Caderno de textos - E. E. Anticapitalista RUA SP

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Em tempos de crise, a juventude dá a letra: organizar a resistência! O movimento RUA – São Paulo organiza a E. E. Anticapitalista, Escola Estadual de formação de lutadores e lutadoras! “Na escola do mundo ao avesso o chumbo aprende a flutuar e a cortiça a afundar. As cobras aprendem a voar e as nuvens a se arrastar pelos caminhos. O mundo ao avesso gratifica o avesso: despreza a honestidade, castiga o trabalho, recompensa a falta de escrúpulos e alimenta o canibalismo. Seus mestres caluniam a natureza: a injustiça, dizem é lei natural. O mundo ao avesso nos adestra para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, nos reduz à solidão e nos consola com drogas químicas e amigos cibernéticos. Estamos condenados a morrer de fome, a morrer de medo ou a morrer de tédio, isso se uma bala perdida não abreviar nessa cabeça. O mundo ao avesso nos ensina a padecer a realidade ao invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo: assim pratica o crime, assim o recomenda. Em sua escola, escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem cara que não tenha sua coroa, nem desalento que não busque seu alento. Nem tampouco há escola que não encontre sua contraescola.” (Eduardo Galeano) 2

A escola deles nos ensina o cada um por si, o lucro como objetivo de vida e a vida como objeto do lucro. Eles nos formam como máquinas: nos ajustam para que sejamos mais uma engrenagem do sistema que nos oprime. A escola deles nos cala, nos prende e nos limita. O ensino deles nos nivela e uniformiza, eliminando nossas individualidades e tolhendo nossas potencialidades. Na nossa escola –a contraescola do capitalismo–, a gente ensina aprendendo, aprende ensinando, conhece ouvindo e ouve falando. A gente aprende a errar junto e crescer junto, a aprender com o crescimento do outro e crescer com nosso aprendizado. Na nossa escola, a gente ensina e aprende a ser humano. Ela só existe com empatia e solidariedade entre os nossos, a gente aprende a ser coletivo e, coletivamente, a ser. Na nossa escola, o conhecimento liberta, porque potencializa cada um para a transformação da sua realidade e das dos demais. Na E.E. Anticapitalista do RUA – SP, vamos ensinar e aprender a construir a resistência em tempos de crise do capitalismo neoliberal, em tempos de Temer e Trump, Alckmin e Dória, de PECs, MPs e arroucho. A juventude da a letra: só a luta muda a vida, e coletivamente nos formamos para fortalecer a resistência!


Sem formação, não se faz revolução!

Programação da E. E. Anticapitalista:

Este caderno de textos reúne uma bibliografia básica sobre os temas abordados na E. E. Anticapitalista do RUA. A leitura desses materiais de formação é sugerida para todas as pessoas que pretendem participar da escola de formação.

Sábado, 10 de dezembro

Este caderno contém os seguintes textos:

•15h - “Mulher, raça e classe“

• “O que é ser anticapitalista hoje”, RUA [p. 4]

•18h - Intervalo

• ”O único setor que realmente faz política hoje é a extrema-direita”, Vladimir Safatle [p. 8] • Trechos selecionados de “Mulher, raça e classe”, Angela Davis, com comentários de Luciana Araújo [p. 9] • “Seguir nas ruas sem temer! Organizar a resistência por direitos!”, RUA [p. 14] • “Preparam o maior plano de desemprego para a juventude”, Junia Gouvea [p. 16] • ”A esquerda brasileira saberá se renovar”, Guilherme Boulos [p. 17]

•10h - “O capital em crise no mundo e no Brasil“ •14h - Almoço

•18h30 - “Cinecampana: Babado Periférico“ Domingo, 11 de dezembro •10h - “Ocupa tudo! Os desafios da juventude que resiste“ •14h - Almoço •15h - “Oficinas temáticas: construindo a resistência“ •18h - Confraternização A E. E. Anticapitalista é um espaço aberto para militantes do RUA e para demais lutadoras e lutadores!

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O que é ser anticapitalista hoje Artigo publicado no caderno de textos do 2º Acampamento Nacional do RUA

Nosso cotidiano militante muitas vezes é envolto numa maré de tarefas, de demandas, de pressões, de correria. Não é fácil viver em um mundo profundamente injusto, sermos explorados em nosso trabalho, oprimidos em nosso cotidiano simplesmente por sermos quem somos… e ainda assim termos força, energia e disposição para lutarmos contra esse sistema que está e se manifesta em cada aspecto de nossas vidas! A cada pequena ou grande vitória ou avanço, cada momento em que nos aparece de relance uma esperança do mundo que queremos e precisamos construir, podemos sentir nossas vidas preenchidas de sentido. Nesses momentos, temos ainda mais certeza da opção que fizemos: lutaremos contra o capitalismo até o fim de nossas vidas! Mas nem só de vitórias, avanços e alegrias se faz a vida militante que escolhemos e para todos os outros momentos precisamos ter firmeza em nós mesmos, nos princípios e no programa que acumulamos ao longo da história . E é a isso que se dedica esse texto: recuperar os acúmulos que já construímos, nossas principais referências, nosso lugar na luta da juventude e da classe trabalhadora, para assim podermos contribuir cada vez mais e melhor em seus rumos. 1. O capitalismo: como funciona a sociedade? A vida em sociedade, independente de sua forma ou tamanho, é o principal elemento daquilo que chamamos humanidade. Já foram muitos os tipos de sociedade em que a humanidade viveu e construiu: sociedades tribais, indígenas, feudais… e o capitalismo é apenas um tipo específico de sociedade. Ou seja, a própria história demonstra que o capitalismo não tem nada de natural, nem pode durar para sempre. Sendo assim, como se organiza o capitalismo? O que o faz um tipo específico de sociedade? Em primeiro lugar, é preciso dizer que o capitalismo é um sistema econômico. Isso define como a sociedade vai produzir o que necessita e, portanto, o modo como essa sociedade vai se organizar. É a partir daí, do capitalismo como sistema econômico, que podemos entender todos os outros aspectos da sociedade capitalista. Do ponto de vista do capitalismo, a sociedade deve ser organizada de modo que a concorrência econômica entre indivíduos seja o “motor” para 4

a produção de tudo aquilo que precisamos. Para o capitalismo, essa concorrência é promovida através de um mecanismo simples, porém fundamental: aquele que “melhor produzir” aquilo que necessitamos é “premiado” com mais lucro do que os demais concorrentes. Dessa forma, o lucro incentivaria a continuidade e melhora da produção “para todos”. Apesar de parecer lógico e simples, sabemos que infelizmente a sociedade não é assim. Isso porque o capitalismo se baseia em um princípio que pra ele é sagrado e inquestionável: a propriedade privada. Sem indivíduos que sejam donos das atividades econômicas, seria impossível que alguém fosse “premiado” pelo mercado. Ao mesmo tempo, se todos fossem igualmente proprietários dessas atividades, do ponto de vista capitalista, ninguém poderia ser premiado como melhor concorrente. Ou seja: para que o capitalismo possa existir, é necessário que alguns tenham e que outros não tenham propriedades privadas. A desigualdade social, portanto, é uma necessidade do capitalismo. Se existir igualdade social, não existirá o capitalismo. Dito de maneira simples, é a partir da divisão entre os que têm e os que não têm propriedades privadas que o capitalismo organiza a sociedade. Os que têm propriedades, pela própria lógica da concorrência capitalista, tendem a ter cada vez mais. Os que não têm, por sua vez, tendem a ter cada vez menos. É dessa divisão que nascem as classes sociais no capitalismo. Existem algumas classes sociais no capitalismo, que se relacionam de maneira complexa. São latifundiários, camponeses, pequeno-burgueses… Dentre todas as classes sociais, no entanto, duas se destacam pelo seu peso social, político e econômico que é sempre crescente: a burguesia e o proletariado. A burguesia é a classe social que é proprietária de tudo aquilo que é necessário para a produção: terra, ferramentas, conhecimento, máquinas, matérias-primas, e, evidentemente, do dinheiro que será investido. Para assegurar seu domínio sobre a economia e o lucro, a burguesia também precisa controlar outros recursos e, assim, obtém cargos políticos, financia campanhas milionárias dos políticos, patrocina o desenvolvimento científico e tecnológico, obtém cargos acadêmicos e judiciais, controla os meios de comunicação, entre outros.


