. Caminhei até a farmácia da cidade e procurei por lá esse tipo de líquido escuro. O mais incrível foi constatar existir o produto na drogaria; avistei a cervejinha preta e comprei lá umas três garrafinhas. Levei para casa e tomei no mesmo dia, os três frascos contendo cerveja preta e por extraordinário que pareça, fiquei bonzinho das costas e das dores pelo meu corpo.

O ar que me faltou foi tão violento que eu acho que só não morri, porque não me lembrei... Concretamente, essa foi uma recordação bem dolorosa e trágica para mim. Muito mais que um acidente, essa queda física imprimiu no meu ser um grande aviso da importância da experiência, da prudência e de que por mais que sejamos fortes e independentes, todos nós precisamos uns dos outros nas inclemências da vida.

O cenário era moldado com o mandacaru, que compõe a família dos cactos do semiárido, também conhecido como cardeiro, anunciando o “final do ciclo da seca” quando suas flores nascem em terras extremamente áridas. Impressiona bastante o tamanho dessa planta, porque ela pode chegar até cinco metros de altura, além de servir de alimento para o gado, visto que há mandacarus que não possuem espinhos. O mandacaru compõe naturalmente e simbolicamente também o espírito nordestino, por manifestar atributos como resistência, adaptabilidade, durabilidade e beleza de suas flores. Existe por lá, similarmente, a coroa de frade, que é bem menor e tem uma forma arredondada. Tem espinhos finos e grossos e suas flores têm coloração rosa e vermelha. As abelhas têm uma verdadeira adoração pelas flores dessa planta típica do sertão. Quando essa planta chega em sua fase adulta, ela desenvolve uma espécie de coroa avermelhada no topo, por isso passou a ser nomeada de coroa de frade, visto se assemelhar à cabeça calva de um frade franciscano. Existe a tradição de fazer decoração com a planta, além do povo do semiárido fazer chá para tratar doenças e o uso da coroa de frade inteira para preparação de biscoitos, bolos e doces.

“Eu sempre valorizei a minha Caatinga magnífica, o meu torrão de sentimento, os meus pés céleres descalços alisando o chão e percebendo o Juazeiro extraordinário, na seca braba uma beleza dolorosa, no período de chuva um verdor deslumbrante.”

Outro portentoso cacto do panorama da caatinga é o xique-xique, com seus galhos que se alastram pelo torrão em matiz verde-claro. Os agricultores recorrem ao xique-xique, quando não há mais outra alternativa para alimentar os animais nas estiagens mais agudas, porque sua utilização é difícil, em função de seu pontudo conjunto de muitos espinhos brancos. Sua floração é belíssima e marcante, a planta faz nascer uma flor um pouco rosada e com uma proteção acolchoada de algodão. Seus frutos são um néctar e representam muita vida para os animais da região e são como bagas em coloração esverdeada por fora e avermelhada por dentro. Seu caule faz o milagre do armazenamento de água no período chuvoso para suportar a longa estação sem água na região. A água é levemente salobra e no sol escaldante serve para matar a sede, é possível consumir o líquido retirando com cuidado os espinhos e mastigando a polpa, sugando de lá o líquido armazenado. A polpa do fruto tem uma cor púrpura muito chamativa e pequeninas sementes pretas, mas é preciso um grande cuidado e muita atenção para manipular o xique-xique, dado que literalmente é riquíssimo em espinhos e tem uma arquitetura parecida com um candelabro gigante com seus galhos recurvados.

Como era bom campear... aprendi a respeitar os limites da natureza, aprendi a fazer amizade com meu cavalo, a compreendê-lo, e tê-lo como um grande parceiro, um guia; alimentava-o bem, limpava-o, tratava-o com o zelo devido. Sempre o bom trato, quando era preciso buscar auxílio para a cura do animal, eu não me fazia de rogado, quando ele cansava, tinha sua folguinha, tinha seu descanso merecido. Afinal, o animal me ajudava, me auxiliava na lida diária e me socorria para eu lutar pelo pão de cada dia, assegurando a manutenção da nossa família. Sentia uma boa alegria, uma sensação de dever cumprido e a quentura que fazia nas trilhas da boiada, eu tirava no grito.

Nós andávamos em pequenos grupos pelos atalhos sertanejos, rastreando os passos dos bois e seguindo as trilhas do gado, cavalgando pelas vielas da caatinga até encontrar os animais. Quando dávamos de encontro ao rebanho desgarrado, a perseguição começava no rumo deles vegetação adentro, até o momento no qual conseguíssemos a captura. Na caatinga era comum o gado ser criado solto para acostumá-los a terem uma certa autonomia de buscarem água e alimento no período da seca. Como o rebanho não conseguia ficar sempre unido, alguns bois se perdiam e se desgarravam. Então, o trabalho de vaqueiro para recuperar o boi entrava em ação.

A atuação primordial era derrubar o gado ou laçá-lo quando fosse possível, um pastoreio montado na agilidade e destreza, regado a uma profunda tradição de saberes, técnicas e domínios. Penso que sempre tive boa saúde ao longo da minha vida, justamente pelo resultado de ter sido vaqueiro quando jovem. Era preciso muita resistência física e mental para jamais vacilar no desemprenho. Era necessária muita coragem para vencer o estouro da boiada e muito engenho para participar das pequenas vaquejadas.

Eu gostava de comparecer e ver a missa do vaqueiro, em meio à caatinga do sertão de Pernambuco, uma grande leva de vaqueiros de todos os lugares

se reuniam para homenagear um antigo vaqueiro morto, lá pelas bandas do alto sertão do Araripe, localizado a quinhentos quilômetros do Recife. Depois fiquei sabendo o nome do audacioso vaqueiro celebrado por todos. Chamava-se Raimundo Jacó e foi por causa dele que a missa do vaqueiro passou a existir. Ele foi morto em uma tocaia e como era muito conhecido e tido como um sertanejo de muita coragem, acabou sendo homenageado pelo também pernambucano Luiz Gonzaga que além de ser um dos maiores cantores nordestinos de todos os tempos, era primo de Raimundo Jacó.

O Rei do Baião compôs uma música intitulada “A Morte do Vaqueiro”, que serviu de estopim para se iniciar a tradição do evento religioso realizado à céu aberto, para um grande ajuntamento de vaqueiros de várias cidades do nordeste. O padre e pároco João Câncio foi o responsável em iniciar a missa campal para guardar a memória e o legado do lendário vaqueiro morto.

A missa do vaqueiro era muito bonita e cheia de fé. Eu, particularmente, sentia uma grande paz quando participava da celebração. Era um momento de consolo em que parecia que Deus ouvia o meu lamento, a minha reza e a minha súplica mais de perto. Eu que era um campeador no meio do mato, um conhecedor do chão árido das veredas do sertão de Cabrobó, correndo na campina na onipresença do trabalho sertanista, também tinha tempo para pensar em Deus, em Jesus e Nossa Senhora.

Nas quebradas do sertão a missa do vaqueiro marcava a tradicional lida de todos nós, lá se via a olho nu a fé viva do povo trabalhador nordestino, lá se percebia mais profundamente a cultura, o imaginário, a rica e brilhante tradição de um povo acostumado a trabalhar no pesado sem jamais esquecer a fé e sempre com um sorriso verdadeiro.

A sublime música “Asa Branca” do pernambucano de Exu, Luiz Gonzaga, marcou todo o meu tempo de vaqueiro em Cabrobó. Uma canção fantástica que eu gostava muito de cantar e de ouvir. A viola caipira, o triângulo, a flauta doce, a sanfona, o violão de sete cordas, o cavaquinho, o bandolim, o pandeiro e a rabeca marcavam a sonoridade e o ritmo da melodia entoada pelo grande Gonzagão.

Até o presente momento da minha existência, mesmo muitos anos distante daquele mundo e daquele tempo, o som de “Asa Branca” continua a vibrar comigo, porque realmente é uma toada dos sofrimentos que os nordestinos enfrentam e superam. Penso que Asa Branca é o hino do nordeste, o hino do sertanejo, o hino dos vaqueiros. A letra da composição escrita pelo genial cantor Luiz Gonzaga, é uma obra-prima e de fato diz muito sobre o contexto do meu sertão:

“Quando olhei a terra ardendo

Qual fogueira de São João

Eu perguntei a Deus do céu, ai

Por que tamanha judiação?

Eu perguntei a Deus do céu, ai

Por que tamanha judiação?

Que braseiro, que fornalha

Nem um pé de plantação

Por falta d’água perdi meu gado

Morreu de sede meu alazão

Por farta d’água perdi meu gado

Morreu de sede meu alazão

Até mesmo a asa branca

Bateu asas do sertão

Entonce eu disse, adeus Rosinha

Guarda contigo meu coração

Entonce eu disse, adeus Rosinha

Guarda contigo meu coração

Hoje longe, muitas léguas

Numa triste solidão

Espero a chuva cair de novo

Pra mim voltar pro meu sertão

Espero a chuva cair de novo

Pra mim voltar pro meu sertão

Quando o verde dos teus olhos

Se espalhar na plantação

Eu te asseguro não chore não, viu

Que eu voltarei, viu

Meu coração

Eu te asseguro não chore não, viu

Que eu voltarei, viu

Meu coração.”

Em uma fotografia descritiva da minha adolescência e juventude campesina, posso dizer que vi, aprendi, fiz, trabalhei e observei aquele mundo cultural em brasa. Casas de pau a pique ou taipa de mão, com cipós, barro e madeira, consumavam o lar de muita gente vigorosa.

Nas mãos de homens habilidosos enxerguei o tangenciamento da espingarda lazarina de pequeno calibre, dotada de seu cano único, catapultando sua mira para a caça de aves modestas, porque para muitos nordestinos, em tempos de profundas crises, era o único meio alimentício de proteína, naqueles tempos recuados, cuja a boa informação e o auxílio do Estado nunca chegaram.

Como versejam no repente os cancioneiros Valdir Teles e Moacir Laurentino no Decassílabo: Cenário do Sertão. Testemunhei também do meu jeito o vaqueiro destemidamente pegar o boi zebu, vencendo os desafios da campina, enxerguei o cachorro acuado pelo tatu, lutando no engenho de seu instinto. Avistei o voo do carcará e sua envergadura de falcão pelos horizontes do caminho, empanado em sua plumagem arrebatadora, cumprindo seu ritual de ave de rapina atacando o galinho no terreiro.

Observei o plano do falcão escondido na faxina para agarrar o pinto novo no campo, o bailado dos preás catingueiros, presenciei os passarinhos na dormida e também produzi pasta de rapa de juá cuja espuma é do jeito de um sabão. A pasta servia para escovar os dentes, já que não havia dinheiro para comprar creme dental. Adorava ficar sugando a espuma de juá, era realmente uma delícia de doce e muito refrescante. Mirava o peba quando campeava, o famoso tatupeba; com sua tonalidade amarronzada cuja couraça contém diminuta pelagem, com sua cabeça vexada em um jeito coniforme.

Realizei parto de vaca na pastagem, fiquei esperto nas passadas dos cavalos e aprendi a ver o horário pelo sol e pelo galo. Assimilei as espécies de flores e folhagens pelo aroma, vi cercas e cercas de muitas formas. Currais, candeeiros crepitantes, umas pedras de cocada, plantação, sabiás. Construí também minha força nordestina, vendo a aurora de cada dia convidar para muito mais.

Eu nasci e vivi até meus vinte um anos no coração do sertão nordestino de Pernambuco. Com arbustos e plantas espinhosas, sorvendo a rudeza pastoril, devorando as veredas hostis, em meio à paisagem caprichosa repleta de resistências e profundos ensinamentos. Algumas vezes minha alma se encantava com tudo aquilo, outras vezes ela se dilacerava e se despedaçava em mil lamentos. O sertão, verdadeiramente, deu-me muito do que sou por dentro. Mas alguma coisa faltava, por mais agradecido que fosse pelos hábitos sertanejos, não conseguia preencher um grande vazio que me consumia.

Queria construir uma vida tão bela como o esplendor do amanhecer, mas ao mesmo tempo, tão segura como uma casa fabricada na rocha. Eu sofri muito no sertão, um sofrimento comburente abarrotado de aflições solitárias. Então, passei a crer que a vida tinha um objetivo maior do que somente seguir a roda da escassez... – Era crer assim ou se entregar ao desespero, coisa que eu nunca faria. Precisava apenas desenvolver uma coragem titânica ante todas as adversidades, não meramente para as vencer..., mas precisamente, para as suportar, e quando não pudesse as superar, fosse eu um sujeito mais resignado, aprendendo que os prejuízos também estavam me ensinando.

Ao recordar as reminiscências do meu passado, encontro nessas divagações, uma vontade firme e constante dentro daquele jovem que eu era. Alguém que ambientava dentro de si, uma decisão de ocupar o seu lugar na vida, que jornadearia fora do ninho para empreender seu objetivo existencial.

O que viesse, o que acontecesse, deveria ser um estímulo para avançar, ainda que fosse a sede, a febre e os tormentos dos caminhos. Era preciso plantar capacidade, compreender a dose de energia para ir além e ter vigor no meu campo mental, logrando ultrapassar a estreiteza e a ineficácia do medo. Por isso, até ir embora do sertão, eu fiz amizade com meu mundo rural, fiz uma conexão com a terra, desfrutando de tudo que a natureza da caatinga oferecia para fazer um jovem e depois um homem realmente forte!

Até que os ventos da mudança chegassem, era preciso escolher entre a esperança ou o desespero, o trabalho ou a ociosidade, o cumprimento do dever ou a rebeldia, a fé ou a dúvida, a vida ou a morte. Tornei-me já na minha juventude, alguém preparado para o que os antigos chamavam de: “um sujeito pronto para o que der e vier.”

Algumas noites quando eu ia dormir eu me pegava pensando no que fazer para melhorar minha condição, uma convicção não me abandonava jamais: a de ir para São Paulo no momento que eu tivesse dinheiro para comprar a passagem. Rezava, imaginava e me indagava: “Quando será que tudo isso vai passar?”

Outras vezes os mesmos pensamentos me enchiam a cabeça, e o sertão físico se tornava um sertão emocional agudo dentro de mim. E isso, sinceramente, eu não gostava de sentir!

Depois que fui tendo mais consciência da alta aposta que estava fazendo em continuar alimentando a ideia de deixar o sertão para buscar uma vida melhor em São Paulo, eu fui percebendo que lagrimar, sentir medo e conceber uma certa ansiedade, fazia parte do resultado interno de sentir tudo com muita força no meu ser, e essas sensações jamais contribuiriam para qualquer desistência da minha parte, em pôr minha convicção em prática no momento mais oportuno e partir daquele rincão.

Fiquei trabalhando com meus pais até os dezessete anos de idade, instante no qual, resolvi trabalhar em um terreno que eles possuíam na margem do caudaloso e torrencial rio São Francisco em Cabrobó. Lá acabei comprando um motor de irrigação da marca “PET”, uma motobomba que serviria para realizar a sucção da água do ponto de captação no leito do velho Chico e aguar a lavoura na qual eu arava a produção.

A máquina era recondicionada e, infelizmente, só me deu problema. Foi a minha primeira desilusão como empreendedor iniciante, visto ser esse um empreendimento no qual eu realmente estava muito empenhado para dar certo. Pensava até em não deixar o sertão se essa iniciativa prosperasse. Mas não foi o que ocorreu, o equipamento me fez foi passar uma raiva, porque não funcionava a contento.

Um dia o aparelho bateu biela, ou seja, o motor havia fundido, estava rajando, ficava serrando, porque tinha uma folga medonha nos elementos principais do motorzinho, gerando uma ineficiência no funcionamento adequado do propulsor e não havia como regar a agricultura e consequentemente a minha cultivação na terra estava passando sede.

Recorri a um tio meu, para tentar sair da situação complicada na qual eu me encontrava, conversei com ele e lhe expliquei como deveríamos trabalhar unidos naquela empreitada rural. De cara, meu tio, aceitou a proposta e imediatamente fizemos uma sociedade. Ele entraria com o motor, já que eu não tinha mais como reparar ou retificar a bomba de irrigação que só me deu dor de cabeça, entraria também com os defensivos agrícolas – que têm a função de defender o trabalho na terra do acometimento de insetos, ervas daninhas e doenças que possam dificultar o crescimento do que foi colocado no arado, fossem as sementes, fosse o adubo – para ajudar na contenção de pragas consideradas prejudiciais à lavoura. A lida no solo ocorreria e quando fôssemos colher o plantio, ele tiraria as despesas do investimento e o restante iríamos rachar no meio a meio.

Queria poder contar aqui que foi um sucesso, relatar a agradável satisfação de ter feito dinheiro no meu primeiro negócio mais profissional, escrever que minha primeira sociedade mais sólida deu resultado, que pela primeira vez na minha vida eu tinha conseguido sair da estaca zero e ter lucro em um negócio próprio. Afinal, eu tinha ido à luta, tinha colocado a cara ao sol de uma maneira mais independente. Mas a vida não é um conto de fadas, muito menos uma conta de somar que só dá resultado positivo. Entrava ano e saia ano e nada das contas serem prestadas, não avançava um palmo, não conseguia aumentar um metro no capital, não aumentava a produção e posso confessar, com um certo pesar, de que não recebia integralmente a promessa da sociedade feita, era sempre a mesma condição de subterfúgios, embromação e promissão não cumprida.

Lembro como se fosse hoje, quando eu falava: – Vamos acertar as contas que quero ir embora para São Paulo. E a resposta vinha a jato como uma sonora negativa. Daí eu pensava, “e agora, como é que eu vou sair daqui se não tenho um centavo no bolso?”

Os dias, meses e anos foram passando e cheguei aos vinte um anos na mesma condição de sempre. Solteiro, liso e sem muita perspectiva de vencer na vida, principalmente ali, onde me encontrava, posto que, a irrigação não deu certo do ponto de vista financeiro. E como desde criança eu alimentava a ideia de ir embora de Cabrobó para São Paulo, tomei a decisão sem volta de me preparar para, finalmente, ir embora dali. Essa resolução peremptória veio muito em função do fracasso da sociedade na lavoura, pois não tinha condições de pegar em dinheiro, o que eu plantava e colhia não resultava em nenhum tostão no meu bolso e era um negócio pequeno, não tinha espaço nem capital para crescer. Eu não tinha outras fontes para investimento, não possuía nada,

não tinha de quem emprestar qualquer subsídio e somente podia oferecer minha força de trabalho na sociedade capenga com meu tio.

Botei na cabeça que não dava mais para viver naquela situação vexatória e sem futuro, era a única saída para eu tentar construir algo novo, realizar meu sonho de vencer materialmente na vida, sem deixar os valores aprendidos no sertão de lado. Pelo contrário, os princípios aprendidos com minha mãe, a experiência adquirida com meu pai, o estilo e jeito de ser, forjado na caatinga e na vida campestre e pastoril, mais o afeto familiar que ia por dentro de mim, sempre estariam comigo, onde quer que eu fosse, onde quer que eu estivesse, onde quer que eu fizesse morada.

Eu arquitetava de longe minha saída, o mais interessante foi ter dado tempo de noivar com uma namoradinha com aliança no dedo e tudo. Mas não deu certo também... Minha mãe Orminda não concordava com o possível casório. Ela tinha os argumentos dela, penso que ela imaginava que eu não tinha condições de manter uma casa, de sustentar sozinho uma família, porque eu não tinha dinheiro nenhum mesmo. Então, deixei de mão o noivado e isso alimentou ainda mais minha decisão de seguir para a capital econômica do Brasil. Comecei a dizer para todos da minha família que estava me arrumando para ir embora, estava me preparando, organizando-me, pagando algumas continhas, encerrando algumas pendências da minha parte.

Porque eu aprendi, apesar de todas as dores e dificuldades enfrentadas, todas as agruras e desafios extensos calcados na minha vida juvenil, toda as desilusões da jornada sertanista, todas as aflições suportadas, todos os dissabores do caminho... Ser um indivíduo que soube sentir gratidão. Gratidão por viver, por ter uma saúde como uma pedra bruta que aguentava o rojão, gratidão pela minha família, gratidão por ter tido o que comer, ainda que fosse simples e sem sofisticação. Gratidão pelos animais que me serviram de montaria, gratidão pela água que me matava a sede, gratidão porque dentro de mim vibrava uma espécie de esperança realista. Sempre acreditei, instintivamente, que Deus sempre ajudou as pessoas boas, as pessoas santas, as pessoas esquecidas, as pessoas injustiçadas, as pessoas necessitadas, ajudaria também um sertanista matuto e desengonçado, mas cheio de coragem, que na prática seria mais um pretenso retirante, mais um suposto nordestino na diáspora. E ainda haveria o desafio de vencer o apego do passado para estar mais livre, em busca de uma boa colheita no futuro, porque quando fosse embora, se mantivesse os olhos nas costas, estaria preso emocionalmente ao sertão, e não conseguiria permanecer fora dali por muito tempo.

Com exatos vinte um anos, e mais liso do que costa de pão doce, fui procurar meu tio para acertarmos às contas, encerrar a sociedade e me livrar daquele ciclo que não me levava a lugar nenhum. Ele, por sua vez, repetia o mesmo mantra de sempre, dizendo que não tinha dinheiro naquele dia para me pagar. Eu, todavia, estava tão decidido na minha resolução em sair fora do sertão, que só tive uma alternativa para conseguir a grana e comprar a passagem de ida para São Paulo.

No sertão nordestino existe uma tradição que ao nascer um bebê e após ser realizada a cerimônia do batizado, os padrinhos possuidores de mais condições financeiras, acabam presenteando a criança com uma bezerra. É uma herança cultural muito arraigada, muito presente na zona rural de Pernambuco. O meu padrinho Isaías, portanto, que era irmão da minha mãe, deu-me quando fui batizado uma novilha bem saudável. A bezerra foi crescendo, pegando plumo e ela teve sete parição e só paria macho. Meu pai vendia os garrotes e não me dava o dinheiro da venda, acabava gastando o dinheiro, que por direito, em função da tradição, deveria ser guardado para mim, ser investido em alguma benfeitoria de meu agrado ou até vir para minha mão, já que era uma moeda defluente da comercialização dos novilhos da vaca que era minha. O tempo passou e mais à frente, meu pai acabou comprando outra vaca para substituir a primeira que eu havia ganhado do meu padrinho. Então, a única maneira que eu tinha em mente para conseguir dinheiro e poder comprar a passagem de ônibus e ir embora para São Paulo, era conseguir vender a minha vaca para alguém. Pensei bastante, matutei muito, até decidir procurar o meu avô e tentar vender a minha vaca para ele.

Fui à fazenda do meu avô Antonio de Joza e como ele gostava de sentar em um degrau sobre um batente na porta da frente da casa, que ficava em frente a barragem onde o gado bebia água, comecei conversando com ele à tardinha, sobre outro assunto, para fazer uma chegada mais firme na hora de propor a venda da minha vaca para ele.

O degrau ficava em frente da porta que dava para uma sombra d’água e tinha sempre um ventinho gostoso, uma brisa calma e muito suave. O mais intrigante foi que sem eu jamais esperar, sem ao menos imaginar a possibilidade da coincidência, a dita vaca, a minha vaca, veio descendo para beber água no açude defronte à casa grande da fazenda Logradouro. Então, como se o destino estivesse me dando um sinal, não perdi tempo e já fui oferecendo a minha vaca a meu avô. “Vô, estou indo para São Paulo e meu tio não tem dinheiro para me pagar no momento, e, infelizmente, não tenho um tostão no bolso. Eu tô liso e a única coisa que tenho é essa vaca aí bebendo água no açude. Gostaria muito de vender ao senhor, porque realmente não tenho outra saída para conseguir o dinheiro da passagem”.

Ele ficou me olhando, passou a vista na vaquinha, pensou um pouco e perguntou: “E quanto é a vaca?” ... Eu disse a ele que custava oitocentos cruzeiros (naquela época), mas ele, imediatamente respondeu: – Não, não! Oitocentos não vale de jeito nenhum, essa vaca aí só vale setecentos cruzeiros. Como eu estava no limite da vontade de ir embora, eu não contei conversa e redargui: – Pois então me dê esse dinheiro!

Ele indagou para quando eu queria a quantia acertada entre nós... Respondi querer o dinheiro para ontem! Meu avô se espantou, mas afirmou na sequência: “Pois vá sábado para Cabrobó que lá eu lhe darei a quantia acordada”.

“(...) Ele ficou me olhando, passou a vista na vaquinha, pensou um pouco e perguntou: E quanto é a vaca?” ... Eu disse a ele que custava oitocentos cruzeiros (naquela época), mas ele, imediatamente respondeu: – Não, não! Oitocentos não vale de jeito nenhum, essa vaca aí só vale setecentos cruzeiros. Como eu estava no limite da vontade de ir embora, eu não contei conversa e redargui: – Pois então me dê esse dinheiro!”

Como eu sabia ter meu avô, um dinheiro grande na mão de uma pessoa lá na cidade, porque ele vendia uns bois e empestava um bom valor para umas pessoas da zona urbana, e durante o verão ele ia recebendo as frações. Então fui para Cabrobó e no sábado recebi os setecentos cruzeiros das mãos dele e já emendei para comprar a passagem. Foi uma noite cheia de ansiedades e um turbilhão de emoções se alojou dentro do meu peito. Afinal, no outro dia conseguiria realizar uma vontade alicerçada desde menino. Passei a madrugada imaginando que, finalmente, iria conhecer a tão sonhada São Paulo e eu não tinha nem ideia de como era uma cidade grande.

Minha mala comprada e guardada desde os dezessete anos de idade estava, por fim, arrumada para ir comigo, para vencer fronteiras ao meu lado, para galgar novos ares junto a mim, apertada pelas mãos suadas de mais um retirante, objetivando lançar a sorte na cidade grande. O malote ainda estava lá, feito de papelão forrado com papel de presente, as mudas de roupas eram somente três calças e três camisas, vesti um par e botei dois pares no malote. Imaginava quantas foram as vezes, ter dito que um dia iria embora do sertão, concebia na minha mente os sonhos que regaram vinte um anos na zona rural de Cabrobó, lutando, esgarçando o tempo, querendo vingar economicamente na lavoura, mas sem resultado efetivo.

Onde fui buscar tanta coragem, meu Deus?

Como consegui sair sozinho da roça sem nada nas mãos?

Por que de todos os meus irmãos, eu fui o único a ter ânimo, destemor, ímpeto, resolução, ousadia, intrepidez, desassombro e valentia para seguir em frente para o coração econômico do Brasil, “sozinho” e do nada, construir uma vida improvável até para os que são cheios de otimismo?

A verdade é que eu não tinha escolha... – Ou mantinha a minha firmeza de espírito em lutar pelos meus sonhos ou o medo de superar as condições adversas da vida, tornaria-me alguém que viveu à sombra de si mesmo e não foi além da sua limitante cerca.

Entrei no ônibus da viação Progresso e segui de Cabrobó até Petrolina, sem olhar para trás nenhum segundo. Chegando lá comprei uma passagem da viação Itapemirim rumo a São Paulo e para não deixar o arrependimento bater e estragar tudo, eu não ficava pensando no sertão. Nunca tinha viajado de ônibus e onde eu parava, fosse para almoçar, fosse para jantar, pelo medo de me perder, anotava o número do ônibus e não tirava o olho dele, porque onde ele parava, haviam de vinte a trinta ônibus. Às vezes, ficava matutando impressionado em ver gente diferente e o cenário novo. Embalado por profundas emoções e frenéticos pensamentos, mal conseguia ficar sentado na poltrona do ônibus, mal conseguia me aquietar de tanta expectativa, mal conseguia fixar a cabeça no transcorrer da viagem. Enfim, uma nova jornada, uma nova vida completamente diferente do que já tinha vivido, um novo tempo para eu conquistar, por meio da superação dos novos desafios o meu lugar ao sol.

São Paulo recebia em seus braços, mais um matuto do sertão, cuja a fé e a coragem, forjadas na enxada e na caatinga, responderiam de onde vinha tanta força.

“Meu nostálgico avó materno – Pedro Francisco de Freitas.”

“Apesar de não ter conhecido a minha avó materna, chamada Olivia Batista Coelho de Bonfim. Fica aqui minha homenagem especial para ela.”

“Casa do meu grande avô Antonio de Joza, na fazenda Logradouro, uma construção magnífica no coração do meu imponente Sertão. Com seu aspecto moderno, mas com sua essência primitiva. Aí vivi mil momentos extraordinários. Todos os anos nos encontramos nessa casa para festejar os mais sólidos elos de todos os nossos familiares.”

Não era mais um desertão, era uma selva de cimento.

“São Paulo tem o espírito de luta e conquista dos antigos bandeirantes. É desbravadora. É uma cidade que valoriza o trabalho e não quer nada de graça.” (Antonio Ermírio de Moraes)

São Paulo é um universo sensacional marcada por duas forças concomitantes e simetricamente convergentes. O que se vê e o que não se vê caminham juntos na capital financeira do Brasil. Uma cidade altamente populosa recheada de gente de todos os lugares do país e do exterior, com ricas construções e milhares de veredas de asfalto serpenteando e levando a todos os roteiros mais impressionantes.

Sua anatomia arquitetônica abundante em arranha-céus, convida o nosso olhar para um panorama no qual nosso pescoço, dobra-se mais do que o normal, objetivando avistar o topo dos prédios crivados de escritórios, residentes, restaurantes e instituições corporativas.

Ruas largas, avenidas gigantescas, pontes enormes, casas cheias de janelas, carros e ônibus em profusão, muitos moradores de rua e gente andando para todos os lados, todos os rumos inimagináveis. Caminhando ininterruptamente em busca de algo que seus corpos não diziam, não explicavam, não demonstravam. Mas aquela pressa, aquela compenetração e aquela obsessão em não parar, evidenciavam ao meu olhar, ser a mesma faina conhecida por mim desde pequenininho, a tão antiga luta diária do ser humano em sobreviver. Nada era miúdo, nada era perto, nada era fácil na grandiosa urbe fundada oficialmente pelos jesuítas Manoel da Nóbrega e José de Anchieta em 25 de janeiro de 1554, quando foi rezada a primeira missa no povoado que deu origem a maior e mais moderna metrópole da América do Sul.

Diferentes povos, diversa e opulenta culinária influenciada pelos italianos, diferenciado modelo cultural pela soma das múltiplas culturas reunidas perfiladas nas experiências artísticas, nos variados museus, cinemas, parques públicos e bibliotecas. Tudo isso amalgamado pela ideia viva de que tempo é dinheiro e que as oportunidades jamais devem ser desperdiçadas. Afinal, o município brasileiro de maior produção econômica, com uma infraestrutura

urbana avançada e de maior população, não poderia infundir outra ideia mais geral, na cabeça de seus habitantes, que não fosse a de trabalhar, trabalhar e trabalhar.

São Paulo abriu as portas para o desenvolvimento da industrialização brasileira, acolheu também em seu corpo geográfico, um grande fluxo de imigrantes, primeiro recebendo pessoas para comporem a mão de obra complementar às grandes fazendas de café e, em seguida, para o fomento da indústria nascente no Brasil. Os colonos inicialmente, depois os operários, buscaram São Paulo querendo melhorar de vida, sonhando vencer a falta de perspectiva de onde viviam anteriormente. Portugueses, italianos, japoneses, coreanos, libaneses, árabes, espanhóis, alemães, chineses e tantos outros povos de todos os lugares do planeta – em especial, a população nordestina –aportaram na cidade paulista, cuja vocação em acolher imigrantes é um dos seus maiores símbolos culturais e sociais. As pessoas chegavam à cidade oriundas de diferentes cantos do nordeste brasileiro por causa das mais variadas motivações. O pintor brasileiro Cândido Portinari, retratou magnificamente em sua obra “Retirantes” de 1944, o ostensivo êxodo rural nordestino, seus desdobramentos, sua característica mais aterradora, sua expressão mais sombria, em função das angústias do desterro das famílias, do indivíduo nordestino, muitas vezes um degredo autoimposto, visto que não havia, realmente, outra alternativa na senda de sua própria terra em prosperar economicamente. Expôs, ainda, a extrema luta dos corajosos retirantes, em vencer a miséria, a pobreza, a falta de perspectiva, a fome, a saudade, a dor de ter que ir embora do seu lugar para tentar a sorte em outras paragens, mesmo sob a injunção das profundas crises materiais e emocionais enfrentadas por essa gente de coração forte e robusto.

Muitas construções, obras para todos os lados, filas de ônibus, uma diversidade impressionante de seres, jornais, lojas, lanchonetes, bares e sempre um mar de gente transitando por todos os caminhos. A paisagem cinzenta grampeada pela cor dos viadutos, prédios e uma névoa de fuligem da poluição evidente. O ar já não era tão puro, como era puro o do meu costume, conhecido e sentido por vinte e um anos na zona rural de Pernambuco, o ar limpo das campinas do sertão, ficou no passado, meus pulmões teriam que se acostumar com a densidade do novo clima.

Seu clima característico das quatro estações era evidente, divergindo completamente do clima sertanista no qual eu estava altamente acostumado. O chuvisco, em São Paulo, teimava em cair, fazendo-me perceber o motivo do famoso apelido referenciado à cidade, tão comumente denominada de terra da garoa.

Na metrópole gigantesca, na cidade global, no maior centro urbano do Brasil, tudo era diferente aos meus olhos acostumados às veredas e vielas da geografia pastoril de Cabrobó. Luzes e sombras, espaços e territórios, vitrines e fábricas, moldavam a ideologia diária do progresso a todo vapor, do trabalho árduo contínuo, da labuta cíclica por melhores condições de vida. A cidade era um labirinto, um emaranhado de concreto e esquinas, uma floresta de blocos e edifícios, uma selva de cimento e filas, filas por cada paralelepípedo.

