Quando chega o natal - Degustação

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Quando Chega o Natal


Mauro Camargo


Quando Chega o Natal


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Mauro Camargo

Havia um silĂŞncio


m

Havia um silêncio Havia um silêncio. Não era um silêncio comum, como a simples ausência de sons. Eu podia ouvir conversas e outros barulhos, além de um bip intermitente e regular. Ouvia também algumas cantigas de natal que vinham bem de longe. Fazia parte do silêncio lembrar que o Natal estava perto. Mesmo assim havia um silêncio profundo, por dentro. Uma grande sala sem paredes e sem tempo definido, 5


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onde só eu existia, e minhas lembranças, é claro. Elas eram o único acesso à vida que me restava, além de uma débil e necessária esperança. Descobri que a memória trabalha como uma costureira, juntando retalhos. Ah! Que falta me fazia o som das ondas de uma praia mansa, com a areia fina varrida pela brisa do dia amanhecendo. Lembrança fragmentada de um tempo. Esqueci voluntariamente do nascer do sol, mas sabia que ele estava lá, todas as manhãs. Como é dorida a saudade de um beijo apaixonado. Quantos pude dar! Mas o que eu fiz das paixões em meu peito? Era maior o silêncio quanto mais eu via os retalhos da memória se juntando, num grande mosaico, onde meu eu se fundia como um camaleão, tentando esconder-se, inutilmente, da realidade. Como era bom o abraço macio e morno do meu filho, quando o sono batia e ele se desfazia em meus braços. Quantas noites deixei de fazer isso, em intermináveis serões de trabalho, perfeitamente inúteis? Ou


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apenas porque o egoísmo se sobressaía e me levava a outros interesses, sempre pensando que amanhã eu o abraçaria, sentaria à sua cabeceira ou daria nele um beijo de bomdia enquanto ainda dormia. Como será o seu Natal? Eu também havia deixado para amanhã pensar em como seria o Natal. Como descobri logo o pouco que sei sobre o “amanhã”, ou o “a semana que vem”, ou “o mês que vem”... “ano que vem”! Eu sempre quis, nalguma semana que vem, levar meus pais para um passeio, passar o dia com eles ou levá-los para um hotel-fazenda passar o fim de semana. Eu sempre quis. Eu sempre quis, nalgum amanhã, sentar com a mulher que amo para ver o entardecer em um lugar bem alto, onde se pudesse ver o mar e o poente, ao mesmo tempo. Ver as nuvens passarem sutilmente do branco ao rosa, converterem-se ao laranja e desmancharem-se no vermelho. Mostrar a ela o indecifrável verde-néon do mar quando entardece, e deixar que a noite nos abrigasse em


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seu manto de segredos, juntos, abraçados. Eu queria dizer que a amava bem baixinho, no seu ouvido. Eu queria ter dividido, partilhado, compartilhado um pouco mais do meu sentimento. Eu queria. O grande mosaico se formava e me escondia do silêncio, cada vez maior, que em mim se instalava. Alguém gargalhou de maneira contida, tentando evitar o barulho. As cantigas de Natal pararam. O bip era contínuo, talvez um pouco mais acelerado. O tempo passou com uma velocidade que não se pode medir. Não falei tudo aos meus amigos. Não pedi desculpas, nem as dei. Como é barato dar desculpas e pedir! Hoje vejo, com dilacerante clareza, como não custa nada. Hoje! Rancores, mágoas acumuladas, indiferenças... pedaços pretos no mosaico do tempo, que não posso mais rasgar ou cobrir com outra verdade mais colorida. Creio que a impressão de uma lágrima desceu pelo meu rosto. Apenas impressão. O bip acelerou um pouco mais. Uma porta


