Retratos de Minha Mãe

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Retratos de Minha Mãe

Poesia

José Sepúlveda 3


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Singela homenagem à minha progenitora que num gesto de amor me mostrou a luz do dia.

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Ditosa Mãe Ditosa mãe que quando envolta em dor Um dia fez brilhar o meu olhar E o peito escancarou com tanto amor Junto ao meu berço, p’ra me alimentar. Ditosa mãe a que me viu crescer, De mim cuidou durante toda a vida, E quando viu o amor acontecer, Chorou porque eu estava de partida. Ditosa mãe que olhava para os céus E procurava ali junto de Deus, Dobrada em seu altar, orar por mim. Essa extremosa mãe que não me esquece, No seu profundo sono permanece E em silêncio chama: - Vem a mim!

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Geninha conheceu no Areal, Em Santo Tirso. Dessa relação, Seis filhos lhes nasceram. No final, De todos, fui o único varão. A Ema, a Tila, a Lurdes - estas três E eis que vi chegada a minha vez 9


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Meus pais Meu pai era alfaiate, um homem santo, Mãezinha era enfermeira se dizia Chamavam-lhe enfermeira pelo encanto Que transmitia em tudo o que fazia. Vivíamos na aldeia. Entretanto, Levado pela crise que fazia Meu pai foi procurar um outro canto Aonde reencontrar sua alegria. Rumou para Lisboa. A vida dura Que ali foi encontrar tornou mais pura A relação que entre os dois havia. E, com suor e lágrimas, um templo Aos poucos construíram para exemplo De netos e bisnetos cada dia.

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Avó Clotilde O teu olhar tão triste, tão cansado, Me fala do sofrer que vive em ti E esse andar já trôpego, pesado, Me diz que o teu viver não te sorri. Ai, minha avó, eu sento-me ao teu lado E fico sem saber o que fazer E nem o meu abraço dedicado Te faz sorrir, te dá algum prazer! Saltito, brinco, dizes com carinho: - Ai, quem me dera ter, meu bom netinho, As pernas e a genica que há em ti! O meu corpito, frágil, delicado, Te abraça... E num silêncio apaixonado, Te diz: - Minha avozinha, estou aqui!

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Avô Luís Tu foste o avô que nunca conheci; Nasceste em berço humilde, muito honrado, Um homem te fizeste, enfim, por ti, Mas sempre com Clotilde do teu lado. Foi quando o teu espírito altruísta Ao corpo de bombeiros se entregou, Degrau após degrau, sem dar na vista, A cargos importantes te levou. Geninha, a tua filha, te seguia E nos bombeiros, sempre que podia, Naquele bar deixava o seu sorrir. E foi então que, no galgar do tempo, Tocaram a “sirene” e num momento O “Comandante” teu se fez ouvir.

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Vagidos magoados, Uma lágrima de alegria Vista nos olhos de quem sofreu… E acordei, Fui eu, O bafo da vida que te bateu… E do amor nasci! 15


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Milagre da vida O sol desponta cedo nesse dia E a D. Dália sai preocupada Para assistir com rasgo e ousadia Dois partos simultâneos, junto à estrada. Com ar ansioso, em zelo se perdia, Corria espavorida e apressada P'ra ver qual a criança que nascia Primeiro nessa longa madrugada. E enquanto a D. Dália corria, A minha mãe em dor se contorcia E elevava preces para o céu. Do outro lado Rosa se esvaía Ao ver que seu rebento não nascia... E nesse meio tempo, nasci eu!

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Naquela noite Durante toda a noite e madrugada Mãezinha contorcia-se com dor, Olhava para o ventre e aguardava O filho que lhe dera o Criador. Vagidos magoados. Triunfante, Mãezinha viu chegada a minha hora E do amor nasci e num instante A nova se espalhava por lá fora. E logo aquela voz angelical Anunciava em todo esse local Que um filho divinal ali nascia. Pastores, camponeses, muita gente, Queriam, cada qual com seu presente, Saber das Boas Novas de Alegria!