“Minha chegada a São Paulo foi um momento capital na minha vida. Lá pude sentir a solidão profunda e ao mesmo tempo uma vontade indomável de seguir em frente buscando melhorar de vida. (...) Na metrópole gigantesca, na cidade global, no maior centro urbano do Brasil, tudo era diferente aos meus olhos acostumados às veredas e vielas da geografia pastoril de Cabrobó. Luzes e sombras, espaços e territórios, vitrines e fábricas, moldavam a ideologia diária do progresso a todo vapor, do trabalho árduo contínuo, da labuta cíclica por melhores condições de vida. A cidade era um labirinto, um emaranhado de concreto e esquinas, uma floresta de blocos e edifícios, uma selva de cimento e filas, filas por cada paralelepípedo.”

A portentosa igreja da Sé, o centrão da cidade, inundado de centenas de fuscas, kombis, chevettes, opalas, mavericks, brasílias, ônibus, táxis, semáforos, pessoas engravatadas, árvores sobre viadutos, a larga e extensa avenida paulista e seus prédios perfilados, as inumeráveis bancas de jornais e revistas, as torres de transmissão, os gigantescos supermercados – Jumbo e Pão de Açúcar –, o metrô, os muitos caminhões, o rio Tietê, as escadas rolantes, impressionaram-me fortemente, causaram-me um choque positivo, porque não me ocasionaram temor, pelo contrário, desenvolvi mais ainda um sentimento de entusiasmo em melhorar minha vida e ser um sujeito construidor da minha própria história.

Um difícil começo acenava para mim àquela época... Porque São Paulo acolhe, abraça e até aceita, mas não deixa de cobrar o preço dos corajosos que tentam semear em sua imensa terra, principalmente se a pessoa tiver que experienciar toda a conjuntura paulistana pela primeira vez, se ainda for como se diz: um forasteiro, alguém que irá se adaptar, irá pegar o ritmo, irá criar o vínculo com a terra da garoa.

Tentar a sorte na capital ofertando a minha mão de obra, foi o primeiro passo naquela panela de pressão arretada, sentindo o choque cultural natural em função de dois universos diferentes, um rural e sertanista que me constituía e o outro urbano e metropolitano formador de São Paulo. A busca por um espaço sempre foi complicada. Os meus planos de melhoria de situação de vida, tinham que se adequar ao ritmo frenético de trabalho, única maneira de assegurar a dignidade pessoal, porque eu não queria somente afirmar minha identidade, mas conquistar resultados, crescer um pouco, poupar o que fosse possível. Então era manter a garra, ir pra cima, enfrentar as batalhas naquela terra de oportunidades.

Encarei, todavia, a realidade frente a frente, não deixei minha mente se apavorar com as estruturas incomensuráveis daquela megalópole. A terra da migração nordestina e sua paisagem urbana serenada pelo nevoeiro fino, pela chuva miúda e contínua, pelo chuvisco noturno quase onipresente me causou um demasiado espanto, é verdade..., mas aos poucos fui me acostumando à rotina massiva no meu novo mundo. Percebia o preconceito que todos nós, nordestinos, sofríamos somente por sermos nordestinos. Éramos pejorativamente chamados de nortistas, de baianos, ou mesmo, os lá do Norte. O que revelava um preconceito triplo, primeiro com o povo do nordeste, segundo com o povo do norte do Brasil, terceiro com o povo da Bahia.

A capital mais nordestina fora do próprio Nordeste, registrava em seu meio orgânico, social e urbanístico, as marcas da migração, visto que eu identificava a presença na metrópole paulista da cultura popular da minha terra original. Repentistas, vendedores de cordel e xilogravuras, rodas de capoeira pelas praças públicas, a linguagem característica pelas vozes de muitos homens e mulheres e seu jeito de falar, o forró nas quebradas, nas aglomerações do povo do nordeste residente nos bairros da capital paulista. De alguma forma toda essa repercussão cultural mitigava a imensa saudade sentida pelo meu coração e o sofrimento da distância dos meus mais caros afetos, suportava as ausências

com uma certa resiliência e espírito de resignação dinâmica. Afinal, eu já era experimentado no sofrimento desde muito cedo.

A maior cidade industrial do Brasil recebia diariamente, com muito mais intensidade na década de setenta, um fluxo vertiginoso de nordestinos; homens, mulheres, jovens, crianças e famílias inteiras em uma fluidez permanente, ancoravam com seus corações repletos de esperança, em busca de trabalho, em busca de tirar a sorte grande, em busca de vencer a escassez. Meeiros, trabalhadores agrícolas, vaqueiros, arrendatários e gente que não possuía nada materialmente, aportavam de trem, de ônibus e de carona em caminhões na capital do estado de São Paulo. Muitos chegavam em pau de araras – meio de transporte irregular, precário, com tábuas duríssimas destinadas aos assentos na carroceria, uma lona para proteger das intempéries e uma grade de madeira, toda essa paupérrima engrenagem para transportar sonhadores e esperançosos nordestinos e sertanistas. Após uma viagem desumana e desgastante, vencendo perigos intensos, dores físicas e falta de mantimentos, os valentes migrantes, laboriosos, firmes no caráter, no desterro de sua vida e do seu chão, emplacaram e ajudaram com protagonismo, somando suas mãos fortes e firmes, contribuíram para o desenvolvimento econômico, cultural e social da cidade de São Paulo e, por consequência, o progresso do Brasil.

Trabalhadores da lavoura, das usinas de cana, empregados das roças, subordinados das fazendas, serventes de capinagem, colhedores de cacau, plantadores de feijão, milho e algodão, oriundos, especialmente, das zonas rurais nordestinas, do ambiente campestre das muitas centenas de cidades com profundas dificuldades socioeconômicas, formavam a densa demografia migratória, somavam com suas expectativas uma vontade indômita de prosperar de alguma forma, ou quem sabe, guardar uma poupança segura para mais à frente, retornar ao seu chão original, objetivando comprar suas próprias tarefas de terra para se manterem sem a dependência de terceiros.

Nem é preciso lembrar de tão evidente, a saudade sentida no meu peito, vibrando quente e superlativa de toda a minha existência rural e familiar que havia ficado para trás. Nem é preciso dizer que com o tempo passando célere na rotina da selva cinzenta, sentia falta do meu costume sertanejo, da comida, do cheiro, do jeito, da noite e até da caatinga braba. Estava ali em meio à multidão de gente e mesmo assim, a solidão, muitas vezes, pegava-me e fazia eu sentir o peso do meu lamento interno. A verdade, era que eu escondia ou lutava para tentar ocultar de mim mesmo, o clamor de estar longe de casa. Mas ao mesmo tempo, nutria em contraposição emotiva uma força constante para não desesperar e muito menos desistir de seguir em frente.

O cantor e compositor Winicius Vaqueiro descreve atualmente com maestria e com uma voz brilhantemente magnífica em sua cantoria, o que verdadeiramente eu sentia no meu tempo de auto degredo em São Paulo: “Se um dia eu deixar o meu sertão, resolver viajar para distante, eu por lá vou me lembrar a todo instante, da perneira, do chapéu e o gibão. Da espora, do chicote e o facão, da corda e da laçada... Do cavalo, do galope e da passada; da cacimba, do açude

e o barreiro. Se um dia eu deixar de ser vaqueiro, vou chorar com saudade da boiada, desde novo que eu sou acostumado em laçar touro brabo na caatinga, comer carne de bode e tomar pinga, dançar xote, baião e correr prado, aboiar, tirar leite e tanger gado... Ganhar taças e troféus de vaquejada, vacinar, campear e cantar toada e namorar com a filha de fazendeiro; se um dia eu deixar de ser vaqueiro, vou chorar com saudade da boiada... Se um dia eu deixar de ser vaqueiro, vou chorar com saudade da boiada”.

A aquarela paulistana monstruosamente urbanizada e sua representação visual me deixava de boca aberta, ainda mais a mim, um sujeito matuto e sertanista dos confins das campinas pernambucanas. Imaginem o absurdo contraste: um cidadão pastoril, rural, do interior de Cabrobó, com baixa escolaridade, tímido e acostumado com uma vida campestre; vinte e um anos vinculado simbioticamente a um universo completamente diferente daquela máquina de concreto, de gente e de velocidade vertiginosa. O binômio campo cidade compactuariam em exercer profunda influência no meu jeito de ser, o campo e sua cultura adstrita dentro de mim e a cidade me influenciando por fora, pelo mergulho que dei jogando minha âncora na vida paulistana. Minhas raízes campestres do sertão mediante a âncora jogada por mim na realidade urbana.

“Em São Paulo com 22 anos de idade, uma cabeleira generosa, feição compenetrada e olhar retraído. Como quem se preparava para enfrentar com cautela, àquela época distante, as veredas de concreto da capital industrial do Brasil.”

Meu pequeno reino rural não existia mais à vista dos meus olhos e não poderia haver outro sentimento, a não ser o receio natural, o espanto excepcional, a matutice comportamental mediante o gigante à minha frente. Mas eu estava preparado para o rojão, tinha aprendido a ser forte, uma rocha

com um coração que sentia a dor, sofria e ao mesmo tempo se alicerçava em um peito de aço. Minha adaptação social era questão de tempo, os problemas das estigmatizações, eu conduziria com tranquilidade, sem me deixar levar por elas, eu não possuía tempo nenhum para imaginar ou me preocupar com certos desgostos causados pelos nativos da cidade grande.

As lutas, o clima, a rotina, as pessoas, o ambiente, o caminho, eram outros; muita coisa estranha e bem diferente do meu antigo torrão... Muito acanhado e com o estilo arraigado procurei um patrão. Nesse aspecto não fiz diferente de todos os outros nordestinos que já haviam migrado para a vida na capital industrial do Brasil. Quando efetivamente toquei meus pés em São Paulo, fiquei pensando: “E agora... Será que acertarei chegar à casa na qual eu devo ficar?”, pensei e pensei e resolvi pegar um táxi, afinal, eu tinha uns parentes em São Paulo e de início tinha que ir em busca deles para me fixar com segurança. Tinha uma senhora chamada Cleonice, oriunda de Cabrobó, residente em São Paulo já fazia muitos anos e ela era proprietária de um pequeno hotel. Eu fui com o endereço do hotel em mãos, sem ter, entretanto, o endereço da casa onde realmente eu deveria ficar. Chegando lá fui muito bem recepcionado por ela, muito educada e compreensiva, acabou me ajudando, dizendo para eu aguardar o seu esposo Pedro que me levaria até o local da casa onde residiam outros parentes meus. Quando Pedro chegou, nós nos cumprimentamos e ele educadamente me levou, finalmente, até o lugar no qual eu permaneceria. Era um quartinho pequeno na vila do Jaguaré, o quartinho era bem simples e comigo somávamos lá cinco residentes.

O mais intrigante era ouvir causos de muitos migrantes arrependidos, porque imaginavam uma cidade completamente diferente do que a realidade apresentava. Escutava que São Paulo era a terra que filho chorava e mãe não via, um lugar difícil para os iludidos, os sonhadores, os que não se planejavam. Mas eu estava ali, havia ultrapassado as barreiras necessárias, havia conseguido colocar os pés onde eu imaginava chegar, havia, enfim, superado duas décadas de sertão e conseguir me fixar em uma casa pequena no bairro do Jaguaré com mais cinco residentes que como eu, também estavam lutando para conquistar uma vida melhor.

O bairro do Jaguaré em São Paulo foi planejado desde 1930 para receber indústrias e abrigar os funcionários e seus familiares. Muitas empresas e fábricas se instalaram no local, abarcando muitos nordestinos e demais migrantes do Brasil. O arrabalde do Jaguaré foi projetado pelo industrial Henrique Dumont Villares, sobrinho do brasileiro Alberto Santos Dumont – o inventor do avião. No Jaguaré já tinha um mirante memorável e muito famoso construído pelo fundador do bairro, era o cartão postal do local e representava o olhar de vanguarda e o pensamento no futuro do engenheiro agrônomo e urbanista, Henrique Dumont Villares. Meu registro aqui sobre ele, é porque, de alguma forma, eu tinha um pensamento parecido. Fincava minha mente na realidade, no presente, sem jamais deixar de pensar a longo prazo, traçando projetos para o futuro.

Todos os dias quando saía para trabalhar, avistava o mirante que ficava no meio da favela, já que com a migração ostensiva, o bairro acabou crescendo desordenadamente e sem o planejamento necessário, tornando-se um bairro com dificuldades infraestruturais. Eu fazia meu trajeto por fora e por dentro da favela, como já havia um clima social de maior insegurança não transitava durante a noite e quando chovia eu passava por fora, porque o terreno fazia escorregar... Caminhava raspando uns trezentos metros do mirante seguindo meu trajeto por uma rua asfaltada, eu preferia ir andando para o trabalho para economizar, não pegava ônibus, todavia era mais complicado quando chovia bastante e algumas vezes as vielas ficavam lisas e eu dava uns escorregões matreiros.

Vivia em um quarto pequeno sem nenhum conforto e ainda rememoro de ter guardado boa parte do dinheiro da venda da vaca, fato demonstrativo de eu ter sido sempre muito econômico. Como eu morava com mais cinco pessoas, eu nem dava alarde sobre a quantia preservada por mim na minha maleta. O motivo era de não querer emprestar o dinheiro, porque eu tinha toda certeza do mundo que se um dos moradores do local onde eu estava – alguns eram meus primos – soubessem daquela quantia economizada, eles iriam me pedir emprestado. Mas eu havia decidido usar o dinheiro para tirar minha carteira de motorista, era só uma questão de tempo, de me organizar melhor e de me ambientar com mais segurança, e partir daí, buscar fazer os exames necessários e conquistar a minha primeira habilitação.

De cara foram nove meses no mirabolante universo paulistano com direito a sentir toda a cosmovisão emocional em contraste, seja pelas inúmeras novidades percebidas, seja pelo natural e forte enraizamento do modelo de vida rural que ia por dentro de mim. Ainda não havia realizado um intercâmbio de vivências para poder sentir uma adaptação mais rápida, algo possível somente com o andar do tempo. Não é exagero afirmar sofrer, um ser humano distante de sua terra natal, uma intensa saudade de tudo o que viveu, tanto que suportei ficar em São Paulo nove meses direto com um olho na realidade e o outro no sertão.

Minhas raízes não eram uma âncora que se joga e segura o navio em um ponto no qual não se pode avançar. Minhas raízes eram como as raízes do umbuzeiro que suportam as contrariedades, mas não deixam de vitalizar, não deixam de alimentar a própria vida da árvore. Após os primeiros nove meses eu voltei para Cabrobó em uma tempestade de saudade. Chegando lá visitei todos as paragens e familiares e a saudade se diluiu e uma nova constatação me acendeu a alma, com a mão fina e com a influência absurda da vida urbana na mente, já não me agradava voltar a ser um vaqueiro só para sobreviver ou ainda um lavrador que trabalharia só para comer, um sertanejo cheio de ideias e vontades de crescer, mas sem o ambiente propício para empreender sonhos. Minha mente não aceitava a ideia primária de que a vida é uma fatalidade para quem nasceu pobre e por tal fato, não se poderia mudar as coisas. Minha mente não aceitava a falsa ideia de que a vida é só comer, dormir e trabalhar sem perspectiva de realizações maiores.

Passei um mês no sertão, após retornar de São Paulo, e aproveitei uma carona e um convite de um primo morador do Pará para tentar a sorte no Norte do Brasil... Ponderei a ideia e acabei vindo pela primeira vez ao rico estado do Pará. Chegando aqui tentei um emprego, mas nesse aspecto, lá pelos idos da década de setenta, não era muito promissor o setor de serviços e de empregabilidade em Belém, essa realidade só mudaria no final da década de oitenta para cá. Como não consegui uma ocupação laboral e com pouco dinheiro na carteira, resolvi voltar para São Paulo para me fixar em algum emprego e economizar o máximo visando empreender mais à frente quando chegasse a minha hora de colher os frutos do que plantaria ao longo da minha jornada.

Meu primeiro emprego em São Paulo foi em uma empresa chamada Ultralar, uma rede de lojas e departamentos fundada em 1956 por Ernesto Igel, austríaco naturalizado brasileiro, que havia desenvolvido anteriormente o método para engarrafar o gás propano, tornando-se o precursor do negócio de gás em botijões pequenos para vendas aos consumidores do varejo do gás de cozinha. A Ultralar foi uma das pioneiras no Brasil a trabalhar no setor de magazines, seu slogan usado à época era “Na Ultralar dá pé”. A Ultralar cresceu tanto que se desdobrou em um hipermercado ao estilo do Jumbo do grupo Pão de Açúcar, o gigante supermercado chamava Ultracenter e se localizava na marginal Pinheiros. O pioneirismo no mercado de magazines no âmbito do varejo e serviços foi destaque por muitas décadas. Imaginem, por exemplo, a revolução que foi poder mudar o uso do forno a lenha para a tecnologia do gás de cozinha, melhorando e facilitando a vida doméstica de milhares de pessoas. O proprietário da Ultralar revolucionou o setor econômico em questão, porque seu empreendimento no varejo, aproximou os consumidores dos novos produtos e da nova tecnologia.

Eu trabalhava no depósito central das lojas Ultralar realizando serviços diversos e aproveitando para me acostumar com um ritmo de trabalho completamente diferente do que sempre estive ambientado, porém foi uma funcionalidade temporária, visto ser um emprego que, para mim, não compensava financeiramente. Vivia longe das minhas raízes e a âncora jogada na vida laboral paulistana não poderia ser, de maneira alguma, uma aventura sem base e sem um mínimo de economicidade. Havia conquistado minha carteira de motorista e passei a querer um novo emprego possibilitador de uma rentabilidade melhor. Precisava garantir uma certa parcimônia do meu salário para poupar o possível reservando algum dinheiro para os momentos difíceis que sempre acontecem e também para ter mais à frente algum tostão para investir em outro negócio possível e fazer uma renda extra. Após um tempo considerável na Ultralar, resolvi mudar de emprego e seguir trecho rumando para outra experiência na Colgate-Palmolive.

Quando comecei a trabalhar na linha de sabonetes da Colgate-Palmolive, na segunda metade da década de setenta, senti uma melhoria no meu salário, o mais intrigante é poder dizer atualmente ser a Colgate-Palmolive uma

das minhas principais clientes da empresa industrial fundada por mim – a Princesa do Pará. Como poderia imaginar àquela época sendo somente um simples funcionário da companhia, conseguir no futuro, tornar-me um grande empresário, saltando de um mero empregado da gigante global do segmento de produtos de higiene, para um grande comprador de seus produtos e revendedor no mercado paraense. Mas até chegar a esse estágio de vida e conquista; muita dor; desafios; lutas; frustrações e aprendizados estariam caminhando comigo na estrada tortuosa da minha improvável existência.

Quando eu entrei na Colgate-Palmolive eu tive que deixar meus documentos no setor de recursos humanos da empresa, para eles fazerem todo o processo legal da minha contratação. O processo durou mais de um mês para a legalização do meu contrato de trabalho se consolidar e nesse meio tempo, acabei transitando do trabalho para casa e de casa para o trabalho sem portar os meus documentos de identificação, ou seja, a carteira profissional, identidade, o cpf que à época tinha outra nomenclatura. Para não ficar sem nenhuma identificação possível em uma eventual abordagem policial, eu andava com o registro de nascimento como uma espécie de ressalva identificatória para caso precisasse comprovar minha situação legal em São Paulo.

Entretanto, eu inventei de ir com alguns amigos que moravam comigo em um aniversário de uma pessoa conhecida por nós e a casa ficava longe do local onde eu morava, no Jaguaré. Fomos até lá e ficamos na festa até a madrugada, na hora de voltar, por ser muito tarde, não tinha mais ônibus. Então, decidimos ficar em um bar tomando uma cerveja até amanhecer e pegar o ônibus para regressar para casa. De repente, chegou a polícia no bar e fez uma abordagem e um procedimento de revista, assim todos nós tivemos que ir para a delegacia para mostrar os documentos pessoais e comprovar de onde nós éramos. Chegamos lá e fomos chamados em ordem alfabética pelo delegado de plantão; ele logo foi dizendo: “Vamos lá, começando pela letra A.”

Eu levantei logo a mão, fui logo o primeiro... E como não portava os documentos completos, fui logo detido e posto na cela apertada com um monte de cabra lá. Foi uma hora detido naquela espécie de gaiola, uma hora de aflição, uma hora pensando muito sobre o ocorrido e com a barriga cheia de cerveja, nem eu sei como poderia caber tanta gente naquele cubículo de ferro, visto que realmente, a cela era muito apertada não havendo nem como sentar, ficamos todos lá em pé e encostados uns aos outros. E como não havia banheiro, o mijo da macharada já estava dando na canela. Só fomos soltos após a polícia puxar a vida de todos no sistema que eles tinham lá. Sei dizer, entretanto, no meu caso durou uma hora de tempo para me liberarem, nas primeiras meia hora de prisão, foi uma tribulação, no restante do tempo de detenção, como não havia muito o que fazer, a não ser esperar, já virou uma algazarra entre nós.

A Colgate-Palmolive já era na década de setenta uma empresa de imenso porte e grandes ramificações no Brasil, ela havia aportado no país desde a década de vinte. Sediada nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova York, a companhia global prosperou absurdamente na capital do estado de São

Paulo. A multinacional cresceu e se desenvolveu rapidamente nos negócios de cuidados com a limpeza, cuidados pessoais e nutrição animal.

Tenho um real apreço por essa empresa, porque seu fundador William Colgate, também foi um jovem imigrante lutador, empreendedor e vencedor. Ele saiu com as mãos abanando da Inglaterra para tentar prosperar na América do Norte, mais especificamente nas terras estadunidenses. Sua fantástica história é uma epopeia de respeito e admiração, visto que muito jovem e distante do seu mundo natural se esforçou sobremaneira, trabalhou extraordinariamente, empregando-se primeiramente como aprendiz em uma fábrica, cujo ofício era laborar em uma caldeira de sabão, celeremente aprendeu e pegou o jeito de como produzir sabão e começou um negócio próprio mesmo sem ter experiência de ser o responsável por uma venda autônoma. Instalou uma pequena venda de goma, vela e sabão em Dutch Street na cidade de Nova York, mesmo com todas as dificuldades materiais possíveis enfrentadas por um jovem sem reservas econômicas.

William Colgate demonstrou seu espírito empreendedor, porque percebeu a grande oportunidade de tonar seus produtos um negócio eficiente, produtivo, inovador e lucrativo, posto que a sociedade da época tinha o costume de produzir na vida doméstica seu próprio material de higiene.

Ele foi em frente, fez sociedade efetivando progresso sólido em seu negócio e usou seu talento em comunicar com excelência para deslanchar de vez, atingindo um sucesso astronômico em vendas, após executar sua estratégia de propaganda por todos os locais possíveis. Sua campanha de divulgação foi massiva, arrojada, inovadora e muito sofisticada para seu tempo. Anunciou seus produtos em jornais e colou centenas de cartazes pelas paredes das ruas de Nova York. O triunfo de Colgate como empreendedor de sucesso foi tão magnífico e rentável que ele passou a ser denominado de magnata do sabão, desdobrando-se em uma empresa internacional, graças ao seu trabalho sistemático e investimento racionalizado, com repercussão até na educação, já que ele ainda investiu em um instituto educacional.

Permaneci na Colgate-Palmolive o tempo suficiente para economizar um valor possível de investir em um “gadinho” no meu sertão, mantinha uma pequena reserva financeira a custo de muito sacrifício da minha parte. Esse relativo recurso amoedado era enviado por mim para o sertão de Pernambuco objetivando comprar algumas cabeças de gado. Mas eu pensava sempre existir vários caminhos possíveis com suas consequências prováveis. Sob essa perspectiva, portanto, não me acomodava em um local que não conseguia avançar financeiramente. Não me deixava acostumar com a pretensa comodidade aparente, ou ainda com a tão conhecida zona de conforto que alimenta ilusões e pode fomentar um parasitismo indébito nas questões profissionais.

Na Colgate-Palmolive foi um tempo muito bom e de um grande aprendizado, além é claro, da boa convivência que pude manter com meus colegas de trabalho.

Relembro, por exemplo, de uma senhora muito legal que resolveu fazer um piquenique para praia, convidando todos os funcionários do nosso setor de trabalho. O passeio foi para a Praia Grande, em Santos. Naquele tempo, a viagem era feita pela estrada velha de Santos, pela serra. Lembro que na ida, o ônibus deu uma parada e a senhora organizadora do piquenique – creio que o nome dela era Antonia – desceu para comprar uma penca de bananas maduras. Quando ela subiu novamente no ônibus com aquele mundaréu de bananas maduras nos braços, foi aquela gaitada de todos nós, todo mundo tirou sarro dela, fizeram piada e brincaram com a situação. Mas ela ficou super de boa e guardou as bananas para levar para a casa dela. A vida, todavia, sempre dá um puxão de orelha em quem não presta a devida atenção nas múltiplas possibilidades dos acontecimentos. No retorno do piquenique, nós pegamos um trânsito tão medonho, tão desgraçado, um engarrafamento quilométrico, que ficamos mais de cinco horas naquela lentidão. Saímos às cinco da tarde de Santos para chegar às sete em São Paulo, mas em função do engarrafamento, onze horas da noite ainda estávamos lá, tentando superar o congestionamento imenso.

Todos nós dentro do ônibus já estávamos enfadados, entediados e o mais intrigante; como ninguém tinha comida guardada, estávamos todos com muita fome. Então, a galera atacou a banana da dona Antonia, comeram até o talo da penca de bananas maduras comprada por ela. Essas bananas salvaram a pátria, derrotando a fome de todos lá, dava até para ver a satisfação íntima da senhora. Imaginem que todos nós desdenhamos da compra e depois foi o que ajudou a todos nós forrarmos a barriga naquela situação difícil. Eis a vida sempre ensinando os desatentos e premiando os mais perspicazes e previdentes.

Após minha saída da Colgate-Palmolive, conquistei um novo emprego na Anderson Clayton AS – uma indústria e comércio de ração. Avancei em experiência e já havia conquistado a adaptabilidade do viver paulistano. Mesmo assim, sentia saudades da minha terra, da minha gente e dos meus antigos costumes sertanistas. Às vezes, eu me pegava recordando fatos do meu tempo em Cabrobó, como quando eu fiz um negócio com meu primo Zé Carlos. Eu queria uma bicicleta a todo custo e esse meu primo tinha uma bicicleta velha com os pneus cheios d’água, as câmaras de ar cheias de água, porque já não prestavam mais. Mas ele queria me vender mesmo assim, queria se livrar da bicicleta e ainda conseguir alguma quantia ou algo em troca.

Um queria ser mais esperto do que o outro na hora da negociação... Então lembrei que eu tinha um porco doente e pensei: “Vou fazer negócio com esse porco doente tentando trocá-lo na bicicleta de Zé Carlos”. Meu primo aceitou a troca da bicicleta no porco. E até hoje, eu relembro, morrendo de rir, ter chegado em casa empurrando a bicicleta, visto a mesma estar em péssimas condições. E do porco, nunca tive notícia da parte do meu primo, ficava imaginando se teria suportado a doença ou em pouco tempo teria morrido.

Em São Paulo, quando eu não estava trabalhando ficava rememorando momentos marcantes no meu tempo sertanejo. Lembrava que eu tinha muita vontade de ter um relógio no meu tempo de adolescência; lá pelos idos dos meus dezessete anos. Mas em razão do alto preço do produto marcador do tempo e

das horas, não conseguia comprar de jeito nenhum... Porque realmente sempre me faltava a quantia suficiente para conquistar essa vontade. Até que um dia consegui realizar o meu desejo negociando e comprando o meu primeiro relógio de um primo meu chamado Moacir; eu tinha tirado uma safra de arroz na lavoura e acabei trocando trinta litros do mesmo no relógio do meu primo que havia aceitado negociar dessa maneira comigo. Passei a usar o relógio no pulso cheio de alegria, mas é como diz o ditado popular: “Alegria do pobre dura pouco”, não demorou nada e o ponteiro do relógio caiu e lá se foi eu atrás de um relojoeiro para consertá-lo.

Outra boa memória afetiva inundadora dos meus pensamentos àquela época em São Paulo, era quando eu resgatava um tempo de menino, no qual eu cantava para minha irmãzinha de nome da Paz, carinhosamente chamada de Menzin, adormecer. O nome da música chamava Boi Bumbá, do rei do Baião Luiz Gonzaga. Eu imaginava na minha cabeça e cantava pensando ser boi do bananá, depois fui descobrir que era boi do mangangá conforme a letra da saudosa, genial e memorável música do Gonzagão:

“Êi boi, êi boi

Ê boi de mangangá

Quem não tem chuculatêra

Não toma café nem chá

Não toma café nem chá

Não toma café nem chá

Ê boi, êi boi

Ê boi do Ceará

Muié segura o menino

Que eu agora vou dançá

Que eu agora vou dançá

Que eu agora vou dançá

Ê boi, ê boi

Ê boi do Piauí

Quem não dançá esse boi

Não pode sair daqui

Não pode sair daqui

Não pode sair daqui

Ê boi, ê boi

Ê boi do Macapá

Quem tá dançando esse boi

É o prefeito do lugar

É o prefeito do lugar

É o prefeito do lugar

Vamos repartir o boi, pessoá?

Vamos!

Pra onde vai a barrigueira?

Vai pra Miguel Pereira

E a vassoura do rabo?

Vai pro Zé Nabo

De quem é o osso da pá?

De Joãozinho da Fornemat

E a carne que tem na nuca?

É de Seu Manduca

De quem é o quarto traseiro?

De Seu Joaquim marceneiro

E o osso alicate?

De Maria Badulate

Pra quem dou a tripa fina?

Dê para a Sabina

Pra quem mando este bofe?

Pro Doutor Orlofe

E a capa do filé?

Mande para o Zezé

Pra quem vou mandar o pé?

Para o Mário Tiburé

Pra quem dou o filé miõn?

Para o Doutor Calmon

E o osso da suã?

Dê para o Doutor Borjan

Não é belo nem doutor

Mas é bom trabalhador

Mas é véio macho, sim sinhor

É véio macho, sim sinhor

É bom pra trabaiá

Rói suã até suar

Ê boi, ê boi

Ê boi do mangangá.”

Em alguns finais de semana eu tinha muito apreço, sentia muita felicidade, gostava por demais de visitar meus parentes já residentes na cidade paulistana, era uma maneira de mitigar a saudade que ia por dentro do meu peito. Eram tios, primos e mesmo alguns parentes que eu nem conhecia, mas sentia muito prazer em visitá-los. Nas ocasiões eu procurava conhecer toda a família do parente visitado e ia avançando em me relacionar fraternalmente até com pessoas que não eram da minha família. Isso foi muito importante na minha vida, desenvolveu em mim uma forte e eficiente habilidade em me comunicar e ser um sujeito de boa conversa consorciado ao jeito positivo de saber escutar.

Aos domingos encontrava outros nordestinos trabalhadores de fábricas e aproveitávamos para prosear, tomar uma cana, contar causos e quando havia oportunidade, flertarmos com umas mulheres oriundas de Pernambuco, elas também eram trabalhadoras das fábricas da capital do estado de São Paulo e nas folgas delas, coincidentes com as nossas, acompanhavam-nos no momento de lazer.

Eu era solteiro e sempre tinha um dinheirinho sobrando no bolso e quando havia um tempo livre aproveitava para namorar. Algumas vezes tinha um forrozinho, um aniversário ou ainda encontros fortuitos, em ocasiões nas quais trabalhadores de outros bairros e pessoas que iam passear no Jaguaré compareciam aos nossos encontros nos domingos em uma folga rara ou em um feriado. Afinal, viver é conviver, é compartilhar alegrias e dissabores com sobriedade. É como diz a passagem bíblica que virou também um ditado popular: “Nem só de pão vive o homem”... Gostava de tomar uma caipirinha e pensar na vida, relaxando e me desligando um pouco da rotina massiva de muito trabalho. Juntava-me com a galera e muitas vezes nem saía do bairro que eu residia, ficava por ali mesmo, ia para casa de um tomar caipirosca e comer um churrasquinho, na outra oportunidade eles iam lá para minha casa e íamos convivendo como podíamos, afinal morávamos perto uns dos outros. Mas tenho que relatar aqui meu espírito econômico mesmo na hora do lazer... Eu dava minha parte, mas nada além disso! Eu tinha um supercontrole do meu salário, só gastava o necessário e o que restava eu jogava na minha conta poupança. Depois que me empreguei, nunca mais eu fiquei liso, mesmo que fosse pouquinho, eu tinha um dinheiro guardado, um dinheiro investido em bezerro lá por Pernambuco, porque pensava sempre em investir. Além disso, as minhas economias serviam como uma espécie de segurança para tempos difíceis, era uma forma de ser previdente.

Eu sentia um certo receio de ficar sem dinheiro em São Paulo... Já pensou ficar sem um tostão em uma cidade grande como aquela? E se de repente, ficasse desempregado e demorasse me recolocar no mercado de trabalho? Então, eu ficava preparado para se, eventualmente, ocorresse algo assim, ter condições financeiras para me manter por um tempo sem depender de ninguém, porque pelo menos ao tempo que lá morei, percebi que as pessoas não eram muito afeitas a dar nada para ninguém, não tinha isso de ajudar, não!