O proletariado, por sua vez, é a classe social dos que não possuem nada (ou muito pouco). O proletariado, por não ter os meios de produção, se vê obrigado a vender a única coisa que tem: sua força de trabalho, ou capacidade de trabalhar. Em troca do nosso trabalho, recebemos um pagamento em salário. O valor desse salário, no entanto, é menor do que o valor total daquilo que o nosso trabalho cria. Essa é, na verdade, a origem do lucro: a diferença entre o valor criado pela classe trabalhadora e o valor pago pela burguesia - e esse valor que é simplesmente “roubado” pela burguesia é o que chamamos de mais-valia. Dessa maneira, nós trabalhamos produzindo objetos ou serviços que pertencem unicamente aos proprietários. Trabalhando, nossa classe produz tudo, mas não possui nada, nem mesmo o fruto do próprio trabalho. Os burgueses, por sua vez, não produzem nada, mas possuem tudo. A classe trabalhadora e a burguesia, portanto, são diretamente opostas em modo de vida e em interesses para a sociedade. E a existência dessas diferenças, a relação entre essas classes, é a tão falada, decisiva e determinante luta de classes. Nessa convivência oposta, é impossível que os dois lados sejam beneficiados. É importante dizer que as classes sociais não estão separadas de maneira absoluta e permanente. Não existem somente dois níveis: os extremamente pobres e os extremamente ricos. É possível que você seja parte do proletariado, ainda que consiga ter acesso a condições de vida menos sofridas que outros (por ter o seu trabalho explorado, mas recebendo um salário maior). As classes estão divididas em diferentes e contínuos níveis de riqueza, que vão desde esses extremamente pobres até os extremamente ricos, passando por vários níveis intermediários. Não há muita diferença entre um nível e outro, mas a distância entre os ricos e os pobres é enorme, o que nos faz uma sociedade de imensa desigualdade social. Por vezes, é possível que sejamos questionados por pessoas que dizem a nós que as classes sociais não existem mais, que isto é “coisa do século passado” e, cada vez mais, as classes ficam mais complexas e sua divisão é difícil e, assim, devemos sempre responder que é inegável que existem aqueles que se beneficiam, gostam e estão no topo (a classe dominante), bem como existem aqueles que sofrem as consequências (as classes exploradas). O capitalismo significa exploração econômica, mas não só! Esse sistema tira das pessoas sua capacidade de fazer as coisas, sua liberdade de se movimentar, sua possibilidade de decidir de maneira livre como querem viver. Por isso

mesmo, o capitalismo enfrenta uma resistência constante, uma luta em que os oprimidos buscam fugir da dominação, da exploração e recuperar a capacidade de fazer as coisas, a liberdade de movimento, a possibilidade de decisão. Isso é a luta de classes! É o combate constante entre a dominação e a vontade de se livrar dela! Pode ser mais ou menos politizada, visível, consciente, mas está sempre presente! O capitalismo, portanto, é um regime social, ou seja, uma forma de organização da vida em sociedade. Ainda que façam a gente acreditar que “sempre foi assim”, para justificar que “sempre será” sob o capitalismo que viveremos, a humanidade já experimentou diferentes formas de vida em sociedade (algumas mais e outras menos igualitárias), tendo em vista que o capitalismo só existe há menos de 500 anos. Podemos considerar que um regime é dominante, quando existe um grupo de pessoas (no caso do capitalismo, é a burguesia) que tem domínio sobre todos os outros e de forma mais ou menos permanente. Ter o domínio significa ter a capacidade de conseguir a obediência de outras pessoas, mesmo que isso lhes cause sofrimentos ou prejuízos. Os dominados podem obedecer aos dominadores pela força (pela polícia e pelas leis), ainda que geralmente façam isso porque a cultura dentro da qual foram educados lhes ensinou que isso é o correto ou que essa é a única forma de viver. Essa “cultura da obediência” nos faz acreditar, por exemplo, que essa dominação imposta pelo capitalismo é necessária e até normal. Aprendemos essa cultura da obediência nas escolas, assistindo à televisão e até mesmo com os nossos pais ou na igreja. Existem várias formas de dominação, de acordo com as diferentes relações entre as pessoas. O capitalismo é, portanto, um sistema complexo que, para sobreviver, depende da exploração, opressão e dominação. Por isso, apesar de lutarmos cotidianamente por pequenas melhorias (um posto de saúde no bairro, um centro cultural no bairro, aumento das bolsas em uma universidade, políticas públicas de combate às opressões, aplicação de 10% do PIB em educação pública e por aí vai), sabemos que reformas no capitalismo são sempre insuficientes para nós! O capitalismo não pode “ser melhorado” até que “fique bom”. Somente a destruição do capitalismo e das opressões por completo pode garantir, de fato, a nossa dignidade, liberdade, igualdade e a felicidade! Sabemos que esta luta é difícil, não é imediata e, por isso, precisamos ter resistência, paciência histórica e permanecer sempre organizados/as coletivamente em movimento, pois o 5


capitalismo e a sua lógica de transformar tudo em mercadoria se estende a todos os aspectos da vida humana, em um motor permanente que só vai parar de funcionar quando a força anticapitalista do proletariado, do povo, das oprimidas for suficiente para impor uma nova ordem no mundo!

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2. Opressões e o capitalismo O capitalismo se baseia na exploração (do nosso trabalho) e na opressão (machismo, racismo e LGBTfobia e opressão de classe) para permanecer como o regime dominante. A opressão sobre as e os negros, as mulheres e as LGBTs fazem com que o nosso sofrimento, exploração se multipliquem em uma lógica perversa e profunda de desigualdade, que só pode ser verdadeiramente transformada a partir de uma mudança radical do sistema. Para entendermos como isso acontece, primeiro é necessário determinar o que é opressão. Opressão é uma relação de dominação de parte da sociedade por outra, para obter algum privilégio que pode ser econômico ou para impor determinada cultura ou prática. É importante destacar que: As opressões são anteriores ao capitalismo; Possuem diferentes formas; Fazem parte das sociedades de classe, porque criam modos de garantir a divisão em classes e a dominação; Ao longo da história, estavam quase sempre ligadas à apropriação da mão de obra e preservação da família patriarcal. Mesmo tendo surgido em um período anterior, o capitalismo se apropria das opressões e as potencializa para dividir a classe trabalhadora (colocando nós contra nós mesmos), acentuar o processo de exploração, manter a propriedade privada e obter lucro. Com isso, além da superexploração pelo trabalho, negros, indígenas, mulheres e LGBTs são dupla ou triplamente oprimidos. A burguesia, de forma bastante estratégica, faz com a sua ideologia seja assimilada e propagada pelas mídias (TV, rádio, internet), por algumas religiões, pela educação ou até mesmo através da repressão, fazendo com que as opressões raciais, de gênero e de sexualidade também aconteçam entre a própria classe trabalhadora, não permitindo com que ela consiga se organizar de forma coletiva e criando guetos ou divisões internas dentro da classe trabalhadora. O fim das opressões não é possível no capitalismo, porque ela depende da eliminação da sociedade de classes. Porém não é só o fim desse sistema que vai garantir o fim das opressões, para isso precisamos de uma transformação profunda não só econômica, mas também das

