Leprosaria Nacional (amostra)

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Leprosaria Nacional Modernidade e Ruína no Hospital-Colónia Rovisco Pais

paulo providência vítor m. j. matos ana luísa santos sandra xavier emanuel brás luís quintais

dafne editora



Sumário

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Programas, tipologias, paradigmas paulo providência

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Dossier de projecto

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Diagnóstico, terapêutica e investigação científica vítor m. j. matos, ana luísa santos

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Imagem, ruína, fragmento sandra xavier

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Construção do lugar, determinações do olhar emanuel brás

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A explosão-catástrofe das imagens luís quintais



programas, tipologias, paradigmas Paulo Providência

Compreender o projecto político da Leprosaria Nacional Rovisco Pais, edifício construído na vila da Tocha entre 1941 e 1956 destinado a «combater a Lepra» pela «concentração dos Leprosos», passa por compreender o enigmático objecto arquitectónico que se nos apresenta: enigmático pela sua extensão, inserção no local, relações espaciais e expressão arquitectónica. Essa compreensão traz de volta reflexões já não sobre o hospital como máquina de curar, paradigma moderno da eficácia terapêutica traduzido por uma linguagem arquitectónica baseada na transparência do vidro ou incorruptibilidade do metal, mas nos processos de «humanização» da arquitectura hospitalar pelas linguagens realistas que constroem o edifício, espécie de capitulação à condenação antecipada do doente ou à descrença numa nova ordem que redima o imperativo existencial dessa condenação. Até que ponto o conjunto de programas que informaram o projecto, decorrentes de eficientes técnicas de planeamento de Saúde Pública definidas pelo Director-Geral, o médico José Alberto de Faria, condicionaram o edifício? Até que ponto as modernas ideias de redenção social pelo equipamento defendidas pelo Presidente da Junta Distrital de Coimbra, o médico Bissaya Barreto, se incorporaram no edifício? Até que ponto o interesse médico-científico do arquitecto Carlos Ramos lhe permitiu uma tradução arquitectónica do programa? Que relação se estabeleceu, então, entre política, medicina social e arquitectura no caso-limite da Leprosaria?

[1] – Maqueta da Leprosaria Nacional de Rovisco Pais, Junho de 1939, ba-fcg.

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[4] – Maqueta da Leprosaria Nacional na Exposição 15 anos de Obras Públicas.


dossier de projecto


LEPROSARIA NACIONAL

[5] – Esquema sobre a organização de estabelecimentos para o combate à lepra, tomando como equipamento central o Dispensário, in Uriel Salvador, 1936, op. cit.

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d o ss i e r d e p r o j ec t o

[6] – Esquema sobre a coordenação das instituições privadas e públicas envolvidas no combate à lepra e o papel do Corpo Directivo, in Uriel Salvador, 1936, op. cit.

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LEPROSARIA NACIONAL

hospital

asilo

lavandaria cozinha

N

0

casas trabalhadores

100

200

capela

casas famílias

casa pessoal

500 m

[7] – Implantação da Leprosaria Nacional de acordo com os trabalhos da Comissão para a Elaboração do Programa, programa base 1939/1940.

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d o ss i e r d e p r o j ec t o

1939 Programa da Leprosaria Nacional Rovisco Pais

Uma capacidade para 600 leprosos, cerca de 50% da totalidade existente em Portugal. Esses «leprosos» seriam acomodados em três instituições: Hospital (120), Asilo (168) e Colónia (312). A distribuição dos doentes pelas três instituições é decorrente da fase de doença: no Hospital são admitidos para observação (no Lazareto) ou para tratamentos específicos; no Asilo seriam albergados os doentes incapacitados funcionalmente, normalmente numa fase avançada da doença; na Colónia seriam albergados os doentes que mantêm autonomia e não incapacitados; por isso mesmo a Colónia divide-se em dois grupos: casais ou famílias doentes, albergados em núcleos familiares, e doentes singulares, albergados nas casas para trabalhadores. Como complemento a estas instalações, o programa prevê: Creche (50 bebés, até aos três anos de idade), Preventório (120 crianças, até aos dez anos de idade) e Serviços Gerais constituídos por Serviços administrativos, economato e rouparia geral, armazéns de géneros, lavandaria, cozinha central, pequeno balneário, central térmica e a vapor, central eléctrica e habitações para os funcionários. Uma pequena capela de aldeia bem implantada não deixaria também de contribuir para os transportar, ainda que