O espírito empreendedor era natural na minha mente e foi fomentado e lapidado no meu comportamento pelas muitas e severas adversidades enfrentadas por mim, por onde passei. Minha resignação sempre foi dinâmica, minha paciência sempre foi diligente e minhas emoções não caminhavam sozinhas... Elas eram domadas pela minha racionalidade em ver o mundo e as coisas do mundo com uma mentalidade forjada em raízes sólidas.

Mentalizava, entretanto, que precisava fazer algo a mais e aprender sempre com tudo e com todos, uma vez que é quando você enxerga as coisas de perto e se relacionando com as pessoas sem distinção alguma, que você mais aprende.

Em ocasiões mais especiais visitava o tradicional bairro da Mooca na zona leste de São Paulo, um lugar muito agradável e repleto de imigrantes italianos, ocorria lá a costumeira festa de San Genaro quando as algumas ruas da Mooca ficavam repletas de barracas com comidas típicas. No meu caso, no entanto, eu preferia os ambientes onde seria possível dançar um forró, mas todo o universo cultural daquele bairro me encantava. Visitava também a Vila Leopoldina situada na zona oeste da capital paulista, outro bairro bastante tradicional onde era possível acessar casas de shows onde o forró rolava solto. Como eu era jovem e gostava muito de dançar, aproveitava os forrozinhos realizados por lá. Nesses encontros e desencontros de espairecimento, acabei conhecendo uma pernambucana chamada Rosinara, mas eu a chamava afetuosamente de Rosinha, visto o apreço e o vínculo mais estreito mantido por mim em relação a ela. Nós namoramos por um bom tempo e a ligação ficou tão próxima que quase noivamos, mas quando deixei São Paulo para vir embora definitivamente para o Pará, esse relacionamento se findou.

Como o meu salário havia melhorado em São Paulo, consegui realizar uma proeza digna de uma crônica de jornal. Eu fui econômico, mas tão econômico com meu ordenado, que consegui juntar dinheiro suficiente para comprar um fusca. É possível imaginar a felicidade sentida por mim por ter alcançado esse objetivo, a título de muito sacrifício da minha parte. Lembrava a luta no sertão para ter uma bicicleta cujo os pneus vieram cheios d’água; lembrava do meu primeiro relógio cujo ponteiro logo quebrou; lembrava ainda, da minha maleta miúda com três mudas de roupa ao deixar minha terra natal; lembrava, lembrava e lembrava de tanta coisa já vivida; rememorava por fim, que por mais realizado e sentindo uma saudável altivez pela conquista do fusquinha, sabia pela minha convicção interior não ser ali que pararia de buscar mais conquistas. Fiquei muito empolgado com o meu primeiro carrinho, isso foi um fato tão marcante que decidi dirigir até Pernambuco. Uma aventura quixotesca pelas estradas do sudeste e do nordeste enfrentando um trânsito intenso e cheio de perigos, um dos momentos mais arriscados foi enfrentar dirigindo à noite, um toró tão grosso, fazendo a água da chuva passar por sobre a pista e os carretões vindo no sentido oposto tirando fino de mim velozmente, deixando-me em uma situação muito tensa, primeiro porque eu lutava com o volante para não deixar meu fusquinha entrar em aquaplanagem – um fenômeno físico no qual o carro ao transitar em cima de uma camada de água, devido ao excesso da mesma na

pista, pode perder a aderência com o asfalto –. Meu patrão, se isso acontecer, aí pode ser o fim, porque o carro fica flutuando sem direção na estrada, fazendo o motorista perder o controle do automóvel, gerando uma possível capotagem ou até mesmo, fazendo o carro rodar e sair da pista desgovernadamente.

Segundo porque a velocidade dos carretões passando vertiginosamente ao meu lado era tão intensa, que meu fusquinha levantava e lá estava eu segurando o volante com firmeza para não sair da pista. Terceiro porque como estava dirigindo à noite, em meio a uma tempestade alucinante e forte, minha visão de dentro do fusquinha estava muito comprometida e minha atenção estava à flor da pele. Com muita habilidade e perícia, consegui segurar o fusquinha e superei todo esse desafio, estacionando em seguida, em um posto de gasolina. Hoje tenho plena certeza ter sido Deus que me ajudou a superar àquele momento de ostensiva apreensão, até pelo motivo de antes de superar a trovoada, de suportar o aguaceiro, eu já ter passado por Aparecida do Norte, onde visitei o Santuário de Nossa Senhora Aparecida. Desde lá ela foi me ajudando e protegendo até que eu chegasse ao meu destino... Ainda mais em um fusquinha com farol de cem volts, bateria de cem volts que não clareava praticamente nada, já que eu rodava também durante à noite. A proteção divina foi tão certa que foram somente dois dias para eu chegar em Pernambuco, mesmo enfrentando um vendaval e muita dificuldade para enxergar durante a madrugada. Meu retorno para a capital foi bem mais tranquilo... É preciso fazer aqui uma ponderação! Realmente minha situação financeira havia melhorado bastante, comparada àquela vida levada por mim, no sertão pernambucano. Mas não era o suficiente para eu desenvolver minha vontade de empreender e crescer economicamente fazendo crescer um capital extra para prosperar um pouco mais. Tanto era verdade tal condição que eu me adaptava ao emprego no qual estava vinculado, sem jamais me acostumar na zona de conforto por ele outorgado a mim.

Recordo, por exemplo, que antes de fazer a viagem no meu fusquinha para Pernambuco, eu tinha economizado dinheiro para comprar uns relógios e revendê-los quando eu chegasse ao nordeste. Fiz o trajeto da radial leste e depois de chegar à rua 25 de março – uma rua que virou um sinônimo de compras e uma região importantíssima para a economia de São Paulo – comprei vários relógios para conseguir uma margem de lucro quando os vendesse em Cabrobó. A vida, no entanto, vai ensinando a todos nós que os imprevistos e o inesperado contribuem para o nosso aprendizado. Comprei sem prestar a devida atenção e quando cheguei em Pernambuco, fui pegar os relógios para vender e praticamente todos estavam com os ponteiros caídos. Porém, não me dei por vencido, procurei um relojoeiro da região e fiz pôr os ponteiros todos no lugar, andei por lá e consegui os mercadejar todos, graças a habilidade em vender que eu já tinha desenvolvido.

Ficava pensando, projetando e prospectando o que fazer para aumentar minha renda mensal e ter outras fontes de receitas. Em mim já reinava uma ideia de nunca viver somente de uma fonte de ativos. Ou seja, sem ter formação

alguma em nenhuma instituição acadêmica formal, eu tinha na minha mente e no meu coração de maneira muito natural e em função da minha própria experiência de vida, o espírito empreendedor.

Pensei até em ser ator e como sou uma pessoa prática, fui buscar fazer o teste ou mesmo um curso para me tornar um ator profissional. Ainda cheguei a começar o curso de atuação e dramaturgia do famoso e saudoso cineasta, ator, roteirista de cinema e televisão brasileira José Mojica Marins, conhecido por todos os brasileiros como Zé do caixão. Foi uma experiência rápida, mas muito proveitosa para minha personalidade, de alguma forma você vence a timidez e melhora sua comunicação pessoal. O destino, entretanto, algumas vezes joga suas cartas e de algum jeito dá notícias que indicam outros caminhos; foi o que ocorreu comigo, apesar de ter gostado de iniciar a tentativa como ator, descobri logo que minha praia seria outra.

Deixei meu emprego na Anderson Clayton S.A. e fui trabalhar na ITAP (Indústria Técnica de Artefato Plástico). Uma fábrica produtora de embalagens de plástico para vestuário, com impressão de desenhos e letras. A ITAP foi a empresa que eu fiquei por mais tempo em São Paulo, novamente fiz boas relações e não medi esforços para aproveitar meu tempo de funcionário e aprender ainda mais sobre como funcionava o modelo de negócio da empresa, eu ficava atento em tudo, tentava capturar o máximo de experiência positiva possível.

A ITAP pulverizou no mercado brasileiro o modelo de embalagens plásticas do leite, solucionando de maneira mais econômica e prática o manuseio do produto e, por consequência, facilitando a descartabilidade do invólucro, oportunizando ainda à empresa àquela época, fazer propaganda de sua marca na própria embalagem, somando o nome da usina, a proveniência, que apareciam bem legíveis, fomentando seu nome no mercado de varejo e ampliando suas vendas em função da boa comunicação da empresa junto aos consumidores. A ITAP ainda inovou quando passou a trabalhar com o saco valvulado, um dispositivo que fechava automaticamente quando o recipiente completava sua capacidade de enchimento.

Aprendi muitas habilidades na ITAP, não somente laborais, mas, principalmente, vivenciais. Como lá eu pegava no batente no turno da noite e o serviço era pesado, repetitivo e massivo, eu me cansava bastante. Quando chegava em casa pela manhã, bem exausto, às vezes conseguia preparar um bife com arroz para almoçar, mas muitas vezes só dava tempo de tomar um banho, verificar as coisas como estavam e ia deitar com muito sono e por demais cansado.

Dormia pela tarde e quando acordava, já tinha que me preparar para retornar ao batente. Não dava tempo nem de almoçar, porque senão, poderia chegar atrasado na fábrica e não conseguir bater o ponto do cartão de entrada na hora exata do serviço, e sofrer ao final do mês, desconto de parte do meu salário.

E tinha mais, se eu fosse pegar um ônibus para chegar a ITAP, pelas condições de trafegabilidade e sentidos das ruas de São Paulo, eu teria que pegar dois

ônibus para chegar até a fábrica, mas isso me custaria uma despesa de muito dinheiro só com transporte, e somando tudo até ao final do mês, perderia a possibilidade de economizar. Então preferia pegar um atalho e ir andando para a empresa, pois do lugar onde eu morava, se eu atravessasse a favela andando conseguiria chegar em quarenta minutos até lá e alcançaria a minha planejada economia no que fosse possível. Já havia conquistado colegas que moravam na favela, inclusive um colega de trabalho morava lá, portanto, já não tinha receio de usar as vielas da mesma, para ir trabalhar.

Muitas vezes só conseguia comer algo ou mesmo jantar à meia noite, quando lá na empresa rolava uma janta, visto que não dava tempo de comer antes desse horário. Às vezes eu ficava sem comer o dia inteiro, conseguindo me alimentar somente no horário que citei acima. Algumas vezes corria em uma casa de lanche que ficava próximo a fábrica, um quiosque de lanche que tinha perto da indústria e quando dava tempo, corria até lá e pegava um lanche para comer em uma velocidade medonha, nem tinha o dinheiro para pagar na hora, eu andava com pouco dinheiro, como já disse, eu guardava na poupança e só retirava o necessário para passar o mês. Então o dono da lanchonete fazia um crédito e eu pagava no final do mês... Ali era sofrimento mesmo, uma rotina vivencial extrema moldadora ainda mais do meu caráter austero e ao mesmo tempo flexível para não sucumbir ao abatimento... É preciso, entretanto, sempre lembrar: “Quando nós sofremos, quando nós passamos por dificuldades, quando os desafios são grandes, quando a vida nos experimenta na dor das vicissitudes, quando as coisas conspiram contra os nossos sonhos, nossas mais caras aspirações, temos somente dois caminhos a seguir... Ou desistimos; reclamando de tudo e de todos, amargurando-se e seguindo emocionalmente a energia negativa da frustração; ou buscamos força e conforto na fé em Deus, na fé em si mesmo e na coragem de acreditar, de verdade, que tudo passará e que tudo pode melhorar, porque as nossas aflições não são as únicas, todos os viventes passam por crises, ninguém escapa do acúleo das experimentações da existência. E quando você continua, apesar de tudo, desenvolvendo sua força interior, menos as coisas e contrariedades da vida te perturbam. Então, você dá um novo passo e segue adiante semeando, porque é da lei da vida, você colher o que vai plantando pela sua jornada.” O grande poeta Rainer Maria Rilke nascido em Praga capital da República Tcheca, deixou para a posteridade um famoso e espirituoso excerto de um poema seu, que conforme a minha interpretação, é claro; expressa liricamente, o meu ponto de vista emocional e racional sobre como proceder ao se enfrentar os desafios da vida:

“Deixe tudo acontecer a você...

Beleza e terror, Apenas persevere, Nenhum sentimento é definitivo.”

Estava completando quase três anos de vivência em São Paulo, as coisas na ITAP já não eram promissoras para mim. Estava empregado, tinha um salário relativamente comum e um pouco de dinheiro guardado na poupança. Mas nada disso era suficiente para montar um negócio próprio, eu não poderia me acostumar em um emprego no qual não houvesse a possibilidade de crescimento financeiro suficiente, oportunizando que eu empreendesse e seguisse meu próprio rumo.

Eu era muito grato ao meu posto de trabalho, cumpria meus deveres com muito gosto e contribuía com a empresa executando minhas obrigações da melhor forma possível. Não me atrasava, não complicava as coisas, tinha um excelente relacionamento com meus colegas e sentia satisfação em ser útil. Essa situação, todavia, não era suficiente para o meu jeito de pensar a vida, eu queria mais, queria avançar, queria arriscar crescer por minhas próprias pernas e seguir trecho até conquistar meu próprio empreendimento.

Então decidi deixar a empresa e buscar um novo mundo de possibilidades. Tive notícias naquela época sobre o crescimento industrial da Zona Franca de Manaus, um gigante e emergente Polo Industrial encravado no Norte do Brasil, na Amazônia brasileira, no belíssimo e riquíssimo estado do Amazonas. O centro industrial, comercial e agropecuário estava em galopante crescimento, gerando postos de trabalho os mais diversos.

Como era necessário aguardar o recebimento das minhas contas e também esperar o tempo imprescindível para deixar a ITAP, fui me desligando aos poucos e engatei um serviço temporário de manobrista, porque eu não queria ficar o dia todo sem fazer nada e ao mesmo tempo, era uma grana extra no bolso. Mas esse trabalho de manobrista durou um mês e meio, tempo indispensável para eu resolver as minhas coisas, arquitetar o dia da minha saída de São Paulo e projetar o que faria mais adiante. Minha ideia básica, o meu plano estratégico era viajar até Belém, porque eu já tinha parentes na capital do estado do Pará e após uma semana de descanso, embarcaria em um navio de Belém até Manaus.

Deixei São Paulo após três anos e meio de um profundo aprendizado, uma cidade fantástica, plural, cosmopolita, rica em oportunidades de emprego, cheia das contradições da própria vida e história do povo brasileiro.

São Paulo foi para mim, mais uma escola da vida, uma escola na qual se avança em caráter, quando se tem coragem para viver sempre, como vivi, do próprio suor, do próprio trabalho, da própria luta diária. Aprendi muita coisa, habilidades novas, funcionalidades tecnológicas, a me virar sozinho, a não me desesperar na solidão medonha, a compreender o tempo da vida que muitas vezes não é o mesmo tempo pareado aos nossos gostos e vontades. Aprendi a me relacionar positivamente com os meus colegas de trabalho, vizinhos e pessoas que fui conhecendo ao longo do tempo, por lá. Aprendi a me comunicar melhor e vencer, definitivamente, aquela timidez estrutural do meu mundo interno. Aprendi que a rotina pode ajudar o indivíduo a fixar nele mesmo uma boa e ampla dose de disciplina. Aprendi a amadurecer, aprendi a escutar os

outros, aprendi que a vida não dá nada de graça para ninguém, nada cai do céu, a sorte é a ocasião na qual o indivíduo arriscou e bateu na probabilidade.

Aprendi a me defender sem ser um alucinado que acredita ser o mundo um obstáculo contra ele, mas sim, um grande celeiro de chances para o desenvolvimento pessoal. Aprendi que o olho do furacão das dores da vida não pode alimentar medos, deve contribuir para uma maior resistência, uma maior paciência, maior compreensão de que se você nasceu materialmente pobre e quer superar tal condição, só há quatro caminhos para isso: “trabalhar acreditando em você, trabalhar honestamente, trabalhar com fé em Deus e economizar sempre.

Poderia estar aqui contando uma outra história, uma autobiografia encenada em terras manauaras, quem sabe até, algo como uma trajetória singular de crescimento exponencial como um perspicaz e próspero executivo em uma indústria da Zona Franca de Manaus, um sertanejo em diáspora transitando pela rica umidade manauense com seus desdobramentos familiares, sociais, pessoais, comerciais, filosóficos. Mas não foi o que se deu, a força das circunstâncias, as ações entremeadas de causas e efeitos, uma pitada de sorte, a força do destino, o auxílio de familiares, não como algo destituído da injunção consequente das minhas próprias ações e escolhas, mas como um panorama da realidade para minhas próprias decisões, como um cenário próximo do exercício cotidiano da minha existência, entraram em ação fortemente, quando eu cheguei em Belém do Pará.

Tocava o solo sagrado da “capital da Amazônia” pela segunda vez. Na primeira vez, não consegui emprego, fiquei pouquíssimo tempo, não deu para sentir nada, foi só uma espécie de reconhecimento rápido em uma terra belíssima e riquíssima em biodiversidade, nem alimentei, entretanto, perspectivas futuras e sinceramente, à época, não imaginava no futuro de forma alguma, um dia me fixar no chão encharcado da coragem do povo Cabano.

Em São Paulo é cada um por si e Deus por todos, ou você segue o fluxo da rotina diária, ou você é engolido pela ociosidade ineficiente. Foram três anos e meio de uma influência complexa sobre o meu ser, enriquecimento em múltiplas experiências fora do meu ninho natural. As minhas raízes sertanejas se mantiveram sempre presentes, somadas as outras construções advindas da realidade paulistana, qualificando ainda mais a minha mentalidade florescente em acreditar que a hora de ter o meu próprio negócio chegaria, era preciso seguir firme lutando e tentando, mesmo que fosse em outras paragens.

No Pará, meu trabalho duro, garantiu-me realização!

“A coisa nunca é uma linha reta, sempre tem altos e baixos. O importante é aprender com as dificuldades e sempre ver nas dificuldades uma oportunidade.”

(Jorge Paulo Lemann)

Belém do Pará capitaneou o profundo fervor da perseverança existente dentro de mim, o que sei hoje do ponto de vista corporativo, empresarial e comercial, eu já sabia, àquela época, do ponto de vista das experiências da minha própria vida. A minha improvável trajetória e o meu triunfo sobre a pobreza material, foram o resultado da minha obstinada perseverança, do meu espírito empreendedor e da minha fé sempre presente, no sonho de que meu tempo de sucesso também chegaria.

Meu positivo apego forte e excessivo às minhas próprias ideias, somando-as as boas ideias das pessoas conviventes comigo ao longo dos ciclos da minha caminhada, minha tenacidade pelo trabalho, meu método nada ortodoxo de avaliar as situações da realidade e minha economicidade nos ganhos, fomentaram e fixaram no meu ser os ensinamentos nos quais eu fui me firmando consistentemente. Pensava sempre: “Se eu for disciplinado no pouco, se eu for econômico no pouco, se eu seguir em frente sem me acostumar com o pouco, se eu jamais desistir, e sim, mudar de rota quando fosse preciso. Eu conquistaria uma solidez financeira para executar meu próprio empreendimento, seria uma questão de tempo, como realmente ocorreu.”

Tinha primeiramente construído um patrimônio imaterial de habilidades e competências desde Cabrobó, passando pela visceral vivência e traquejo laborativo em São Paulo. Faço questão de relatar isso aqui, porque o sucesso não é uma aposta na loteria, tudo que se vive antes das realizações, importam muito! Disciplina, simplicidade, praticidade, transparência na execução dos deveres, economicidade, agilidade, consistência, honestidade, integridade, fé no futuro, mentalidade criativa e cooperativa e uma leveza em lidar com as contrariedades são riquezas interiores que você vai aprendendo e desenvolvendo no “pouco”, porque sem essas qualidades, o “muito” não chega, e se por uma tacada de sorte, chegar... Não trará satisfação verdadeira, porque a base emocional será movediça e sempre instável.

Eu sentia o sabor de cada um dos meus dias, buscava forças nas forças do meu trabalho, movimentava-me bastante, esforçava-me muito no que eu fazia, aniquilava a ideia do tempo perdido; então as minhas expectativas eram racionalizadas, eram baseadas em uma projeção para o futuro sem perder de vista a vida presente, sem pôr a imaginação no lugar das desilusões. Arriscar com equilíbrio, entendendo que as circunstâncias trabalham também a nosso favor, por isso observava tudo panoramicamente, mas eu ia agindo, ia trabalhando incessantemente, planejando cada passo, sem esperar que tudo desse certo. Para eu fazer dar certo, prosseguia acreditando e projetando a longo prazo minha possível história de sucesso, galvanizada em um ímpeto cujo alicerce se firmava na minha essência sempre presente, pois as minhas ações, baseadas no meu jeito de ser, iam catalisando evolução e progresso.

Naquela época distante, final da década de setenta, eu já tinha uma certa noção dos desafios diários para construir uma caminhada para o crescimento financeiro, para conquistar um volume de capital e ter condições práticas de investir e gerar recursos suficientes para reinvestir e me solidificar no negócio que decidisse realizar. Essa noção, obviamente, não era baseada em estudos ou leituras (não tive tempo para estudar, não sobrava tempo para fazer cursos e como essa dificuldade me marcou muito, eu acabei criando uma barreira emocional forte, contra a leitura, somente superada depois dos meus sessenta anos de idade). Minha expertise, portanto, era fundamentada na minha vida prática, na minha astuta observação por onde passei, era alicerçada nas estratégias dos negócios das empresas das quais trabalhei, e mesmo, na observação da organização administrativa das fazendas que apreciava com olhar encantado desde pequeno na zona rural de Pernambuco.

Sempre fui um sujeito focado no que fazia, mas não era um alucinado... Minha visão da vida e do trabalho sempre foi multifocal, com senso de avaliação, imbuído da vontade de aprender sempre, cumprindo rigorosamente as metas elencadas, incorporando novos conceitos, lutando sempre para fazer o melhor ao meu alcance, com foco em usar o tempo a meu favor. Nunca gostei de reclamar, acredito convictamente, ser o tempo tão precioso, que não vale a pena usá-lo em reclamações infrutíferas. Isso não quer dizer, todavia, que os fracassos, as desilusões, os erros naturais da minha jornada, não causaram uma pane no meu sistema emocional. Causaram, sim! Eu sentia o baque, sofria o desconforto, mas não seguia o fluxo da autopiedade; pelo contrário, ia me recompondo, ia me fortalecendo nas minhas próprias convicções.

Todo esse comportamento proativo e diligente não veio do nada, não surgiu em um passe de mágica, não caiu do céu, não era fruto de imitação. Era o resultado de dia após dia, de luta após luta, de coragem, determinação, perseverança e uma certa audácia da minha parte em acreditar no meu sonho e caminhar adiante. Mantinha firme meu desejo de gerar dinheiro, gerar riqueza a longo prazo, gerar novas possibilidades, gerar um novo roteiro se fosse necessário, mantendo continuamente a simplicidade, sem jamais criar máscaras, sem jamais hipotecar o meu jeito de ser, para aparentar o que não era.

As qualidades não podem ser artificiais, não podem ser esporádicas, sazonais, pusilânimes... Então, àquela época, eu não compreendia intelectualmente esse valioso ensinamento. Mas eu praticava minhas qualidades, porque foi assim o meu aprendizado ao longo da minha relação com o mundo exterior. Por exemplo, fui muito perseverante e corajoso quando deixei o sertão para lutar por uma vida melhor em São Paulo.

Foram três anos e meio de muitas experiências por lá. Como o dinheiro conquistado com muito suor e sacrifício por mim, ainda não contemplava o meu sonho, não me apeguei a capital industrial do Brasil, não me acostumei ao status-quo de lá e refiz os planos. Novamente tive que praticar a perseverança e a coragem para atravessar o país, remando por um rio em tempestade, contra as incertezas do percurso, mantendo a calma, a disciplina e meu gosto pelo trabalho na forma que estivesse disponível, agindo com força de vontade e conectado a minha própria fé.

Em vinte e sete de setembro de 1977, botei meus pés em Belém do Pará, planejando passar uma semana com meus parentes residentes na cidade das mangueiras. Afinal, meu objetivo real era seguir trecho de navio até Manaus. O destino, entretanto, essa mola das probabilidades de causas e efeitos da vida, agiu outra vez na minha existência. Diferentemente da primeira vez que havia colocado os pés em Belém, logo consegui um emprego de motorista, fato prazeroso para mim, visto que eu gostava muito de dirigir. Já tinha carteira de motorista, tinha uma pequena experiência de um mês como manobrista em São Paulo, mas nada parecido com o que viria, a partir daquele momento.

Em uma manhã de intenso sol na mangueirosa fui passear com um primo meu chamado Geraldo Cabrobó, lá pelas bandas da Castilho França, avenida pertencente ao Complexo do Ver-o-Peso, situado no bairro do Comércio, às margens da baía do Guajará, que à época albergava os grandes armazéns da capital do estado do Pará. Meu primo Geraldo tinha um mercadinho e sempre ia nos armazéns comprar mercadoria para abastecer o comércio dele, além de comerciante, ainda arrumava tempo para ser artista, ser compositor. Ele era amigo de boteco de um filho do dono de um grande armazém de lá, e na oportunidade, apresentou-me para esse amigo dele com intensa cortesia. O fato mais interessante, todavia, foi a constatação da necessidade por parte do filho do proprietário do armazém, de contratar, justamente, um motorista para o armazém do pai. Meu primo, rapidamente, ao escutar a demanda, disse: “Pois aproveite logo, meu primo Antonio aqui! Ele é motorista profissional e tem carteira...” – no que respondeu o amigo dele: “pois não seja por isso, vamos logo fazer o teste agora).”

Consegui o emprego de motorista no armazém com esse paraibano chamado Daniel, e a partir desse evento, declinei da ideia de partir para a zona franca de Manaus. Outra vez mantive o pensamento convicto de conquistar meu antigo sonho de um negócio próprio a longo prazo. Aproveitei a oportunidade de trabalho para exercitar uma vontade bem pessoal, já que eu gostava absurdamente de dirigir, fazia as rotas com o maior prazer e até imaginava avançar para um

caminhão maior, porque eu trabalhava em um caminhão 3/4 dentro da cidade, dia e noite, cumprindo fielmente minha rota pelas vielas da capital e de outros municípios paraenses, como Castanhal, Ananindeua e Santa Izabel do Pará. E como era do meu feitio, do meu estilo, do meu jeito de ser... Um sujeito sempre operoso, que não suportava a ociosidade desnecessária e o tempo perdido sem uma ocupação realmente útil, ainda trabalhava nos finais de semana, tirando bico dirigindo táxi.

Pode parecer afetação da minha parte, uma bobagem trivial, uma memória comum a tantos outros motoristas de todos os tempos e lugares, um sentimentalismo exagerado, uma nostalgia pretensiosa, um flashback forçando lembranças de rotinas há muito tempo vividas. Para mim, sinceramente, não são somente aparências! Foi nessa época que conheci verdadeiramente Belém do Pará, a Belém profunda, a Belém dos empreendedores e também a Belém dos trabalhadores, do povo, da vida popular, da vida não teórica, da vida visceral da realidade e seus desafios pungentes pela sobrevivência.

Ainda hoje essas memórias tem um certo sabor de eternidade na minha mente e no meu coração, repercutem a argamassa da minha aprendizagem no exercício diário da vida cotidiana. E desde aquele tempo, tal panorama forjou em mim – por efeito das múltiplas experiências ao trabalhar dirigindo pelas veredas asfaltadas, apertadas, cheias de história e densamente transitadas por populares, na fantástica metrópole da Amazônia – um senso profundo de pertencimento, de disciplina, de sobriedade nos costumes, de cuidado aplicado na execução de uma tarefa e de simplicidade.

No final da década de 70 e início da década de 80, Belém do Pará já era uma cidade febril e em larga expansão econômica. Seu desenvolvimento era visível e o seu povo muito trabalhador; por aqui, compartilhavam os espaços públicos uma multidão de pessoas de muitos lugares. Muitos nordestinos, muitas pessoas do interior do estado do Pará e muita gente de outros estados do norte do Brasil.

Santa Maria de Belém do Grão Pará foi oficialmente fundada em consequência dos dispositivos coloniais de Portugal, objetivando proteger a região de outros colonizadores europeus – holandeses, franceses e ingleses – que estavam arquitetando tomar a região. Então, o Capitão-Mor do Rio Grande do Norte, Francisco Caldeira Castelo Branco, ficou encarregado por ordem da Coroa Portuguesa de ocupar e proteger a região contra as possíveis investidas dos chamados “invasores” e adversários dos portugueses. Em 12 de janeiro de 1616, o capitão Castelo Branco assegurou oficialmente a fundação da cidade, após uma expedição eficaz ao território belenense, guarnecido de uma quantidade significativa de homens, arregimentado por ele para a realização da empreitada.

A História relata inúmeras guerras no processo de colonização portuguesa no âmbito da cidade de Belém, inúmeros conflitos, muitas querelas políticas e sociais, muita resistência pelos povos originários e até uma revolução de ordem popular denominada de Cabanagem. Já se vê por esse aspecto, a força do povo de Belém do Pará, de sua rica história, da sua exuberante construção marcada

por beleza e dor, vitórias e derrotas, justiças e injustiças. Eu não poderia deixar de fazer essa ressalva em minhas memórias, porque foi em Belém que consegui realizar o meu sonho grande, além de ter sido a cidade que me acolheu e na qual fui construindo as partes mais significativas da minha vida.

Dirigia cumprindo o meu dever por seu labirinto fantástico, em uma cidade que florescia modernidade sem deixar o passado para trás, porque é marcada por prédios históricos, parques monumentais e vielas concretadas. Surpreendentemente bonita, chuvosa, cheia de mitologia, de muito sol, de um calor térmico e humano diferenciado. Com árvores centenárias, cheia de mangueiras para todos os lados e com pontos turísticos encantadores, tanto pela arquitetura material, quanto pela comunhão com a arquitetura da própria natureza.

Quando terminava a minha rota pela manhã, eu dava um pulo no mercado do Ver-o-Peso para pegar um almoço barato e superlativamente saboroso. Com toda certeza, o Ver-o-Peso era e é o maior cartão postal da cidade de Belém. Lá tudo acontece, lá tem comida para todos os gostos e todos os bolsos... E eu observava a maneira como se davam as negociações dos comerciantes de lá, um mercado vivo de permutas econômicas, de matérias primas, um ambiente de serviços impressionantes, local sagrado de abastecimento da população e de visitas dos turistas. Ficava abismado com a variedade e infinidade de produtos comercializados por lá, as cerâmicas, os artigos do artesanato, as centenas espécies de peixes, o açaí do grosso, muita coisa da floresta e das águas amazônicas, o formigueiro humano vendendo, consumindo e comprando tudo que fosse necessário para suas demandas.

O veropa – como carinhosamente é chamado pelos paraenses – simboliza a riquíssima cultura e culinária do estado do Pará, e Belém é a formosa cidade que sintetiza, se assim eu posso me expressar, essa cultura e essa culinária. No mercado do Ver-o-Peso, localizado às margens da Baía do Guajará, a maniçoba faz festa, o tacacá também, o filhote, a pescada branca, a gurijuba, a dourada, o curimantã, são iguarias indispensáveis no maior mercado a céu aberto da América latina.

As frutas colorem magnificamente as dezenas de bancas dos vendedores: taperebá, pupunha, cupuaçu, uxi, bacuri, rambutan e muita castanha-do-pará, todas ornamentam a beleza daquele ambiente espetacular e de riquíssima variedade. Por lá, existe ainda uma abundância de folhagens, beberagens, banhos de cheiro, garrafadas, amuletos amazônicos, ervas, pomadas, óleos, farinhas, tapioca, tucupi e sementes. A cerâmica marajoara é um ponto cardeal nas bancas e singularmente apreciada pelos olhares admirados dos visitantes, muitos acessórios, perfumes, cuias, adereços produzidos com a fibra do miriti, uma diversidade absurda de artefatos e produtos regionais.

É um dos mercados mais antigos da história do Brasil, sua origem remonta desde a primeira metade do século XVII, quando era originalmente um posto de fiscalização, um posto de supervisionamento alfandegário responsável pelo controle aduaneiro das mercadorias que entravam na Amazônia, o nome

originário da Casa fiscal era Haver o Peso e com o desenrolar das décadas e o crescimento demográfico somado ao desenvolvimento da urbanização, passou a se chamar mercado do Ver-o-Peso.

Não demorou para eu me tornar um paraense de coração, mantendo sempre, obviamente, minhas origens nordestinas, meu jeito sertanista e minhas raízes de vaqueiro. Para mim, na verdade, essa soma de culturas enriqueceram-me a alma e a minha visão de mundo. No início da década de 80, Belém do Pará já era uma cidade efervescente e em um ritmo de crescimento contínuo, uma cidade convidativa ao trabalho e que chacoalhava qualquer indivíduo desejoso de prosperar. Ainda mais se a pessoa não fosse mera expectadora da realidade, se fosse uma pessoa que mergulhava na realidade para extrair dela o melhor das experiências, fossem elas dramáticas, angustiosas, alegres, satisfatórias e até recheadas de contrariedades.

A paisagem natural e urbana de Belém também me deixou novas marcas e impressões, começar pela quantidade de chuva. A bendita chuva vinha como vem até hoje, pela manhã, depois do almoço, e à noitinha. Não há um inverno ou um verão em Belém, há quando chove um pouco menos ou quando chove um pouco mais; e para quem viu a seca por tantos anos, para quem enfrentou a aridez medonha do sertão por vinte e um anos seguidos, toda aquela quantidade de chuva era e é uma benção.

A alta umidade da cidade também me deixava impressionado, muitas vezes o calor era tão intenso que parecia que eu estava dentro de uma panela de pressão. Mas havia a compensação da chuva da tarde e porque as vias eram bem arborizadas, guarnecidas com muitas mangueiras, como já relatei acima.