nossas relações sociais e culturais. O amanhã sem opressão e exploração começa, na prática, nas lutas de hoje! 3. O capitalismo hoje Embora tenha uma estrutura fixa, suas “regras básicas” de funcionamento (a divisão da sociedade em classes, a combinação entre exploração e opressão, a concorrência, a mais-valia…), o capitalismo nem sempre foi o mesmo ao longo da história. Ao longo do tempo, o capitalismo precisou se adaptar aos limites que ele mesmo cria para continuar seu desenvolvimento. Para entendermos o sistema que combatemos hoje, precisamos entender o que há de específico no capitalismo em que crescemos e vivemos. Desde mais ou menos os anos 1970, e com mais força a partir da década de 1980, o capitalismo passou por uma reorganização interna, transformando o mundo, a sociedade, a economia, a política e a cultura naquilo que conhecemos hoje. Desde esse período, vimos se desenvolvendo o neoliberalismo, que tem toda uma série de consequências importantes para entendermos, se queremos destruir esse sistema. Em linhas gerais, o neoliberalismo foi o programa capitalista que redefiniu as regras da competição burguesa e da exploração da classe trabalhadora. Naquele momento, a classe trabalhadora tinha várias vitórias acumuladas em diversos países do mundo. Os direitos de previdência, de condições de trabalho, níveis de salário eram, no geral, bastante avançados. Mas para o capitalismo essa situação se tornou insustentável, uma vez que os lucros precisavam continuar crescendo ainda mais. O programa capitalista para resolver seu próprio problema tinha, então, dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, era necessário “reequilibrar” a correlação de forças entre as classes para uma situação mais favorável à burguesia (essa é, inclusive, uma saída clássica do capitalismo para suas crises). Desde então, foram uma série de derrotas para a classe trabalhadora do ponto de vista de seus direitos e condições de vida. A privatização dos serviços públicos (educação, saúde, previdência…) se tornou regra na maioria dos países. Agora, a classe trabalhadora teria que pagar para ter acesso ao que antes eram direitos, e a burguesia teria com isso também um novo mercado para explorar. Com os explorados e oprimidos tendo que pagar pelas suas necessidades mais básicas, fica mais fácil para a burguesia forçar que o proletariado aceite salários mais baixos . Pagando salários mais baixos, os gastos de produção diminuem e o lucro aumenta para a burguesia.


O segundo ponto central do programa neoliberal também tem a ver com o barateamento dos custos. Era necessário buscar as “melhores condições” para a produção de mercadorias, e o capitalismo conseguiu isso levando sua produção para os países que oferecessem leis trabalhistas mais favoráveis para a burguesia – isto é, basicamente menores salários, menos direitos para a classe trabalhadora e menos impostos. Essa é a origem da chamada globalização neoliberal: abrir novas fronteiras (tanto geográficas quanto em coisas a serem transformadas em mercadoria) para o desenvolvimento capitalista, piorando muito as condições de vida do proletariado mundialmente. Para que essa política econômica tivesse sucesso, foi necessária também uma reorganização do papel de cada país ou região na economia capitalista mundial, ou seja, uma reorganização da divisão internacional do trabalho. Para citar apenas dois exemplos significativos, a China e o Sudeste da Ásia se transformaram no maior centro de produção industrial do mundo, papel que antes era ocupado pelos EUA, URSS e Europa. O Brasil, que tinha a maior parte de sua economia baseada na indústria, se transformou num dos mais importantes produtores agrícolas primários (principalmente soja e carne) do mundo. Daí o peso que o agronegócio passa a ter no Brasil e a dependência econômica do Brasil em relação à China, principal compradora do que é produzido nos latifúndios brasileiros. Também nessa mesma lógica, a produção de mercadorias e o trabalho passaram por uma transformação que se expressa em todos os aspectos das nossas vidas sob o capitalismo. Para o capitalismo, se provou mais barato fragmentar a produção. Isso significa que, se antes era mais lucrativo a organização do trabalho em grandes e complexas fábricas, agora era mais interessante para a burguesia se as partes ou etapas da produção fossem divididas conforme as condições de cada local. Exemplificando: se antes uma montadora de carros fabricava todas as peças de um carro, com a mercadoria sendo inteiramente produzida em apenas um local com milhares de trabalhadores empregados, hoje o pneu é produzido em um lugar, o vidro em outro, o motor em outro. Isso aprofunda o que chamamos de alienação. A alienação tem origem no fato de os trabalhadores não serem donos daquilo que produzem e, ao mesmo tempo, serem dominados pelas mercadorias (afinal, para sobreviver no capitalismo é preciso consumir mercadorias!). Assim, as mercadorias e o capitalismo impedem a classe trabalhadora de compreender o mundo em que vivem e o que fazem de suas vidas, passando a

acreditar facilmente naquilo que diz a burguesia sobre a sociedade - que o capitalismo é natural, que “a vida é assim mesmo”, que “lutar não vale a pena”, etc. Ao fragmentar o trabalho, o capitalismo fragmenta mais ainda as possibilidades dos trabalhadores entenderem a sociedade e a si próprios. A fragmentação e a necessidade de novos mercados, por sua vez, dão origem a uma característica importantíssima do capitalismo atual: a pós-modernidade. Conforme o capitalismo vai transformando tudo o que existe em mercadoria (a cultura, a saúde, a natureza, nossos corpos), essas mercadorias vão cada vez mais se transformando na única forma de nos relacionarmos com o mundo. Mais do que isso, as mercadorias que consumimos passam cada vez mais a definir quem somos – as músicas que ouvimos, as roupas que vestimos, os rolês que fazemos. Mas são necessários novos mercados, e por isso o capitalismo divide cada vez mais a classe trabalhadora em nichos de mercado. A própria classe trabalhadora se fragmenta cada vez mais em grupos consumidores, definidos pelas mercadorias que consumimos e pelos valores culturais e morais que essas mercadorias “dão” pra nós. Nesse cenário em que querem dizer que “somos” o que “temos”, aprofunda-se a noção de que “classes sociais não existem”. Se as ideias e valores que defendemos acabam por ter origem nas mercadorias que consumimos, e se essas mercadorias dividem a classe trabalhadora em vários grupos consumidores, a pós-modernidade é uma cortina de fumaça sobre tudo aquilo que se refere ao funcionamento e organização do mundo – principalmente a percepção de que a sociedade é dividida em classes opostas e que existe algo como luta de classes. O critério de classe (sabemos disso quando nos perguntamos a que classe interessa tal fato ou ação) na definição de valores e sobre o certo e o errado fica cada vez menos visível, e tudo, inclusive a política, fica reduzido a uma simples “questão de opinião”. O capitalismo é, afinal, um sistema de dominação, exploração e opressão muito mais inteligente do que parece à primeira vista! Por isso, é sempre muito importante afirmar o tempo todo em nossas reflexões e nas nossas intervenções políticas o recorte de classe necessário para combater o capitalismo. Contra a fragmentação capitalista, devemos batalhar a partir de um critério de classe sempre: os interesses da classe trabalhadora são os nossos interesses! Se a burguesia nos divide em nichos de mercado, devemos oferecer sempre a perspectiva do todo que é a classe trabalhadora! 7


O único setor que realmente faz política hoje é a extrema-direita Coluna de Vladimir Safatle na “Folha de São Paulo” Publicada em 25 de novembro de 2016 Disponível em: folha.com/no1835181

