Vida no Campo (amostra)

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Álvaro Domingues

Vida no Campo equações de arquitectura dafne editora

Uma Casa

A



Sumário

15

O voo do arado

67

Desruralização

75

A agricultura enquanto economia

117

O rural enquanto cultura e modo de vida

135

O mosaico do mundo rural

155

Os temas difíceis da desruralização

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Vernacular

249

Populares, camponeses, eruditos e massificados

271

Crónicas da boa e velha ruralidade


Era é o passado imperfeito do indicativo do verbo ser. Fora é o passado mais­‑que­‑perfeito de um tempo primordial em que o rural tinha sido um tempo fora do tempo. Era de facto uma casa de granito com inscrições na padieira e que já deve ter conhecido tempos de fartura e prosperidade. Entretanto, desde há muitos anos que já lá está uma vinha onde antes seria o soalho do primeiro piso ou os tectos em masseira de carvalho, uma vinha de interior. Hoje é um produto imobiliário. Comercializado por uma rede internacional de negócios da especialidade, produtos locais em comércios globais, como é comum em quase tudo. Neste caso, o que para alguns seria a desgraça de uma ruína, é o encanto da própria ruína. O tema não é de hoje. Desde que (pelo menos) no Renascimento europeu se produziu e alimentou a estética dos despojos da antiguidade, até ao romantismo que lhe amplificou os sentidos e a poética, a ruína conservou este valor de patine de museu e de aura de coisa sacralizada. Será difícil não sentir uma certa nostalgia, a mesma que é capaz de alimentar o interesse e o aumento do valor desta ruína.



Sobreposição.

Vida no Campo é sobre isto tudo: mitologias do último país rural da Europa que persiste em inscrever no imaginário colectivo (e ao mesmo tempo), as imagens bucólicas e os destroços desse mundo perdido, variando entre calamidades e incêndios, resorts para todos os gostos com muita relva e espaço verde, turismo rural, desertificação ou, ao contrário, casas e estradas por todo o lado. Se 97% da economia não é rural, o país, a sociedade e o território, são urbanos (por defeito e enquanto não se conseguir sair desta dicotomia). Parece desconcertante, mas para escrever um livro é quanto basta. No fundo, o trauma da perda de um mundo rural mitificado está longe de se resolver e apaziguar. É disso que se trata neste jogo de espelhos onde não se percebe exactamente o que é que objectivamente se perdeu, mas muitos crêem que o que realmente se perdeu foi o próprio paraíso, a versão bucólica e pastoral do mundo rural perfeito, como Adão e Eva antes da serpente. O sentimento da perda e o mau luto por essa ausência tanto provocam a apatia como o delírio e a mistificação. Desde que Freud escreveu sobre isto em 1917 há uma pilha imensa de estudos que não mais terminam. 60

Vida no Campo


Decomposição.

A questão é que o luto, enquanto processo de esquecimento, é constantemente perturbado pela presença do morto. O caso é o de uma perfeita fantasmagoria. Os destroços do mundo rural estão por todo o lado, desde os que vivem no mundo da pura ficção – bastam umas imagens e um folheto de propaganda turística da vida no cam‑ po ou do turismo rural –, a outros que são puras alegorias em forma de ruína e de abandono, verdadeiras presenças de uma ausência que constantemente dá sinal de si. O resultado é uma espécie de luto crónico em que a incapacidade do esquecimento origina uma enorme diversidade e contradição de atitudes: tristeza, raiva, culpa, ansiedade, solidão, fadiga, choque, entorpecimento, inquietude, choro, auto­‑punição obsessiva, mania, distanciamento social, incredulidade, confusão, preocupação, alucinação, ansiedade, amnésia, recordação, melancolia, angústia, remorsos, fantasias, recalcamentos, delírios, fantasmagorias, e um sem fim de patologias mais ou menos graves que, no fim de contas, nos impedem de ter a disponibilidade para encarar e realidade e a extensão da ausência, organizar os rituais de perda, separação ou ruptura, e O voo do arado