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E do amor nasci Seriam oito horas menos dez Naquela quinta-feira longa e fria; Ela corria para os dois bebés Barata tonta a ver qual deles nascia. Portela antiga. Andou de lés-a-lés Saltando casa a casa, noite fria; Sentia-se quais “trapos de polés” Naquele Abril, manhã de um longo dia. Naquele quarto, agora plena rua, Prostrada lá num quarto, toda nua, A minha mãe em sangue se esvaía. Ó estridente som! Na porta ao lado, Guitarras a trinar o mesmo fado, Enquanto outro milagre acontecia.

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Momento Perdido no tempo Em dado momento Em dores nascia Ali na Portela Na noite singela Geninha paria Na porta do lado Passado um bocado Rosinha gemia No noite perene Momento solene Balbina surgia Perdidos no tempo Ao frio e ao vento Novas de alegria Coisas do destino Menina e menino Os dois num só dia

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As nossas camisolas de tricot Quando era pequenino, a Saluquita Tinha uma camisola igual à minha Bordada, colorida, tão bonita E tricotada à mão pela mãezinha. E ao passear na rua ou no jardim, Com nosso pai, felizes, toda a gente Olhava para si e para mim Com outro encanto, carinhosamente! E o nosso pai, cheiinho de vaidade, Irradiava paz, felicidade, Por ter-nos a seu lado... Mas não só! No seu olhar, aquele olhar singelo Da nossa mãe a tricotar com zelo As nossas camisolas de tricot!

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… Geninha era um encanto. Trabalhava No Posto de Saúde - Auxiliar. Mas toda a gente, quando lá chegava, Por “enfermeira” a haviam de tratar. O seu afável trato, delicado, Lhe dava o estatuto desejado.

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A velha máquina a petróleo Era bem cedo. Com perseverança, A minha mãe saía pró trabalho. Em casa, lá deixava a Esperança, A Ema, a Tila, a Dinhas e o “pirralho”. Quão grande era o cuidado que ela tinha Pra não deixar a casa em alvoroço! A Esperança iria prá cozinha E adiantava as coisas pró almoço. Então, a velha máquina acendia Numa euforia louca. Até que um dia, Deu mais pressão... e então se incendiou! As chamas que voaram no espaço Deixaram bem vincadas no seu braço, As marcas que na vida carregou!

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Um dia de Festa Naquele dia lindo, a Saluquita Vestia o seu vestido de organdi E a touca, que tornava mais catita A face mais mimosa que já vi. O seu corpinho frágil, delicado, Sentia que tremia o coração, Mas a orgulhosa mãe, atenta, ao lado, Depressa apaziguava essa emoção. Numa pequena salva, transportava A “chave” que o Diretor lhe entregava P’ra quando ali chegasse o Presidente. E as portas, nessa tarde tão bonita, Abriram-se. E então, cortada a fita, O Posto foi entregue ao povo, à gente!

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Exemplo Geninha me ensinou quando menino A agir perante os outros com dulçor Que desse a toda a gente o meu carinho Em troca dum sorriso, duma flor. E eu lá fui seguindo o meu caminho Levando e dando provas desse amor, Se alguém me dava rosa com espinho Guardava o seu perfume, nunca a dor. E fiz o meu caminho caminhando E quando me cruzei de quando em quando Com dissabor estranho ou alibi, Essas palavras tive em minha mente: "Não faças a quem tens à tua frente Aquilo que não queres façam a ti"!

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Dias tristes As lágrimas caíam nesses dias Em turbilhão, correntes de sofrer... Carente de carinho, tu querias Apenas um abraço em teu viver... Perderas a afeição. Já não sorrias Que a vida te roubara o seu prazer; Naquele tanque as roupas escorrias Na esperança dessas mágoas esquecer... Mas, de repente, olhavas, dom superno, E o brilho desse olhar tão meigo e terno Iluminava tudo ao meu redor... E num abraço imenso de carinho, Dizias-me ao ouvido bem baixinho: - Abraça-me, meu filho, por favor!