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A democracia liberal como a conhecemos é uma invenção que se consolidou a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Ela respondia a um sistema de acordos e equilíbrios entre setores sociais antagônicos. Sua base de sobrevivência foi a capacidade em orientar a política em direção a uma espécie de “luta pela conquista do centro”. Assim, por exemplo, os partidos de esquerda paulatinamente moderaram seus horizontes de ruptura institucional para acabar por serem gestores da social-democracia e do dito Estado de bem-estar social europeu. Mesmo os partidos comunistas da Europa, fortes até o final dos anos 1970, operaram no interior dessa lógica. Da mesma forma, os partidos de direita foram levados a aceitar a conservação de uma espécie de mínimo social a ser respeitado, mesmo agindo em vistas à liberalização da economia. O primeiro tremor neste pacto se deu com a leva neoliberal de Thatcher e Reagan. Nos EUA, o pacto criado pelo New Deal de Franklin Roosevelt foi desmontado por meio de uma política de retração do Estado e redução de impostos para os mais ricos. O mesmo foi feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta incessante contra os sindicatos e as categorias profissionais. No entanto, os anos 1990 pareciam inicialmente implicar certa retração do horizonte neoliberal com a ascensão do que se chamou à época de “onda rosa”. Mas o novo trabalhismo de Tony Blair, o novo centro de Gerhard Schröder e a volta dos democratas com Bill Clinton demonstraram outra coisa. Na verdade, tratava-se de um alarme falso. O que se viu foi apenas a consolidação da falência da social-democracia, seu enterro pelos próprios atores que, de certa forma, deveriam representá-la. A França de Lionel Jospin, com alguns tons de rosa mais vermelhos, foi apenas um ponto fora da curva, já que foi lá, em 1995, que ocorreu a última grande greve geral de defesa do Estado de bem-estar. Essa conversão da “esquerda” à gestão de um neoliberalismo “com o rosto mais humano” era irreversível. Isso ficou evidente com a crise de 2008 e com a ausência de alternativas a um modelo econômico falimentar. Todos os atores políticos mundiais foram forçados a aplicar a mesma política de “austeridade”, com suas contenções de gastos públicos, seu desmonte de mecanismos de

distribuição de renda e elevação dos interesses do sistema financeiro mundial a dogma inquestionável. Nesse processo, os partidos de esquerda foram simplesmente dizimados, já que perderam de vez sua função de contraponto. O resultado disso estamos vendo hoje. A ascensão de aberrações como Donald Trump, a protofascista Marine Le Pen, na França (em primeiro lugar nas pesquisas), e o Alternativa para a Alemanha, além da vitória do “brexit”, são partes de um mesmo fenômeno. Essas escolhas expressam a ausência de escolha dentro da democracia liberal. Elas demonstram, na verdade, que a democracia liberal acabou, que seu acordo não existe mais. A crise econômica destruiu a democracia liberal e levou populações a irem em direção ao extremo em vez de aceitarem as normas e a dogmática econômica que vigoravam no centro. Há uma certa ironia macabra nessa situação. Durante anos, a imprensa mundial tentou nos fazer acreditar que EUA e Inglaterra eram dois países que haviam deixado a crise econômica para trás com suas políticas de austeridade. No entanto, não é assim que pensam os próprios cidadãos desses países. Na verdade, eles escolheram discursos que insistiam na pauperização, na insegurança econômica, na precarização e no fim da globalização. Daqui em diante, esta será a dinâmica política. Como não há mais acordo possível de conservação de conquistas sociais elementares, a política irá para os extremos. Só que, neste momento, a “esquerda” não consegue mais organizar um discurso de alternativa econômica. Em países como França e Alemanha (já que o SPD governa com a CDU há anos), foi ela que levou a cabo os choques de austeridade. Nessa lógica, o único setor que realmente faz política hoje é a extrema-direita com sua mistura de discursos de proteção social e proteção paranoica contra tudo o que é tachado como “corpo estranho” no interior de um delírio identitário de vida social. Por isso, ela cresce vertiginosamente. Qualquer um que tentar, mais uma vez, a lógica fracassada de conquista do centro tem seu lugar garantido no balcão de devoluções dos equívocos históricos. Os tempos são outros.


Mulher, raça e classe

Trechos do livro de Angela Davis, com comentários de Luciana Araújo, militante da Insurgência Livro completo disponível em: goo.gl/ejzYKn A atualidade de “Mulheres, Raça e Classe” Publicado originalmente em 1981, o livro “Mulheres, raça e classe”, de Angela Davis, segue guardando uma atualidade impressionante para os debates da esquerda revolucionária – e em particular para o feminismo revolucionário. Editado no Brasil neste ano pela Boitempo Editorial, a obra dedica-se a resgatar historicamente a centralidade política da articulação indissociável das categorias ‘gênero’, ‘raça’ e ‘classe’ para o processo revolucionário. Esse resumo apresenta as análises consideradas mais importantes e atuais de Angela e busca compará-lo ao processo de formação sócio-histórica e econômica do Brasil. Gênero, raça, estereótipos e exploração Partindo do destaque para a necessidade de superação dos estereótipos sociais sobre as mulheres negras que ainda hoje, e não só nos EUA, são marcas das sociedades racistas, Angela lembra que a condição de mulher negra foi historicamente analisada pelos recortes da “promiscuidade versus casamento e sexo forçado versus sexo voluntário com homens brancos” ou pela tese do “matriarcado negro” (segundo historiadores como Daniel Moynihan, por exemplo, citado pela autora, a origem da opressão sobre o povo negro estaria numa estrutura matriarcal que retirava a “autoridade” do homem negro sobre a comunidade, e não na discriminação racial). Angela desmonta essa ‘tese’ resgatando que “proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que as irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros aspectos de sua existência ofuscados pelo trabalho compulsório. Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel como trabalhadoras.” (p.17) Mas Angela resgata também que a condição de gênero foi desde sempre um instrumento de manutenção dos lucros, especialmente pela via da reprodução forçada de mão de obra (e traz para o centro do debate o gênero como mecanismo concreto de exploração, evidenciando

como a opressão serve à exploração). “Quando era lucrativo explora-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas” (p. 19). E “enquanto as punições mais violentas impostas aos homens consistiam em açoitamentos e mutilações, as mulheres [negras] eram açoitadas, mutiladas e também estupradas. O estupro, na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprietário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na condição de trabalhadoras. Os abusos especialmente infligidos a elas facilitavam a cruel exploração econômica de seu trabalho” (p. 20) Ângela lembra como a manipulação da opressão de gênero e racial contra as mulheres negras como mecanismo de exploração é a base para a subjugação de toda a classe trabalhadora (especialmente das mulheres não negras). Para isso, resgata o uso de mulheres escravas para substituir animais foi usado na Inglaterra também contra mulheres brancas, mencionando passagem do volume 1 dO Capital: “Na Inglaterra, ocasionalmente ainda se utilizam, em vez de cavalo a, mulheres para puxar barcos nos canais, porque o trabalho exigido para a produção de máquinas e alimentação/manutenção de cavalos é uma quantidade matematicamente dada, ao passo que o exigido para a manutenção das mulheres da população excedente está abaixo de qualquer cálculo” (p. 23). E destaca que estereotipada “força da mulher negra” é uma leitura deturpada das estratégias de sobrevivência adquiridas no período da escravidão. Que foi nesse processo que fomos adquirindo um modo de enfrentar a vida e “características consideradas tabus pela ideologia da feminilidade do século XIX” (p. 24) A necessidade de “ter consciência de seu enorme poder – sua capacidade de produzir e criar” foi o que fez “essas mulheres terem aprendido a extrair das circunstâncias opressoras de sua vida a força necessária para resistir à desumanização diária da escravidão. A consciência que tinham de sua capacidade ilimitada para o trabalho pesado pode ter dado a elas confiança em sua habilidade para lutar por si mesmas, sua família e seu povo” (p.24). 9