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Vida no Campo


Desruralização

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A agricultura enquanto economia

A primeira questão da desruralização é a transformação agrícola. Agrícola é uma palavra cuja raiz é essencialmente económica: são agrícolas os produtos, os mercados, os preços, as tecnologias e processos de produção, etc. Hoje, quer a Política Agrícola Comum, PAC, imposta pela União Europeia, quer os acordos mundiais de comércio, fizeram com que a agricultura mercantil – a que não é de auto­ ‑subsistência e/ou de auto­‑consumo familiar – ficasse refém de um mercado que é global e que, apesar dos custos associados ao transporte dos produtos alimentares e bebidas, produz consequências fortíssimas nos preços ao nível local e nacional. Não é um fenómeno novo mas agora generalizou­‑se. Tal como no resto da economia, quer a massificação, a incorporação tecnológica, a organização empresarial e a procura de economias de escala – no leite, por exemplo –, quer as estratégias de concorrência pela qualidade e pela distinção dos produtos – nos produtos de Denominação de Origem Controlada –, implicam uma forte exposição das pequenas ou das grandes empresas aos mecanismos da concorrência e à elevada dependência das redes de distribuição e de comercialização. Os produtos ditos biológicos e tradicionais (os que incorporam pouca ou nenhuma adição de fitossanitários, adubos, pesticidas, etc., ou que não usam espécies transgénicas e culturas forçadas como as estufas) fazem parte, eles próprios, de sub­‑sistemas concorrenciais nos seus mercados específicos, o que, apesar da distinção, da qualidade e do aparente monopólio que os caracteriza, não os resguarda de formas de concorrência muito evidentes. Por serem normalmente produtos de pequena escala de produção (há excepções, como o Vinho do Porto), existe uma desproporção entre a fraDesruralização

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Divisão d’águas.

…o dito Diego Dominguez reeo ora novamente lhe tapara a dita preza e regos per que levava a dita augua e lhe embargava aos ditos seus casseiros que tragem os sobre dittos logares e lhes non queria leixar levar a dita agua nem hirem com ela como sempre forom e per hu senpre hussarom de a levar aos ditos seus casseiros per os regos acustumados como senore foy e os leixe hir com a dita augua per honde senpre forom que o dito Diego dominguez que senpre recussou como ainda recussava de o fazer…9 Em 1426, Diego Dominguez era réu num processo onde era acusado de desviar o caminho das águas – presas, fontes, regos e poças de água pera regar campos y leiras e pera levarem em cabaças pera bever. Mais do que o solo que artificialmente se pode formar e segurar em socalcos, a distribuição da água é fundamental. Percebe­‑se por isso esta imagem. Como se diz hoje, é a resiliência do sistema que teima em perdurar. 9 João Gomes guimarães, «Documentos inéditos dos séculos XII­‑XV (II)» in Revista de Guimarães, n.º 12, 1895, pp. 91­‑96, p. 92. 96

Vida no Campo


Cerveja monástica.

Algures no século XII, D. Afonso Henriques doou o couto de Leça à Ordem dos Hospitalários. Hoje, dos domínios do Mosteiro de Leça, resta este campo de milho acabado de cortar e que integra a fileira de produção do leite; ao lado do mosteiro faz­‑se cerveja (coisa que os monges também fariam por métodos menos industriais). Existem muitos nexos no tempo e no espaço entre a religião, a agricultura e a indústria. Hoje, em Leça do Balio, passam auto­‑estradas, a Igreja é Monumento Nacional e o rio corre poluído. Entre outras coisas, a paisagem é o registo da simultaneidade.

Desruralização

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Cultura megalítica.

…uma das constantes fundamentais desta cultura é o seu respeito pela organização social, até hoje orientada pela vida em comunidade. Outra constante relacionada com a primeira, é o espírito de fraternidade e tolerância que leva os aldeões a viverem sem fricções e em perfeita harmonia com os vizinhos. Tudo é feito numa atmosfera de celebração, sem acrimónias ou inimizades… Esta maneira de viver reflecte­‑se na educação. As crianças crescem em liberdade, participam nas festas, dançam e cantam com os adultos… uma geração segue a outra, igualmente harmoniosa, feliz e equilibrada.14

14 Jorge dias, Rio de Onor, Comunitarismo Agro­‑pastoril, Lisboa, Presença, 1953. 128 Vida no Campo


Jogos tradicionais.