E por ser Belém uma cidade cercada e singrada por rios, não havia como não me impressionar com tanta água, mas também com suas dificuldades socioeconômicas, sua insistente maneira indiferente de tratar os mais injustiçados, muitas palafitas, muitas invasões e muitas vielas onde a pobreza material se debulhava sem muitos freios, o destino individual de muitas pessoas negligenciado pela evidente falta de oportunidades de emprego e trabalho, educação e amparo. Um caleidoscópio social e ambiental complexo e cheio de sinuosidades, com um povo vívido, conversador, caloroso, cheio de fé e esperança, ainda mais quando chega outubro e milhares de viventes de Belém celebram o Círio de Nossa Senhora de Nazaré.

Meu trabalho de motorista, portanto, durante anos seguidos foi me colocando em uma situação simbiótica no organismo urbano da capital paraense, ia aprendendo nas rotinas do cotidiano que às vezes você conseguiria vencer a lida, outras vezes você sofreria para aprender as lições dos apertos e aperreios. E o melhor de tudo para mim foi seguir adiante aprendendo a ser um indivíduo autêntico, sem medo de ser eu mesmo, um cabra real, sem jamais querer aparentar o que não era, naturalmente real, sem firula no jeito de ser e um camarada que não tinha medo de aprender com os próprios erros, na vivência profunda e poderosa realidade da vida, ia compreendendo que as crises sempre passam, que deveria ser grato, sempre, mantendo o coração calmo e a fé no futuro,

porque eu já tinha uma noção de que ao longo da caminhada, qualquer que seja, cada pessoa recolhe o que vai semeando e existem verdades na vida que você não tem como comprar no mercado.

E nesse alvoroço afetivo das recordações, nessas lembranças minadas pela nostalgia, nesse sentimento acentuado de gratidão, eu tributo muitas das minhas habilidades conquistadas graças aos meus cinco anos ininterruptos de trabalho como motorista de caminhão e dos muitos bicos como taxista aos finais de semana, tempo contribuinte para minha instrução prática e aperfeiçoamento de habilidades que contribuíram mais à frente, para realizações no campo do comércio, dos negócios e do empreendedorismo, quando me tornei um empresário e um administrador audacioso e perspicaz. Minha concentração melhorou, a minha postura, a maneira de dirigir defensivamente me deu tino e um senso de alerta e atenção positiva, a performance e eficiência em cumprir prazos e metas nas rotas, o prazer em trabalhar, a aptidão em observar e ser paciente, a minha eficácia comunicativa, a responsabilidade consciente com a carga e a transparência com os meus resultados, fomentaram em mim uma marca profissional que jamais deixei de lado. E todo esse conjunto de competências serviram para enfrentar as pressões no trânsito e as eventualidades inesperadas, como atrasos ou imprevistos de maneira mais racionalizada.

Ao dirigir pelas estradas gostava de ouvir e até de cantar as famosas músicas do cantor, compositor e empresário goiano Amado Batista, um ícone brasileiro da música popular que explodiu em sucesso desde a década de 70. Recordo de uma canção dele que era muito tocada nas rádios no final da década de 80 e que retorna ao perfume da minha memória, a música chamava Nesta Cidade:

“Quando eu cheguei nesta cidade

Eu era assim

Cheio de sonhos e de vontade

Dentro de mim

Fiquei sozinho nesta cidade das multidões

Como falar com as pessoas se eram milhões

Andar nas ruas era um mistério pro meu olhar

O que fazer, pra onde ir, onde ficar

Levei meu canto pelos caminhos da emoção

Daquela gente perdida como eu na multidão

Daquela gente perdida como eu na multidão

A minha história foi toda escrita pelo o que eu vi

Não inventei, nem disse nada que eu não senti

Dizem que abuso muito do termo sentimental

Mas canto a vida como ela é ao natural

Nesta cidade, fazem dez anos que eu me perdi

Aqui um homem tem muita coisa que descobrir

Digo a esta gente de preconceito no coração

Que o meu canto é o mesmo que aprendi na multidão

Que o meu canto é o mesmo que aprendi na multidão

Que o meu canto é o mesmo que aprendi na multidão

Que o meu canto é o mesmo que aprendi na multidão

Que o meu canto é o mesmo que a...”

Após alguns anos trabalhando de motorista no primeiro armazém, resolvi mudar e fui trabalhar com Manoel Lopes que era sócio do meu primo José Carlos, com quem trabalhei depois. Eles tinham um armazém em sociedade e estavam precisando de um motorista, então, eu aproveitei a ocasião, pedi minhas contas e fui dirigir para eles. O armazém deles ficava localizado também no Boulevard Castilho França e o Manoel Lopes tinha outro armazém que se localizava nas imediações da Praça da Sé, bem ao lado da igreja. Prossegui com eles executando minhas obrigações da mesma maneira realizada anteriormente no meu primeiro emprego em Belém.

O tempo foi passando e como eu trabalhava muito, decidi tirar umas férias e viajar até Recife, nesse período de descanso ocorreu um fato comigo que contribuiu para minha mudança de profissão e conversão radical no rumo da minha vida. Encontrei com meu cunhado Hermógenes e ele era motorista de um caminhão trucado, um caminhão pipa de transportar melaço. Na cabeça dele, eu tinha larga experiência em dirigir esse tipo de caminhão, mas a verdade era que eu sempre trabalhei em caminhão 3/4, como essas F 4.000, bem inferior em tamanho e grau de dificuldade para conduzir, comparada ao caminhão trucado dele. O meu costume, portanto, era dirigir caminhão pequeno, mas o meu cunhado nem me perguntou nada, ofereceu o caminhão para subirmos uma serra por lá, e eu nem imaginava o que viria pela frente. Tanto que topei o desafio para ter a experiência de conduzir um caminhão maior. Começamos a subir uma serra e fui segurando o caminhão com uma certa destreza, ia subindo e Hermógenes explicando a maneira eficiente de subir e contando causos da vida dele por lá. Mas veio a descida, e foi na descida da serra que eu não consegui guiar o caminhão a contento, disparei o caminhão e não teve freio que segurasse a velocidade do trucado, que desse jeito de diminuir a intensidade na descida. A agonia foi só aumentando, eu super aflito tentando controlar o caminhão e meu cunhado rindo e dizendo: “Olha, vê bem aí que tem umas curvas perigosas mais à frente!”

Nessa época eu tinha vinte e sete anos e meu cunhado era mais novo e cheio de energia, eu acredito que ele pensava que eu queria impressionar ele, que eu era muito bom de estrada e estava dirigindo daquela forma porque tinha experiência. Mas não era nada disso, eu estava com muita dificuldade

em manter o caminhão equilibrado na pista ao descer a serra. Ele rindo e eu me virando para fazer as curvas perigosíssimas, porque eu não conseguia fazer as curvas de maneira correta, eu ia comendo parte da estrada da contramão, sentia o caminhão superpesado e não controlava a velocidade como deveria. Suando muito e com o coração em disparada, ia lutando para sustentar o caminhão fora das bordas da pista, porque de um lado era ladeira, com mais de cem metros de desfiladeiro e se o caminhão virasse, ficaria destruído ali mesmo. Do outro lado tinha um barranco e com a velocidade que eu estava, se batesse nele, o caminhão se acabaria, capotaria ou até poria em risco vidas de terceiros, porque havia fluxo de quem subia a serra, já que nós estávamos descendo.

Naquela alterada atmosfera de agonia psicológica, eu fiz uma força hercúlea para sustentar o caminhão e quando estava chegando às margens do desespero, lembrei-me de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, a Mãe do céu morena, a Senhora da América Latina. Tive um diálogo de fé com ela e mentalmente fui suplicando para que ela me ajudasse a domar o caminhão, deixando-me em segurança juntamente com o meu cunhado. Intrigante relembrar ainda que durante a minha súplica, fiz uma promessa para Nossa Senhora Aparecida; afirmando: “Se a Senhora me ajudar a escapar dessa ileso, nunca mais eu pego um caminhão na estrada.”

Depois da reza e da promessa eu me senti mais aliviado e mais forte para estabilizar o caminhão, já que esse feito ainda demorou um pouco, porque a serra era grande e as curvas não se acabavam de perigosas. Mas, Graças a Deus e a Nossa Senhora, eu consegui domar o caminhão e seguir o trecho até o destino proposto por meu cunhado. Nesse meio tempo, ele riu muito do meu jeito um tanto atrapalhado de dirigir e depois que passei a conduzir com mais tranquilidade, ele passou a falar de outros assuntos. Fui descendo, descendo e quando eu caí no plano da estrada aí eu respirei com folga, respirei aliviado e fui freando, freando, e quando fiz parar o caminhão de melaço, eu disse: “Cunhado, pegue aqui o caminhão que agora vou apreciar a paisagem.”

Se existia em mim algum sonho de ser motorista de caminhão trucado, carreteiro e até mesmo de permanecer como motorista de caminhão 3/4 a vida toda, tudo se encerrou por ali. Dali em diante eu faria uma transição para mudar de profissão, mudaria de rumo e, finalmente, introduziria em minha vida o início da execução do meu sonho grande, do meu sonho de ter um negócio próprio ou até de fazer parte de um negócio, no qual eu tivesse a oportunidade de pelo meu esforço e trabalho, crescer materialmente e financeiramente.

Quando voltei das férias em Recife para Belém, ainda trabalhei um certo tempo como motorista, mas nada de pegar estrada longa, fazia minha rota interna e no máximo ia até Castanhal. Verdadeiramente aprendi muita coisa do universo das vendas, das entregas e com os clientes, porque você vai observando como funciona a operacionalização do negócio, vai percebendo o timing das coisas, vai compreendendo existir uma dinâmica e uma lógica dentro do modelo de negócio, no qual você trabalha. Mas, apesar de todo aprendizado, concluí não ser o meu ramo, o negócio de entregas.

Então, focado mentalmente nas minhas mais profundas aspirações, fui lá com Zé Carlos, conversei fraternalmente com ele, expressando minha gratidão pelo emprego, mas naquele momento pediria minhas contas para seguir em frente e tentar um outro trabalho. Ele aceitou e compreendeu minha vontade, e após cinco anos exercendo a profissão de motorista, encerrava mais um ciclo na minha vida de muito aprendizado e trabalho. E por mais que deixasse o emprego, a firma, eu sempre saia pela porta da frente, sempre saia deixando boas amizades e relações, sempre saia com a possibilidade de um dia retornar, porque a vida pede a nossa fé, o nosso trabalho e o nosso planejamento. Mas é fundamental sempre, se relacionar com as pessoas com dignidade e respeito, objetivando construir um legado de amizade e de relações interpessoais positivas ao longo do percurso.

Naquela época, se os especialistas fossem fazer um prognóstico pelo diagnóstico do que eu já tinha enfrentado e pela maneira de não me apegar demasiadamente aos empregos no quais eu passava, certamente não entraria nas estatísticas dos aspirantes a se tornarem empreendedores de sucesso. Mas eu botava fé em mim e sentia, ainda que inconscientemente, que a cada dia se eu continuasse lutando para vencer na vida, tornaria-me como me tornei, uma pessoa que venceria as previsões como acabou ocorrendo.

Não deixei o tempo se esticar muito e na urgência de buscar uma nova rota econômica para a minha vida, arrumei um sócio que era gerente no armazém de Manoel Lopes, ele era um cara bem relacionado no meio comercial, conhecia muito bem a clientela, tinha uma boa relação com clientes assíduos e ele já me conhecia e sabia da minha versatilidade desde o meu vínculo no último armazém que trabalhei, porque durante o período que eu laborava de motorista lá, meu primo Zé Carlos me dava a oportunidade de trabalhar vendendo algumas mercadorias que ele não tinha, como cebola, batata e alguns gêneros de caixaria que ele não vendia.

Quando eu saía para fazer as entregas do armazém dele, eu aproveitava para vender minha mercadoria nas feiras, abastecendo pequenos comerciantes, isso me deu um gás financeiro a mais e eu construí uma pequena reserva de capital, graças ao extra dessa atividade de compra e venda de produtos de caixaria. E antes de sair para as minhas rotas, ainda conversava com uma funcionária do armazém, dizendo a ela que enquanto eu estivesse fora, se aparecesse algum cliente querendo comprar alguma hortaliça minha, era para ela vender e quando eu retornasse, prestaria conta com ela das vendas realizadas. Eu lembro que aos domingos chegava um feijão do sul, com uma boa qualidade e com um bom preço para venda... Procurava meu primo Geraldo e dizia para ele: “Primo, chegou um feijão bom no armazém, pega lá e bora vender nas feiras que nós dividimos em partes iguais o lucro.”

Ele aceitava a proposta e nós nos mandávamos para as feiras, ele tinha uma kombi e nós abarrotávamos o veículo de feijão, ele batia a saca de feijão na cabeça e, nas feiras, entregávamos a mercadoria para os clientes. Essa nossa atividade comercial funcionava que era uma beleza, porque eu já conhecia

os clientes, já tinha pegado o jeito de vendedor e o lucro que conseguia, eu poupava para novos pequenos investimentos. Nessa época, eu morava em um quartinho simples em uma vila no bairro de Canudos, o quartinho era realmente apertado e tinha uma cama simples.

Apareceu um cidadão oferecendo um ponto comercial em Icoaraci para o meu sócio Jorge Teixeira, era um ponto pequeno e o cara só venderia o ponto se nós comprássemos também uma Rural que ele tinha. Eu lembro que comprei a Rural por cem cruzeiros à época, constituindo aí o meu segundo carro, o primeiro tinha sido um fusca em São Paulo, o qual eu vendi depois de deixar a cidade de São Paulo e vendê-lo em Cabrobó. Feito a negociação do ponto comercial e da Rural, nós viemos trabalhar para Icoaraci e avançamos a nossa sociedade, porque ele ficava no pequeno armazém e eu ficava fazendo as entregas das mercadorias na bendita Rural comprada por mim.

O meu sócio Jorge Teixeira e eu conversamos muito sobre o negócio que iniciaríamos juntos, como eu sempre fui econômico, tinha uma reserva em dinheiro pra tocar de início o empreendimento. Fui logo ligando para um primo meu, chamado Edmir Freire, residente em Petrolina, um município brasileiro do interior do estado de Pernambuco, distante mais de 700 km a oeste de Recife, e pedi para ele me mandar cebola, ele trabalhava com cebola e eu queria revender a hortaliça no comércio de Belém. Ele me mandou uma carrada de cebola e o meu primeiro negócio efetivo deslanchou, porque meu sócio Jorge Teixeira tinha entrada boa nos comércios grandes. Passamos a vender para os grandes supermercados da cidade, mas continuamos a vender para os pequenos também. Nossa sociedade e nosso negócio foi pegando corpo e gerando uma boa receita, afinal, nós dois tínhamos experiência com compra e vendas de mercadorias.

Em Icoaraci algumas vezes, como não tinha onde pôr a minha mercadoria, eu acabava colocando-a dentro do quarto, dormia apertado juntamente às sacas de cebolas me acostumando com o cheiro característico dessa hortaliça. Mas essa condição nunca foi problema para mim, pelo contrário, ia compreendendo ainda mais o valor das coisas, o valor de cada gota de suor produzido pelo meu corpo, eu gostava da experiência, eram dias de glória de quem sabia que tudo valeria a pena.

Cada vez mais ia amadurecendo entre poeira, trabalho, suor e sonhos, era um amadurecimento ocorrido no curso natural da natureza, sem forçar jamais avançar gananciosamente, somente meu foco era trabalhar honestamente, com muito esforço, foco e disciplina, ia dando meus passos firmes por meio do caos, por meio da complexidade, por meio da dificuldade.

Certa noite, quando estava em Canudos depois de um dia intenso de entregas, passou por lá um cara em uma caminhonete F100 e ao ver minha Rural, encantou-se na primeira olhada. Chamou-me e propôs trocar a F100 dele na minha Rural. A minha ruralzinha era bonita, mas já tinha um bom tempo de uso... Eu aceitei trocá-la na caminhonete dele, em função da possibilidade dela ter maior espaço para eu colocar mais mercadoria e fazer mais entregas.

“Momento no qual, já no Pará, dormia no meu quartinho, na minha cama simples, ao lado de sacas de cebola. O trabalho para mim, sempre foi sinônimo de luta, o trabalho sempre foi a extensão da luta por outros meios.”

Depois dessa aquisição nós trabalhamos seis meses direto na nossa sociedade, a nossa firma chamava Cerealista Maguari. Foram seis meses intensos e corridos, não tinha tempo para nada, a não ser trabalhar as entregas e concluir as vendas; um fato comercial, entretanto, fez eu mudar de ideia após os seis primeiros meses.

Quando a cebola tá dando bem, quando está realmente em alta, o preço vai subindo, subindo e conforme você vai ampliando as vendas, o trabalho árduo compensa porque sobra algum capital para você. Mas quando começa a baixar a demanda, o preço decai vertiginosamente, vai caindo, caindo e fica bem difícil conseguir uma margem de lucro para manter o negócio.

Como fui percebendo que não conseguiria manter meu capital, eu decidi conversar com o Jorge Teixeira e desfazer a sociedade, ele ainda pediu um tempo, mas eu já estava decidido a sair. Liguei para o meu primo Edmir e disse a ele para não mandar mais cebola de Petrolina, visto que havia tomado a decisão de deixar a sociedade, ele ainda propôs um novo negócio entre ele e eu para vender cebola fora de Icoaraci, mas eu já tinha aprendido que naquele negócio de vender cebolas, eu perderia dinheiro a longo prazo.

Segui meu rumo sozinho novamente, voltei lá com Zé Carlos e já engatei uma demanda com ele. Ele pediu que eu fosse até o Maranhão para comprar arroz e depois que fosse até o Sul do Brasil para comprar feijão. Então foi o que fiz, organizei-me e fui até o distrito de Icoaraci encontrar com um amigo meu, ele era cearense, mas tinha sido criado no Maranhão, o que fez dele um grande conhecedor dos arrozeiros de lá. Ele iria comigo representar a empresa de Zé Carlos, porque ele era contador.

Quando coloquei os pés em Icoaraci com a mala pronta para viajar, deparei-me com ele e disse: “Eras Antonio, não vai mais dar certo a nossa ida para o Maranhão, eu ia, mas morreu o avô da minha mulher, tem um velório aí e eu preciso ficar, porque quero dar força para ela. Então, não será mais possível seguir trecho.”

Então chega uma hora na sua vida que quando as coisas não dão certo, mesmo você tendo um certo grau de resistência, uma resiliência solidificada e um coração forte, você sente o baque mesmo assim. Em um momento os seus sonhos estão próximos, tão próximos que fica impossível não realizá-los, mas por um acontecimento inesperado, dramático até, eles se distanciam, passam pelas suas mãos tão líquidos como a água do mar.

O que você faz? Como agir quando as tempestades são realmente assustadoras? Como agir quando os muros parecem maiores de serem ultrapassados? – Essas reflexões inundaram minha cabeça, encheram meu mundo emocional de pensamentos e inquirições. Uma coisa eu sabia... jamais desistiria, poderia sempre mudar de rumo e de rota, mudar de estratégia, mudar de lugar, mas desistir nunca foi do meu comportamento. Eu me esforçava em lembrar naquele turbilhão, que a vida dá e a vida tira, justamente para vermos o que nós nos tornamos com o que nos acontece; se gente covarde ou gente corajosa, e como

na minha vida inteira eu sempre decidi seguir em frente, apesar de tudo, foi o que resolvi fazer.

Depois do baque da resposta do meu amigo, eu pensei um pouco, eu estava realmente com a cabeça cheia e como estava mesmo em Icoaraci, fui lá ao lado da Cerealista Maguari e lá tinha o Seu Ricardo conhecido por índio proprietário de um barzinho. Pedi uma cerveja e fiquei tomando lá, matutando o que eu faria da minha vida dali para frente, refletindo sobre os possíveis rumos que tomaria. Passados uns 20 minutos o Seu Ricardo se aproximou de mim e disse: “Seu Antonio é o seguinte, o Seu Curica teve aqui atrás do senhor e como eu não tinha seu endereço e nem como me contatar com o senhor, então ficou por isso mesmo. Ele me disse que quer falar com o senhor, disse que precisa lhe informar sobre uma situação!”

Na sequência só fiz deixar minha mala lá, pedindo para o Seu Ricardo guardá-la, porque naquele momento mesmo iria à procura do Seu Curica, já que ele morava bem próximo dali, mais ou menos uma rua de distância do barzinho. Chegando lá o cumprimentei e ele foi logo dizendo: “Olha, Seu Antonio, eu resolvi alugar aqui, porque não tá dando mais, os meus filhos tão quebrando o comércio e quero passar adiante. O que o senhor me diz?”

Eu aceitei na hora, porque era a chance de começar um negócio próprio do zero como eu sempre quis. Foi um momento marcante na minha vida, um acontecimento inesperado, a força das circunstâncias entrou em ação e de uma profunda frustração sentida horas atrás, passei a sentir um profundo entusiasmo.

Acertei o aluguel com Seu Curica e perguntei a ele que horas seria dado o balanço das mercadorias dele, ele me olhou e disse: “Não, eu não vou dar balanço nenhum, tá aqui a chave e o senhor dê o balanço sozinho aí mesmo”. Eu nem sabia dar balanço, não tinha costume de trabalhar com miudezas, mas como era necessário fazer o balanço, convidei meu primo Geraldo para me orientar e ajudar. Ele já tinha mercadinho e sabia como fazer. Então, ele foi lá comigo e começamos a trabalhar no balanço. O fato é que fui super-honesto com a mercadoria do Seu Curica, porque até as agulhas eu as conferi de uma por uma, com os broches fiz a mesma coisa, e como Geraldo entendia de mercadinho, nós precificamos as mercadorias para poder comprá-las e fizemos todas as anotações em um papel à parte.

Passou um dia e Seu Curica voltou lá comigo e quando ele chegou, eu disse: “Olhe, Seu Curica, tá tudo aqui anotado nesse papel, tudo minuciosamente anotado e com o balanço feito da forma mais honesta possível, se o senhor quiser reconferir, fique à vontade, reconfira tudo, veja se os preços estão corretos, porque eu me baseei pelos preços do mercadinho do meu primo Geraldo, já que ele veio me ajudar a dar o balanço.”

Ele pegou o papel e arrematou em seguida: “Não, eu não quero reconferir nada... Eu confio no senhor!” Então reafirmei minha conduta de total transparência e honestidade e paguei a ele o que lhe devia e fui me instalando no ponto comercial em Icoaraci. Um dos filhos do Seu Curica, de início, ficou meio contrariado,

porque ele era solteiro e ainda não tinha onde ficar. Mas eu conversei com ele, expliquei para ele se ajeitar no local, porque a casa era comprida e lá, além do ponto, tinha três quartos. Disse para ele separar um quarto e que entrasse pelo corredor, ficaria isolado para lá e teria a privacidade dele e eu a minha, até as coisas se ajeitarem para ambos os lados. Com o tempo ele saiu por conta própria, seguiu a vida dele e como era de se esperar, conseguiu superar seus desafios.

O espaço do ponto tinha quatro metros de largura por oito metros de comprimento, o mercado dava uns trinta e dois metros e tinha a casa conjugada por trás com três quartos e uma cozinha. Comecei a planejar como trabalharia, meu foco era nas raízes do meu negócio e não nos frutos dele, aprendi que os frutos são sempre resultados, nada de pôr a carroça na frente dos bois, ali realmente sentia florescer um caminho novo... Então, de um dos quartos fiz logo um depósito para formar meu estoque, minha primeira meta foi sortir o comércio e para isso tive que ir no centro comercial de Belém e acessar antigos contatos. Como eu não tinha mais carro, eu partia de Icoaraci para o centro da cidade de ônibus objetivando fazer as compras das miudezas, das mercadorias necessárias para a revenda no meu negócio. Nesse ponto comercial que aluguei do Seu Curica, a ex-esposa dele, dona Tereza, mantinha uma venda de camarão que fazia muito sucesso, porque o pessoal comprava lá para tomar com açaí. Eu mantive a venda de camarão, justamente para ir conhecendo mais de perto a minha nova clientela, eu ia no Ver-o-Peso e comprava paneiros de camarão e voltava de ônibus com aquela mercadoria toda... E como se dava isso?

Na verdade eu poderia dizer que essa foi minha primeira logística executada pelos meus próprios punhos, era um sofrimento, pela correria medonha e pela distância de Icoaraci até o centro de Belém, eu fechava meio-dia e corria para lá, não perdia tempo, comprava toda mercadoria, pagava os armazéns, já tinha os pedidos todos anotados em um papel e era tudo na eficiência e na minha diligência, eu não tinha telefone, era um objeto caríssimo, resolvia tudo na correria, batendo perna e usando a força da palavra para negociar e comprar mais barato. Quando sobrava uns quinze minutos, buscava uma barraquinha e almoçava ligeiro, não dava tempo nem para engolir direito, não podia me dar ao luxo de perder tempo, tinha que voltar para Icoaraci o mais rápido possível, quando eu terminava a peregrinação, pegava o ônibus e chegava em Icoaraci umas 4 da tarde, naquela época a Augusto Montenegro já estava inaugurada, mas o trajeto mais veloz se dava por dentro da Base Área de Belém. Era mesmo um sacrifício, um trabalhão danado, mas eu estava tão satisfeito de fazer rodar meu negócio próprio que tirava de letra todas essas dificuldades do início do meu comércio.

Logo que entrei no ramo do comércio não tinha noção dos riscos, mas como era jovem, afoito, corajoso e tinha vontade de vencer, fui impondo respeito. Sempre fui um homem honesto nas minhas negociações, pois eu sempre lembrava do caminho da honestidade que minha mãe me ensinou, ela sempre dizia: “ser pobre não é defeito, use sua honestidade onde você estiver que você será reconhecido”.

O nome do meu mercadinho era Nossa Senhora Aparecida do Norte, uma homenagem emocional e simbólica a Nossa Senhora, Padroeira do Brasil, que sempre me protegeu e me ajudou, principalmente nas horas difíceis da minha vida. Quando as coisas não iam bem para mim, eu me socorria com ela e escutava na minha alma um sussurro pela comunicação da minha fé, dizendo: “Nesse tempo difícil, que logo passará, a fé lhe dirá sempre, que é tempo de coragem.”

O pessoal passava à frente do meu mercadinho e olhava aquele nome grande e achavam graça, com bom humor, alguns perguntavam o porquê daquele nome tão grande, eu ia lá e explicava o meu motivo, e então eles entendiam. Dei fluxo o meu trabalho ininterruptamente, vendia, comprava, vendia, comprava, vendia e comprava... Fui fazendo uma grande margem de capital, fui criando boas relações com o povo de Icoaraci, fui aumentando a minha clientela a olhos vistos. E como eu sempre fui uma pessoa muito segura, muito econômica e com a mente voltada para resultados a longo prazo, eu fui fazendo um bom capital e ia logo investindo-o em novas aquisições. Em apenas dois anos de mercadinho, eu consegui comprar uma casa que tinha ao lado, comprei um fusquinha, comprei um telefone e já havia colocado uma espécie de filial do meu negócio lá na quinta rua de Icoaraci. Obviamente que esses frutos eram resultado das raízes do meu jeito de ser, eu não brincava em serviço, trabalhava mesmo, acordava cedo e ia dormir tarde, principalmente nos finais de semana. Não tirava folga e não tinha férias, ainda não era hora de ter essa regalia, primeiro precisava fortalecer o negócio, ter uma sólida reserva financeira e uma segurança econômica para enfrentar os tempos de vacas magras, porque elas sempre aparecem.

O meu modelo de dinheiro, nunca foi para ter prazer imediato, sempre foi para ter uma relativa liberdade a longo prazo, meu foco era trabalhar pensando no futuro, por mais distante que parecesse, ele sempre chegaria, e quando ele chegasse e eu não tivesse o suficiente, não poderia responsabilizar nada, nem ninguém, porque dependia de mim ter se esforçado mais, ter se sacrificado mais, ter trabalhado mais.

Pode parecer duro refletir nesses termos, mas a vida é dura, a vida é difícil, a vida é um desafio diário, principalmente para quem veio do nada, que não nasceu em berço de ouro, que não teve pai rico. O telefone, a casa, o fusca e a filial eram resultado desse meu jeito de me comportar, eu havia criado uma cultura habitual de investir, de crescer, fazia valer meu espírito empreendedor, porque todos nós sabemos desde cedo, que quem não faz no pouco, não fará no muito.

“O nome do meu primeiro mercadinho era Nossa Senhora Aparecida do Norte, funcionava em Icoaraci, uma homenagem emocional e simbólica a Nossa Senhora, Padroeira do Brasil, que sempre me protegeu e me ajudou, principalmente nas horas difíceis da minha vida. Relembro que trabalhei cinco anos seguidos nesse meu primeiro mercadinho, tirando só um dia de folga em toda extensão dos cinco anos, para conseguir estruturar o meu comércio.”

Um dia apareceu por lá o João cobrinha, um camarada de Icoaraci, muito conversador por sinal, ele tinha um ponto perto do meu, era um ponto na outra esquina e lá só havia as paredes levantadas... Ele chegou comigo e disse: “Rapaz, eu tenho aquele ponto ali e quero vender, tu não queres comprar?”

Eu pensei, planejei e verifiquei se tinha uma boa reserva para não passar perrengue ao comprar o novo ponto, já que eu ainda teria que terminá-lo. Nesse meio tempo, eu percebi estar a minha filial com imensos desafios para gerar o lucro esperado como eu tinha imaginado que daria, em função de algumas dificuldades administrativas e de clientela.

Fiz os cálculos e disse a João cobrinha não ter capital suficiente para arrematar o ponto que ele desejava me vender. Ele rebateu dizendo: “Não tem problema, eu faço negócio naquele seu ponto da quinta rua”. Eu respondi que aceitava o acordo e fizemos o negócio de um ponto no outro. Foi aí que meu mercadinho virou mercado porque o ponto novo era maior e já dava para investir ainda mais. Vi aí como é importante manter uma disciplina nos negócios e como é mais importante ainda, ter uma rotina proativa, para perceber as necessidades dos clientes e adequar as demandas e o atendimento conforme a demanda da clientela.

Eu acordava todos os dias às 5hs da manhã para pegar o movimento dos magarefes que iam para o matadouro, os magarefes eram indivíduos que abatiam e esfolavam as reses nos matadouros; conhecidos também na linguagem mais popular, de carniceiros. Eles passavam pela minha mercearia bem cedinho para pegar o café, o cigarro e o pão e as demais miudezas compradas por eles, desde cedinho, portanto, eu já estava lá para conquistar esse movimento e fazer caixa.

Fui fazendo amizade com o pessoal do bairro, na hora que faltava algum produto na casa deles, eles já sabiam onde encontrar. Os pais escreviam um bilhetinho, enrolavam o dinheiro nele e davam para as crianças de 5 anos irem lá comigo comprar o que faltava; eles me entregavam os bilhetes, eu separava as mercadorias e quando tinha troco eu enrolava na fita da máquina, onde estavam os valores das mercadorias, embalava e orientava os garotos a voltar direto para casa.

Fazendo um cálculo dos cinco anos em número de dias, foram 1.825 dias trabalhando ininterruptamente de domingo a domingo, com exceção de um dia somente, porque lembro ter fechado em um domingo, para dar uma volta na praia de Marudá e esfriar a cabeça, foi um domingo de folga que resolvi me conceder, portanto, 1.824 dias de trabalho intenso objetivando bater metas a longo prazo, como criar uma solidez, conquistar a clientela, ter um capital de giro sustentável, investir com segurança e crescer mais.

Todo começo é difícil, como todos sabem, só para ter uma ideia, eu trabalhava no caixa e ali mesmo fazia minhas compras por telefone e vendia para os armazéns e distribuidoras que por ali passavam, conferia a mercadoria que os fornecedores entregavam, virando-me nos trinta. Foi uma trajetória muito difícil em Icoaraci, fui aprendendo com o tempo, o trabalho foi me ensinando a cada

dia o caminho das pedras, cada erro era uma lição, cada dia uma oportunidade de avançar; para mim o mundo sempre foi a melhor faculdade.

Foi um começo complexo, porque eu não tinha experiência com o comércio daquela forma, tinha noção, é verdade, mas ali era eu comandando o leme, era eu administrando tudo, conduzindo cada detalhe. Eu batia o escanteio e corria para cabecear e o dinheiro dos negócios é sempre apertado, você não pode vacilar, visto que se vacilar, ele evapora.

Minha grana, portanto, era dinheiro de ponta de lenço, como diziam os mais velhos. Um itinerário muito árduo, fui aprendendo com o tempo, o trabalho vai ensinando a cada dia que se passa, cada erro é uma lição de vida, o mundo é a melhor faculdade. Fui somando tudo que aprendi e executando da melhor maneira, sem deixar a peteca cair, sempre com iniciativa, perseverança, planejamento, buscando aprender com os outros e com meus próprios erros, honrando sempre os compromissos e sem jamais enganar ninguém.

A maioria dos comerciantes de Icoaraci não tinham fornecedores, só compravam a dinheiro, foi aí que comecei a vender a prazo, garantindo o tempo de uma semana para eles me pagarem no apurado, assim fui conquistando a clientela, e como a minha rentabilidade só crescia, como meu capital dobrava todo mês, não deixei ele parado e logo fui comprando casa, ponto comercial e bicicleta cargueira para fazer as entregas mais perto, o meu crescimento se deu a olhos vistos e não deixei o entusiasmo me deslumbrar, pelo contrário, mantive-me firme e segui a minha austera rotina e parti para a venda externa. Ampliei o negócio, contratando vendedor externo e investindo em carros para a distribuição. Meu talento em ser atacadista debulhou daí, foi aí que eu botei o time em campo e me reconheci um comerciante atacadista com profunda habilidade em empreender.