Essa realidade possibilitou um legado de “maior autossuficiência, resistência e insistência na igualdade sexual” quando, na transição à industrialização, “a experiência do trabalho produtivo foi roubada de muitas mulheres brancas” (p.24), quando se gestou a ideologia da feminilidade imposta às mulheres não negras para aprisiona-las ao espaço privado e potencializar os privilégios masculinos usando ao mesmo tempo a força de trabalho e o exército de reserva negro como mecanismo de contenção de salários e condições de vida para o conjunto da classe. Ao mesmo tempo em que se impunha aos homens, brancos e negros e com especificidades pautadas pela dinâmica de exploração associada à condição racial, masculinidades calcadas na violência como método de relações interpessoais e ao mesmo violenta para com os homens ao impor comportamentos que são socialmente naturalizados. No caso das mulheres negras, Ângela ressalta que o mito do matriarcado negro também tem como origem a ocultação dos impactos concretos do modo de produção escravista sobre os indivíduos. “Os proprietários de escravos definiam a família negra: uma estrutura biológica matrilocal”, omitindo dos registros de nascimentos os nomes dos pais para perpetuar a condição de escravos dos filhos de escravas. No entanto, “a maioria das análises históricas e sociológicas sobre a família negra durante a escravidão presume simplesmente que a recusa do senhor de reconhecer a paternidade entre seus escravos se converteu de forma direta em um arranjo familiar matriarcal criado pela própria população escravizada” (p. 25) Em contraposição a essa ‘tese’ a autora resgata estudos como o de Herbert Gutman – A família negra na escravidão e na liberdade – que mostram a resistência dos laços familiares à espoliação escravocrata. Outra coisa é que as condições objetivas permitiram uma maior igualdade sexual para as mulheres negras em relação às brancas naquele momento histórico, sancionando inclusive relações sexuais antes do casamento. Até mesmo como mecanismo de luta para emancipação dos seus filhos – assim como o aborto foi também mecanismo de resistência à perpetuação da condição de escravizados, muito mais do que uma opção por “autonomia individual” no sentido liberal do termo. Raça e luta de classes: elementos comparativo entre o processo histórico nos EUA e no Brasil Angela destaca também como as mulheres negras escravizadas nos EUA tiveram importante papel nos processos de rebelião contra o escra10

vismo. “Se as mulheres negras sustentavam o terrível fardo da igualdade em meio à opressão, se gozavam de igualdade com seus companheiros no ambiente doméstico, por outro lado elas também afirmavam sua igualdade de modo combativo, desafiando a desumana instituição da escravidão. Resistiam ao assédio sexual dos homens brancos, defendiam sua família e participavam de paralisações e rebeliões” (p.31). Citando Herbert Aptheker, ela resgata que diante das condições de vida “não era de se estranhar que a mulher negra frequentemente apressasse as conspirações de escravos”. Como Harriet Tubman, única mulher a liderar tropas em batalhas nos EUA até a década de 1980 pelo menos, que libertou mais de 300 escravizados e serviu no exército do Norte na Guerra de Secessão. O mesmo se deu no Brasil, com mulheres liderando sublevações e a organização do povo negro nos quilombos. Como Acotirene, Aqualtune e Dandara em Palmares; Tereza de Benguela no Quariterê (MS), Preta Zeferina no Quilombo do Urubu (BA); Felipa Aranha no Grão Pará e atual Tocantins; Mãe Domingas no Quilombo Tapagem (PA); Zacinda Gambá (ES); Francisca e Medicha Ferreira no quilombo Conceição das Crioulas (PE); e Luisa Mahin, que teve papel destacado na revolta dos Malês e na Sabinada1. Angela mostra também como a participação negra em rebeliões foi sendo cerceada por adaptações legislativas. “Depois da rebelião de Nat Turner, em 1831, a legislação que proibia o acesso da população escrava à educação recrudesceu em todo o Sul” (p.113). Este é outro elemento constitutivo norteamericano copiado na gênese do Estado capitalista no Brasil. O livro Revoltas, Motins, Revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX — coletânea de artigos organizada por Mônica Duarte Dantas – traz farto material coletado em anais do Congresso Nacional e de assembleias legislativas, relatórios de inquéritos policiais e processos judiciais do período imperial para mostrar como o Estado brasileiro foi se reestruturando para combater qualquer ação organizada das camadas pobres da população — especialmente os negros, que no período analisado (1817 a 1838) ainda viviam sob a égide do regime escravista. “Enquanto os movimentos ocorridos nas décadas de 1830 e 1840 foram considerados rebeliões, e seus participantes, rebeldes, aqueles acontecidos na segunda metade do século XIX foram classificados como crimes de “sedição”, “resistência”, “ajuntamento ilícito” ou “motim”. Ainda que a repressão contra os vários movimentos tratados no livro tenha variado imensa-


mente, de acordo com o lugar ou a conjuntura, essa transformação aponta para uma mudança política inerente à própria construção e consolidação do Estado e, mais ainda, para uma mudança na forma de atuação e nas expectativas das camadas livres pobres e libertas do Império” (p. ??). Já no primeiro capítulo Mônica demonstra como elementos do plano de código penal elaborado por Edward Livingston para o Estado da Luisiania (EUA) foram incorporados pela elite escravocrata brasileira ao Código Criminal do Império, de 1830. Mas antes mesmo da vigência do Código, na repressão à Revolução Pernambucana de 1817, tal concepção, baseada na cultura do medo e da defesa da propriedade como fim primeiro e último do Estado, se verificou. Todos os que tencionassem cometer o crime de “quebrar a ordem étnica e social, de dar um conteúdo de possível e efetiva igualdade ao igualitarismo teórico da República quando estabeleceu a abolição de todas as distinções honoríficas, dos privilégios, dos tratamentos distintivos entre os indivíduos e tudo buscou unificar no comum tratamento de patriota e no democrático vós, no lugar das Vossas Mercês e Excelências”. A persistência de relações escravistas no capitalismo das sociedades erigidas sobre a escravidão: gênese do Estado penal Angela ressalta também como o capitalismo industrial se aproveitou dos códigos sociais estabelecidos na escravidão para aumentar suas taxas de lucro pela via do encarceramento massivo. A 13ª emenda à constituição norte-americana, que em 1864 aboliu a escravidão, deixou a brecha fundamental de permiti-la como punição a crimes (trabalho forçado no sistema carcerário). Numa citação extraída de A reconstrução negra da América, de W.B. Du Bois, a autora destaca que “Desde 1876, pessoas negras têm sido detidas em resposta à menor provocação e sentenciadas a longas penas ou multas, sendo obrigadas a trabalhar para pagá-las”. E continua, destacando que “essa deturpação do sistema de justiça criminal era opressiva para toda a população saída da escravidão. Mas as mulheres eram especialmente suscetíveis aos ataques brutais do sistema judiciário”, incluindo prisões por resistência a estupros (p.97). Feminismo branco e racismo: um debate necessário No livro, Angela traça ainda todo o panorama do distanciamento de feministas brancas norte-americanas – incluindo históricas abolicionistas – da luta pelos direitos do povo negro pós-

-Guerra de Secessão. Ao fazer esse detalhado relato, evidencia como a fragmentação das lutas e a reprodução do racismo são em si entraves ao avanço emancipatório. O trabalho doméstico Ela ressalta como as mulheres brancas exercem um tipo de privilégio social sobre as negras que muitas vezes é invisibilizado até os dias de hoje inclusive pelas feministas. “Nos programas feministas ‘de classe média’ do passado e do presente a conveniente omissão dos problemas dessas trabalhadoras em geral se mostrava uma justificativa velada – ao menos por parte das mulheres mais abastadas – para a exploração de suas próprias empregadas” (p.104). E essa concepção foi trazida para a pauta de reivindicações do movimento feminista branco liberal por essa cegueira racista – com a reivindicação da remuneração do trabalho doméstico. “A ideia de um pagamento para as donas de casa provavelmente soaria bastante atraente a muitas mulheres. Mas é possível que a atração durasse pouco. Pois quantas dessas mulheres teriam o desejo real de se reconciliar com as incumbências domésticas debilitantes e intermináveis em troca de um salário? Poderia um salário alterar o fato de que, como disse Lenin, ‘as insignificantes e mesquinhas tarefas domésticas esmagam, estrangulam, embrutecem e humilham [a mulher], aprisionam-na à cozinha e ao quarto das crianças e desperdiçam seu trabalho em uma lida brutalmente improdutiva, insignificante, exasperante, embrutecedora e esmagadora?’ Seria como se os pagamentos feitos pelo governo às donas de casa acabassem por legitimar ainda mais essa escravidão doméstica” (p.238) A política liberal de criminalização Da mesma forma, a autora critica a forma como o movimento feminista branco norte-americano incorporou o mito do estuprador negro – retratado de forma caricata mas emblemática do senso comum do país no clássico “Birth of Nation”, de D. W. Griffith (1915) – desconsiderando que a violência sexual é “um dos sintomas mais evidentes da desintegração social” e “uma das marcantes disfunções da sociedade capitalista atual”. O feminismo liberal até hoje bebe nesta fonte, desconsiderando que o seu reverso é o senso comum da “disponibilidade sexual da mulher negra”, estimulando os estupros, além de uma justificativa racista para seguir negando direitos aos homens negros, encarcerando-os e os matando. 11