Vamos ver o povo Que lindo é Vamos ver o povo. Dá cá o pé. Vamos ver o povo. Hop­‑lá! Vamos ver o povo. Já está.15

15 Mario cesaryni, Manual de Prestidigitação, Lisboa, Contraponto, 1956. Desruralização 129


O abandono.

156 Vida no Campo


A pobreza.

O envelhecimento. Desruralização 157


Depois da idade do gelo.

190 Vida no Campo


A casa de Adão no Paraíso.

Desruralização 191


192 Vida no Campo


Vernacular

Vernacular: relativo aos escravos que nascem na casa; falado espontaneamente, por oposição ao latim; falado ou escrito em língua indígena ou nativa de um lugar ou região; adequado ao local e ao contexto; usado pelos habitantes anónimos; sem conhecimento técnico específico; sem formação profissional especializada; artesanal; empírico; intuitivo; tradicional; típico; familiar; costumeiro; usando materiais naturais; adaptado ao meio geográfico e/ou especificidades étnicas; estável ou com evolução muito lenta; a­‑histórico; vulgar; ordinário; comum; popular; corrente; não erudito; profano (por oposição ao sagrado – opor o vernacular ao sagrado ou ao científico induz uma dupla hierarquização do saber e dos códigos de organização e difusão desse saber, seja linguístico, simbólico ou outro); não monumental (a arquitectura vernacular relaciona­‑se mais com edifícios e usos domésticos e vulgares); arquitectura indígena; anónima; sem arquitectos; sem autor; sem pedigree; primitivo; do passado longínquo; rural; não ocidental; proto­‑industrial; imune a ciclos, modas e períodos históricos; quase imutável; subentendendo­ ‑se um laço de pertença cultural e físico a um contexto, vernacular denomina o que não é universal como a ciência; não sendo da cultura erudita, o vernacular não se enquadra nos seus cânones ou estilos; diferente dos parâmetros universalizantes do moderno (puro, racional, funcional, universal, sem ornamentação); não industrializado; etc.

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Técnica mista.

Hoje, os lugares são nós de uma rede complexa de movimentos onde os indivíduos e os grupos se fixam de modos instáveis. Tudo diferente da antiga associação entre comunidade e lugar, onde a geografia das relações sociais tinha como limite pertinente os próprios limites e a própria geografia do lugar: a estabilidade de um era o garante da estabilidade do outro, tal como escrevia Jorge Dias na sua definição de comunidade enquanto grupo local integrado por pessoas que compartilham um território bem definido, as quais estão ligadas por laços de intimidade e convívio pessoal e participam de uma herança cultural comum, homogéneo, bem caracterizado, estável, com limites precisos, auto­‑suficiente, etc.20 Com a facilidade com que se movimentam pessoas e referências culturais, resta ao vernacular ser uma expressão local de um cruzamento instável de referências vindas de muitos mundos e mun-

20 Jorge dias, «Problemas de Método em estudos de comunidades», in Benjamim Enes pereira, Bibliografia Analítica de Etnografia Portuguesa, Lisboa, Instituto de Alta Cultura – Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, 1965. 244 Vida no Campo


Sidecar.

dividências. No limite, o local é apenas a maneira como o global se exprime na geografia dos lugares, o modo como se situa. Será, então, uma marca de identidade construída algures entre a pulsão da pertença e do inter­‑reconhecimento, e o distanciamento, a alteridade, a diferença face ao outro.

Vernacular 245


Fado.

260 Vida no Campo


Futebol.

Fรกtima. Populares 261


A fuga.