Cheguei a entregar cento e cinquenta sacas de açúcar em 3 bicicletas cargueiras com três jovens de Icoaraci. Não tinham carteira assinada, pagava meio salário por mês para cada um. Essa era a minha tabela àquela época, graças a Deus tudo foi melhorando e eu fui me informando sobre o desenvolvimento das questões laborais e depois, como patrão, passei a seguir à risca os ditames trabalhistas.

Durante a semana eu levava o meu comércio aberto até umas dez da noite e aos finais de semana deixava-o aberto, geralmente até umas meia-noite, porque lá pertinho tinha uma gafieira chamada sede do Maguari e rolava muita festa por lá com as músicas populares de sucesso da época, era gente a rodo, como se dizia, centenas de populares se reuniam para curtir a festa, muitos deles iam no meu mercado para comprar sardinha, conserva, vinhos de cinco litros para beberem lá com a turma reunida, era um balaio de gato, gente para todo lado. Mas era bem tranquilo, ninguém mexia com ninguém, o pessoal ia mesmo para se divertir e curtir a folga. Isso eu fazia de domingo a domingo e foram cinco anos seguidos nessa batida, foram cinco longos anos nessa rotina de ferro para fazer o meu comércio prosperar, para criar uma relativa reserva de capital e para poder realmente crescer e ter uma relativa liberdade econômica.

Relembro da correria toda... eu almoçava e jantava lá no meu mercado, no domingo à noite a pressão era maior, dado que o povo ficava no entorno até mais tarde e eu aguentava o rojão, porque queria vender mais, garantindo uma maior entrada de dinheiro para eu pagar as contas na segunda-feira pela manhã, quando eu acertava com os fornecedores. Como eu já tinha crescido um pouco, era auxiliado por mais três funcionários, todos de Icoaraci e todos jovens, eles me ajudavam a cumprir as demandas do varejo e também do atacado, em razão de eu já estar executando a minha maior vocação para o comércio no atacado. Tinha uns amigos por lá que me procuravam e diziam para eu comprar mercadorias para eles nos armazéns de Belém, já que eu tinha conhecimento do pessoal que trabalhava nos armazéns no Boulevard Castilho França. Eles falavam: “Antonio, compre lá para nós, pois no sábado falta mercadoria aqui e nós não temos onde correr para comprar”. Mas a verdade era que eles não tinham crédito e eu tinha crédito sobrando. Então, eu ia lá no centro de Belém, comprava minha mercadoria e a deles, fazia o cálculo do meu lucro e vendia para eles, dava o prazo para pagarem e ia lá receber.

Fui pegando mais gosto nesse serviço de atacado. Eu rememoro que vendia duas sacas de açúcar por semana no varejo e passei a vender cinco sacas por semana no modelo de negócio do atacado, vendia um saco de feijão por semana e passei a vender três sacos de feijão, vendia muita caixaria e assim ia ampliando meu negócio e me fortalecendo no atacado, fui aumentando e servindo cada vez mais de fornecedor para diversos comerciantes varejistas de Icoaraci.

O comércio de varejo ou vendas no retalho consiste na atividade do comerciante vender os produtos ou a comercialização de serviços em pequenas quantidades, diferentemente do ocorrido na venda por atacado, o varejo é a venda direta ao comprador final, consumidor do produto ou serviço, sem intermediários. No atacado, é diferente, porque se vende uma grande quantidade do produto, são fardos e fardos, sacas e o atacadista vai alimentar justamente os mercados varejistas, comercializando grandes quantidades de determinado produto, ou de produtos de emprego similar.

O tempo foi passando e lá por volta de 1986 e em uma manhã rotineira chegou por lá um cara que trabalhava no aeroporto, ele tinha ficado desempregado e foi lá comigo tentar um emprego, o apelido dele era laranja, ele era casado e tinha dois filhos. Eu não queria dar um emprego para ele, porque eu não conseguiria pagar o mesmo salário que ele recebia anteriormente. Disse a ele que ele tinha uma despesa alta e que não compensaria um emprego lá comigo, porque eu não pagaria o valor que ele estava acostumado. Mas vendo a necessidade dele, e a sua insistência, eu disse: “Olha, a saída é você trabalhar de vendedor, tem uma mercadoria boa aí e se você vender tem uma boa comissão.”

Ele acabou aceitando e imediatamente eu fiz a lista das mercadorias e coloquei os preços nelas. O Laranja meteu a cara na rua como vendedor, passou uma semana tentando vender e não conseguiu vender nada. Eu tinha colocado os preços um pouco acima do convencional e quando ele foi lá comigo, falou: “Olhe, Seu Antonio, essa vida de vendedor não é pra mim, não! Uma semana aí

tentando e não vendi foi nada.” Então eu atalhei: “Cara, ninguém te conhecia, tu foi lá e se apresentou para os comerciantes, vai novamente, os caras vão te conhecer melhor”.

Ele me obedeceu e foi, mas novamente não vendeu nada... Voltou comigo já com a tabela na mão para se desfazer dela, só que alguns comerciantes já tinham prometido que comprariam dele na semana subsequente. Pedi a ele que tentasse mais uma vez e aí foi dito e feito, as vendas aconteceram... Afinal, na primeira semana o pessoal conheceu ele, na segunda alguns comerciantes firmaram o compromisso da compra e na terceira semana ele vendeu a rodo. E aí ficou vendendo e aumentando ainda mais as vendas, porém eu ainda não tinha carro para entregar e passei a usar e comprar mais cargueiras para as entregas.

Um amigo meu pernambucano que era corretor, foi lá no meu mercado, ele tinha conseguido um canal de compra de açúcar de uma usina lá da Paraíba, a usina São João, ele passou, por consequência, a vender açúcar de carrada fechada. Foi lá comigo e ofereceu uma carrada para eu comprar, mas eu disse a ele que era muito pequeno lá para conseguir estocar uma carrada de açúcar, visto que eram trezentos sacos, porque era daquelas carradas trucadas. Mas eu insisti dizendo a ele: “Aqui não cabe isso tudo, não!” mas ele persistiu: “Compre e faça o teste aí”. Como eu já estava vendendo quase trinta sacas de açúcar por semana, eu pensei e resolvi comprar e pela boa oferta de preço quando se compra de carrada e o açúcar da Paraíba bem mais barato do que o comprado no centro de Belém, eu fiquei bem na foto, porque passei a ter um preço melhor, mais em conta e mais convidativo para a venda no atacado, e ainda tinha a vantagem de sempre ter o produto em mãos na hora que ele escasseava em Icoaraci.

Tinha uns mercadinhos maiores que quando faltava mercadoria, eles me procuravam e compravam de mim. Alguns deles já estavam comprando cento e cinquenta sacos por semana e quando chegava um feijão novo, eu comprava cem sacas de feijão e as vendia rapidamente, consequentemente o meu capital aumentava cada vez mais e eu reinvestia novamente, peguei o gosto do ritmo e fui seguindo o fluxo sistematicamente. Como o trabalho só aumentava, precisei de gente para me ajudar e minha irmã Socorro veio morar comigo, de alguma forma a presença dela me reabastecia o coração, era a família representada por ela mais próxima de mim. Certa vez chegou lá por casa uma carta endereçada para ela, mas antes que ela visse – eu com um certo ciúme de irmão para irmã e ao mesmo tempo querendo ter um comportamento protetor, não deixei ela ler – abri a carta, li e rasguei em seguida. Ela, obviamente, suspeitou ter sido uma cartinha de algum pretendente.

Passou o tempo e ela casou com outro camarada, eu montei para ela e para o esposo dela, um bom mercadinho em Benfica, no município de Benevides, Região Metropolitana da capital paraense, para eles tocarem a vida e administrarem o comércio. Ou seja, não deixava meu capital parado, consegui comprar um veículo para eles e deixei bem sortido o mercadinho.

Meu negócio já tinha robustez, já havia se solidificado, mas eu comandava tudo, era o operacionalizador, o caixa, o vendedor, o patrão, o fornecedor, o estrategista, o cara que dava balanço, o negociador, o investidor, o comprador, o responsável por tudo, ou seja, não tinha como ampliar mais, visto que sozinho ninguém vai muito longe... E como eu não tinha conseguido arrumar um sócio ou alguém em quem confiar, eu me vi numa situação na qual tinha que agir com racionalidade para o empreendimento não estagnar e decair ao longo do tempo. E já eram cinco anos seguidos de trabalho intenso, sem férias, sem folgas (só tirei uma folga em todo o decorrer dos cinco anos, como já relatei anteriormente).

A verdade vinha à tona e eu aceitei ela sem me desesperar, eu senti um cansaço medonho associado com uma forte e pungente saudade da minha família e de Pernambuco. Aqui e acolá eu lembrava de um tempo distante quando minha mãe era nossa professora do primário, nossa costureira, nossa cozinheira e ainda ajudava no roçado e no curral, tirando leite para ajudar no nosso sustento. Mãe de 8 filhos, não sei como ela dava conta de tudo e ainda mais, carregava água na cabeça (a cacimba ficava a 800 metros da casa) e um dia por semana ela tinha que lavar as nossas roupas e as redes mijadas das crianças. À tardinha, ela debulhava feijão cantando e a molecada à luz do candeeiro, mais conhecido como lampião, ficava extasiada com toda aquela ternura e sabedoria. À noite, sentados ao redor dela, na frente de casa ela nos ensinava a rezar, a pensar em Deus, ia nos acostumando a saber desde cedo que sem Deus nada de valor, nada de importante, pode ser realizado.

Nossa casa era tão simples que não tinha nenhuma puxada, era uma porta e uma janela e o mundaréu de gente lá dentro. Éramos a síntese do mundo rural, do sertão brabo, da austeridade nobre e fomos crescendo por dentro, com esta cultura roceira, aprendendo um pouco de cada coisa, trabalhando na enxada, no machado, na alavanca e no picarete. Eu, como terceiro filho, primeiro homem, colei no meu pai e aprendi tudo que ele fazia e mais alguma coisa, inclusive a forma de aguentar as pancadas da vida.

Então o cansaço e a saudade me fizeram repensar minha jornada, quando completei 5 anos no meu mercado em Icoaraci, fui visitar minha família em Pernambuco e fazer diluir a saudade tenebrosa que eu sentia. Antes, porém, fui conversar com meu primo Zé Carlos para dizer a ele que não queria mais seguir naquele ritmo e nem prosseguiria com o mercado em Icoaraci. Resolvi alugar meu ponto para um comerciante icoaraciense e pensar um novo caminho. Zé Carlos escutou minhas ponderações e disse: “Olhe, eu tenho um ponto comercial lá na bandeira branca, na estrada que vai para a Ceasa (hoje é a dr. Freitas), e se você quiser entrar de sócio comigo lá é só dar o sinal”. Como a firma já estava aberta, eu aceitei e fui trabalhar com Zé Carlos.

Com o capital arrecadado pelo tempo de trabalho no meu comércio Nossa Senhora Aparecida do Norte, eu fiz um consórcio e quitei um carro novo, saí de Icoaraci e aluguei uma casa no centro de Belém, resolvi as pendências,

Pará, meu trabalho duro, garantiu-me

readaptei-me, acertei os valores dos aluguéis dos meus dois imóveis, um em Icoaraci e o outro em Benfica e finalmente tirei férias.

Fui passear em Pernambuco e rever minha mãe, meu pai e meus irmãos, dá uns bordejos por lá e refazer as energias da minha mente e do meu corpo. Precisava demais desse tempo para descansar e saborear novamente a simplicidade, o antigo jeito de viver das minhas mais profundas raízes, era como se um tipo de paraíso que me pertencia voltasse aos meus domínios, era sentimento, uma aproximação positiva com as boas lembranças e quando minha alma ficava mais vibrante, meu coração se alentou sobremaneira naquelas férias. Eu foquei naquele momento e o que era uma visita comum de férias, passou a ser um período extraordinário, porque celebrei e fiz ser bastante prazeroso.

Quando voltei a Belém fui trabalhar como sócio na firma de Zé Carlos, um negócio no ramo do atacado, no qual eu só tinha 33% da sociedade. Ainda fiquei um ano e dois meses com ele, ajudei a fazer o negócio crescer, usei minhas habilidades, mas eu queria poder crescer mais e com minhas próprias pernas.

Procurei ele, agradeci pelo tempo de trabalho juntos, todavia, fui logo afirmando para ele: “Zé Carlos, eu não quero mais prosseguir com a nossa sociedade, eu vou voltar para Icoaraci, vou encerrar aqui, fazer o balanço e seguir meu rumo.”

Aí o Paulo Rocha, um antigo cliente meu (hoje ele é meu compadre), era proprietário de um mercadinho. Nesse meio tempo, procurou-me e me propôs: “Olha Antonio, se tu quiseres trabalhar de sócio comigo, eu estou construindo e montando um negócio lá em São Brás. Vendi meu negócio na Conselheiro, vou entregar esses dias e vou me mudar lá para São Brás na esquina da praça Bruno de Menezes, bora para lá comigo que eu quero comerciar no atacado por lá”. Então eu disse: “Tá bom, Paulo, para não ter que voltar de vez para Icoaraci, vou arriscar trabalhar um ano de sócio com você, vou fazer esse teste de um ano, se der certo a gente segue juntos, do contrário nós desfazemos a sociedade e ficaremos amigos do mesmo jeito.”

Foi aí que se deu minha mais pulsante sociedade, a mais duradoura, a mais intensa e a mais fraterna, o que era para durar um ano, acabou prosperando por dez anos consecutivos. A firma chamava Rocha e Freire e o nome fantasia da empresa era Atacadão do Nordeste, o espaço onde nós começamos esse atacadão era bem pequeno, se fôssemos comparar com o tamanho dos outros atacadões da concorrência. Uma vez veio um fornecedor de São Paulo, chegou lá conosco e ficou observando o tamanho do local, foi a frente da loja e leu o nome da empresa com aquela ironia fina: “Humm, atacadão do Nordeste, né?”

Ficou lá tirando sarro da gente e rindo, mas meu compadre bem esperto como era só ele, mandou comprar uma Coca-Cola de dois litros e deu lá para o fornecedor esquecer aquilo e fechar conosco. O negócio do atacadão só prosperou e cresceu, começamos a vender por toda Belém do Pará, ali eu trabalhava do meu jeito, da maneira que eu gostava de trabalhar.

Um dia o gerente de um banco me procurou oferecendo um negócio na Terra Firme, ele me falou que o cara lá devia ele e não tinha como pagar, então ele arrematou o imóvel como quitação da dívida e veio oferecer para mim. Eu quis fazer negócio, mas eu não tinha dinheiro suficiente para comprar... O gerente logo argumentou que me emprestaria o dinheiro para eu pagar parcelado e eu aceitei comprar, só que eu fechei a compra sem ter comunicado antecipadamente o meu sócio Paulo Rocha. Mesmo assim fui lá com ele e relatei o fato: “Olha Paulo, eu fechei um negócio com o gerente do banco, ele danou para eu comprar e vi que era um bom negócio e acabei fechando. Emprestei dinheiro e comprei um imóvel na Terra Firme, vamos pagar parcelado.”

Paulo Rocha aceitou e segui adiante, era importante essa transparência entre nós, porque nossa sociedade era meio a meio, o que eu fazia ele também fazia, a nossa rotina na firma era operacionalizada por nós dois. Sentávamos em uma mesa um do lado do outro e ele e eu tirávamos pedidos, atendíamos o telefone, comprávamos, conferíamos as mercadorias, já que nós não tínhamos conferentes, era nós mesmos que nos virávamos. Na hora que um estava tirando pedido o outro estava recebendo mercadoria, na hora que o outro estava falando com um cliente o outro já estava adiantando a entrega. Nós havíamos contratado somente uma funcionária para cuidar das notas fiscais e essa rotina intensa nesse formato enxuto durou uns três anos.

Depois avançamos mais e compramos na Silva Rosário, em Canudos, um negócio que era da Bagdá, um comerciante de carros tinha comprado o imóvel dele e nós compramos dele esse espaço e para lá nos transferimos. Lá era um espaço bem maior e arejado e podemos investir melhor, contratamos mais funcionários, colocamos conferentes, fizemos um grande balcão e pusemos colaboradores para tirar os pedidos, aumentamos nosso crédito no mercado, já tínhamos criado uma excelente relação com clientes, fornecedores e o sistema bancário.

Era 1990 e com essa aquisição montamos a distribuidora AMPA, cujo nome era o somatório do meu nome e de Paulo Rocha (Antonio Malan e Paulo Auro Rocha). Um grande atacadão constituído com uma doca para três caminhões, consequentemente o nosso negócio decolou e finalmente, nos meus 50% de sociedade, pude ver o dinheiro entrar, aí comecei a ganhar dinheiro, a fazer dinheiro, a ver o dinheiro se multiplicar. Iniciei a compra de imóveis, aumentei meu patrimônio e já tinha uma casa em Canudos, pude viajar para Pernambuco com mais segurança e receber meus parentes em Belém com muito gosto e presteza. O meu nível econômico avançou bastante comparado ao que eu possuía anteriormente à sociedade com Paulo Rocha, melhorou exponencialmente e me deu uma estabilidade sólida, causando-me profunda alegria e satisfação naquela empreitada.

Mesmo melhorando minha condição financeira, patrimonial e pessoal, eu mantinha minha rotina de trabalho à risca, abria a empresa às 7 da manhã e fechava às 10 da noite de sábado a sábado, entretanto, no sábado funcionávamos até às 2 da tarde. Mas o trabalho não parava, na tarde de sábado e no domingo

eu

ia fazer as cobranças, porque muitas vezes alguns clientes enganchavam para quitar a demanda e Paulo Rocha e eu íamos lá fazer as cobranças.

Às vezes, nós fechávamos à noite durante a semana e íamos em Mosqueiro receber dinheiro de clientes, pois havia um cliente de Mosqueiro difícil de pagar, não conseguíamos falar com ele durante o dia e só nos contactávamos com ele, justamente à noite. Então, era uma estratégia para receber, porque íamos lá em um dia incerto para surpreender o cliente no mercado dele e recebermos o que ele nos devia. Mas eu confesso que era um cliente difícil, porque eu lembro ter ido lá uma noite e quando cheguei no comércio dele, engatei a cobrança, ele abriu a gaveta do caixa e tinha lá um revólver 38.

Ele querendo me intimidar, mas logo eu, criado nas vaquejadas da vida, no sertão e na periferia... Taquei a mão no revólver e disse a ele: “Pois esse revólver aqui serve para pagar a dívida, vai entrar como abatimento da dívida das mercadorias”. E como eu vi que daquele mato não sairia coelho naquela noite, fui lá no estoque dele, peguei uns pacotes de leite Itambé e um fardo de charque e coloquei no carro e voltei para Belém.

Foi o único jeito daquele cliente amortizar o débito dele com a gente, mas ainda ficou uma conta boa para ele acertar. Até hoje eu lembro desse cliente, o apelido dele era gato, ele tinha uns olhos gateados e não poderia ser por outro motivo aquela alcunha, o camarada era enrolado demais, poderia pagar aos poucos, tinha o prazo para ele, mas nem dessa forma ele queria se limpar com a nossa firma.

Deixei passar um tempo bom para ele fazer um apurado e pagar a dívida e decidi voltar lá novamente. Quando pus os pés no comércio, avistei ele e o cunhado dele batendo papo dentro do escritório no mercado, Paulo Rocha e eu decidimos não entrar, ficamos esperando eles terminarem a reunião, na espreita para encerrar aquela epopeia em receber o dinheiro.

E isso já era umas 10 da noite, o tempo foi passando e o cunhado dele saiu do escritório e não conseguia mais ver o gato lá dentro. Perguntei para o cunhado dele onde o gato estava, ele disse: “Rapaz, ele saiu aí, não passou por vocês, não?” E eu respondi: “Não, não vi ele passar por aqui!”, só que nós olhávamos para lá e não víamos mais ele, fiquei com aquela coceira na cabeça e pensando onde ele tinha se metido. Olhei para o meu sócio e afirmei: “Rapaz, esse cara tá com rolo”. Deixei os dois conversando e fui pelo lado, pelo chagão do mercado caçando o gato e tinha uma janela de vidro, quando eu olhei pela janela de vidro lá para dentro, eu vi o gato agachado e escondido atrás da porta. Eu fiquei estupefato, fiquei de boca aberta com aquela arrumação... Fui lá com ele e me expressei: “Bicho, o que diacho tu tá fazendo aí atrás da porta acocorado e escondido?” Ele me olhou e teve a astúcia de responder nestes termos: “Rapaz, eu tô aqui no que é meu e no que é meu, eu gosto de ficar à vontade.”, nem o deixei terminar e já fulminei um contra-argumento: “Tu tá à vontade de cócoras atrás de uma porta, tu não se manca, não? Bora bicho, acertar nossas contas e se livrar logo disso!”

Ele não fez muito esforço em querer nos pagar e o jeito foi pegar o máximo de mercadoria de volta para quitar de vez a dívida, ali não teria mais jeito, não teria mais como manter uma boa relação comercial de venda e compra. Era melhor encerrar definitivamente aquele negócio com o gato e seguirmos nosso trecho, buscando novos clientes.

A AMPA nos deu muitos frutos, nos deu um legado experiencial superlativo, nos garantiu uma amizade verdadeira e sólida e nos fez conhecer profundamente o funcionamento do mercado paraense de atacado. Crescemos muito, trabalhamos vertiginosamente, batíamos metas com excelência e verdadeiramente, ganhamos muito dinheiro, porque o trabalho bem feito gera dinheiro, foram 10 anos seguidos de sociedade, 10 anos de luta e prosperidade, de movimentação frenética e de uma parceria maravilhosa. Mas a vida tem suas jogadas, tem suas circunstâncias, tem seus meandros e acontecimentos que muitas vezes, estão acima das nossas forças e o certo a se fazer é lutar para se adaptar.

Em 1994 foi lançado no Brasil, no governo Fernando Henrique Cardoso o Plano Real. Era uma batalha hercúlea para conter a hiperinflação e a volatilidade do aumento de preços nas gôndolas dos mercados brasileiros. O Brasil já tinha tentando fazer baixar a inflação, desde a década de 80 por meio da implementação, por exemplo, do Plano Cruzado, do Plano Cruzado II, do Plano Bresser, do Plano Verão, todos esses da era Sarney. Depois tentou com o Plano Color e o Plano Color II, sem muito sucesso.

Com muita habilidade e austeridade financeira, nós na AMPA, conseguimos nos adequar e seguir adiante com nosso negócio. Com a implementação do Plano Real, todavia, tivemos muitas dificuldades para adaptar nosso modelo de negócio às injunções do novo modelo econômico. A estabilização da moeda não garantiu o crescimento econômico esperado e as oscilações no mercado causaram muitos danos ao nosso negócio. Em 2 anos, de 1994 – ano de implementação do Plano Real até 1996, nossa empresa passou o maior perrengue e foi decaindo a olhos vistos, mesmo nós nos esforçando para segurar o rojão. As taxas bancárias estavam altíssimas, as conversões de patrimônio financeiro em URV davam prejuízo, a instabilidade no mundo corporativo era grande e quando o Plano Real foi para a rua, o preço das mercadorias congelaram e não subiam ou quando nós comprávamos a mercadoria de um fornecedor de outro estado, por exemplo, já estava o dobro do preço, ficamos com um grande estoque parado e o pessoal que devia para nós, não pagava de jeito nenhum, justamente por causa da bola de neve daquele momento de transição econômica. E ficou por isso mesmo, a maioria dos nossos clientes não pagou o que devia, portanto, perdemos a mercadoria que já estava na rua e perdemos a grande mercadoria que estava no estoque, porque não tínhamos para quem vender. Foi uma pane geral, muitos com medo de comprar e nós não venderíamos sem um sinal, porque a despesa da empresa estava galopante e o lucro se diluindo dia após dia. Essa peleja prosseguiu até o momento que o nosso caixa caiu e não tínhamos mais saldo. Ainda procuramos alternativas para não deixar a empresa fechar, buscamos sustentar como podíamos, mas foram dois anos de muita pressão financeira.

Não conseguimos segurar e a empresa quebrou no final do ano de 1996, fizemos um grande balanço, pagamos todo mundo, não deixamos ninguém sem receber, indenizamos todos os nossos colaboradores e ainda ficou uma pequena margem de mercadorias. Paulo Rocha e eu sentamos para conversar e repartir o que tínhamos construindo juntos no regime de sociedade de meio a meio. Nós tínhamos uma fazenda e ele quis ficar com ela e eu acabei ficando com o imóvel onde funcionou por 10 anos a AMPA. Nossa amizade continua até hoje, continuamos nos ajudando no comércio e na vida e só não seguimos juntos, porque as questões econômicas e financeiras àquela época não permitiam, tínhamos que dar uma guinada e se adaptar ao Plano Real.

Nesse mesmo ano criei uma empresa localizada na Augusto Montenegro, cujo prédio era de propriedade do pessoal da Martins Móveis, lembro até hoje o valor que dei no imóvel naquela época, já sob o regime do Plano Real, o investimento custou R$100.000,00.

Em 1997 o sapato apertou para mim, foi um ano bem difícil, corria o ciclo como bem diz o ditado popular... “Foi o tempo de comer pedra”, estava me readaptando, percebendo para onde iria o mercado de atacado, quais as demandas dos consumidores e como melhor agir em um novo empreendimento. No início até pensei que estava nadando contra a maré, todavia, eu era persistente e pensava positivo e mesmo se estivesse nadando contra a maré naquele ano de 1997, era preciso uma certa resistência, força e mente segura para suportar até as coisas melhorarem novamente. Eu continuava a ser o mesmo indivíduo, mas era um indivíduo transformado para melhor, mais forte, mais experiente e com uma mentalidade de um fazedor e ao mesmo tempo de um contínuo aprendiz.

Mesmo que o ano de 1997 tenha sido de muitos desafios para mim, foi justamente nele que eu entrei em uma nova sociedade, daquela vez com o Ênio Lopes, ele havia encerrado uma sociedade e me procurou para propor: “Olha Antonio, eu estou indo para Manaus para trabalhar com um tio meu por lá, eu tenho um dinheiro aí e gostaria que tu ficasses com ele para fazê-lo girar, tu vai me pagando só o juros e vai sair bom para ti e para mim, pode ser?”, eu respondi a ele que ficaria com o dinheiro e ele deixou em minhas mãos R$250.000,00.

Ênio foi para Manaus e não conseguiu se firmar por lá, voltou para Belém e me procurou para me informar que não tinha dado certo no Amazonas e que viajaria a Terra Nova em Pernambuco, a fim de relaxar um pouco e se divertir. E foi o que ele fez, viajou e eu fiquei administrando as coisas por aqui, naquele tempo eu trabalhava com o banco Bradesco da BR-316. Um dia cheguei lá para fazer minha movimentação financeira e estava por lá um paulista chamado Zé Antônio, ele trabalhava em um galpão em frente ao posto onde funcionava a PRF (atualmente funciona o posto do DETRAN), ele tinha duas máquinas de empacotamento e quando me viu no banco foi lá comigo e disse: “Antonio, eu estou indo embora para São Paulo e quero vender esse equipamento, serve muito para empacotar feijão”. Eu respondi: “Zé Antônio, eu não sei mexer com isso aí, não é muito a minha praia, mas o Ênio sabe mexer com isso, ele já

trabalhou e ele está desempregado, porque nós tínhamos uma sociedade, mas ele saiu e foi tomar cachaça lá em Pernambuco. Vou ligar para ele e se Ênio topar eu entrarei de sócio também”.

Liguei no outro dia para o Ênio, falei da proposta de Zé Antônio e ele mandou fechar negócio. Então, novamente fizemos uma sociedade para tocar em frente o novo empreendimento, entramos na sociedade com R$500.000,00, metade dele e metade meu, só que eu não tinha de cara os meus R$250.000,00 e ele logo perguntou pela minha parte, visto que a parte dele já estava no banco, eu disse a ele que não se preocupasse, porque na hora que ele fizesse as compras eu daria a minha parte. Eu ficava na Augusto Montenegro administrando um atacadão que eu tinha e ele ficava lá na BR comandando nossa sociedade.

Ele foi lá comigo e disse: “Olhe, eu comprei um bom pacote de mercadoria, agora você tem que mandar a sua parte”. Então, respondi a ele: “Pois eu vou mandar em mercadoria para você.”

Eu fazia um malabarismo comprando um leite de um amigo meu. Eu comprava de carrada fechada e comprava fiado, porque eu tinha esse crédito. Fazia os cálculos, batias as contas e mandava em leite para Ênio. Quando a mercadoria chegava lá ele vendia rápido, ele manjava dessa área e fomos assim por um bom tempo até eu conseguir bater a meta dos meus R$ 250.000,00 da sociedade.

A firma usada por nós de início foi a do irmão de Ênio, porque queríamos começar logo e até abrir legalmente a nossa, iria demorar bastante por causa da burocracia. Pagamos os impostos atrasados da firma e botamos para arrochar o empacotamento de açúcar e feijão e demais mercadorias. A empresa não tinha carro de entrega, os clientes iam lá buscar os produtos e quando chegava a sexta-feira à tarde, eu terminava de fazer as minhas entregas da Augusto Montenegro e como tinha quatro carros, eu os mandava para lá, para rodar na sexta e no sábado objetivando fazer todas as entregas pendentes, isso se deu até nós conseguirmos equilibrar as contas e comprar um caminhão.

Trabalhamos nesse regime por um ano, até que apareceu um terreno para vender no Tapanã. Fui lá e comprei o terreno para poder aumentar nosso negócio, o terreno media 70 por 220 metros quadrados. Não medi o tempo e fui logo fazendo investimento no terreno, fui construindo um prédio, um depósito grande lá para colocar as máquinas e as mercadorias e deixei a parte elétrica na responsabilidade de Ênio. Ele não quis assumir dizendo que o prédio era só meu e quem tinha que executar a obra era eu, mas como a empresa funcionava lá, então disse a ele que faria a parte elétrica, mas o valor seria diluído no preço do aluguel, ele aceitou a proposta e todos os meses eu descontava no preço da locação.

A Distribuidora Freitas Lopes, foi denominada como Princesa (em homenagem à princesa Diana) que fatidicamente morreu em um acidente de carro na cidade de Paris, em 1997. Sua morte gerou uma grande comoção internacional movimentando uma espécie de luto mundial, todos os canais de televisão e

rádios da época, noticiavam os desdobramentos do triste acontecimento com a Diana Frances Spencer, a filantropa, carismática, mulher de vanguarda e Princesa de Gales. Seu funeral foi acompanhado por milhões de pessoas por todo o mundo e causou no Brasil uma profunda consternação pública em função do trágico e dramático acontecimento com a bondosa princesa.

A empresa foi crescendo e tomando fôlego, eu trabalhava lá e tocava um negócio na Augusto Montenegro, com o tempo eu fui contratando pessoas de confiança para colaborar no desenvolvimento do meu empreendimento, contratei meu irmão Didi, uma tia minha chamada Ilda e mais um primo denominado de Gean Freitas que já trabalhava comigo. Dei uma parcela da sociedade para eles, 10% para cada um e sincronizamos o espírito da empresa, objetivando crescer ainda mais, fomentar novas compras, novas vendas, novos mercados, novos clientes, sempre diminuindo custos, aumentando a eficiência e trabalhando mais do que se divertindo, ampliando a ousadia, a transparência, a produtividade e vontade a de vencer.

A verdade é que se você trabalha no que gosta, fazendo o que gosta, o seu trabalho também diverte e gera muito prazer, causa muita satisfação. Eu trabalhei a minha vida toda. Desde muito cedo a lida para mim sempre foi rotina e em nenhum momento da minha vida, o trabalho me causou problema, pelo contrário, por muitas vezes, o trabalho me salvou da derrocada, do desespero e da miséria material. Isso não quer dizer, que não se possa relaxar, tirar férias e viver outras emoções, somente reafirmo que trabalhar é solução para muita coisa nessa vida.

Passou uns meses e apareceu um terreno ao lado do meu negócio na Augusto Montenegro, já havia uma construção com as paredes levantadas, decidi comprar e chamei o Ênio para fechar a compra junto comigo. Ele aceitou participar e nós compramos, terminamos de construir o que faltava e abrimos uma loja chamada Belém Alimentos. Eu fiquei administrando o Belém Alimentos e o Ênio ficou no Tapanã tocando as coisas. Naquela época, início dos anos 2000, o povo ainda não era acostumado com esse modelo de atacarejo, como se tem atualmente. Eu tive dificuldades em fazer o negócio gerar lucro, estava tendo rentabilidade, mas era abaixo do esperado e no Tapanã, quando deixei lá para Ênio comandar também houve uma queda sistemática na lucratividade e o empreendimento começou a decair.

Em 2003, Ênio decidiu sair da sociedade do Belém Alimentos permanecendo somente societário comigo na Princesa do Pará. A parte dele da Belém Alimentos quis me vender, mas disse a ele que não tinha dinheiro suficiente para comprá-la, a não ser que ele me vendesse somente a parte comercial da sociedade, porque o prédio teria um valor alto e eu não tinha capital suficiente para arrematá-lo. Ele aceitou e me vendeu somente a parte comercial... Então dei um apartamento que eu tinha no bairro de Nazaré e o que faltou eu paguei em dinheiro, assumi completamente toda parte comercial e Ênio só ficou em sociedade com o prédio. Passou um ano e ele quis vender a instalação elétrica,

como eu já tinha um capital mais razoável, eu disse que se fosse para vender a parte elétrica, que ele me vendesse logo o prédio.