A questão do aborto e dos direitos sexuais e reprodutivos Da mesma forma, no feminismo branco, a luta pelo direito ao aborto muitas vezes não só invisibilizou as práticas abortivas adotadas por mulheres negras escravizadas, como fechou os olhos e muitas vezes defendeu a esterilização involuntária – largamente utilizada nos EUA para conter o avanço populacional negro [assim como no Brasil e em outros países]. Além de abstrair que “quando números tão grandes de mulheres negras e latinas recorrem a abortos, as histórias que relatam não são tanto sobre o desejo de ficar livres da gravidez, mas sobre as condições sociais miseráveis que as levam a desistir de trazer novas vidas ao mundo” (p.207). E ressalta a urgência de uma campanha efetiva “em defesa dos direitos reprodutivos para todas as mulheres – em especial para aquelas que são, com frequência, obrigadas por suas circunstâncias econômicas a abdicar do direito à reprodução em si” (p. 209). “O potencial progressista do movimento foi roubado quando passou a defender o não direito individual das pessoas de minorias étnicas ao controle da natalidade, e sim a estratégia racista de controle populacional. A campanha pelo controle da natalidade [desenvolvida em 1939] foi usada para cumprir uma função essencial na execução da política populacional racista e imperialista do governo dos Estados Unidos” (p.217). Esse resgate Angela faz para lembrar que “no fim dos anos 1970 a prática abusiva da esterilização pode ter sido maior do que nunca”. No Brasil da ditadura empresarial militar essa mesma política foi adotada em larga escala no mesmo período.

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A luta sufragista Quando tem início a campanha sufragista nos EUA, mesmo mulheres brancas que haviam atuado no movimento abolicionista foram paulatinamente abandonando as irmãs ao se contraporem ao voto negro, sob o argumento de que essa conquista potencializaria a supremacia masculina. “As líderes do movimento pelos direitos das mulheres do período pós-guerra tendiam a ver o voto como um fim em si mesmo. Já em 1866 parecia que qualquer pessoa que defendesse a causa do sufrágio feminino, por mais racistas que fossem seus motivos, era uma aliada valiosa para a campanha das mulheres” (p.88) “Na última década do século XIX a campanha pelo sufrágio feminino começou a aceitar definitivamente o abraço fatal da supremacia bran-

ca” (p. 121). Em 1893, a Associação Nacional Estadunidense pelo Sufrágio Feminino (Nawsa) aprovou uma resolução que afirmava: “Que, sem expressar qualquer opinião sobre as qualificações apropriadas para votar, chamamos a atenção para o fato significativo de que em cada estado há mais mulheres que sabem ler e escrever do que o número total de eleitores masculinos analfabetos; mais mulheres brancas sabem ler e escrever do que a totalidade de eleitores negros; mais mulheres estadunidenses sabem ler e escrever do que a totalidade dos eleitores estrangeiros; de modo que a concessão do direito de voto a essas mulheres resolveria a vergonhosa questão de termos um governo baseado no analfabetismo, seja ele produto nacional ou estrangeiro”. Ao que Angela ressalta que “as sufragistas bem que poderiam ter anunciado que se o poder de voto fosse concedido a elas, mulheres brancas da classe média e da burguesia, rapidamente subjugariam os três principais elementos da classe trabalhadora dos EUA: a população negra, os imigrantes e a mão de obra branca nacional sem instrução.” (p.122) Nesse mesmo período, a Associação passa a apoiar o imperialismo norte-americano por meio de formulações de propostas de sufrágio feminino “para as nossas possessões” (leia-se territórios invadidos e colonizados). Em 1895 em outra convenção da Nawsa, houve exortações ao Sul “a adotar o sufrágio feminino como uma solução ao problema do negro”, e foi corrente o uso do argumento de um dos fundadores do Partido Republicano, o abolicionista Henry Blackwell, quando da aprovação da 14ª (cidadania por nascimento em território norteamericano) e 15ª (direito de voto) emendas à constituição norte-americana. À época (1868/1870), Blackwell defendeu que o direito de voto fosse concedido às mulheres, alfabetizadas, para “contrabalançar” o iminente poder político da população negra, que se equiparava ao contingente populacional feminino (cerca de 4 milhões de indivíduos em cada grupo). “Tendo aberto, mais do que nunca, suas portas para a ideologia racista predominante, o movimento sufragista optou por um caminho cheio de obstáculos que colocou seu próprio objetivo – o voto feminino – sob contínua ameaça” (p.127). Só em 1920 as mulheres conquistaram o direito ao voto nos EUA – e ainda assim ele foi em muitos estados negados às mulheres negras no Sul do país, seja pelas ações violentas da Ku Klux Klan seja porque os tribunais eleitorais rejeitavam os votos dessas mulheres.


Mais um paralelo importante com o Brasil O Brasil adotou com a Lei Saraiva, de 1881, a mesma forma legislativa de segregação, excluindo do colégio eleitoral os analfabetos, nos estertores do regime escravocrata (política que perdurou até a Constituição de 1988). Antes, em 1871 havia sido promulgada a Lei do Ventre Livre, que libertava os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir de 28 de setembro daquele ano, mas os mantinha sob tutela dos donos até os 21 anos. E em 1885, com a Lei dos Sexagenários, foram libertos os escravizados maiores de 65 anos. Essas duas últimas legislações são importantes conquistas fruto das rebeliões internas e da pressão internacional, especialmente inglesa, pelo fim do escravismo. Mas a elite política manobrou de todas as formas para excluir os negros libertos da cidadania, especialmente desobrigando o Estado de garantir aos liberados do jugo escravista seus direitos sob o argumento de que passaram a ser “livres”. No caso da Lei Saraiva-Cotegipe/sexagenários além do fato de poucos negros chegarem aos 65 anos, sua libertação trazia a contradição de significar também ficar à própria sorte sem que o senhor tivesse sequer que alimentá-los quando já estavam doentes e com baixo rendimento para o trabalho forçado. Toda a costura do livro mostra como os reflexos da ideologia burguesa se entranharam no feminismo branco e o levou a amarras em relação a seus próprios objetivos. Tecendo a crítica a lideranças que colocavam a opressão sexista acima das desigualdades de classe e do racismo, Angela ressalta que “foi provavelmente devido aos poderes enganadores da ideologia que ela não conseguiu perceber que tanto as mulheres da classe trabalhadora quanto as mulheres negras estavam fundamentalmente unidas a seus companheiros pela exploração de classe e pela opressão racista, que não faziam discriminação de sexo. Embora o comportamento sexista de seus companheiros precisasse, sem dúvida, ser contestado, o inimigo real – o inimigo comum – era o patrão, o capitalista ou quem quer que fosse responsável pelos salários miseráveis, pelas insuportáveis condições de trabalho e pela discriminação racista e sexista no trabalho.” (p. 148). A necessária reflexão dos socialistas A autora também destaca, no capítulo 10, o papel das mulheres comunistas, apontando que o Partido Socialista nos EUA foi o único defensor do sufrágio feminino no interior da classe trabalhadora, quebrando o monopólio das sufra-

gistas de classe média. Mas ressalta que este não adotou como política complementar a luta direta contra o racismo. Encerramos esse resumo com a reflexão formulada por Angela em 1997 em uma conferência realizada no Maranhão. “As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.”2 Ou, como menciona Djamila Ribeiro no prefácio de ‘Mulheres, Raça e Classe’, é necessário pensar a necessária centralidade da articulação das categorias que organizam as opressões e a superexploração da classe trabalhadora brasileira majoritariamente negra, feminina e com imensa composição LGBT para buscar superar “o desafio de conceber ações capazes de desatrelar valores democráticos de valores capitalistas”. E, ainda para reforçar, como Angela resgata dO Capital, “o trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro”. E nós negras e negros continuamos sendo marcados a novos ferros (agora especialmente os do encarceramento e do genocídio) todos os dias.