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abriu-se e passos rondaram, com profissional indiferença, meu inerte silêncio. As cantigas recomeçaram. Quem sabe alguma capela com crianças vestidas de branco e vermelho? Retalhos! Aprendi que as lembranças do que não aconteceu são as piores. Quem sabe exista alguém sentado no canto, cochilando ou lendo um romance, sacrificando seu tempo e os deliciosos preparativos para o Natal. Deliciosos! Quase todos os anos eu já encontrava tudo feito. Dava o dinheiro para os presentes, sem tempo ou paciência para sair de loja em loja, pensando o que cada pessoa gostaria de ganhar, além de ainda reclamar de algumas pessoas que teria que encontrar. Quem sabe eu pensasse que algumas pessoas não fossem tão boas como eu? Ah, como foi fácil me descobrir igual a todas! Agora eu gostaria de poder dizer a elas: olá! Eu gostaria apenas de dizer olá a quem quer que fosse. Hoje escuto o silêncio. O silêncio que vem de todos os corações aos quais fui indiferente, evadindo-me com desculpas e argumentos


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que justificassem minha constante ausência. Entendi que tantas vezes evitei o contato com as pessoas pelo medo de ter que dividir minha liberdade, que me pedissem alguma coisa. Medo de me comprometer, de assumir compromissos fora do meu círculo comum de vontades e egoísmo. Acabei me especializando em desculpas e argumentos de todos os tipos. Abri mão dos sorrisos e dos abraços, dos perdões e das manhãs, dos poentes e dos beijos. Esqueci dos corações que me aguardavam com disfarçada esperança de que eu viesse. Quantas vezes eu não fui aos programas e encontros mais simples, e que hoje este intermitente bip transforma-os em perdas incalculáveis? De nada adiantou o equilíbrio das contas? Elas podem pagar o bip, irritante, mas não o evitaram. A porta abriu-se novamente e escutei sussurros reais ecoando na solidão da minha inércia, levando minha memória do imponderável aos fatos: a mais de 150 km/h e um remendo no asfalto, como uma ilha no meio de uma pista encharcada. Uma curva para a esquerda logo em seguida. Um leve toque no


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freio, e o pneu da esquerda aderiu mais ao asfalto remendado e grosseiro do que o da direita,

imerso

em

um

centímetro

de

água.

Um giro rápido, e outro, e outro. Os vidros se fragmentando em milhares de projéteis. O estampido de uma pedra no meio da vegetação. O air bag me envolvendo.

O mundo

ao contrário. O som oco do teto batendo no chão duro. A pancada seca do teto afundado na minha cabeça. A escuridão. Bip...

bip...

bip...

meio

da

feita,

pensamento

tos

persistente

dilacerantes,

o

primeiro

escuridão.

ordenado, lágrimas.

som

Audição e

só.

Um

no per-

Lamen-

contundente

prognóstico: sem esperanças. O

tempo

partiu-se

como

o

para-brisa.

Somente a memória me servia como carrasco e guardiã. Impossível o menor movimento. Fiquei escravo da involuntária vontade da minha numa

musculatura, inerte

letargia

para

respirar

punitiva.

Uma

e

pulsar, dor

um

pouco ardida no braço esquerdo me dizia que o alimento vinha por ali. Ah, quantas vezes desprezei os almoços e jantares com a família!


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Os sussurros aumentaram e tive a impressão de que se espalhavam ao redor da cama.

Vozes

conhecidas

começaram

uma

antiga canção de Natal. O bip acelerou, mas creio que ninguém percebeu. Pude sentir o perfume delicado de alguma flor, creio que daquelas que eu mandava comprar no aniversário de alguém, sem me dar ao trabalho de ir escolher. Depois veio o primeiro beijo, e o segundo, e o terceiro. O calor e a umidade

daqueles

lábios

delatavam

lágrimas

dis-

solvidas nos rostos. O bip acelerava. Quem eu go?

estaria

deserdara

ali?

vinham

Quantos perder

dos

tempo

que comi-

Impossível saber. Somente uma pessoa

eu podia ter absoluta certeza, quando me abraçou e deixou em meu rosto um beijo molhado

de

perdão;

minha

alma

agitou-se.

Queria retribuir o abraço e o beijo do meu filho. Dizer que o amava. Recuperar os outros Natais, e todos os dias em que estive distante.