Ele anuiu e eu comprei o prédio também, como eu tinha comprado uma carreta nova, em regime de consórcio, passei a carreta para ele e paguei o que faltou em dinheiro, em parcelas mensais. Fiquei proprietário e responsável por dois negócios grandes, o do Tapanã e o da Augusto Montenegro, compartilhei parte da administração com outras pessoas de minha inteira confiança e foquei no negócio do Tapanã, onde eu fiz crescer e valorizar com solidez e excelente rentabilidade. De 2002 até 2008, a administração seguiu diligente e superando sempre os naturais altos e baixos do mercado de atacado no estado do Pará. Tive um crescimento empresarial considerável e um patrimônio pessoal bastante generoso, mantendo sempre com a mesma mentalidade: trabalhar, investir os lucros e ampliar os negócios.

Na transição de 2008 para 2009 enfrentei uma forte crise financeira por consequência de um alto investimento que busquei realizar via BASA (Banco da Amazônia). O projeto era construir um super atacadão na BR 316, então busquei fomento financeiro de alto impacto no Banco da Amazônia, fiz tramitar todas as burocracias necessárias e possíveis para garantir o empréstimo, mas a gerência do banco passou a postergar o aporte de capital. Como eu já havia iniciado a obra, não poderia mais retroagir, então segui com a construção do empreendimento com recursos próprios, com dinheiro do meu próprio patrimônio, no afã de receber do banco o valor correspondente a linha de crédito para execução da obra iniciada.

Tive que vender uma fazenda, uns terrenos, uns apartamentos e usar dinheiro da minha conta pessoal a fim de jogar tudo lá na obra, já que o projeto requerido por mim junto ao banco não saía. Eu não tinha costume de buscar capital em financiamento bancário, mas para se desenvolver, crescer e se firmar no mercado, era necessário executar esse alto investimento. Assumi o risco, todavia não contava com a ineficiência do sistema bancário, justamente pelo motivo de eu ter um bom nome na praça e nunca ter tido problema com bancos.

O BASA fez de tudo para travar o capital, visto que mesmo eu cumprindo todos os protocolos, burocracias, datas e documentações, eles indeferiram o meu projeto. Voltei lá com um advogado e um contador para saber o motivo do travamento, entrei lá na instituição bancária e procurei o diretor financeiro; encontrando-o, cumprimentei-o e fui logo dizendo: “Eu gostaria de saber por que vocês indeferiram o meu projeto de captação de recursos? Eu sou um cara que tem o nome limpo, trabalho com outros bancos e pago tudo certinho e nos prazos, tenho minhas empresas e nunca houve nenhuma questão de desonestidade, dei como garantia três imóveis, cumpri à risca todas as exigências e mesmo assim vocês negaram o crédito”. Ele ficou com uma cara de constrangimento e respondeu fleumático: “Não, é que você nunca tinha solicitado um valor tão alto e ficamos temerosos”... Olhei para ele com uma certa veemência, porque aquele argumento parecia de um incompetente e disse: “Eu não havia pedido antes, porque eu não precisei; qual o motivo de você solicitar uma linha de

crédito se você não precisa. Mas agora eu estou precisando para tocar a minha obra, inclusive já tem 50% dela levantada com capital pessoal”.

O capital ainda demorou algumas semanas para sair ocasionando um período de muita tensão e pressão, porque acabei ficando em uma sinuca de bico, já que foi preciso tirar dinheiro do meu próprio patrimônio para prosseguir o investimento da obra em questão. Eu olhava o tanto de serviço que tinha de ser feito e não encontrava dinheiro suficiente para executar, e aquilo me dava uma tristeza medonha. Quando, finalmente, a primeira parcela da linha de crédito saiu, eu já tinha construído o depósito da venda externa que dava em torno de 10.000 m e a laje da loja, então, entrou na conta da empresa o aporte do dinheiro do BASA e com mais folga, fui construindo o que faltava e consegui terminar o empreendimento, finalizando o acabamento e as instalações necessárias, inaugurando e fazendo funcionar, após passar por essa tempestade financeira.

Em 2010, a unidade da BR 316 da Belém Alimentos foi inaugurada e as coisas voltaram a andar, era uma filial, dado que já tinha a matriz na Augusto Montenegro, depois da saída do meu primo Gean Freitas da empresa, dei uma grande oportunidade a um dos meus filhos que passou a me ajudar na empresa central, lá ele trabalhava como colaborador e eu pagava um bom pró-labore para ele. Enxergava nele um futuro de bons resultados e de alguma maneira projetava nele a possiblidade de mais adiante, ele conduzir as empresas como uma espécie de sucessor, quando eu não mais pudesse comandar o barco.

Transferi e dei para ele 20% na participação nos lucros e rentabilidades na sociedade da Belém Alimentos. Como sócio efetivo, ele passou a colaborar e ajudar a administrar a empresa na Br 316 mais ostensivamente, começou a interferir mais e também conquistou maior poder nas decisões e operacionalizações da nova unidade comercial. Mesmo assim, ainda que eu estivesse muito atarefado com os meus outros investimentos, inclusive com a expansão da Princesa do Pará, cujo momento comercial àquela época estava em grandiosa amplificação, prossegui acompanhando o andamento da condução dele, dado que eu percebia boas ideias nele, mas faltava a tão importante e fundamental experiência na liderança de um empreendimento maior.

O negócio andou e cresceu por alguns anos, mas isso ocorreu porque eu não deixava a unidade andar sem meu supervisionamento, como sempre fui um sujeito super ocupado, nunca gostei de ociosidade, usei meu tempo para focar nas outras empresas também e deixei por algum tempo a unidade da Br 316 sob a administração do meu filho. Não demorou muito e a unidade começou a ter uma queda de receita, deu uma estagnada e os efeitos começaram a surgir. Então, retornei para acompanhar mais de perto e pôr lá todo o meu conhecimento de vida, toda a minha experiência comercial a serviço da empresa e novamente ela se ergueu e passou a dar bons frutos econômicos.

Em 2015 quando a unidade estava funcionando de vento em popa, quando as minhas práticas, as minhas crenças e o meu estilo de gerir uma empresa estavam operacionalizando a Belém Alimentos, meu filho que tinha à época 20% da sociedade solicitou uma conversa reservada comigo e na ocasião

me disse: “Pai, estou preparado para assumir a gestão da empresa, tenho estudo e já estou aqui um tempo considerável, o senhor tem que deixar eu andar com minhas próprias pernas e tocar o negócio, eu já tenho condições para isso.”

Como eu já estava focado e fortemente envolvido junto ao meu sócio Ênio na construção da fábrica da Princesa em Santa Izabel do Pará, então confiei nas palavras do meu filho e passei a administração da Belém Alimentos para ele, após o seu pedido para conduzir a empresa sozinho. Interessante lembrar que as minhas empresas nunca tiveram problemas com o fisco, com questões de justiça e com arranhões na alta credibilidade junto ao mercado, aos bancos, a justiça e a sociedade.

Quando a roda da fortuna comercial virou para o meu lado desde a AMPA, sempre mantive total transparência nos meus negócios e sempre quis vender produtos de qualidade, primando obstinadamente pela honestidade nas minhas múltiplas relações, fossem com os fornecedores, credores, clientes, sócios, sistema bancário, minha família e principalmente com minha própria consciência. Afinal, ganhar dinheiro é muito bom, crescer empresarialmente é uma meta fantástica, avançar nos negócios é um resultado satisfatório, poder ampliar a própria segurança financeira, melhor ainda! Mas, apesar desses objetivos serem nobres e justos, eles só funcionam verdadeiramente, se tiverem sempre atrelados às qualidades éticas, indispensáveis e inegociáveis na vivência do mundo corporativo, quais sejam: “Equidade, correção, dignidade, honradez, integridade, lealdade, imparcialidade, consciência, seriedade, probidade, lisura, lhaneza, retidão, sinceridade, simplicidade, transparência e uma palavra firme nas ações corporativas e mesmo pessoais”.

Comigo sempre foi o sim, sim; não, não! Nunca gostei de nada pela metade, nada mal feito e muito menos agir nos negócios com ambição desmedida e imprevidências. E mais, quando ocorriam erros, porque os erros também ocorrem, sempre assumia a responsabilidade para consertar as coisas e seguia em frente.

Na transição, portanto, de 2010 até 2016, minhas empresas estavam crescendo, mantendo uma boa rentabilidade, bons negócios, contratando mais colaboradores, gerando excelente receita, fomentando renda e criando horizontes de desenvolvimentos significativos, tanto que no biênio 2015/2016 foquei na construção e inauguração de um portentoso empreendimento para abrigar a fábrica e a distribuição dos produtos da Princesa do Pará.

Compramos – Ênio e eu – às margens da rodovia PA 140, km 01, no bairro Juazeiro em Santa Izabel do Pará, um grande terreno e lá implementamos uma estrutura física e fabril de 70.000 m² no valor de R$ 35.000.000,00 (trinta e cinco milhões de reais), assentando a Indústria Princesa do Pará. Investimos em tecnologia de ponta para otimizar os processos da distribuição de alimentos, perseguimos os mais rigorosos critérios de qualidade para garantir a segurança alimentar dos nossos clientes, modernizamos toda a nossa administração, contratamos centenas de novos colaboradores, gerando emprego, renda e qualificação profissional.

Foi um marco na minha vida empresarial, na minha vida pessoal, era o meu sonho grande se realizando, um grande salto para a minha plenificação como empreendedor, porque desde o nome da empresa foi escolhido por mim, há mais de 20 anos. Então, quando começamos tão pequenos às margens da BR 316 em 1998, depois fomos para o Tapanã e após quase duas décadas, inauguramos um gigantesco complexo em 2016, fomos diariamente construindo uma marca forte, com excelência na oferta de produtos com uma qualidade incomparável, visto que sempre primei pelos melhores grãos, pela melhor matéria-prima, satisfazendo a clientela com melhor o custo-benefício. Foi uma espécie de reinauguração da Princesa do Pará, constituída plenamente por uma nova e moderna substância empreendedora, tanto no aspecto, quanto na dinâmica do negócio, porque realmente a ampliação foi superlativa, mas a essência continuaria a mesma, foco na excelência ética, profissional, na simplicidade, honestidade, integridade, valorização do capital humano, disciplina, lealdade e a busca constante pela inovação tecnológica.

Com trinta e duas docas, um imenso auditório, um moderno setor administrativo, uma área de estocagem com 13.200 m², um amplo estacionamento, um parque industrial sólido, a Princesa do Pará melhorou o que já era bom, dado que sempre foi sua excelência em disponibilizar produtos alimentícios de primeira qualidade no mercado paraense, processando e comercializando ótimos produtos, em todos os seus segmentos e marcas comerciais. Açúcar, arroz, café, carne seca, detergente em pó, farinha, feijão, leite de coco, massas, milho, molhos, sabão em barra, sacos para lixo, vinagre, massa pronta para tapioca, macarrão, milho quebrado, milho para pipoca e sal. Temos até dois produtos chamados açúcar Dú e arroz Du, em uma referência ao meu apelido de infância desde os idos do meu sertão pernambucano.

Na distribuidora Princesa e seu comércio atacadista de alimentos, sob a minha condução mais a de Ênio, somado à força das centenas de colaboradores, os resultados só nos davam felicidade, dado que ela sempre se manteve vigorosa, rentável e continuamente em crescimento, mesmo o Brasil passando por uma profunda crise política e financeira desde 2014. Nela eu possuía 50% da sociedade e na Belém Alimentos eu era sócio majoritário com 80% da associação, já que havia dado 20% para meu filho. Mas desde 2015, após a súplica dele para eu deixá-lo conduzir o negócio sozinho, retirei-me da administração da empresa e pus minha total atenção na Princesa.

Depois da inauguração da Princesa em 2016 e seu evidente crescimento por dois anos seguidos, meu sócio Ênio resolveu deixar a empresa, ele tinha feito um investimento em Castanhal e por questões pessoais decidiu informar-me querer sair da sociedade. Eu conversei com ele e ainda tentei demover a ideia dele não permanecer mais comigo na administração da nossa Indústria. Mas, infelizmente, não foi possível e decidimos nos separar... Disse a ele que era melhor vender a empresa, porque se ficasse sozinho teria dificuldades, porque com a saída de Ênio o capital da empresa cairia pela metade, seria uma queda vertiginosa de receita, justamente em 2018 quando o Brasil estava em recessão

econômica. Relembro ainda de ter dito a Ênio que se ele quisesse ficar com a empresa sem mim, eu sairia e ele me pagaria somente o aluguel do prédio, porque eu voltaria para a Belém Alimentos.

Ele disse que não queria ficar, queria sair mesmo... Então, zarpamos ao mercado para procurar negócio a fim de vender a empresa e repartir o capital, mas como o país estava em profunda crise financeira, em função da guerra política instalada no Brasil por forças antagônicas, não encontramos comprador. Voltamos para a empresa e disse a ele que a solução era fechá-la e pagar uma boa vigilância para garantir a segurança do imóvel, já que nem ele e nem eu queria levar a empresa sozinho.

No início de 2018, Ênio me disse: “Antonio, fique com minha parte que lhe dou um prazo para você me pagar, bote uma proposta aí e me informe como fica melhor para você”. Disse a ele que pensaria e depois lhe responderia... Fui para minha casa e na mesma noite fiquei pensando, arquitetando e bolei a proposta. Eu tinha dois prédios em Belém, então, pensei: Dou os dois prédios de entrada, mais 2 milhões de reais que eu tinha na minha conta, que era da venda de gado da minha fazenda chamada São Francisco e o restante seria diluído em um parcelamento mensal.

Procurei Ênio e mostrei os prédios para ele, ele observou e me disse não querer um dos dois prédios, afirmou-me que somente ficaria com um. Eu respondi que tudo bem, pois bastaria acrescentar o que faltava nas 48 parcelas. Um dia depois do acerto, ele me procurou na empresa e um pouco ansioso, falou: “Eu não quero mais fazer o negócio, não!” Eu respondi: “Ainda bem que és tu que estás desistindo, porque eu não iria desistir, mas eu estava coçando a cabeça com esse negócio e isso estava me perturbando, visto que as questões da negociação seriam ruins para mim. Então, nós terminamos mesmo a sociedade, fechamos a empresa e cada um segue sua caminhada”. Depois que afirmei isso, Ênio se apavorou um pouco e decidiu definitivamente aceitar os termos propostos por mim, na compra da parte dele da Princesa do Pará. Fechamos o acordo e eu dei para ele o prédio por 6 milhões de reais, dei mais 2 milhões de reais que tinha na minha conta pessoal e fiquei devendo 14 milhões de reais para ele, parcelados em 48 meses. Algumas parcelas intercaladas tinham um valor maior e as demais eram variáveis com valores decrescentes. Usei toda minha habilidade e economicidade para honrar os compromissos e atualmente estou prestes a quitar a última intercalada na data de 10 de outubro de 2021, depois ficarão 6 parcelas no valor de R$ 29.000,00 (vinte e nove mil reais), quitarei, portanto, essa compra de 50% da antiga parte de Ênio no início de 2022.

Quando em março de 2018, após o acerto da compra de 50% da parte do meu ex-sócio Ênio Lopes, eu assumi a Princesa do Pará de maneira integral, coloquei junto a mim na administração da indústria meu outro filho chamado Fernando, ele já trabalhava na empresa como comprador, dei uma boa porcentagem para ele começar a gerir a empresa junto comigo. Fizemos uma reunião, analisamos o cenário exterior e interior da empresa, montamos uma estratégia de otimização

da produtividade e, em função do passivo da empresa e da crise econômica instalada no Brasil, decidimos cortar custos desnecessários na dinâmica corporativa da Princesa do Pará.

Realizamos de imediato um pente fino nas finanças do empreendimento objetivando cortar as gorduras, sanear os excessos e pôr em prática um comportamento de austeridade racionalizada para fazer a empresa retomar sua saúde financeira. No meio empresarial, sempre se diz que custo é igual unha, sempre tem que se cortar... E foi o que fizemos, passamos em revista tudo que era desnecessário manter e somente no primeiro mês, tivemos uma economia nas despesas de R$ 364.000,00 (trezentos e sessenta e quatro mil reais). Precisávamos agir para não deixar a Princesa oscilar e perder a sua capacidade de crescimento em meio ao turbilhão dos desafios comerciais àquela época. Retemos os melhores profissionais, mantivemos como sempre, a qualidade nos nossos serviços e a nossa tradicional essência. Os colaboradores que realmente queriam crescer e trabalhar com empresa ficaram, os que já estavam na perigosa zona de conforto corporativa, tiveram que deixar a Princesa. Oxigenamos, portanto, toda nossa operacionalização, fomentando arrojadamente novas parcerias e mantendo conosco um time, uma equipe de 320 funcionários realmente dedicados a crescer junto com a gente.

Assim prosseguimos nos meses subsequentes, fazendo a Princesa forte e sustentável ante as dificuldades comerciais do País. Em julho de 2018, entretanto, eu corri às pressas na Belém Alimentos, porque eu estava ouvindo uns burburinhos no ciclo social por onde eu transitava de que a empresa estava em maus lençóis do ponto de vista financeiro. Fiquei extremamente preocupado com o que ouvia e não perdi tempo, fui até a empresa e a primeira ação realizada por mim foi fazer o balanço do Belém Alimentos, foi um balanço minucioso, feito com a lupa da minha experiência e como a situação financeira do empreendimento realmente era insustentável, chamei com urgência meu filho que estava à frente da empresa, a pedido dele, desde 2015, e fui logo comunicando-o e alertando-o sobre a conjuntura desfavorável da Belém Alimentos: “Meu filho, não quero mais ficar na empresa, sairei da sociedade terminantemente. O que tem na empresa, se você trabalhar com afinco, é possível pagar as contas, mas pelo balanço que fiz, você sozinho conseguirá pagar as contas, você vai trabalhando para manter a empresa até pagar as contas e depois encerra as atividades. Mas antes, faça urgentemente um corte de custos e encerre o vínculo com alguns colaboradores que não querem trabalhar, só estão surfando nas gorduras da empresa”.

Em agosto de 2018 eu saí definitivamente da Belém Alimentos e meu filho ficou com plena administração da empresa. Antes de sair, entretanto, ensinei o caminho, orientei e expus a rota segura para ele não ficar em uma situação financeira ruim. Todavia, não foi o que ocorreu, visto que as pessoas que deveriam sair da empresa, não saíram e a condução administrativa desprecavida e ineficiente permaneceram no ineficaz modelo de gestão de lá.

Não demorou 6 meses e em 2019 ele já não deu conta de segurar a empresa, fechou as 6 lojas da Belém Alimentos e procurou um grupo empresarial para vender a instalação da loja, um grupo comercial acabou fazendo a compra da instalação. Fiquei sabendo depois dos altos passivos deixado pela Belém Alimentos no mercado paraense, foi realmente um grande choque que levei, porque foi uma empresa na qual por muitos anos eu pus minha vida nela, meu nome, minha história, meu suor, meu sonho.

Apesar de não ter sido o responsável pelo debacle da Belém Alimentos, visto que enquanto estive por lá até 2015 a empresa era saudável, próspera, com significativa rentabilidade e sem nenhum problema junto aos bancos, credores, fornecedores, mercado e clientela, e mesmo não ser mais nem acionista da empresa desde agosto de 2018, ainda assim, sem ser o responsável, todo o déficit em suspenso, todo o doloroso efeito devastador das imprevidentes causas da administração da empresa, sobraram somente para mim.

Na minha vida inteira, na minha longa e difícil jornada até ali, nas muitas vezes que chorei, nas muitas madrugadas que padeci, que sofri na solidão de São Paulo, na incerteza dos desterros da minha vida, mesmo a queda do cavalo no meu antigo sertão distante, na quase morte por afogamento quando criança no rio São Francisco, na aflição medonha dentro de um fusca que poderia se despedaçar a qualquer momento, em uma noite de tempestade quando eu viajava para o nordeste ou ainda à beira do precipício dirigindo uma carreta de melaço sem saber se passaria da próxima curva. Nada desses acontecimentos, nada desses eventos terríveis para mim foi tão doloroso quanto sofrer pelos desdobramentos frustrantes da derrocada da Belém Alimentos, uma queda emocional e financeira estrondosa. 2019 foi o ano de uma grande decepção, de uma lancinante dor no coração, minha alma sentiu o baque, sentiu a vergonha e a impotência ante o furacão que impiedosamente varreu a minha vida. Nunca na minha vida toda, eu havia ficado 15 noites sem dormir, nunca tinha ficado tão arrasado, sentido tanta vergonha, porque não era somente a questão da empresa ter fechado, foi justamente a total confiança que dei, o meu total desprendimento, a fé que eu pus.

Eu sentia todos os dias uma amargura, um desgosto, uma comoção dolorosa no meu peito, porque imaginava minha vida como pessoa e como empresário. Em nenhum momento deixei a peteca cair, controlava tudo, confiava até um certo ponto, justamente para evitar deslizes éticos de terceiros para comprometer os negócios. Construí com meu jeito transparente, honesto e simples, uma reputação realmente sólida em todo o Pará e mesmo em boa parte do Brasil, porque como eu comprava muito produto de outros estados, fui fazendo amizades, por todos os lugares e sempre cumpri honrosamente com meus compromissos.

E naquele momento terrível, estava na lona justamente por questões de altos débitos deixados pela empresa, sem ao menos eu ser o responsável por isso, justamente lá onde pus o meu coração e onde confiei em uma administração que ia além de mim. Foram meses de intensa dor e sofrimento, algumas vezes

não sabia mais o que pensar, não sabia como me reerguer, buscava me segurar nos pilares dos meus conceitos internos, do meu jeito de ser, mas não conseguia. Mesmo no fundo do poço das dores morais que sentia, mesmo sob a penumbra forte do desgosto medonho, mesmo sob os gritos das circunstâncias adversas, eu pude encontrar, graças a Deus, graças a Jesus Cristo e graças a Nossa Senhora de Aparecida do Norte, um alento, um fôlego, uma mão fraterna, pelas vias da coragem e da solidariedade da minha família mais próxima... Minha incrível esposa Zélia, minhas amáveis e fortes filhas Marina e Ana Luiza, meu diligente filho Fernando que administrava comigo a Princesa do Pará, como também pelo auxílio e apoio de amigos verdadeiros.

Como fiquei em uma depressão profunda, lutava e lutava para seguir adiante, mas por um tempo perdi o jeito de resolver as coisas. Buscava forças e elas me faltavam, ia à academia para tentar espairecer e retomar o rumo, mas minha mente ficava aérea e distante, àquele tempo não conseguia nem perceber com mais nitidez a intensa preocupação das minhas filhas e de minha esposa comigo mesmo. Elas foram tão incríveis, fortes e generosas, que organizaram uma viagem entre nós para fora do Brasil, não porque estávamos em condições de viajar, mas porque elas queriam que eu me desligasse da crise por um tempo, para poder refazer as ideias, fortificar-me um pouco e buscar estratégias para vencer aquela provação medonha. Elas fizeram de tudo, compraram livros para eu ler e me conectar com outros assuntos, me deram muito amor e carinho, foram extremamente pacientes comigo e me ampararam magnificamente. Mas aqui e lá, mesmo na viagem, a amargura me atacava, a dor voltava grande, e eu pensava aflitamente: “Como isso aconteceu comigo? Logo eu que sempre tratei os meus negócios da melhor maneira possível, sempre gostei de tudo às claras, tudo bem enxutinho e certo, justamente para não dever ninguém, para manter o nome da empresa lá em cima, honrando todos os débitos e cumprindo sempre a palavra. Ainda mais que a queda veio de dentro, não foi uma questão externa, foi como se eu emprestasse um navio para um grande amigo que eu amo e esse amigo me devolvesse o navio naufragado e sem ao menos me dizer: Desculpe-me.” Para se ter uma ideia do valor do débito deixado pelo rastro de ineficiência na gestão da Belém Alimentos, o montante bateu a casa dos R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais), entre bancos, Receita Federal, Estadual e fornecedores. Além desse déficit astronômico, o meu dinheiro investido se evaporou. Porque mesmo eu não estando na administração da empresa desde 2015, como já relatei acima, eu investia capital lá para ajudar no crescimento e desenvolvimento dela.

Então, minha família e meus amigos me ajudaram muito, sustentaram-me emocionalmente, espiritualmente e materialmente na crise que varava minha alma, os meses foram passando e as cobranças chegando em demandas cada vez maiores, além de tudo a Princesa do Pará ainda tinha que funcionar todos os dias e minha fazenda São Francisco também, já que ela nunca foi somente uma fazenda para o lazer, mas para trabalho com a compra e venda de gado.

Eu fiquei tão encurralado com a pressão externa e interna dos acontecimentos em 2019 e suas viscerais repercussões na minha vida pessoal e empresarial, que adoeci verdadeiramente, e muitas vezes minha família pensou que eu iria infartar. O destino, entretanto, mais uma vez intercedeu por mim, junto a Deus! E do desencanto absurdo, da dor extenuante, da desmotivação sistemática, novas manhãs nasciam e eu ia recuperando as forças, o ânimo e a vontade de lutar contra tudo aquilo. Decidi mais uma vez, na minha longa, trabalhosa, densa, corajosa e persistente vida, seguir em frente, lutar contra os moinhos de vento, como ensinou Dom Quixote, sem jamais esquecer a razão trazida por Sancho Pança no livro fantástico intitulado – O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, publicado em Madri por volta de 1605 pelo genial escritor espanhol Miguel de Cervantes.

Passei a pôr como sempre fiz, a cabeça para funcionar, a razão para me ajudar e a me segurar na minha resistência interna como uma rocha, conforme aquela pedra sob a qual eu descansava no meu mundo sertanista, quando estava quase morto de cansado e sob o sol escaldante do dia a dia. Tudo isso fiz para atravessar a ponte da aflição, simbolizando minha retomada ao batente, ao trabalho e à luta. Por muitos meses me senti um derrotado, um desavisado, um impotente, um rejeitado pela vida, mas isso foi mudando, e das sombras das dificuldades, passei a sentir uma vontade imensa de trabalhar, de ter saúde e de me sentir novamente um vitorioso.

A mudança de disposição me fez melhorar uns 80%. Foquei nas soluções possíveis dos imensos problemas e não mais nos próprios problemas, fui negociar com os bancos a dívida existente, com poucos meses consegui recolher um certo capital para quitar boa parte da dívida com o sistema bancário e o que eu não consegui pagar de imediato, parcelei a médio prazo e longo prazo, a fim de ganhar tempo para negociar as demais demandas da complexa situação. Fui percebendo que a porta de saída para superar aquele torturante baque seria me movimentar muito, trabalhar muito, voltar a acreditar muito, sentir muita fé dentro de mim, segurar nos braços da minha família e dos meus amigos verdadeiros. Eu que pouquíssimas vezes necessitei de advogado, passei a contar com 4 advogados trabalhando para mim. Eles e alguns contadores me auxiliam a buscar bons prazos, conseguir descontos e condições de pagamento mais racionalizados.

Como se vê, portanto, eu assumi toda a dívida, mesmo a dívida essencialmente não sendo da minha responsabilidade. Mas é como se diz na vida real: “Quem canta não assobia!”. Como eu aceitei delegar a administração da Belém Alimentos para um filho meu e como foquei integralmente na Princesa do Pará, já que Ênio à época foi para Castanhal tocar um outro negócio dele, eu me ative somente na Princesa, porque não deixaria a construção e a implementação da empresa nova nas mãos de funcionários, porque eles não tinha a experiência suficiente para concluir o empreendimento. Muitas vezes as pessoas são formadas, tem cursos, tem até especializações, mas falta a experiência prática, falta resistência

psicológica, falta a prática da vida. Por isso, é fundamental o sistema misto de aprendizado e execução, ainda mais quando se trata de grandes empreendimentos e negócios de alto impacto, porque os riscos são reais, os desafios gigantescos e o trabalho ininterrupto.

Muitas vezes os administradores mais novos, mesmo viajados, mesmo interados do mundo, mesmo falantes de muitas línguas e com vários MBAs, não conseguem conviver com muito dinheiro, porque conquistar muito dinheiro, fazer muito dinheiro quando o empreendimento está equilibrado, não é tão sacrificial quanto possa parecer. O capital faz capital, todavia, se o cara não tiver uma sustentabilidade na própria integridade e for muito afoito sem respeitar a dinâmica e as regras do mercado, ou até mesmo pedir ajuda se for o caso, aos mais tarimbados para resolver os complexos problemas financeiros da empresa que administra, o capital evapora e começa a ruir a saúde econômica do empreendimento comercial, a rentabilidade cai drasticamente e a crise se instala como uma praga na lavoura econômica. Em seguida vem a dura máquina burocrática da roda mercantil, fiscal e contratual, cobrar os tributos sem piedade, causando a derrocada do empreendimento. E ainda existem situações nas quais o camarada se deslumbra com o dinheiro, se perde na ambição desmedida, não pensa, nem age mais como um executivo responsável, tornando-se um “pequeno rei” imprevidente, irresponsável, arrogante e senhor de si mesmo, acreditando erroneamente que o dinheiro é o único fim no negócio, e quando isso se configura, já não há mais o que fazer, a queda e a quebra da empresa vem galopante.

Lembro que a Belém Alimentos tinha 26 caminhões, e no final da operacionalização da empresa eu ainda os comprei e os paguei à vista ao meu filho para ajudar a resolver as dívidas da insolvência da empresa. Ainda dei muita orientação pertinente, para a empresa não ficar no vermelho, sem muito sucesso, porque o administrador não queria mais me escutar, disse, por exemplo que ele encerrasse a venda externa e deixasse funcionando somente as lojas, até ocorrer o reequilíbrio das contas para poder encerrar suas atividades sem dívidas. Não fui ouvido em nada e acabou acontecendo o que eu já relatei acima, no entanto, na transição de 2019 para 2020, eu comecei a respirar um pouco melhor, as dívidas estavam negociadas, renegociadas e boa parte delas amortizadas.

Logo nos primeiros meses de 2020 a crise sanitária de Covid-19 aportou no Brasil, a pandemia se espraiou por todos os estados e no Pará também começou a deixar a sua marca triste e dilaceradora. Em abril de 2020, com as informações sendo solidificadas aos poucos sobre toda a complexidade da doença, eu continuava com minha rotina normal, eu não tinha escolha, porque além de trabalhar com serviço essencial, ainda estava no pique para cumprir metas e fazer receita para pagar as altas dívidas negociadas nos dias acertados.

Minha rotina seguia vertiginosa e operosa, acordava bem cedo e seguia para Santa Izabel do Pará, objetivando tocar os negócios da Princesa, administrava a empresa, conversava com fornecedores, ligava para os advogados, visitava a minha fazenda, porque eu tive que vender mil cabeças de gado das mais de duas mil que possuía, para ajudar no pagamento dos débitos. Ficava de olho no mercado para ampliar as vendas junto a novos clientes, cuidava da minha família, reorganizava meu patrimônio, para com o dinheiro dos aluguéis, ter capital para não ficar sem recursos e seguir tocando a vida em frente. Foi aí que veio mais uma provação na minha vida, estava pela manhã na fazenda São Francisco, quando senti um cansaço incomum e uma tosse recorrente, mesmo assim não liguei muito e continuei meus afazeres. Minha filha Ana Luiza porém, relatou-me que eu estava estranho, que estava um pouco aéreo e que deveria fazer o exame para ver se não havia pegado Covid-19.

Foi o que fiz, sob a orientação das minhas duas filhas que hoje são médicas, fui fazer o teste e não deu outra, o resultado deu positivo para o coronavírus (Covid-19), logo quando eu estava no ritmo novamente, bem-disposto e firme nos meus trabalhos e na minha recuperação financeira. Fui para casa objetivando cumprir a quarentena, mas em uma semana eu tive uma evolução negativa e passei a sentir uma incômoda falta de ar, fui conduzido pela minha esposa Zélia e por minhas filhas para um hospital na Almirante Barroso, e lá foi constatado que 50% do meu pulmão já estava comprometido. Daí por diante foram dias de aflição, de muita preocupação e luta para melhorar, remédios, soro, espera, muita paciência e todo aquela conjuntura de tensão e medo, porque tudo era novo e avassalador.

Com uma semana internado, 75% do meu pulmão foi comprometido, então nesse momento é que a ficha cai, tudo passa em revista e o receio de morrer vem à tona, eram tantas injeções que eu não fazia mais questão de dificultar em estender o braço quando tinha forças para isso. Uma horrível sintomatologia tomou conta de mim, foi uma semana intensa de agonia e aproximação nas bordas da morte, tanto que tive que ir para UTI por um dia, mas 24hs depois eu saí. Naquele hospital tudo era dor e luta, quando melhorava um pouco e percebia o ambiente, escutava gritos e choros dos familiares dos que partiam.