Para informações breves sobre as lideranças femininas negras nas lutas antiescravistas, indicamos consultar a cartilha “Somos todas rainhas”, da Associação Frida Kahlo, disponível em http://www.afrika.org.br/publicacoes/somos-todas-rainha-1ed.pdf 1

As mulheres negras na construção de uma nova utopia, disponível em: http://www.geledes. org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/#gs.LLIG_T0 13 2


Seguir nas ruas sem temer! Organizar a resistência por direitos! Resolução do RUA sobre o impeachment de Dilma Rousseff Publicada em 31 de agosto de 2016 Disponível em: goo.gl/jZGQRT Hoje se encerrou a longa novela do impeachment. O período de colaboração de classes no Brasil se interrompeu pela força de um golpe parlamentar. Não temos motivos para comemorar: quem encerrou os 13 anos de tragédia da colaboração de classes foram setores da direita mais reacionária, e substituem o governo petista por um de violenta ofensiva contra os explorados e oprimidos. Enfrentaremos agora ataques sem precedentes para nossa geração. Michel Temer, presidente ilegítimo, vem mostrando a que veio desde a montagem de seu governo. O ministro da justiça defende que o país precisa de “mais armas e menos pesquisa”; o ministro da educação quer impor uma mordaça sobre as escolas, por um regime de pensamento único. Já foram cortadas parcelas enormes do investimento público em educação, como nas bolsas de pesquisa e nas verbas para as universidades, além de estar prestes a ser autorizada, pela PEC 395 de 2014, a cobrança de mensalidades nas pós-graduações lato sensu em universidades públicas. Por mais que, a bem da verdade, uma parte das políticas de Temer dê continuidade ao que vinha fazendo o governo Dilma, é impossível dizer que o impeachment “não muda nada”. O governo golpista de Temer vem aplicando o ajuste no curto prazo, atacando os gastos e investimentos públicos nas áreas sociais e nos nossos direitos - mas também já tem no gatilho, para o pós-eleições, ataques estruturais contra a classe trabalhadora. As contrarreformas trabalhista e da previdência prometem levar nossos direitos literalmente para 100 anos atrás. Querem nosso futuro muito, mas muito pior que o das gerações que nos antecederam. Para derrotar Temer, não repetir os erros Para nós, desestabilizar o governo Temer segue no topo das prioridades. Quanto mais aceitação 14

e mais capacidade ele tiver de governar, melhor pra eles e pior pra nós. Lutaremos contra todas as medidas do governo golpista, defendendo nossos direitos e condições de vida. Somos a geração que recolocou as ruas no centro da política, e não poderíamos abaixar nossa cabeça para a ofensiva desesperada do capitalismo contra nós. Entendemos que vai ser preciso criar outra relação de forças no país, que supere aquela dos governos petistas. Isso porque o PT aplicou um projeto que não era o que marcou sua fundação, de lutas massivas e independentes. A consequência foi óbvia: o PT, há tempos, não é mais uma ferramenta da classe trabalhadora para a transformação radical da sociedade. Ao contrário, a direção do PT apostou num projeto de colaboração de classes, na expectativa de que era possível “governar para todos” se as partes envolvidas trabalhassem em conjunto, mãos dadas entre operários e industriais, banqueiros e sem-teto, camponeses e latifundiários. Por isso mesmo, não reivindicamos o legado dos recentes governos e batalhamos nos últimos anos contra as políticas petistas que caminharam rumo à privatização, terceirização e precarização dos serviços públicos, como educação e saúde. Já para os de cima, esse cenário era ótimo. Explorados e oprimidos perdendo força política perante um governo que, pelo menos na aparência, representava a classe trabalhadora. Numa situação de crescimento econômico, ainda, era possível fazer concessões à classe trabalhadora com oferta de crédito e a garantia limitada de alguns direitos. Dois fatores mudaram de vez o cenário. Um primeiro foi a crise econômica mundial do capitalismo: com menos dinheiro na roda, e com os poderosos ansiosos em não perder seus lucros, o espaço para “colaboração” diminui. Alguém tem que perder, e foi esse o projeto que Dilma vinha aplicando em seu governo. Ainda que em


menor medida que Temer, Dilma também veio para fazer valer a agenda do empresariado. O outro foi que, principalmente a partir de Junho de 2013, ficou evidente que o PT não podia mais controlar as insatisfações dos explorados e oprimidos. A acomodação deu lugar a mobilizações massivas que demonstraram insatisfação com o conjunto dos governos, e sem nenhuma direção “tradicional” reconhecida. As Jornadas de Junho abriram um novo ciclo político porque recolocaram as mobilizações massivas no cotidiano da população e porque estabeleceram uma polarização que vem se desenvolvendo desde então: de um lado, uma direita muito bem armada politicamente que soube canalizar Junho para o impeachment, e de outro uma esquerda independente que vem se fortalecendo especialmente na juventude e nos movimentos por moradia. Resistir ao governo golpista e não dar sossego para Temer é fundamental. Mas não poderíamos fazer isso repetindo os erros do passado. Para derrotar de vez o governo e a crise, precisamos construir nas lutas uma alternativa de massas, radical e independente, dos de baixo contra os de cima!

cisam estar combinadas com as nossas tarefas estratégicas. As lutas contra as medidas do governo golpista só serão vencidas com a luta pela construção de um polo à esquerda e independente, dos explorados e oprimidos, na disputa do legado de Junho de 2013. A saída, portanto, está pela esquerda e na superação, de uma vez por todas, das expectativas de colaboração de classes. Mas isso não acontecerá rapidamente. Será necessário um longo ciclo de lutas e resistências dos de baixo para derrotar os de cima e vencer a crise. Apenas com coerência e radicalidade, nas ruas e nas lutas, poderemos defender nosso futuro. Desde já, reafirmamos: faremos resistência dos de baixo contra as elites e o governo ilegítimo de Temer! Não aceitaremos nenhum direito a menos!

Defender o nosso futuro A direita pode ter vencido o golpe no Senado, mas não nos derrotou nas ruas. As mobilizações desse começo de semana foram um sinal do que virá: a luta pelo Fora Temer continua! Seguiremos na rua por novas eleições gerais sob novas regras: o povo é que deve decidir! A situação política, no entanto, é outra. Temer já confirmou, na prisão de 4 militantes do MTST nessas mesmas mobilizações, que sua disposição é de fato profundamente antidemocrática. Lutamos em outra conjuntura, mas seguiremos sem medo. Nosso presente é nas lutas por um futuro melhor para todos e todas nós. Por isso mesmo, é urgente derrotar Temer e seu governo de ataques aos direitos dos explorados e oprimidos. Lutaremos por toda a unidade que for possível contra os ajustes do governo ilegítimo. Para derrotar tamanhos ataques, só com muita unidade dos de baixo! Para sermos vitoriosos, as lutas imediatas pre15