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Noite de consoada. Num cantinho Da sala, espalhávamos no chão O musgo do presépio e o azevinho Colhido para aquela ocasião. E logo após a nossa consoada Cantávamos por toda a madrugada. 34


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Tradição de Natal Acendam-se as luzinhas no pinheiro E brilhe a estrelinha no curral, Fiquemos na cozinha o dia inteiro Para que seja alegre este Natal. Peguemos as amêndoas, os pinhões, As avelãs, as nozes e os figos; Já cheira a aletria, a coscorões E a água está fervendo p'rós mexidos. Depois, o arroz doce, as rabanadas Quentinhas e na hora bem regadas Co' a calda feita na ocasião. Comamos a batata, o bacalhau, Depois que venha o loto, o berimbau, Mantendo alegre e viva a tradição!

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O Dia de Natal Bem de manhã saltávamos da cama E íamos ao musgo, ao azevinho, Para montar a simples choupana Aonde aconchegar o Deus-Menino. E, recolhidos líquenes e rama E enfeites que surgiam no caminho, Voltávamos felizes, com a chama P’ra iluminar o nosso pinheirinho. E pela tarde, enquanto na cozinha A tia Pacha andava co'a Geninha Fazendo rabanadas, aletria, Partíamos pinhões, nozes e figos Para deitar por cima dos formigos, Rapando os tachos, cheios de alegria!

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… na sazão da vida adormeceu o coração de minha mãe, um coração humilde e bom que soube amar como ninguém... descansa em paz, mãe querida! descansa, mãe!

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Não vás! Espera, mãe, é longa a madrugada E o dia já não tarda a cá chegar, De resto, o que lá vem, não vale nada E não sei o quanto mais hei de esperar. Há tanta flor na berma do caminho Que quer beijar a tua face linda! A rosa, o malmequer, o azevinho, E hortênsias a florir, há tanta, ainda! Espera, um pouco, espera mais um dia, Quero sentir a tua companhia, Espera até que chegue um outro Abril. Mantém em mim a fé e a confiança, E cantaremos hinos de esperança Contigo do meu lado, em teu redil!

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Sabias, Mãe? Quando nasci ali na nossa aldeia Nessa manhã de abril tão fresca e bela, Os teus gemidos numa casa cheia, Se ouviam pelas frinchas da janela. Vagidos magoados, sangue, dor, Amálgama de paz e sofrimento, Momentos de ternura, grande amor, E toda a nossa gente em movimento. O pai rejubilava, era um rapaz! E o sentimento livre que nos faz Gritar, gritar sem termo, até chorar, Me transformou assim naquele infante Que quis na sua vida longa, errante, A mesma cruz contigo carregar.

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Mãe Quanta saudade, mãe, quanta saudade Do teu olhar perene de paixão, Dum coração imenso, da amizade, Da tua mão pousada em minha mão. Preciso reencontrar todo o encanto Do teu sereno olhar, dessa alegria, Que muito cedo, para nosso espanto, Numa manhã de Março se esvaía! Regressa, mãe, eu quero o teu carinho, Vem! Diz-me no ouvido bem baixinho Que um dia vais voltar, ó mãe querida! E com todo o saber do coração, Vem, diz-me por favor porque razão Eu vivo em teu viver por toda a vida!

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Saudade, mãezinha Guardo no peito a força desse afeto, Os olhos teus tão cheios de ilusão E esse tempo curto, mas discreto, No qual te davas de alma e coração. Recordo o imenso abraço que trazias Inesperadamente, a qualquer hora, Quando na vida, a gatinhar nos dias, Queríamos partir daqui pra fora. Sinto no olhar aquele teu sorriso, Quem sabe se um alerta, se um aviso Lançado quando a vida não sorri. Saudades, mãe, não sei porque partiste, Não sei se vivo alegre ou vivo triste, Apenas sei: não sei viver sem ti!