Minha família mais uma vez, ajudou-me de tal maneira que tenho absoluta certeza, que puseram força e energia no milagre da minha cura e recuperação; mais uma vez o destino fez suas preces junto a Deus e eu fui melhorando. Após passar uma semana inteira de muitas incertezas e de muita angústia, meu pulmão foi reagindo, melhorando e se reestabelecendo. Depois de mais alguns dias, eu recebi alta e fui levado para casa pela minha família, ainda um tanto convalescente.... Mas bem melhor e com mais energia para novamente seguir em frente. Não deixei o abalo tomar conta do meu mundo psicológico, fiz a recuperação certinha, com muito repouso e tomando a medicação prescrita pelos médicos. Quando melhorei definitivamente me lancei ao trabalho novamente, havia muita coisa para fazer e organizar, precisava seguir firme no propósito de manter o crescimento nas receitas da Princesa do Pará e assegurar

uma boa rentabilidade para sem percalços continuar pagando o que devia e seguir crescendo até uma sólida situação financeira, novamente. Sinto uma imensa gratidão pela minha família e amigos de verdade que me ajudaram a superar as dificuldades mais complexas. Rememoro por exemplo, meu amigo, ex-sócio na AMPA e compadre Paulo Rocha, que me emprestou R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais) na época da luta para enfrentar o débito da Belém Alimentos, um empréstimo sem juros e sem prazo para pagar conforme ele mesmo me disse. Só um grande amigo e uma pessoa de grande coração faz isso, ainda correndo o risco real de não receber logo o dinheiro em função das intensas dificuldades da situação, somente um ano depois eu paguei esse alto valor ao meu compadre.

A minha esposa Zélia falou para alguns amigos meus que eu tenho dois cérebros e dois corações, porque quando um coração e um cérebro cansam, o outro coração e o outro cérebro passam a trabalhar mantendo-me vivo. Pode ser verdade isso aí, se o coração que continua pulsando e o cérebro que fica funcionando, metaforicamente, simbolicamente, representam uma profunda perseverança dentro de mim. Muitas vezes, ao longo da minha vida, a perseverança em seguir adiante era tão intensa, tão forte, tão presente, que não era eu que a domava, era o contrário, ela que me conduzia.

E a perseverança, a esperança e o espírito empreendedor somente se forjam no alforje da austeridade, da luta, do trabalho, da renúncia construtiva, da fé em Deus, da previdência econômica, tanto no pouco quanto no muito e também na dor.

Porque a dor ensina muito, ela vai te preparando, te sondando, para o camarada merecer a felicidade mais à frente, merecer a alegria justa e a conquista honesta. Ela faz aparecer as desilusões como uma robusta tempestade, como uma longa seca, aljofrando uma rústica severidade nas telas da nossa alma, atacando de parte a parte todas as estruturas íntimas da nossa personalidade, destruindo as veredas falsas que não levam a lugar nenhum, diluindo os últimos contextos mais tenebrosos que teimam em se apegar dentro da gente, transformando tudo em uma clareza límpida ante o mundo prático, ante a realidade pura, porque o grande sonho sem trabalho, sem as dores da jornada e sem os pés no chão, são cinzas que nos levam às derrotas certas. Por isso para vencer na vida é preciso muito mais do que sonhar; é preciso muito mais do que sofrer; é preciso muito mais do que entusiasmo; é necessário projetar e ser um fazedor, realizando com a força do próprio braço, da perseverança e da honestidade, tudo ao nosso alcance, seguindo sempre em frente para conquistar nosso merecido lugar ao sol.

Estamos em 2021 e neste ano ainda, lá pelo mês de dezembro, com muito trabalho e muita fé em Nossa Senhora de Aparecida do Norte, inaugurarei na Augusto Montenegro um novo atacadão, chamado AMF Atacarejo, lá o atacado e o varejo estarão mais forte do que nunca, mais pujante e mais vivo, porque seguirá o exemplo da Princesa do Pará. Quando eu inaugurar o AMF Atacarejo, saltaremos de 320 funcionários para 450 colaboradores, o que me

deixará muito satisfeito, porque gerar emprego e renda é uma grande conquista na minha vida.

Hoje trabalho com meus filhos, Fernando e Daniel e, graças a Deus, as coisas estão dando certo, a minha experiência de vida associada a teoria deles, vai somando o nosso trabalho, ainda consigo tempo na agenda para administrar minha fazenda chamada afetuosamente de São Francisco, ela é ao mesmo tempo, uma fonte de renda e lazer, eu a visito, principalmente, aos finais de semana. Tenho alguns aluguéis que ajudam muito na minha renda permanente e equilibrada, sou conhecido e respeitado onde faço negócios, tanto nas indústrias de alimentos, usinas de açúcar e feijoeiros de todo o Brasil, como também no meio empresarial paraense. A Princesa segue firme e crescendo, com muito trabalho consegui recapitalizá-la, dobrar a frota de caminhões, aumentar as vendas e sanar minhas dívidas, tanto dela como a da extinta Belém Alimentos.

Projetei trabalhar duro por mais alguns anos para botar todas as minhas coisas em ordem, com muita força de vontade, se Deus me der vida e saúde, quero trabalhar mais 10 anos, firme e forte. Chegando a este objetivo pretendo afirmar sem receio: “Agora cada um segue seu caminho como achar melhor, a minha parte eu já fiz com muito gosto e certamente fiz muito bem feito.”

Afinal, a vida tem seus segredos e ensinamentos, que nós aprendemos com os mais experientes: “A vida é igual um parafuso, se você torcer para o lado errado, arrebenta e até ajustar novamente, leva anos e anos. O homem tem dois caminhos a sua escolha, o certo e o errado. Se escolher o certo, com certeza terá sucesso, se escolher o errado, vai ter que contar com a sorte, aí fica mais difícil.”

Deus tem sido muito bom para mim, sempre iluminando meus caminhos e eu agradeço intensamente por tudo isso. A minha vida sempre foi um livro aberto, todos sabem a minha trajetória, de onde eu vim, onde estou e para onde vou. Sou um homem que vive para a família e para o trabalho. Com muita honra e muito orgulho posso postular, que cheguei em Belém no dia 27 de setembro de 1977, onde estou até hoje, com muita satisfação de ser um homem de respeito pelo meu comportamento. Sempre trabalhei honestamente, cumprindo meus compromissos, construí minha vida empresarial com o suor do meu trabalho, da minha honestidade e simplicidade, nunca passei por cima de ninguém para chegar onde cheguei, gosto de reafirmar essas qualidades não para me gabar, mas para apresentar o meu currículo de vida e o resultado que conquistei graças a ele.

Vim de uma criação humilde e sofrida, foi lá que aprendi a dar valor às pequenas coisas, e também trouxe a minha cultura amarrada dentro de mim, a qual carrego até hoje, com muito orgulho, sou feito da argamassa da cultura nordestina cabra da peste, destemido e enfrentador da vida difícil desde pequenininho. Hoje, apesar de tudo, estou colhendo os frutos e estes frutos eu os trato com a maior responsabilidade. Porque uma coisa que sempre preservei foram meus bens, quando alguém me oferecia algo que eu sabia que era errado, voltava a minha mente ao passado.

No Pará, meu trabalho duro, garantiu-me realização!

Pensava e refletia de onde tinha vindo, como iniciei minha jornada e como estava até o momento. E dessa maneira, sempre fui descartando as propostas das pessoas que só queriam me levar para o caminho indigno. Assim seguirei enquanto Deus me permitir seguir em frente nessa terra abençoada.

“Visita a minha terra natal, minha mão já começava a ficar fina, porque não trabalhava mais no pesado da roça!”

“Registro especial da Copa do Mundo de 2006, na Alemanha... Um dos momentos de férias que eu tive ao longo da minha extensa jornada. Aí eu já estava estruturado financeiramente, e fazendo investimentos ostensivos nas minhas empresas. Ganhei essa viagem da Mercedes-Benz, após ter comprado alguns caminhões da empresa alemã.”

“Campeando pela fazenda Logradouro, expondo minha destreza em domar o cavalo, com bravura equilibrada, muita disposição, experiência e uma felicidade exponencial em poder sentir, após tantos anos fora do mundo rural, meu universo de eterno vaqueiro.”

“O meu sonho de menino só foi realizado, porque eu consegui unir a minha fé em Deus, a fé em mim mesmo e a fé na própria vida, comprometendo-me todos os dias a trabalhar e usar o empréstimo sagrado do tempo.”

A minha família é a maior riqueza e o meu melhor patrimônio!

“A família não nasce pronta; constrói-se aos poucos e é o melhor laboratório do amor. Em casa, entre pais e filhos, pode-se aprender a amar, ter respeito, fé, solidariedade, companheirismo e outros sentimentos.”

(Luis Fernando Veríssimo)

Existe um ditado popular muito conhecido que diz: “Quando as raízes são profundas não há razão para temer o vento.” Eu concordo plenamente com essa máxima repercutida pelo povo. Uma família não se faz de uma hora para outra e não está circunscrita somente na sua representação exterior, a de morar em uma casa feita de ferro e cimento e conviver com a parentela compartilhando as necessidades e aspirações. Para enfrentar as lutas da vida, é necessário criar laços profundos com nossa família e esses laços se fortalecem justamente quando as fortes ventanias da vida nos pegam pelo caminho. Outro adágio muito repercutido afirma: “Não é o que nós temos na vida, mas quem nós temos em nossas vidas que importa.” Você pode construir um castelo de aquisições, um patrimônio sólido e substancioso, mas com o tempo e o tempo sempre passa, você vai compreendendo, vai sentindo, vai aprendendo os grandes segredos da vida. Sim, importa muito vencer materialmente, afinal, foi o que eu sempre quis realizar desde menino. Importa muito ainda, conquistar os valores consequentes dos seus negócios maciços, fazer dinheiro, comprar o que gosta, vivenciar as possibilidades da vida. Tudo isso é de grande relevância e me deu até aqui uma grande satisfação e um senso de sentido positivo pelo sucesso alcançado. Entretanto, a vida foi me mostrando, me avisando e me provando que a minha família é o que mais importa para mim.

Minha família sertaneja e depois minha família no Pará são o meu valioso antídoto contra todas as dores, desafios e saudades da minha longa trajetória. Mesmo todas as vezes quando estive distante geograficamente, em São Paulo e em Belém do Pará, a minha família sertanista sempre esteve presente em meu coração. E minha família belenense que constituí no Pará contribuiu sobremaneira para a preservação da minha harmonia interna e foi a minha ponte

salvadora quando passei, primeiro pela crise intensa de ordem profissional no debacle da Belém Alimentos, e segundo, ao atravessar a tempestade orgânica causada pela Covid-19, quando cheguei à beira da morte e fui parar na UTI. No meu lar familiar sempre encontrei o suporte necessário à superação dos desafios do dia a dia. O afeto recebido e ao mesmo tempo compartilhado por mim junto aos meus filhos e minhas filhas, junto a minha esposa Zélia, junto aos meus irmãos e irmãs, minha mãe Orminda e meu pai João Freire de Sá, conhecido como João de Toinho de Joza, como também aos meus primos e netos, todos garantiram-me o rico ensinamento de que na vida, o melhor é viver e conviver em família. Os laços de afeto vão se fortalecendo e os sentimentos envolvidos se concretizam no respeito mútuo, na responsabilidade afetiva, na concretude dos bons exemplos e mesmo nos alicerces morais, porque a educação queiramos ou não queiramos, deve vir de casa, o mundo e a escola devem ser parceiros, em função da necessidade da vida social, profissional, laboral e existencial.

Sempre encontrei aconchego e segurança ao estar entre meus familiares, isso não quer dizer que não haja desafios, que não tenha questões sensíveis para serem superadas, afinal, todos nós possuímos qualidades e defeitos, e não há nenhuma família no mundo que não tenha problemas a vencer, a superar, a administrar, visto que isso é secundário, e não o principal, porque o sentimento, o amor construído, a tolerância recíproca e o respeito às diferenças são o tempero que garantem o oportuno sabor da harmonia familiar; esse importante e essencial condimento nunca faltou dentro da minha casa.

Dentro do lar e quando visitava minha parentela em Pernambuco nas minhas férias de trabalho, reavivei as melhores sensações da minha atarefada e improvável existência, nesses meus quase 70 anos de idade: uma estrutura de afeto portentosa, cheia de humor, cheia de força para vencer os desânimos naturais e uma escola de saúde pessoal, porque ao compartilhar bons momentos com meus parentes, sempre pude fortificar meu ser interno.

Quando deixei o sertão aos vinte e um anos de idade, fui embora para outras paragens a fim de cumprir meu sonho de menino, mas como já afirmei antes, todos os valores conquistados dentro de casa, aprendidos com minha mãe e com meu pai, eu os levei comigo por todos os lugares que passei e prosseguem aqui junto de mim, em Belém do Pará. Sou uma pessoa cheia de fé em Deus, graças ao ensinamento sagrado de minha mãe Orminda e sempre lembro de duas passagens do livro sagrado dos cristãos, importantes para me lembrar todos os dias de cumprir meu dever de filho, de irmão, de primo, de esposo e de pai: “Honrai a vosso pai e a vossa mãe, a fim de viverdes longo tempo na terra que o Senhor vosso Deus vos dará” (Decálogo: Êxodo, 20:12). “Aprendam primeiro a exercer piedade para com a sua própria família e a recompensar seus pais, porque isto é bom e agradável diante de Deus” – Paulo (I Timóteo, 5:4).”

São considerações sagradas que fui guardando na minha mente e eu posso afirmar, pelo meu comportamento compartilhado no meu cotidiano, estar cumprido sistematicamente ao logo do meu tempo na terra. Nas minhas empresas

A minha família é a maior riqueza e o meu melhor patrimônio! |

eu já administrei mais de 1.000 funcionários, por exemplo, e sempre tive em mente a ideia básica de que se você não consegue ser um bom ser humano para 5 ou 10 pessoas dentro da sua casa, não vai conseguir ser para muitos outros fora do seu lar, porque a nossa casa, a nossa família é também uma lavoura sagrada de serviço, de aprendizado, de alegria e de compartilhamento de dores.

Eu não tive como estudar na escola formal quando eu era um pequerrucho, em função das dificuldades financeiras que minha família passava, como já relatei anteriormente, nem mesmo quando me tornei gente grande eu tive tempo para isso, portanto, não acessei a instrução escolar, uma boa alfabetização, o sagrado estímulo à leitura e o gosto pelos livros. Tudo isso eu não tive, tudo isso me faltou, tudo isso me deixou um pouco frustrado, e só consegui vencer esse trauma aos 60 anos de idade, quando passei a amar os livros e a leitura. Mas a educação não se circunscreve somente aí, e a meu ver, apesar da alta importância dos institutos de instrução, a educação propriamente dita, a que vai reger os seus valores pessoais e seu jeito característico de viver no mundo, e mais à frente no seu lar nuclear, não são ensinados pelos estabelecimentos de ensino; e sim, pela nossa família, por nossos pais. E nesse aspecto essencial eu sempre quis tirar nota dez, sempre prestei muita atenção no que minha mãe e meu pai diziam, acolhia suas orientações como valores inegociáveis.

Minha família é muito grande, muito numerosa e meu apreço por ela é superlativo, nós temos uma tradição de reunir todos os primos pelo menos uma vez ao ano. É uma festa, uma algazarra medonha, uma risadagem geral e todos têm causos a contar... Tenho primos de todos os jeitos e até primos que defendem a direita e outros primos defensores da esquerda; então, quando se encontram é aquela discussão ostensiva, uns puxando para um lado e outros puxando para o outro lado, os entraves são acalorados, e argumentam com todas as suas forças, outros ficam lá vendo o conflito rolar, sentados nas cadeiras como se estivessem em um camarote. Mas depois das discussões políticas, tudo fica bem, todos se abraçam e vão se unir para tomar mais uma e acalmar os ânimos.

É justamente essa diversidade na unidade familiar que deixa saboroso o nosso encontro, todos nós aproveitamos muito esses momentos e quando chega a noite de domingo, após um final de semana inteiro de confraternização, todos seguem seu destino, vão para suas casas, outros retornam para suas cidades e todos nós já vamos embora sentindo muita saudade de toda aquela bagunça tão saudável e cheios de ansiedade, já pensando e imaginando o reencontro no próximo ano, na próxima festa da família.

Essas são as coisas divinas que eu prezo muito e guardo na memória e de vez em quando minha mente acode a todas as maravilhosas lembranças desses encontros. Família raiz é assim, pode passar o tempo que for sem se ver, pode demorar bastante a se reencontrar, pode até ficar longos períodos sem se comunicar, todavia, quando nós nos encontramos é aquela profunda alegria, engatando conversas recheadas de memórias inesquecíveis. Há também familiares que nós esquecemos e eles esquecem de nós transitoriamente, por causa do longo tempo sem nos vermos.

Às vezes eu fico pensando com meus botões, fico refletindo sobre o tempo que passou, sobre tudo o que me aconteceu, sobre as muitas voltas que a vida dá, e principalmente, sobre as questões do destino que racionalmente é complexo de explicar, porque ele é uma teia emaranhada de circunstâncias como o vento arrojando sua força nas ondas do mar. Uma hora está uma brisa; outra, uma tempestade. Uma hora a calmaria; outra, a ventania aflitiva sem piedade. Em um tempo você é compelido a estar próximo de seus entes queridos, em outro momento você só se desenvolve pessoalmente se estiver distante deles, como um contra efeito necessário para avançar. Quando relaxo um pouco no meu escritório, pergunto-me o motivo da minha vida ter dado tantas voltas, com muitos acontecimentos bons e marcantes e em seguida situações abrasadoras e difíceis de lidar, não constantes no nosso dicionário de viajantes da vida. Quando eu dava dois passos adiante e seguia o horizonte das possibilidades, as nuvens se fechavam um tanto e uma ventania medonha, fazia eu dar um passo para trás. Mas é como se diz: “Viver é aprender sempre, lutar sempre, ganhar e perder, jamais desistir, buscar força, ter muita fibra, vontade obstinada, segurar nas mãos dos familiares, acreditar que Deus está no comando, porque tudo passa e o progresso nos acompanha novamente, pois a lei da vida é a mesma em todos os lugares e em todos tempos... – quem semeia, colherá.”

No livro do grande aviador, escritor e ilustrador francês Antoine Marie Roger de Saint-Exupéry, intitulado “O Pequeno Príncipe”, está grafado dois excertos emblemáticos sobre a responsabilidade afetiva construída por nós, ao longo da vida em relação aos nossos mais profundos e caros afetos. O primeiro fala sobre o sentimento conquistado no coração, pois apesar de tudo, apesar de todas a dores entrelaçadas na relação parental e fraterna, os laços emocionais irão existir sempre: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.” E o segundo postula sobre a verdade de que nada na superfície da vida é muito real, o que vale, realmente, é o afeto por dentro da alma, o afeto está sempre na essência, no âmago da nossa intimidade mais forte, nesse vínculo inquebrantável, na conexão de alma para alma e não nas aparências: “Eis o meu segredo. Ele é muito simples: somente vemos bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”.

Em toda a minha vida, eu segui à risca a dádiva de honrar e amar meu pai e minha mãe sem meio termo. Quando fui amadurecendo mais na minha jornada, fui percebendo nitidamente a vital importância deles na minha existência. Meu pai me deu como herança a coragem, a dureza de espírito e o destemor, minha mãe me legou a fé em Deus e o jeito flexível de sentir as coisas no mundo cinzento da realidade. Meu pai e minha mãe ao jeito deles, conforme a cultura deles, mediante as dificuldades enfrentadas por eles e sob a injunção do passado dos dois que também não foi fácil, ensinaram-me tudo que eu precisava aprender para suportar os grandes acontecimentos da minha improvável vida.

Não tenho palavras para descrever minha infinita gratidão aos dois, muito menos explicar racionalmente a dor que senti quando em primeiro de outubro

A minha família é a maior riqueza e o meu melhor patrimônio!

de 2006 e ao sexto dia de setembro de 2017, respectivamente, meu pai e minha mãe na devida ordem das destas aqui elencadas, partiram para a morada eterna, cumpriram sua laboriosa missão nessa terra de Deus. Foram duas datas, dois dias que me marcaram impetuosamente, como se duas partes do meu coração fossem embora para muito longe sem nenhum remédio de volta.

Eu já tinha sentido uma dor parecida em 1997 quando meu irmão Pedro que chamávamos carinhosamente de Pepê, morreu, causando uma intensiva tristeza em toda a nossa família. Senti um vazio e uma melancolia baseada em uma saudade forte, afinal, Pepê era um grande ser humano e um irmão fantástico de uma árvore familiar cujas sementes e raízes trabalhadas por meu pai, João Freire de Sá e minha mãe, Maria Orminda Coelho de Freitas, compuseram juntos 8 filhos ao seu modo sertanista e ainda tive a felicidade de ter mais 3 irmãos de um outro relacionamento que meu pai teve, quando não estava mais com minha mãe.

Aproveito, portanto, nessas humildes linhas, nas quais conto partes essenciais da minha vida, nessa autobiografia que escrevo para registrar minhas quedas e superações, minhas conquistas e debacles, meu sentimento e evolução, a título de expor, a todos que acreditarem verdadeiramente, ser possível a qualquer ser humano, conquistar sucesso na vida, mesmo nas situações mais difíceis, para fazer uma homenagem aos meus irmãos e irmãs, porque eu sei da luta deles e do grande trabalho que fizeram e fazem para seguir brilhando com seus descendentes, conquistando também o espaço que merecem na vida e deixando a marca registrada, por onde passam, como nordestinos lutadores e cheios de humor e de coragem.

Minha irmã mais velha Maria das Graças, a segunda na ordem de nascença, Maria do Carmo, sou o terceiro, a quarta Maria Auxiliadora, a quinta foi a Maria da Paz, o sexto foi o José Edílio, o sétimo foi o Pedro Francisco, a oitava a Maria do Socorro. Do outro relacionamento do meu pai vieram, outra Maria do Socorro (aqui uma coincidência entre nomes), Maria de Lourdes e o João Paulo que com um mês de vida, acabou não resistindo e morreu como um anjo que faz uma visita rápida em algum lugar. Dez pedras preciosas enviadas por Deus à terra para inebriarem minha vida de alento e uma desmedida amizade que só me fez e me faz bem ao coração.

Quando prosperei financeiramente em Belém do Pará, meu irmão José Edílio, conhecido por toda nossa família por Didi, veio trabalhar comigo, o que me causou uma imensa satisfação, primeiro ele trabalhou em uma mercearia e depois veio trabalhar em uma das minhas empresas e permanece colaborando comigo até hoje. Depois veio o Pepê e na sequência chegou por Belém a Maria do Socorro que trabalhou comigo em Icoaraci e depois no Belém Alimentos.

A Maria do Socorro veio para me ajudar a cuidar do meu filho Roberto que tinha nascido há poucos dias e desde essa vinda dela para Belém, para me auxiliar nos cuidados do meu primeiro filho, ela acabou ficando de vez. Casou, constituiu sua família e teve duas filhas. Sinto uma imensa gratidão pelo que

ela fez por mim e pelo Roberto ainda pequeno, ela me ajudou muito a cuidar dele e ainda trabalhava no meu mercadinho em Icoaraci. Atualmente ela faz uma ponte entre Belém e Brasília, já que suas filhas cresceram e se mudaram para a capital do Brasil.

A Maria Auxiliadora também veio trabalhar nos meus comércios, trabalhou intensamente comigo por muito tempo, tanto foram os anos de colaboração nos meus negócios que ela acabou se aposentando comigo. E isso também me deixou profundamente feliz, afinal, você ter a honra de colaborar com uma irmã sua, trabalhar junto até a aposentadoria dela é muito gratificante. Atualmente a Maria Auxiliadora, afetuosamente chamada por nossa família de Dôra, voltou para Pernambuco e se fixou definitivamente lá.

Meus irmãos e irmãs me ajudaram e eu os ajudei a chegarmos onde estamos. Relembro novamente de quando vivíamos juntos no nosso nostálgico sertão em Cabrobó e minhas irmãs precisaram de dinheiro para poderem fazer uma prova na escola que elas estavam matriculadas na cidade, na zona urbana do município. E eu tive que madrugar e seguir para lá em montaria para cumprir com muito prazer o meu dever de irmão... Então, nossos laços consanguíneos transcendiam e nós vivíamos em um reinado de luta, diversão e afeto. Tive mais duas irmãs que vieram trabalhar comigo, a Maria do Socorro e a Maria de Lourdes, foi a primeira experiência de trabalho que elas tiveram, atualmente, a Maria do Socorro trabalha por conta própria e a Maria de Lourdes continua trabalhando comigo na Princesa do Pará.

Em regime de cooperação, de muito trabalho, muito respeito, a formação do nosso caráter no lar se deu pelo grande exemplo misto do grande coração de minha mãe e do cérebro ativo, fazedor e disciplinador de meu pai. Eles foram os grandes mentores da nossa vida, ensinando-nos o valor de ser justo, de ser organizado, do valor de trabalhar para merecer o pão de cada dia, de ser honesto no comportamento com os outros, para vencermos o cadinho de lutas diárias com dignidade.

Esses valores sempre seguiram comigo por onde vivi, e obviamente, permanecem no meu jeito de ser até hoje, porque são raízes profundas da minha educação familiar. É claro que tenho meus desafios de personalidade, defeitos pessoais a superar, tendências a aplainar, mas nada absurdo, nada extremista, tudo dentro da minha humanidade de gente perfectível. Um tanto teimoso, às vezes, um pouco controlador além da conta, sistematicamente metódico por demais, algumas vezes apressado e no passado, não mais agora, porque encontrei realmente um grande amor chamado Zélia, fui muito namorador. Tanto que antes de conhecer minha amada esposa e companheira Zélia, eu tive três relacionamentos, nos quais tive em cada um deles, um filho de cada.

Com a mãe do meu primeiro filho, tive o Roberto Malan, eu casei e vivi quase dois anos, mas logo nos separamos. Depois tive um outro relacionamento rápido e já engatei o Fernando Freire, meu segundo filho. Passou um tempo e novamente, em outro relacionamento célere, veio ao mundo o meu terceiro filho chamado Daniel Freire. Os três tiveram a mesma orientação que recebi

A minha família é a maior riqueza e o meu melhor patrimônio!

da minha mãe e meu pai, passei para eles os valores conquistados e uma certa experiência de vida adquirida nas veredas palmilhadas por mim.

Com eles nunca esmoreci na exemplificação, com eles nunca deixei a peteca cair e com eles fiz valer as melhores oportunidades naturais da boa vivência na infância e depois na adolescência. Fiz valer com eles a energia de princípios com muita sinceridade, firmeza e uma flexibilidade estatuída na mediação saudável de pai para com seus filhos. Esforcei-me sistematicamente para proporcionar a eles uma sólida educação orientada e baseada na vida simples, sem extravagâncias, afinal, a primeira escola do mundo é a escola paterna e a escola materna, ou ainda como ensinam os sábios de todos os tempos: “O lar é a escola primeira.”

Nos primeiros cinco anos da década de 1990 eu já tinha essas três bençãos como filhos, já estava em um bom patamar profissional e de conquistas, estava empinando a pipa financeira e já era um empresário com excelentes resultados, como relatei no capítulo anterior. Mas faltava preencher um espaço fundamental na minha vida, faltava estabelecer um laço afetivo duradouro para viver profundamente a sagrada experiência do lar, faltava acolher no meu coração e na minha alma uma mulher, uma companheira, uma parceria, uma grande alma feminina para junto comigo seguir construindo uma manifestação emocional na glória da união conjugal. Justamente com alguém que me ajudasse e eu a ajudasse a criar um lar próspero, seguro e internamente saudável.

Encontrei Zélia pela primeira vez quando eu era adolescente no sertão de Pernambuco; eu de Cabrobó e ela do interior de Santa Maria da Boa Vista, eu era mais espichado e ela era uma pré-adolescente, porque vim ao mundo dez anos primeiro que ela. Foi o encontro de toda a meninada das duas famílias, a minha e a dela. O tempo passou, fui embora do sertão para São Paulo, depois Belém, casei, descasei, relacionei-me mais duas vezes e depois que estava vivendo um tempo como solteiro, eu decidi ir a Pernambuco com uma ideia forte na cabeça. Isso ocorreu depois de eu fazer um comentário para uma prima minha dizendo a ela que estava com vontade de casar novamente. Ela nem me deixou terminar de me expressar e foi logo afirmando: “Pois você deve ir lá em Pernambuco, porque a sua mulher, a sua noiva está lá.” Fui procurar uma pessoa de lá e buscar um namoro e depois uma união mais sólida. Já é conhecido em todo o Brasil a forte tradição nordestina de união, namoro e casório entre primos, e foi o que se deu, o destino fez eu encontrar Zélia, uma prima minha, e minha felicidade, então, chegou.

O mais interessante nesses desdobramentos, era que minha prima nem conhecia Zélia e ficou no ar o conselho de eu viajar até Pernambuco e encontrar uma noiva por lá. Minha prima dizia que eu não tinha mais que arrumar uma mulher no Pará, porque a mulher da minha vida estava morando no estado de Pernambuco. Então, eu decidi viajar e lá encontrei Zélia novamente, creio que pela terceira vez. E desse encontro com ela nós nos enamoramos e contraímos matrimônio, gerando dois grandes tesouros da nossa vida, nossas duas amorosas filhas; Ana Luiza e Marina.

Como Zélia gosta muito de contar nossa história, ela quem vai relatar pormenorizadamente, partes essenciais do nosso enlace:

“Em 1990 o Antonio foi a Pernambuco para realizar dois objetivos, o primeiro era visitar a família, porque era tradição da parte dele manter sempre os laços familiares fortes e próximos, apesar da distância geográfica. E o segundo, era encontrar uma pretendente para, após a conquista, realizar sua vontade de casar novamente e conseguir formar uma família sólida e duradoura.

Eu realmente não sabia da vontade dele, e confesso que se já soubesse sobre as pretensões dele, teria aceitado conversar com Antonio. O tempo passou e ele voltou para Belém, foi que ele casou, separou-se, ainda namorou, conheceu outras mulheres, mas nunca se apaixonou profundamente, como se apaixonou por mim, já que a nossa vida e o posterior comportamento dele provou essa constatação. Até brinco que ele se parecia com a música Mulheres escrita pelo compositor Toninho Geraes, interpretada pelo genial cantor, compositor e escritor brasileiro, Martinho da Vila.

‘Já tive mulheres de todas as cores

De várias idades, de muitos amores

Com umas até certo tempo fiquei

Pra outras apenas um pouco me dei

Já tive mulheres do tipo atrevida

Do tipo acanhada, do tipo vivida

Casada carente, solteira feliz

Já tive donzela e até meretriz

Mulheres cabeça e desequilibradas

Mulheres confusas, de guerra e de paz

Mas nenhuma delas me fez tão feliz

Como você me faz

Procurei em todas as mulheres a felicidade

Mas eu não encontrei e fiquei na saudade

Foi começando bem, mas tudo teve um fim

Você é o sol da minha vida, a minha vontade

Você não é mentira, você é verdade

É tudo o que um dia eu sonhei pra mim (...)’

No São João de 1990, no festivo mês de junho, Antonio foi novamente a Pernambuco e, então, conhecemo-nos melhor. Foi nesse São João abençoado que nós conversamos muito e foi naquele saudoso mês de junho que nós começamos

A minha família é a maior riqueza e o meu melhor patrimônio!

a namorar. Lembro até o nome da boate que nós nos encontramos, a Boate Trevo, que ficava em Petrolina. A Boate Trevo marcava a tradição das excelentes festas juninas de Petrolina, era um acontecimento, uma multidão de gente, um povo cheio de sorrisos nos rostos alegres. Eu residia em Petrolina, porque lecionava lá; era professora do primário e trabalhava no Colégio Dom Bosco.

Começamos a namorar e como Antonio teve que retornar para Belém do Pará, nosso namoro prosseguiu via telefone no intervalo de junho até o mês de dezembro de 1990. Quando chegou o mês de dezembro, toda a família dele viajou para a capital paraense, mãe, pai e minhas futuras cunhadas. Eu aproveitei a oportunidade e também viajei para o Pará juntamente com uma das minhas futuras cunhadas, a Maria do Carmo, e ficamos em Belém vinte e dois dias, tempo no qual Antonio e eu ficamos juntos, e esses vinte e dois dias, foi o período até aquele momento que nós ficamos mais tempo unidos.

Foram dias maravilhosos de confraternização entre os familiares, regada a muitas histórias e memórias afetivas compartilhadas entre todos os presentes. Quando janeiro de 1991 chegou, retornei para Petrolina, porque tinha que trabalhar. Segui dando aula o ano inteiro, e nesse período, portanto, continuei namorando com o Antonio, por telefone. Já no mês de junho, um ano depois do pedido de namoro, Antonio viajou para Petrolina e foi lá me pedir em noivado, fechando o ciclo da paquera, do namoro, e iniciando o nosso noivado oficial.

Ficamos noivos por mais seis meses e em 12 de dezembro de 1991, nós nos casamos e apertamos nossos laços afetivos, definitivamente. A festa de casamento ocorreu em Pernambuco e foi belíssima, com toda família presente, a minha e a dele, agora unidas em bênçãos do nosso enlace matrimonial, viemos para Belém do Pará para nos estabelecermos como família e caminharmos juntos na nossa nova jornada. Moramos em Canudos, depois na Enéas Pinheiro e finalmente nos fixamos na Augusto Montenegro, onde moramos atualmente. No final do ano de 1992, Deus nos encheu de felicidade, quando tivemos a Ana Luiza, nossa primeira filha; e dois anos e alguns meses depois, em 1995, novamente nossos corações ficaram em êxtase de contentamento e profunda satisfação, quando a Marina veio ao mundo para alegrar ainda mais o nosso lar. Nossa família foi se construindo nas bênçãos da maternidade, do diálogo, do respeito, do afeto, da reciprocidade, da confiança, na harmonia dentro de casa e no grande exemplo do pai; do esposo; do amigo; do companheiro e do formidável empresário que o Antonio é.”

A Zélia é uma mulher incrível, generosa e a melhor mãe do mundo. Ao lado dela conquistei a plenitude do coração, conquistei a felicidade de um lar abençoado por Deus e por Nossa Senhora Aparecida, conquistei mais dois tesouros que amo infinitamente: a Ana Luiza e a Marina.