Preparam o maior plano de desemprego para a juventude

Artigo de Junia Gouveia, militante do movimento dos servidores previdenciários e da Insurgência Publicado em 23 de maio de 2016 Disponível em: insurgencia.org/3534-2/ Um dos principais objetivos do governo temeridade é impor idade mínima de 65 anos para as aposentadorias de homens e mulheres. Apoiado no falso argumento de que a previdência está quebrada pelo fato do aumento médio de vida da população, anunciam uma contrarreforma a toque de caixa para diminuir direitos. O que eles não falam é que a previdência social é um pacto entre três gerações, e se uma geração tiver que trabalhar mais dez anos para aposentar-se, a consequência direta será a geração seguinte ter que esperar mais dez anos para poder ocupar estas vagas. A juventude não será prejudicada quando for se aposentar, será prejudicada já, pois se o desemprego já é um fato, com o bloqueio por mais 10 anos sem que as pessoas se aposentem, o quadro será de calamidade. Esta imposição de idade mínima de 65 anos, atinge diretamente a juventude e principalmente aqueles que começam a trabalhar mais cedo. A Previdência Social não está quebrada, ela está sendo saqueada ao longo dos anos pelos sucessivos governos. O primeiro roubo foi efetivado por um mecanismo simples chamado DRU (Desvinculação de Receitas da União). As contribuições ao INSS são feitas exclusivamente para o fim determinado de sustentar os benefícios previdenciários e por isso é chamado de arrecadação vinculada. Os governos aprovaram uma lei que permite desvincular 20% destas verbas, utilizando para pagamento dos juros da dívida pública. No ano passado esse valor passou para 30% . Esse mecanismo de repassar parte do orçamento da previdência para pagar dívida pública vem desde a era FHC e continuou com Lula e Dilma. O segundo roubo eles chamam de um nome muito elegante: “desoneração da folha de pagamento para diminuir o custo Brasil” que, traduzindo para o bom português significa liberar boa parte dos empresários de pagar a Previdência Social. Simples assim. Coitadinhos dos empresários, tão pobrezinhos… Precisavam muito de isenções para encher seus bolsos. O terceiro roubo é a quase inexistência de fiscalização sobre a enorme sonegação por parte 16

dos patrões e empresários. Mesmo quando são identificadas as empresas sonegadoras elas seguem impunes. Como melhor exemplo temos a Rede Globo, grande devedora (multada em R$ 600 milhões por sonegação fiscal na compra de direitos da transmissão dos jogos da Copa do Mundo, como relatado pelo jornalista Ricardo Azenha e outros veículos alternativos). O quarto roubo é a inexistência de políticas que aumentem a formalização da economia, mantendo quase 50% da mão de obra sem registro, na chamada economia informal. Claro que para confundir, muitas e muitas manobras fiscais e contábeis são feitas. O governo Temer/tucanalhas assume feito um bando de hienas, dispostos a uma rapinagem sem precedentes. O desmonte da previdência social já começou: acabaram com o Ministério da Previdência, esquartejaram e dividiram. E agora, como um mantra repetido mil vezes pela mídia, querem demonstrar que o fato de vivermos mais alguns anos é o grande responsável de um déficit que não existe. Para impedir esse ataque brutal será preciso que a juventude compreenda seu papel nessa luta, pois será necessário que assumam o protagonismo das ruas. A sociedade que queremos, quando podemos viver mais, não é com idosos trabalhando feito escravos e jovens desempregados. A sociedade que queremos é onde idosos possam ter seu reconhecimento pelo justo trabalho e a juventude com oportunidade de trabalhar de forma qualificada. Trata-se de fortalece-la e não de desmonta-la. A Previdência Social foi construída na luta por décadas. As atuais gerações estão chamadas a assumir a iniciativa e a frente dessa luta. Pois se é importante obter conquistas, mais importante é ser capaz de defendê-las.


A esquerda brasileira saberá se renovar Coluna de Guilherme Boulos na “Folha de São Paulo” Publicada em 3 de novembro de 2016 Disponível em: folha.com/no1828990 Embalados pela vitória nas eleições municipais, expoentes do conservadorismo –no Planalto e na planície– passaram a celebrar o declínio da esquerda brasileira. O povo, enfim, teria compreendido o fracasso dos projetos da esquerda, que estaria então aproximando-se de um desfecho melancólico. Os que celebram hoje são os mesmos que, vinte anos atrás, brindavam o fim da história como uma verdade inexorável. A história, teimosa que é, insistiu em contrariá-los e produziu um ciclo de governos progressistas na América Latina. São os mesmos também que, com sua crença fervorosa numa certa “mão invisível”, prometeram paraísos no mercado de futuros e o que conseguiram entregar foi a crise de 2008. É preciso ter cuidado com os vaticínios dessa gente. De fato, a esquerda brasileira enfrenta uma crise. Crise que marca o fechamento de um ciclo. O Partido dos Trabalhadores, impulsionado em seu surgimento por grandes lutas populares, construiu uma hegemonia na esquerda nos últimos 35 anos. Seu período à frente do governo federal foi marcado por avanços sociais, mas também por descaminhos estratégicos. Os avanços foram inegáveis: valorização progressiva do salário mínimo, expansão do crédito popular, inclusão dos mais pobres na universidade, programas sociais, redução das desigualdades regionais. Avanços que deram ao PT três reeleições sucessivas, só sendo apeado do poder por um golpe parlamentar. Mas o preço pago pelo “consenso petista” foi abrir mão do enfrentamento dos privilégios históricos da casa-grande. Achou que poderia aprofundar um projeto de avanços de mãos dadas com os donos do Brasil. Abriu mão de pautar reformas estruturais, como a tributária, agrária ou urbana. Acreditou que teria sempre a sustentação dos partidos conservadores no Congresso, usando dos velhos métodos, e –ao deixar de mobilizar a sociedade por uma transformação do sistema político– acabou tragado por ele. Na primeira grande oportunidade que tiveram, a casa-grande e seus partidos acabaram com a brincadeira. Deixaram claro que, no Brasil, não há espaço para um programa de avanços sociais sem reformas estruturais e sem enfrentamento. O PT, diga-se, não morreu, mas envelheceu nesse processo. Seu futuro dependerá de ter ou

não a capacidade de aprender essa dura lição. Mas é preciso lembrar que a esquerda brasileira não se reduz ao PT. Nem aos partidos, sem deixar de destacar o importante papel que o PSOL tem cumprido com sua aguerrida bancada e com candidaturas contra-hegemônicas. A esquerda representa, em tempos de desilusão, a esperança de milhões de pessoas por igualdade social e por participação política radicalmente democrática. Isso não é patrimônio de um partido político. Está nos movimentos sociais e nas lutas de resistência. A esquerda saberá se renovar. Já o está fazendo, com os estudantes ocupando escolas, com os sem-teto, as iniciativas de mídia livre nas redes, a luta das mulheres, a luta pela diversidade sexual, o movimento negro. Cedo ou tarde, esse caldo dinâmico de mobilização social irá se traduzir num projeto político. Política autêntica, que nasce e se faz nas ruas. O maior desafio é retomar esta relação viva com as ruas e, em especial, com o povo das periferias. Acolher suas demandas, estar junto em suas lutas e não trair suas esperanças. Os que preferem dedicar-se a resmungos amargos nas redes sociais contra a “ingratidão” ou a “alienação” do povo mostram apenas não estarem à altura da tarefa. O reconhecimento das dificuldades atuais precisa vir junto com o aprendizado das lições sobre o processo que nos trouxe até aqui. Certa vez, Jean Paul Sartre, questionado sobre o “fim do marxismo”, disse que o marxismo só poderia ser superado quando fossem superadas as condições que o engendraram, ou seja, a divisão de classes sociais no capitalismo. O mesmo vale para a situação atual da esquerda no Brasil e na América Latina: enquanto nossa sociedade permanecer profundamente desigual, crivada por privilégios e privações, haverá lutas de resistência, haverá esquerda. Ainda mais por aqui, ante um governo que –sem a legitimidade do voto popular– começa a impor um programa devastador de retrocessos sociais e trabalhistas. A perplexidade da maioria tem prazo de validade, mesmo quando apoiada num poderoso discurso midiático. A história, novamente, não acabou. Os que comemoram hoje, com sua felicidade estampada na “Caviar Life Style”, saibam que a velha toupeira continua a cavar. 17



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