por momentos, a um ambiente de paz e de liberdade relativa. De solução em solução a ‘maquetta’ de que se juntam fotografias representa o mínimo proposto pela Comissão para a instalação da ‘Leprosaria Nacional Rovisco Pais’, excepção feita do preventório e creche cujas instalações devem ficar implantadas num anexo da Quinta da Fonte Quente, a Guardiosa, para além da estrada que vai da Tocha à Figueira da Foz, e que, por este motivo, não se vêem nas fotografias. Hospital – 120 doentes, 60 de cada sexo. Este edifício deverá ser construído por 2 pavimentos. No primeiro instalar-se-ão todos os serviços de consultas, tratamentos, internamento prévio ou lazareto, anatomia patológica, análises clínicas e investigação científica. No segundo as enfermarias, isolamentos, serviço de cirurgia, salas de tratamentos, salas de estar, galerias e serviços gerais. Asilo – 168 doentes, 84 de cada sexo. A cada sexo corresponderá um edifício para 84 doentes – incuráveis ou em estado de invalidez. Construção de dois pavimentos: 6 quartos de 4 camas, 3 quartos de 3 camas, 2 quartos de 2 camas, 4 quartos de 1 cama, 1 quarto para isolamento. Além destas instalações, cada pavimento comportará ainda os serviços gerais de uso corrente, sala de estar, refeitório, galerias

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LEPROSARIA NACIONAL

[23] – Colónia, Casas dos Trabalhadores (sector feminino), planta, escala 1/100. Comissão de Obras da Leprosaria Nacional Rovisco Pais, arsc.

[24] – Colónia, Casas dos Trabalhadores, escala 1/100. Comissão de Obras da Leprosaria Nacional Rovisco Pais, arsc.

[25, 26, 27] – Fotografias de obra, construção das Casas dos Trabalhadores, cd-cmbb.

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d o ss i e r d e p r o j ec t o

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LEPROSARIA NACIONAL

[43] – Creche, planta, escala 1/100. Comissão de Obras da Leprosaria Nacional Rovisco Pais, arsc.

[44] – Preventório, planta do 1º pavimento, escala 1/100. Comissão de Obras da Leprosaria Nacional Rovisco Pais, arsc.

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d o ss i e r d e p r o j ec t o

[45] – Estudo para Capela, escala 1/100. Comissão de Obras da Leprosaria Nacional Rovisco Pais, arsc.

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LEPROSARIA NACIONAL

[51] – Hospital-Colónia Rovisco Pais (Tocha), Relatório das Gerências desde o início das Actividades (27 de Outubro de 1947) a Dezembro de 1952. Coimbra: Coimbra Editora. Fotógrafo não identificado.

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diagnóstico, terapêutica e investigação científica Vítor M. J. Matos & Ana Luísa Santos

De Hansen ao Hospital-Colónia Rovisco Pais Em 1873, foi descoberta pelo médico norueguês Gerhard H. A. Hansen, a bactéria causadora da lepra, designada por Mycobacterium leprae,1 identificação pioneira de um agente patogénico em humanos.2 O contributo de Hansen foi decisivo na refutação da teoria da hereditariedade da doença, à época aceite pela maioria dos clínicos,3 onde se incluía o seu mestre Daniel C. Danielssen, considerado um dos fundadores da leprologia e co-autor, com Carl W. Boeck, do primeiro manual científico sobre a doença, intitulado Om Spedalskhed [Sobre a lepra]. Esta doença infeciosa é relatada desde a Antiguidade na China, Índia e Egipto onde se conhecem as primeiras descrições em papiros de 1550 a.C.4 No entanto, as evidências osteológicas indicam uma cronologia anterior, com o caso mais antigo proveniente da Índia, datado de 2000 a.C.5 Desde que a humanidade se confrontou com a lepra certamente procurou a sua cura. A ausência de tratamento eficaz e o temor do contágio conduziram à ostracização dos doentes, tanto pela sociedade como, muitas vezes, também, pela família, pelo que no século iv terão surgido na Capadócia as leprosarias que, no século x, se difundiram por toda a Europa, destinadas ao isolamento dos doentes.6 No território português terão existido desde o século xi, num número a rondar as 70 instituições, algumas das quais ainda identificáveis na toponímia das localidades. Durante cerca de 15 séculos, as gafarias, como também eram designadas na Península Ibérica, funcionaram

[52] – Ficha Dermatológica e Neurológica, 1971.