Meus cinco filhos são minha devoção afetiva, meu intercâmbio de amor incomensurável. Dos três primeiros vieram nove netos, que são também o meu reino de contentamento e intensa alegria. Meus netos são uma pedra angular de afetividade que me sustentam o edifício do meu ser.

Problemas, com certeza, enfrentamos. Famílias que não defrontam os naturais desafios da vida, não existem na terra. E as dificuldades no âmbito familiar são, justamente, o que garante a verdade de que com amor, paciência e fé, tudo se transpõe, tudo se suporta a título de superação e aprendizado. Amar e cuidar de uma família tem a sua complexidade, tem a sua grandeza e também dá trabalho. Mas esse trabalho é muito prazeroso, a complexidade, muito educativa, e a grandeza é toda divina, porque a família é obra de Deus na terra. O lar é o mundo essencial, o mais importante, o nosso refúgio de paz e de reabastecimento das baterias, onde a cooperação se faz mais presente e onde obras preciosas, como nossos filhos e filhas vivem e passam pela nossa orientação educativa.

Tributo as minhas duas famílias, a de Pernambuco e a de Belém do Pará, que na verdade são uma só, grande parte do meu jeito de ser, a minha criação rústica, porém repleta de valores morais e sabedoria, a minha cultura que preservo até hoje, o sistema de crenças na qual eu me baseio, porque realmente sou um sujeito cheio de fé e devoto de Nossa Senhora de Aparecida do Norte. Todos os dias eu envio mensagens para meus irmãos e familiares, todos os dias eu penso neles, todos os dias eu trabalho para a minha família ter oportunidades de prosperar na vida.

Todas as vezes que nos juntamos é um divertimento só. – Todos nós já estamos muito experientes na vida, traçamos boa parte da nossa caminhada e nós não levamos nada de material dessa vida, apesar de sabermos da vital importância do sucesso material para vivermos enquanto estamos na terra. Então, eu aproveito muito os momentos de encontros familiares, lembro, por exemplo, que mesmo a mãe Orminda já ter partido para o Céu, reunimo-nos na minha fazenda São Francisco para comemorar a memória dela, quando ela, se na terra estivesse, completaria seu centenário. Em nenhum momento da minha vida, no que dependeu de mim, dentro das minhas forças e possibilidades, deixei faltar nada aos meus familiares, ao meu pai e a minha mãe, e escrevo isso não para qualquer autolouvor da minha parte, mas para lembrar da importância fundamental, essencial e de cumprimento de dever de um filho para com seus pais. É o mínimo, por tudo que nossos pais fazem por nós e uma grande orientação da vida, no sentido de uma especial percepção. Afinal, não é possível amar o próximo, como aprendemos tanto na liturgia da Igreja, sem amar os nossos pais, primeiro. E eu jamais faria uma coisa errada para envergonhar os meus pais, para envergonhar a minha família. A minha preocupação sempre foi, e é; a de ofertar a minha alegria, e não uma possível tristeza.

A minha base é sólida, a minha base é enraizada em uma educação austera e prática, a minha base é uma rocha, como a rocha na qual eu me deitava para descansar do sol forte e do trabalho intenso quando menino, no sertão de Cabrobó. E com o desenrolar do tempo, minha alma foi também se tornando um pouco aquela rocha, para oferecer também, abrigo e alívio aos meus familiares, amigos e filhos que desejassem descansar e se fortificar para seguirem adiante

na jornada de suas vidas. Afinal, sou bisneto do saudoso José Francisco de Sá conhecido em todo Sertão como Joza Caló, que eu não conheci pessoalmente, mas que me inspira como ninguém nessa vida, por tudo que ouvi e aprendi em relação a vida dele, contada por dezenas de homens e mulheres da região sertaneja onde eu nasci.

As fazendas que ele deixou para o meu avô e mais duas para cada uma das duas irmãs do meu avô, dessas fazendas duas eram nas margens do rio São Francisco. E no centro do sertão raiz, meu bisavô Joza Caló ainda deixou de herança mais três fazendas. Ele possuía ainda na cidade, várias casas alugadas para pontos comerciais. Então foi um homem que trabalhou a vida toda e conquistou muito. Mas o que me deixa mais espantado positivamente, é o respeito e o que dizem dele, porque independente do que ele tinha materialmente, ele é lembrado porque era um homem bom, um homem de solidariedade, um sertanista que ajudava quem precisava, inclusive auxiliava como podia os que estavam sem ter o que comer, albergando na fazenda dele trabalhadores que não tinham onde ficar.

Rememoro novamente esse feito de meu bisavô, para deixar impresso a alta importância dele na minha vida, e no meu coração. Ele que foi um sujeito pacato, ativo, um fazedor e que na época da seca braba, da estiagem, quando muitas pessoas não tinham mais onde se socorrer pela falta de tudo, ele acolhia fraternalmente os necessitados, ele dava um jeito de arrumar serviço para aquele povo e quando a casa dele já estava muito cheia, não tendo possibilidade de ajudar mais gente, muitos o procuravam mesmo assim, pedindo para trabalhar com ele... Ele respondia, não ter mais espaço, não ter mais com o que trabalhar. E mesmo assim, as pessoas diziam que aceitariam ficar lá pelo menos para poderem comer. E ele sempre disse, sim!

Ele fazia açude, barragens, usando carro de mão, couro de boi, paviola, uns paredões imensos, na força do braço dele e de seus trabalhadores, tudo isso sem a tecnologia atual, já que, obviamente, não tinha trator no tempo dele.

Naquela região quem arrumava trabalho para o povo era ele, porque ele era o grande empreendedor daquela parte do sertão. Então, desde cedo eu me impressionava e achava muito interessante o pessoal falar dele, dos causos dele e isso foi ficando na minha memória, fixando no meu inconsciente e até no meu consciente, que o homem era ele ali. E tenho certeza que isso sempre me impulsionou internamente, para eu me tornar um bom empresário. Meu bisavô é a verdadeira rocha da nossa família, ele tudo conseguia com seu ofício rural, cresceu no alto sertão, cuidando de gado e plantando tudo para se manter, ele não comprava nada, porque ele tirava o feijão, tirava o arroz, tirava a rapadura, tirava a batata, tirava a macaxeira, tudo em decorrência da sua rica lavoura. Por isso minha imensa inspiração, de muitas formas fui fazendo minha vida pessoal, profissional e familiar com base nessa rocha chamada Joza Caló, tanto que no sertão sou chamado de Du de João de Toinho de Joza.

“Registro de 1995 em Belém do Pará, eu com 44 anos, junto aos meus dois grandes amores, minhas filhas Ana Luiza com 3 anos e Marina, com apenas seis meses.

“Marina com seu sorriso angelical.”

“Um abraço cheio de afeto na minha querida Ana Luiza.”“Apesar de trabalhar sempre, a melhor parte do dia era quando eu estava com a minha família.

“No fantástico aniversário da irmã Maria das Graças de 70 anos em 2019 na fazenda Logradouro. Da esquerda para a direita: Maria de Lourdes, Maria do socorro Sá, Maria do socorro Freire, José idílio, Maria da paz, Maria das graças, Maria do Carmo, Antonio Malan e Maria Auxiliadora.”

“Com as minhas irmãs da esquerda para a direita, Maria do Carmo, Maria das Graças, meu pai João Freire de Sá, Antonio Malan e Maria da Paz, na fazenda Logradouro, município de Cabrobó em 2004.”

Você se esforça a vida toda, luta e se doa por um ideal, enfrenta todas as batalhas. Sofre, sentindo as pancadas dos desafios da vida. Jornadeia mil veredas para receber a bênção de Deus de se tornar pai de duas meninas maravilhosas.

“Minha médica Ana Luiza.”

O tempo vai seguindo e aquelas duas crianças sorridentes crescem, tornam-se duas mulheres incríveis, e as duas te trazem o maior presente para um pai que não conseguiu estudar... Dois diplomas em medicina, fruto do esforço delas, tornando-as médicas, fazendo transbordar meu coração de felicidade.”

“Minha médica Marina.”

“Na minha fazenda São Francisco, cavalgando ao lado do vaqueiro Noelio e meu primo Orlando. Grandes figuras que me ajudam na administração desse meu pedaço de chão que gosto tanto.”

“Na Fazenda São Francisco bem acompanhado pelo nosso cachorro guardião – Kaique”

“Na fazenda São Francisco campeando com meu neto Rick.”

“Com
os meus netos Bento, Rick e Betina.”
“Com o meu filho Fernando e minhas netas Laura e Fernanda.”
“Minha neta Elisa.”
“Ana Luiza, Marina e Roberto, descontraídos e felizes”
“Com minha linda esposa Zélia e minhas maravilhosas filhas, Ana Luiza e Marina.”
“Com o meu filho Daniel e os meus netos Luana, Heloísa e Heitor.”

“No aniversário de 95 anos da minha grande heroína, minha mãe Maria Orminda. Pode haver coisa mais importante do que cuidar de sua mãe idosa?”

“Bariloche, 2015.”
“Ao lado do meu grande amor e magnífica companheira Zélia”

“Ao lado do meu filho Roberto, quando trabalhamos juntos em uma das minhas empresas.”

Seguir sempre em frente, trabalhar duro e acreditar obstinadamente nos nossos sonhos para realizarmos os nossos objetivos.

“Eu tentei 99 vezes e falhei, mas na centésima tentativa eu consegui, nunca desista de seus objetivos, mesmo que esses pareçam impossíveis, a próxima tentativa pode ser a vitoriosa.”

(Albert Einstein)

Uma vida bem vivida, uma vida aproveitada, uma vida suprema, é aquela na qual todos os dias importam, todos os dias te esperam para um novo lance, uma nova perspectiva, um novo entusiasmo. A cada nova alvorada, sempre uma nova oportunidade de seguir em frente, de construir seu lugar ao sol, de superar as dificuldades e conquistar seu espaço onde quer que você se encontre. Na vida empreendedora, deve-se lograr mais transpiração do que inspiração, deve-se ser um fazedor, muito mais do que somente projetar, do que somente querer, do que somente pensar, é preciso fazer emergir de dentro da nossa alma, uma coragem destemida, porque a vida não é fácil... Deve-se, portanto, sempre estar disposto a aprender com os outros e com os acontecimentos em seu entorno. É preciso sempre fazer mais do que a vida nos pede, entregar algo antes de receber, estudar também, buscar incessantemente conhecer o que o mundo atual nos oferece, afinal, os tempos são outros, conduzindo a uma necessidade de se adaptar e estar conectado com o mundo da tecnologia diariamente, é um imperativo que ninguém pode negligenciar. Como postulou com maestria o grande pintor, escultor, escritor e polímata de Florença, Leonardo da Vinci: “Aprender é a única coisa que a mente nunca se cansa, nunca tem medo e nunca se arrepende”. Ao longo da minha extensa jornada como empreendedor, fui também alimentando minha alma, com um entusiasmo equilibrado, em viver cada processo diverso dos desdobramentos dos meus projetos com muita alegria e satisfação. As preocupações sempre foram intensas, mas isso nunca impediu eu me alegrar com o desenrolar das minhas

atividades e aprender no fundo do meu coração o tesouro que é alimentar a alegria dentro de si mesmo. Lembro até da belíssima letra da música do filho do Rei do Baião, o fantástico Gonzaguinha, intitulada; “O que é? O que é?”:

(...)

Viver

E não ter a vergonha

De ser feliz

Cantar e cantar e cantar

A beleza de ser

Um eterno aprendiz

Ah meu Deus!

Eu sei, eu sei

Que a vida devia ser

Bem melhor e será

Mas isso não impede

Que eu repita

É bonita, é bonita

E é bonita

E a vida

E a vida o que é?

Diga lá, meu irmão

Ela é a batida de um coração

Ela é uma doce ilusão

Êh! Ôh!

E a vida

Ela é maravilha ou é sofrimento?

Ela é alegria ou lamento?

O que é? O que é?

Meu irmão

Há quem fale

Que a vida da gente

É um nada no mundo

É uma gota, é um tempo

Que nem dá um segundo

Há quem fale

Que é um divino

Mistério profundo

É o sopro do Criador

Numa atitude repleta de amor

Você diz que é luta e prazer

Ele diz que a vida é viver

Ela diz que melhor é morrer

Pois amada não é

E o verbo é sofrer

Eu só sei que confio na moça

E na moça eu ponho a força da fé

Somos nós que fazemos a vida

Como der, ou puder, ou quiser

Sempre desejada

Por mais que esteja errada

Ninguém quer a morte

Só saúde e sorte

E a pergunta roda

E a cabeça agita

Eu fico com a pureza

Da resposta das crianças

É a vida, é bonita

E é bonita”.

Você deve compreender ser o trabalho árduo e disciplinado uma ponte para a realização das suas mais importantes aspirações, você deve aprender sempre a respeitar suas lágrimas, seu suor, sua luta e seus sorrisos, felicitando-se muito com seus resultados excepcionais e ligar o alerta, quando as oscilações da jornada chegam sem avisar, agindo com racionalidade, paciência e uma boa estratégia, a fim de encontrar soluções para os muitos problemas da caminhada. Para ter sucesso na vida, como se diz popularmente, é preciso muito mais do que entusiasmo e vontade, é necessário pôr a mão na massa, enfrentar as mais rudes situações, pois é a vida que realmente ensina. Tudo na vida é uma escola, porque no fim das contas, mais importante do que chegar aos nossos objetivos, é permanecer junto a eles e não deixar a peteca cair.

Ao longo da minha já extensa existência, recebi bons conselhos e orientações fundamentais de pessoas mais experientes, mais tarimbadas, mais vividas no mundo dos negócios, e hoje, com a experiência que conquistei a título de muita luta e pelos meus resultados sólidos, posso também deixar escrito aqui para os que desejarem acessar, em uma imersão positiva de recomendações seguras como uma bússola, uma rosa dos ventos, uma cartografia de como empreender na prática, mesmo em meio ao cipoal de dificuldades na vida real, mesmo para os que estão iniciando do zero.

Considerações e recomendações compartilhadas por mim, aos jovens empreendedores de hoje:

De início, como base de todo o edifício empreendedor, três pontos cruciais aparecem para o bom desempenho da tarefa. O primeiro conselho, é: “Compromisso inegociável com o que você acredita e realmente quer, com a mensagem de seu sonho; o segundo conselho, é: Compromisso inegociável com o que você acredita e realmente quer, com a mensagem de seu sonho; e o terceiro conselho, é: Compromisso inegociável com o que você acredita e realmente quer, com a mensagem de seu sonho.”

Trabalho não mata ninguém e não tira a honra, já dizia o Stubby Currence: “O único lugar onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário.” Como sou uma pessoa de muita fé, deixo aqui uma orientação de ouro do Mestre dos mestres: “E Jesus lhes respondeu: Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também”. (João, 5: 15-17).

O trabalho engrandece e enriquece, garante prosperidade e meios de realizações materiais e intelectuais, portanto, trabalhe muito, trabalhe duro e trabalhe sempre. Isso não quer dizer, trabalhar sem viver com equilíbrio, sem se conectar com o essencialmente importante na sua vida, com a natureza, a sua família, a sua fé, seu autodesenvolvimento e autoconhecimento, sua saúde emocional e física.

Empreender é difícil, mas é essencial para a vida em sociedade, é fundamental para realização de sonhos pessoais e coletivos, é um motor matriz do progresso, é um alavancador da inércia e do ócio sem utilidade, é uma atividade a qual você pode gerar valor para você e para muitas outras pessoas, além de possibilitar que você repercuta os seus próprios valores e suas próprias habilidades.

Por isso eu reitero sempre o alto valor de trabalhar, por isso eu comparo metaforicamente empreender como se você fosse se tornando uma árvore de umbuzeiro, pois essa árvore esplendorosa e forte da Caatinga brasileira prospera justamente quando tudo ao seu redor é difícil, é adverso, é desafiador.

Pode vir a seca que vier e o umbuzeiro estará lá, indômito... Pode vir a quentura que vier e o umbuzeiro estará lá, verdejante... Pode vir a aridez que vier e o umbuzeiro estará lá, de pé. É, certamente, um grande ensinamento para todos os jovens empreendedores, ou você aprende a conviver com a dor e com as dificuldades até elas passarem, porque elas passarão, ou você não viverá o seu mais essencial propósito, que é construir seu negócio e fazer

sucesso com ele. E quando você começa, os recursos são pouquíssimos, então você deve aprender a avançar como faz o umbuzeiro, faz tudo o que pode, da melhor forma que pode, com o mínimo material que possui, justamente, por ser muito econômico, sempre!

As raízes do umbuzeiro estocam água para justamente ser usada no período de estiagem. Isso obviamente passa a mensagem para os novos empreendedores de que eles devem poupar sempre, não importa a ocasião, não importa o momento, se bom ou ruim, o empreendedor deve ser sempre econômico, deve sempre ter uma reserva, para suportar os períodos de dificuldades financeiras. E uma coisa nós aprendemos cedo na vida empreendedora: as dificuldades e tempestades sempre vem, sempre existem pelejas para serem superadas. É preciso ser forte, como é forte o umbuzeiro, para percorrer todo o período difícil, firme, resiliente, esperançoso e mais à frente, oportunizar frutos comerciais.

Eu trabalho desde os 8 anos de idade, comecei cedo a trabalhar pesado no mundo rural sertanejo. Atualmente, às portas de completar 70 anos de vida, alegro-me por ter passado por esses processos de luta e aprendizado na agricultura e na pecuária, e prossigo trabalhando, servindo a sociedade e a minha família.

É fundamental como empreendedor, conseguir se solidificar no ramo escolhido, considerando o eficaz desenvolvimento das relações com todos os que aparecem pelo caminho. Relacionar-se bem com todos e garantir uma pavimentação sustentável ao longo da jornada, e sempre saber sair e entrar nos lugares por onde se transita é fator primordial para empreender. Graças ao meu jeito transparente e sincero, consegui manter ao longo desses longos anos um bom relacionamento no Brasil inteiro, e isso garante mil possibilidades de negócios.

Reitero mais uma vez para aqueles que ainda acreditam na falsa ilusão de que trabalhar desde cedo é perder tempo na vida, que eu vim de um sertão sofrido, trabalhando desde criança, e sempre foi o trabalho que me manteve em pé, não consigo me desligar, sequer tirar férias muito longas. Porque com o tempo, a responsabilidade cresce e o trabalho, além de dignificar sua vida, vai te tornando um líder e, nessa condição e posição, seu trabalho passa a garantir sustento de centenas de outras pessoas. Converso com muita gente, com novos empreendedores, e sempre explico que empreender tem seus desafios, mas não é preciso inventar a roda para dar certo a médio e longo prazo. Nada muito complexo ajuda, é preciso sempre simplificar.

Quando se ganha 10, gasta-se 5, os outros 5 guarde para se capitalizar ou para cobrir alguma eventualidade. Isso foi o que eu sempre fiz. E ainda digo uma coisa para vocês: nunca se confie em emprego, hoje você está empregado, amanhã pode não estar. Então não custa nada fazer sua reserva. Não custa nada ter uma economia, ou outros investimentos. Mesmo para quem tem poucos recursos, é primordial alimentar a ideia de ser muito econômico.

Tenho visto muitos jovens arrependidos pelas besteiras que fizeram. Foram perdendo as oportunidades, além da credibilidade, consequentemente tudo foi ficando mais escasso. Alguns ainda conseguem encontrar uma saída, outros não. Uma recomendação aos jovens: – Nunca perca seus créditos e nunca atropele ninguém, quem quer que seja, mesmo que seja seu concorrente. Deus é protetor, e o mal se paga com o bem.

A juventude empreendedora tem uma alta ansiedade por mudanças. Busca sempre se conectar com a velocidade vertiginosa da sociedade e tecnologia hodierna. Tudo isso é compreensível e se não houver exagero, é um ativo vital. Mas é necessário voltar a valorizar as pessoas e não os algoritmos das redes. As pessoas são potenciais clientes, então, quanto melhor você se aproximar das pessoas, respeitando sempre a liberdade delas, e for presente e conectado com outros aspectos que não só o desejo de tê-los como consumidores, mais sólida será sua prospecção e resultados no nicho que seu negócio se encontra.

Para eu postular isso, são muitos anos de experiência na escola da vida empreendedora, construindo laços comerciais, profissionais, pessoais, aprendendo e ensinando valores humanos, construindo pontes junto aos meus fornecedores, clientes, colaboradores e a sociedade.

Décadas zelando pelos bens mais preciosos que um verdadeiro empreendedor pode conquistar, a qualidade inegociável de seu produto, e fazendo valer a cada dia, o bom relacionamento com todos.

Nunca é demais lembrar que a ansiedade de quem está iniciando na vida empreendedora deve ser trabalhada, porque muita gente boa se frustra nos primeiros fracassos e desiste de seguir adiante. Todo mundo sabe que nada na vida cresce sem seguir um fluxo natural: primeiro você vai semear, vai cuidar do que foi semeado, vai adubar, vai hidratar, vai observar o desenvolvimento, vai criar estratégias de proteção contra o calor excessivo, contra a chuva excessiva, vai compreender que as raízes são fundamentais para o pleno desenvolvimento da planta com seu caule forte para que mais à frente a árvore seja frondosa e dê frutos de muita qualidade.

Um negócio, uma empresa, uma aposta empreendedora, um sonho a ser realizado não difere em nada desse ensinamento da própria natureza. A natureza empreende sempre, em um jogo de trabalho e equilíbrio perfeito; é claro que nós não somos perfeitos como a natureza é, mas é possível e vital prestar atenção em como ela pode nos ensinar muita coisa.

Nada sólido e duradouro se inicia de cima, sempre temos que construir um portentoso alicerce, e você vai crescendo aos poucos, aprendendo o máximo por onde passa, portanto, é de baixo para cima o fluxo natural do sucesso, começando como empregado, colaborador, vestindo a camisa da empresa em que você trabalha, assumindo a responsabilidade da sua posição lá, qualquer que seja, fazendo seu nome e construindo sua reputação desde muito cedo, sempre correto nos seus compromissos e honesto em sua conduta, aprendendo tudo o que for possível na sua posição temporária, e fazendo além dos seus deveres, porque aí você estará criando valor, principalmente para você mesmo.

Os jovens se formam e muitos já querem os melhores postos, com os melhores salários. Do ponto de vista pessoal, não acho errado, no entanto esse querer tem que estar associado a outros ativos, e esses ativos prescindem práticas e resultados, ou seja, muito treinamento prático e resultados condizentes com o cargo almejado, visto que diploma nenhum é mais importante do que bons resultados, ninguém será um bom colaborador só na goela ou porque tem um diploma na parede. Os diplomas e o estudos são importantíssimos, porém não podem garantir os melhores lugares só por eles mesmos; os melhores lugares no mundo empresarial, no mundo comercial, são dos que associam as coisas: talento, esforço, caráter, conhecimento, inteligência emocional, capacidade de internalização dos bons hábitos corporativos, muita motivação, resiliência, compromisso e a observação a um conselho de ouro; prestar total atenção no dinheiro que entra, na mesma proporção do dinheiro que sai.

Até repercuto em conversas que tenho com amigos que o meu pensamento sobre os novos empresários é que eles são realmente muito inteligentes, dominam a informática, estão antenadíssimos aos desdobramentos do mercado e da economia, conhecem sobre o mercado financeiro, já são até viajados, porém, pelo menos é o que tenho visto, há uma supervalorização da teoria em detrimento da prática, vivem pouco o conhecimento orgânico da empresa, de seu funcionamento mecânico e humano, de sua saúde comercial e de seus desafios diários e a longo prazo. Muitos chegam dentro da empresa e acreditam entusiasticamente que entendem tudo, porque estudaram muito nas escolas de administração. Menosprezam, por exemplo, muitos colaboradores que não tiveram oportunidade de estudar, mas que sabem muito mais, porque estão tarimbados na vida prática da empresa, tendo muita experiência no ramo em que estão, justamente por estarem no ramo há muitos anos seguidos.

Não foram poucas vezes que encontrei gente muito mais capacitada do ponto de vista prático do que outros profissionais que estudaram longos anos e não viveram um sistema misto de aprendizagem, visto que é fundamental estudar muito, mas ao mesmo tempo colocar a mão na massa em estágios prolongados, em serviços voluntários em incubadoras empresariais e principalmente, percebendo como caminham os mais experientes e que por isso mesmo estão surfando nas ondas do sucesso corporativo.

É preciso ainda, prestar muita atenção nas emoções sentidas no jogo diário do trabalho empreendedor, a altivez deve estar a serviço do trabalho colaborativo, cooperativo e de liderança com humildade, é preciso ser enérgico e disciplinado, mas jamais usar a liderança e o espaço de poder e decisão para suplantar a lógica, ou para fazer valer o falso orgulho de se achar sempre certo. Nada de querer ser o melhor e de querer sempre fazer do jeito próprio, quando se tem um time, quando se tem uma equipe, quando se tem colaboradores que podem, sim, colaborar na projeção e execução das demandas. Isso vale para quem já se estruturou e para quem está na primeira marcha, porque é uma questão de mentalidade, e se você não tem uma mentalidade forte e sofisticadamente simples no pouco, quando o muito chegar, não terá e isso pode dificultar sua permanência na crista da onda empreendedora.

A turma nova tem que se ligar, tem que compreender a importância da vivência prática e diária do seu negócio, é preciso saber fiscalizar para poder fiscalizar, e não esperar somente que o funcionário dê conta por si mesmo. Principalmente quando o negócio começar a crescer exponencialmente. Portanto, aos novatos que estão entrando no mercado, sejam muito criteriosos, muito práticos e muito trabalhadores.

É preciso sempre seguir sonhando e buscando realizar, amparado pelo compromisso com o que e onde se quer chegar, com classe, categoria e acreditando na beleza que é empreender. Menos mordomias e mais trabalho, menos reclamações e mais proatividade, menos teoria e mais perspectiva de controle racionalizado, menos imediatismo e mais trabalho a longo prazo.

Ou você administra bem o seu negócio eu você vai ficar administrando um caminhão pipa somente para apagar o fogo dos desequilíbrios, portanto, conheça profundamente o seu negócio em todos os aspectos, inclusive se informe sobre seus concorrentes, tendências e novos modelos e nichos de mercado que estiverem no radar de seu empreendimento.

Lembre sempre que a qualidade é essencial, a quantidade deve ser consequência e a sua motivação deve ser uma raiz profunda e não uma âncora, porque uma âncora engessa as possibilidades de ir além, de pensar por perspectivas plurais e enxergar muito mais que a superfície das ocasiões e projetos.

Outros dois conselhos que gosto muito e que faço questão de compartilhar aqui, vem do grande empreendedor canadense T. Harv Eker, que postula em seu best seller mundial “O Segredo da Mente Milionária” ensinamentos intelectuais para empreender, mas sobretudo conclama o indivíduo a ser um bom gestor emocional de si mesmo, como também saber ser resiliente nos desafios complexos da caminhada: “O segredo do sucesso não é tentar evitar os problemas, mas crescer pessoalmente para se tornar maior do que qualquer adversidade.” (...) “A sua motivação para enriquecer é crucial; se ela possui uma raiz negativa, como o medo, a raiva ou a necessidade de provar algo a si mesmo, o dinheiro nunca lhe trará felicidade.”

Além disso, é preciso sonhar sempre, projetar para o futuro sem tirar os pés do chão e do presente. O grande empreendedor brasileiro Jorge Paulo Lemann, proprietário de empresas de sucesso mundial afirma sempre: “Sonhar grande e sonhar pequeno dá o mesmo trabalho”. Por isso, é preciso acreditar no que se quer e pôr as mãos e o coração para trabalhar que os resultados aparecerão.

É preciso sempre olhar para frente e aproveitar os momentos de crise para aprender e crescer com elas, a crise não pode ser o ativo do desespero, mas a mola da mudança e da experiência. É imprescindível perceber para onde os ventos do mercado, das novas tendências, das novas demandas e das necessidades dos clientes estão indo.

É essencial também, equilibrar a vida profissional e a vida pessoal sem mesclá-las, mas garantindo uma harmonia entre ambas, para que nenhuma afete a outra negativamente; a influência aceitável entre ambas nas suas

interdependências é a que garanta tempo vital para o trabalho nos negócios e tempo essencial para viver e conviver em família também. Uma coisa não pode e nem deve anular a outra, por isso um time bom e confiável ajuda na administração do tempo, porque se você souber usar a sabedoria de compartilhar tarefas importantes na sua empresa e fiscalizar oportunamente o resultado adequado, sobrará um tempo extra para sua vida pessoal e seu autodesenvolvimento.

Existe ainda, um ensinamento simples, comum, essencial, mas que muitos que estão começando se esquecem. É necessário, vital e importante, lembrar que o empreendedor é um vendedor, portanto, deve ter em mente sempre essa condição e capacidade. Tem que saber vender muito bem o seu produto, a sua marca, a sua imagem, o seu estilo, o seu desconto, a sua promoção. A sua maneira de vender deve ser persuasiva e verdadeira, conectada com a realidade do produto e do serviço que você está vendendo, não deve jamais oferecer o que você não pode cumprir. E deve engajar nesse ritmo seus colaboradores, tornando-os obstinados em entregar o melhor resultado dentro das metas estabelecidas, para que as vendas estiquem sempre.

Acredite sempre nas boas pessoas para compor seu time, celebre com elas as pequenas e grandes vitórias sobriamente, mas celebre. O foco e o estímulo devem caminhar juntos no processo orgânico da empresa. Aliás, o estilo sóbrio e lógico deve preponderar, com pitadas de uma racionalizada afetividade, para alimentar a chama do compromisso diário e do ânimo necessário para seguir em frente.

A inspiração em modelagens e em empreendedores de sucesso também colabora, mas nunca, nunca, nunca mesmo tente ser alguém que você não é; seja você mesmo, adicionando na sua expertise, experiências positivas dos experientes, lembrando sempre que a transpiração deve superar sempre a inspiração, que trabalhar e enfrentar os desafios deve ser mais extraordinário do que somente projetar e idealizar.

Inove sempre, sem perder tudo de bom que a tradição pode ofertar; corra riscos, sempre escutando sua racionalidade e jamais a impulsividade; arriscar para ser bem-sucedido é uma boa balança, mas é um meio e não um fim, até porque a mentalidade a longo prazo deve estar na base de tudo no universo do empreendedorismo. E como o mercado e mundo atual é veloz e oscila sempre, é fundamental saber se adaptar aos novos cenários, perspectivas e demandas. E aprenda com os seus deslizes, com os seus erros. Se tentou e não conseguiu, não desanime nem se desespere. Mensure tudo, refaça o projeto, se for preciso mude a estratégia e siga em frente; os erros devem servir como oportunidade pedagógica para o fortalecimento da sua própria experiência empreendedora. Seja humilde, honesto, transparente e simplifique a sofisticação; a vontade de vencer, a vontade de crescer, a vontade de conquistar e ser um realizador deve estar atrelada a essas indispensáveis qualidades humanas.

Por fim, compreenda desde cedo, e isso posso falar com verdadeiro conhecimento de causa, o alto valor do tempo, dos afetos e da própria vida. Empreender não está em contraposição aos valores essenciais da nossa existência,

empreender não deve ser um muro para o crescimento moral do ser, para seu autodesenvolvimento, autoconhecimento, para sua construção de um caráter firme, corajoso e evolutivo.

Cultivar progresso material, progresso econômico, progresso em patrimônio, não impede o cultivo do progresso ético, do progresso em dignidade, do progresso do respeito ao próximo e do progresso da vivência com seus familiares e amigos, nem impede também a sua responsabilidade social perante a sociedade em que você vive. Você não vai salvar o mundo, é claro, nem é o seu papel, mas você pode e deve ser um empresário responsável, com senso comunitário, e, portanto, colaborar, na medida de suas forças, para a sociedade ser cada vez melhor, por meio da atividade que você empreende e pelo comportamento que você executa. Porque um bom empreendedor realmente sabe o preço das coisas, mas ele sabe muito mais e muito melhor o mais importante, que é o valor das coisas que faz e que ajuda a fazer. Viaje muito, descanse também, jamais desista e não tente comprar a felicidade, porque a felicidade vem como consequência do seu esforço, do seu sacrifício, da sua fé, do seu sonho e de muito trabalho.

“Durante muitas décadas, eu não tive tempo de estudar, de ler, de imergir no mundo intelectual da aprendizagem. Por muito tempo eu criei um bloqueio, uma espécie de ressentimento, uma repulsa, uma raiva em relação a leitura. Sentia tudo isso em decorrência da minha própria história de vida, já que fui impossibilitado, pelas circunstâncias existenciais austeras, de campear pelo mundo dos livros. Mas quando completei 60 anos de idade, comecei a ler, e foi uma das atividades mais transformadoras da minha vida. Transformei-me em um leitor assíduo e apaixonado por aprender sempre por meio dos livros, tanto que decidi contar minha própria história de vida, em um livro autobiográfico.

“Além do grande alento que sentia ao descansar nessa rocha no meu tempo de menino, e da paz consoladora sentida pelo alívio ao deitar sobre ela, mitigando por alguns minutos o fardo da lida diária. Pude ao longo da minha trajetória fazer uma associação despretensiosa sobre a minha luta e resultado de sucesso com o texto sagrado do evangelista Lucas, no capítulo 6, versículo 48: É semelhante ao homem que edificou uma casa, e cavou, e abriu bem fundo, e pôs os alicerces sobre a rocha; e, vindo a enchente, bateu com ímpeto a corrente naquela casa, e não a pôde abalar, porque estava fundada sobre a rocha.

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