Não

era

possível

aquela

inércia!

Reuni todas as minhas forças e, num único impulso,

embora

me levantar.

o

bip

alucinado,

consegui


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Surpresa, mais to

ali.

decepção.

Somente

branco,

com

via

lírios

Eles

não

um

grande

vermelhos

estavam quar-

colocados

numa mesa ao canto. Mas onde estavam os aparelhos? Que fim dera o bip que eu não mais ouvia? Onde estavam todos? Olhei para o meu corpo e o descobri em perfeito estado. Apalpei-me sobre o pijama todo branco e vi que estava tudo bem. Respirei funcionar

profundamente normalmente.

e

senti Quase

meu em

corpo delírio,

saltei da cama e flexionei as pernas e os braços. Rodei o pescoço, estiquei os dedos. Perfeito! Onde estavam todos? Fui até a porta e a abri. Para o lado esquerdo, um longo corredor que terminava numa porta de vidro fosco. Para o direito, a mesma coisa, porém, com a diferença de que, logo ao lado da minha porta, havia um jovem sentado em um banco pintado de branco, usando uma túnica azul-clara. – Olá! – ele me disse.


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– Que hospital é este? – respondi com uma pergunta abrupta. – Onde está minha família, você pode me informar? – Estão todos esperando por você, mas estava difícil você despertar. – Você é médico? – Apenas um enfermeiro. Senta aqui, eu também estava esperando você despertar. – Como podia saber que eu ia despertar? – perguntei, sentando ao seu lado. – Há muito que eu espero por isso... – Há muito! Mas há quanto tempo estou aqui? Eu estava em coma, não é? – Isso mesmo. O acidente aconteceu há oito dias. E que batida na cabeça, hein? – Então... oito dias... como faz tempo que você espera que eu desperte?

muito

– Ah! Não é desse despertar que estou falando... eu me refiro ao despertar da sua consciência. Não que você seja um mau sujeito, mas...


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– Ei! Que conversa é essa? – Já se esqueceu de tudo que pensou enquanto estava em coma? – Como você pode saber o que eu pensei? Ele levantou e andou de um lado para outro no corredor por alguns momentos, olhando-me algumas vezes. Não precisou muito tempo para que eu começasse a me irritar. – Não vai responder a minha pergunta? – Estou dando um tempo para que você mesmo entenda... será tão difícil assim? – Olha aqui rapaz, não estou aqui para perder tempo. Melhor eu chamar um médico, já estou bem e preciso ir para casa. Enquanto falava, levantei e fui em direção da porta do quarto. Na entrada, parei, assustado, recuando logo em seguida. Olhei novamente para o enfermeiro, sem acreditar no que vira. Ele apenas me olhava com um sorriso amável. Voltei novamente à porta e


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foi impossível não entender, assim como foi impossível conter a emoção. Lá dentro todos choravam e o alvoroço era grande. O quarto não era mais como o que vi ao despertar; uma enfermeira falava ansiosa ao telefone, e eu estava lá, inerte sobre a cama. Voltei para o corredor e sentei no banco. Olhei novamente para o enfermeiro e perguntei: – Quem é você? Meu anjo da guarda? –Mais ou menos. Não é muito fácil para você

entender,

assim,

de

repente.

Digamos

que eu faço parte da equipe dele. Meu nome é João. Então era isso? A morte? Como eu poderia

imaginar

que

seria

assim?

Coloquei

as

mãos no rosto e deixei as lágrimas escorrerem entre meus dedos. Depois de alguns minutos, João colocou a mão no meu ombro e falou: – Meu amigo, não é bem o que você está pensando. – Como assim? Eu morri, não morri?