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imagem, ruína, fragmento Sandra Xavier

Muitos trabalhos têm vindo a ser publicados sobre a organização moderna dos hospitais, pensados enquanto máquinas de curar, lugares de acumulação do poder e do conhecimento médico ou dispositivos disciplinares de controlo e educação dos corpos e das populações. Mas poucos têm procurado compreender de que modo estas instituições têm vindo a ser transformadas e como os espaços por elas legados têm sido esquecidos ou apropriados. Como lidar com os estilhaços da modernidade? Como lidar com as velhas heranças em novos contextos? Começarei aqui por abordar a configuração arquitectónica da chamada última leprosaria portuguesa, para em seguida referir os processos de desgaste, destruição e remodelação pelos quais passou nas últimas décadas. Procurarei destacar como a forte estruturação inicial da leprosaria, através da qual ela própria e todas as suas partes se apresentavam como totalidades semelhantes e encerradas sobre si, foi dando lugar a uma fragmentação e dispersão dos espaços, seus significados, usos e funções. Pensarei este processo de transformação dos espaços, do qual as partes já não podem ser compreendidas através do todo, recorrendo à noção de iconoclash, proposta por Bruno Latour para realçar a ambiguidade subjacente à acção sobre as imagens. Em diferentes lugares escutam-se vozes em defesa do estudo e preservação de construções hospitalares, não apenas enquanto projectos de autor, mas como documentos da transformação de conhecimentos e tecnologias diversificadas. Mas só é possível resgatar estes processos de transformação recolhendo e associando as múltiplas imagens que

[53] – Núcleo familiar, fotografia de Emanuel Brás, 2009.

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[54] – «Divertimentos na lagoa da Colónia» in Relatório das Gerências desde o início das Actividades (27 de Outubro de 1947) a Dezembro de 1952, op. cit., p. 56.


construção do lugar, determinações do olhar Emanuel Brás

O Hospital-Colónia Rovisco Pais é, pois, uma verdadeira lazoropolis, povoação moderna e higiénica, com tudo o que é preciso para tornar atraente a vida daqueles que renunciam os seus direitos sociais para benefício da colectividade. Bissaya Barreto in 15 Anos de Obras Públicas


LEPROSARIA NACIONAL

[55] – Hospital, 1947–48.

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constru ç ã o do lugar , determ i na ç õ es do olhar

[56] – Internamento Hansen, 26 Fevereiro 2013.

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LEPROSARIA NACIONAL

[79] – Casa para Trabalhadores, galeria, zona dos homens, 1947–48. [80] – Galeria de uma Casa para Trabalhadores na antiga zona dos homens, 2009.

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constru ç ã o do lugar , determ i na ç õ es do olhar

Páginas seguintes: [81] – Casa de Educação e Trabalho –Preventório, 1947–48. [82] – Associação de Desenvolvimento Progresso e Vida, lar residencial para idosos, 5 Janeiro 2013. [83] – Creche, 1947–48. [84] – Associação de Desenvolvimento Progresso e Vida, creche e jardim de infância, 5 Janeiro 2013.

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LEPROSARIA NACIONAL

[85] – Núcleo Familiar, 1947–48. [86] – Núcleo Familiar, 7 Junho 2012. [87] – Núcleo Familiar, 19 Fevereiro 2013.

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constru ç ã o do lugar , determ i na ç õ es do olhar

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LEPROSARIA NACIONAL

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constru ç ã o do lugar , determ i na ç õ es do olhar

[88] – Núcleo Familiar; 7 Junho 2012. [89] – Núcleo Familiar; 19 Fevereiro 2013. [90] – Núcleo habitacional para deficientes e acompanhantes, remodelação de um Núcleo Familiar, 19 Fevereiro 2013.