O povo é como o horizonte: quanto mais perto pensamos estar dele, mais se distancia. São assim as coisas essencialistas, sobretudo quando vistas de fora; depois, há os hipócritas: esses amam o povo, mas não desejariam, por interesse do próprio amor, que saísse do passo em que se encontra; deleitando­‑se com a ingenuidade da arte popular, com o imperfeito pensamento, as superstições e as lendas; vêem­‑se generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a classe inferior e traduzem, na linguagem adamada, o que dela julgam perceber; é muito interessante o animal que examinam, mas que não tente o animal libertar­‑se da sua condição; estragaria todo o quadro, toda a equilibrada posição; em nome da estética e de tudo o resto convém que se mantenha. Há também os que adoram o povo e combatem por ele, mas pouco mais o julgam do que um meio; a meta a atingir é o domínio.3 3 Agostinho da silva (1906­‑1994) citado em Paulo Neves silva (org.), Citações e Pensamentos de Agostinho da Silva. Lisboa, Casas das Letras, 2009, p.129. 272 Vida no Campo


Cápsula mística.

Agora já se percebe muito melhor a vida dos simples nesta pérola de pensamento e de propaganda nacionalista de António Ferro que, em 1947, se referia ao povo camponês da Aldeia mais Portuguesa de Portugal: …contente, a rezar, a dançar e a cantar, dando lições de optimismo às cidades fatigadas, pessimistas, compreendendo como poucos, o ressurgimento português, mais ávido de bens espirituais – a escola, a igreja, a família – do que de bens materiais. As necessidades são muitas, a terra é madrasta, mas, com os olhos cheios de estrelas e o coração cheio de cantigas, considera­‑se feliz porque sente o céu mais perto do que nunca.4

4 António ferro, 1947, aquando da atribuição do Galo de Prata à Aldeia mais Portuguesa de Portugal: Monsanto. Citado em Vera Marques alves, Camponeses Estetas no Estado Novo: Arte Popular e Nação na Política Folclorista do Secretariado da Propaganda Nacional. Lisboa, ISCTE­‑Departamento de Antropologia, 2007, p. 102. Crónicas... 273


A boa casinha portuguesa tem de ser encarada no conjunto da paisagem à qual se liga. (…) É nestas horas palpitantes, doiradas e calmas, em que nos sentimos imbuídos não sabemos de que sentimento de paz e conciliação, que essas simpáticas casinhas à beira da estrada, ou entre os campos, melhor nos revelam o seu português sentido. Que alegres no seu variado matiz, que acomodadas nas proporções; que graça, que modéstia e contentamento não respiram! Nada têm de forçado ou de menos seguro efeito; tudo parece ter nascido do próprio lugar com toda a naturalidade.23

23 Raul lino, Casas Portuguesas. Alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples, Lisboa, Valentim de Carvalho, 1933, p. 83. 296 Vida no Campo


Urge acudir às aldeias – amanhã será tarde, amanhã teremos os caminhos de ferro, a invasão desordenada de novas ideias, os novos usos e costumes; amanhã teremos ali a moda (…), a obliteração dos tipos puros, a ruína das indústrias caseiras, da olaria, dos tecidos, dos bordados e das rendas, conservadas com tanto carinho.24

24 Joaquim de Vasconcelos, 1882, citado em João leal , «Metamorfoses da arte popular: Joaquim de Vasconcelos, Vergílio Correia e Ernesto de Sousa», in Etnográfica, Vol. VI, n.º 2, 2002, pp. 251­‑280 (p. 261). Crónicas... 297


Aguas que penduradas desta altura. Caís sobre os penedos descuidadas, Aonde, em branca escuma levantadas, Ofendidas mostrais mais fermosura, Se achais essa dureza tão segura, Para que porfiais, águas cansadas? Há tantos anos já desenganadas, E esta rocha mais áspera e mais dura. Voltai atrás por entre os arvoredos, Aonde caminhais com liberdade Até chegar ao fim tão desejado. Mas ai! que são de amor estes segredos, Que vos não valerá própria vontade Como a mim não valeu no meu cuidado. 32

32 Francisco Rodrigues Lobo (1573?­‑ 1621). 306 Vida no Campo


Cr贸nicas... 307



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