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– Morrer? Não, claro que não! A morte não existe... ninguém morre, só mudamos de plano... – Grande consolo! – Mas não foi nem isso. Ainda não é sua hora. – Não? Então, o que eu estou fazendo aqui, fora do meu corpo? – Fora, mas ainda não desligado. Deixa eu explicar: nós projetamos uma vida para você, onde fosse possível a correção dos seus principais defeitos. Analisamos todas as possibilidades, preparamos os encontros, estimulamos a profissão mais provável, ajudamos nas horas decisivas, mas... sempre que apareciam as oportunidades valiosas de você aprender, se modificar, crescer, o que você fazia? Fugia, se esquivava, deixava para amanhã, fazia de conta que não era problema seu. “Bem, é claro que isso já era previsto. Como eu disse, avaliamos todas as possibilidades, e uma delas, se você não estivesse sen-


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do bem sucedido, era o acidente e o coma. Foi uma pancada e tanto!” Ele deu um tempo, sabendo que era preciso eu compreender melhor o que me dizia, embora fosse claro como a luz do dia. Logo em seguida continuou: – algo

Para

quase

parecido,

entende. aprender aparente

todo

mas

Quando

a

a

mundo

maioria

pessoa

naturalmente, tragédia,

uma

acontece

ainda

não

não

consegue

sempre

uma

doença,

uma

per-

da. Sempre há uma linha torta por onde Deus te.

escreve.

Nos

adormecia

Com

últimos em

você

dias,

coma,

não

foi

enquanto seu

difereno

espírito

corpo teve

a

oportunidade de refletir e entender muita coisa que estava emperrada. Por isso ainda não é sua hora. Na teoria você já sabe, Deus está lhe dando mais um tempo para praticar... Eu sorri meio sem jeito, sem saber se demonstrava alegria ou vergonha. Só pude dizer: – Obrigado, João.


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– Não agradeça a mim. Na verdade, nesse arranjo todo, outras pessoas que convivem com você também estão aprendendo. Apesar de parecer uma tragédia, é um presente de Deus para você e sua família, afinal, hoje é noite de Natal... mas, é melhor você se apressar, senão... – Senão? –Vai levar um baita choque... Levantei assustado e fui até a porta. Um médico preparava os pólos de um desfibrilador, enquanto a enfermeira ajustava a intensidade. Ainda olhei para João e disse: – Feliz Natal! No momento exato em ele ia encostar os pólos no meu peito, mergulhei sobre meu corpo. Não dava tempo de perguntar ao João como deveria fazer isso. Ao menos deu certo. Por instantes perdi os sentidos, mas, logo em seguida, senti meu corpo estremecer e meu pulmão reagir à pouca quantidade de ar com um longo suspiro. Mesmo com uma verdadeira algazarra de palavras


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que se seguiram, o primeiro som nítido que ouvi foi o bib. Bendito o bip! Abençoado o bip! Abençoada a vida, que me dava outra chance. Não sei exatamente o que aconteceu em seguida.

Somente

lembro,

embora

de

ma-

neira meio embaçada, dos rostos atônitos e alegres do meu filho e da minha mulher. Em seguida, tive a impressão de cair num sono profundo e sem sonhos. Quando voltei a mim novamente, logo que abri os olhos, vi que a luz do sol invadia, com sutileza, as frestas da veneziana. Era fácil de entender que era o primeiro sol do dia, me presenteando com o amanhecer. O bip estava regular. A porta do quarto abriu-se e um enfermeiro entrou com uma bandeja de medicamentos. Sorriu e comentou: – Que bom que está acordado! Foi quase um milagre, os médicos ainda não entenderam direito o que aconteceu... nem a família... acho que logo estarão todos de volta... – Acho que foi um presente de Natal...


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Ele sorriu, com alguma cumplicidade, e deu-me dois comprimidos para tomar. Não falou mais nada, mas sua presença irradiava simpatia. Quando se despedia, perguntei: – Qual o seu nome? –João... meu nome é João. Vamos nos ver muito, sua família me contratou para ajudar a cuidar da sua saúde... –Verdade? – Ainda teremos bastante tempo para conversamos... mas, por enquanto, feliz Natal pra você também.


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Belíssimas histórias de Natal escritas sob a ótica espírita com o objetivo de meditarmos sobre o verdadeiro significado da comemoração do nascimento de Jesus.


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