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LEPROSARIA NACIONAL

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constru ç ã o do lugar , determ i na ç õ es do olhar

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a explosão-catástrofe das imagens Luís Quintais

Densidade e leveza perseguem-nos na imediatez dos seus perigos. Um mundo sem eixo onde toda a reiteração da história é uma revisitação tornada significativa, onde tudo é depois do acontecido, onde o sentido é mera hipótese retrospectiva. Densidade porque os sortilégios da metafísica permanecem actuantes, como se exigíssemos desse mundo uma resposta que não chega, não chegará já. Leveza porque, após a explosão imparável das imagens que a modernidade nos trouxe, a catástrofe que nos acomete, que faz parte da nossa consciência do presente, fez eliminar do nosso vocabulário uma hipótese de ajustamento estável entre imagens e referentes. O que são as imagens no território movediço e flutuante da modernidade? Tomámos consciência da sua claridade, da sua transparente incisão no bloco escuro da realidade. A metafísica é uma das funções mais inequívocas de uma gramática da densidade. E as imagens o registo dérmico e forense de uma incisão e de uma interferência. Não é por acaso que Bragança de Miranda escreve: «A imagem é [...] uma lesão primordial da opacidade das “coisas”. A opacidade é dissipada pela divisão, que extrai imagens leves da “densidade” da matéria. Acrescenta-se a ela, desmultiplica-a».1 Todo o conhecimento radica nesta operatividade permanente das imagens enquanto re-presentações, regresso de uma presença através de um processo de incisão e interferência. Poderá dizer-se que uma das acepções da modernidade se instaura numa conformidade entre a imagem-como-representação e o conhecimento. Conhecemos porque re-presentamos, trazemos de

[114] – Detalhe de Dormitório, fotografia de Mário Novais, 1947–48.

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Biografia dos autores Paulo Providência é arquitecto, docente do Departamento de Arquitectura e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Os seus interesses de investigação cruzam a actividade profissional como arquitecto e a teoria e crítica da modernidade em arquitectura, o papel das imagens no processo de projecto, as metodologias e práticas pedagógicas de projecto de arquitectura, e a arquitectura dos hospitais e equipamentos de saúde. A par da publicação dos seus trabalhos de arquitectura em revistas nacionais e estrangeiras, co-coordenou colóquios sobre o cruzamento antropologia/arquitectura, o ensino de projecto, a imagem em arquitectura e medicina. Sandra Xavier é antropóloga, docente no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra e investigadora do cria. Os seus interesses de investigação situam-se no cruzamento entre os Estudos Socias de Ciência e Tecnologia e os Estudos de Imagem, tendo vindo a trabalhar sobre as articulações entre arte, ciência e arquitectura na produção de imagens de paisagem. Estudou a produção de imagens de paisagem no Parque Arqueológico do Vale do Côa, na arquitectura paisagista portuguesa, em exposições de fotografia artística contemporânea e em expedições científicas às colónias portuguesa em África. Vítor Matos é doutorado em Antropologia Biológica pela Universidade de Coimbra, investigador do Centro de Investigação em Antropologia e Saúde e bolseiro de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Dedica-se à paleopatologia, designadamente à investigação dos aspectos bioculturais associados à evolução das doenças humanas, recorrendo ao trabalho antropológico de campo em escavações arqueológicas, à análise laboratorial de esqueletos humanos e à consulta de arquivos clínicos de antigos hospitais portugueses.

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Ana Luísa Santos é doutorada em Antropologia Biológica. Professora no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra e investigadora principal do grupo “Populações e culturas do passado”. Os seus interesses de investigação centram-se na evolução das doenças infecciosas e na Antropologia Funerária. Participou em escavações antropológicas e respectivos estudos laboratoriais em Portugal e Jamaica. Coordenou a revista Antropologia Portuguesa (2001-2006). Autora de vários trabalhos publicados em revistas e livros nacionais e internacionais. Coordena o Doutoramento em Antropologia da Universidade de Coimbra. Emanuel Brás é fotógrafo. Começou a expor individualmente em 1997. Desde 1999, com a exposição Paisagens das Lagoas de Vela e Braças: fotografia in situ, o seu trabalho tem vindo progressivamente a focar-se sobre problemáticas da paisagem no espaço contemporâneo. Em 2012 expôs reservatório de mutações no Museu do neo-realismo, Vila Franca de Xira. Esta exposição foi a primeira apresentação de um projecto em desenvolvimento sobre a reconfiguração da paisagem agrícola ribatejana. Lecciona na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. Luís Quintais é poeta, antropólogo e ensaísta. Publicou nove livros de poesia e quatro de ensaio. Desenvolveu trabalho antropológico sobre memória traumática e psiquiatria forense, sobre cultura e cognição e sobre as intersecções entre arte e ciência, com especial destaque para a bioarte. Uma parte significativa do seu trabalho académico e de investigação foi publicada em revistas nacionais e algumas estrangeiras.

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