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Momentos tristes!... Deitada nessa cama aonde dormi Dias sem fim, estavas, sem disfarce, Num sofrimento atroz; e eu senti As lágrimas correndo pela face. Olhavas para mim, olhar profundo! E ao ver sofrer assim teu coração, Olhava à volta, um mundo tão imundo Que me roubava a força da razão. Vida cruel, ingrata, sem sentido! No teu leito de dor, eu, condoído, Chorava, nem sei bem porque partiste! Vagidos magoados, foste embora, Deixaste um coração que, aqui e agora, Não para de chorar teu olhar triste.

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Sonhei contigo Sonhei contigo, mãe, vi-te sorrir Feliz, contente, alegre em teu viver E ao ver-te assim não pude resistir E agradecer ao mais sublime Ser. Depois, ao te abraçar, vivi em mim Aqueles dias cheios de esperança E vi brilhar o teu sorriso assim Num cândido sorriso de criança. E quando despertei do sonho lindo Permaneceu o teu olhar infindo Num manancial de vida e de emoção. E agora sinto ainda o teu abraço A viajar sem tempo e sem espaço, No afago do meu frágil coração.

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Quando partiste Naquele dia longo em que partiste E foste descansar na tumba fria, Deixei de ser quem era, fiquei triste, Contigo foi também minha alegria. Desvaneceu-se o sonho e a quimera! O meu olhar no teu se concentrou E a nossa mente ali ficou à espera Da primavera que não mais chegou. Tão cheios de esperança, os olhos teus Se volvem finalmente para os céus E logo a tua angústia se desfaz. Do alto, do infinito, o Salvador Ao ver-te assim, com seu olhar de amor, Tão pronto, respondeu: Descansa em paz!

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Quero abraçar-te Choram meus olhos com tristeza, mágoa, Olhando o imenso olhar que me sorri, Ao recordar-te, são correntes de água Que brotam dos meus olhos para ti. Um grito de saudade, até que um dia, Iluminada por um novo olhar, Na volta de Jesus, na parusia, Bem certo nos havemos de encontrar. Saudades, minha mãe, o teu carinho Que vive tão presente em meu cantinho, Invade a cada instante o meu pensar, Levanto os olhos meus, canto baixinho, Vagueio confiante em meu caminho Ao ver tão vivo em mim teu doce olhar.

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Ele vem, mãezinha! Noventa e oito estrelas a brilhar No féretro no qual em paz descansa O corpo teu que anseia recordar Aqueles tempos lindos de criança. Noventa e oito rosas a voar Que espalham seu perfume, o seu olor, Confiantes que esse dia vai chegar E tu vais-te encontrar com teu Senhor. Repara, mãe, teu anjo está contigo E anseia ver voltar o nosso Amigo Com legiões de anjos ao redor. E quando essa trombeta enfim soar, Tu vais do longo sono despertar E com Jesus subir ao Lar do Amor.

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Índice Ditosa Mãe .........................................................7 Meus pais .......................................................... 11 Avó Clotilde ...................................................... 12 Avô Luís ........................................................... 13 Milagre da vida ................................................ 17 Naquela noite ................................................... 18 E do amor nasci ............................................... 19 Momento ..........................................................20 As nossas camisolas de tricot ...........................23 A velha máquina a petróleo .............................27 Um dia de Festa ...............................................28 Exemplo ...........................................................30 Dias tristes .......................................................32 Tradição de Natal ............................................36 O Dia de Natal .................................................37 Não vás! ...........................................................40 Sabias, Mãe? .................................................... 41 Mãe ..................................................................43 Saudade, mãezinha ..........................................45 Momentos tristes!... ..........................................46 Sonhei contigo ..................................................47 Quando partiste ...............................................48 Quero abraçar-te ..............................................49 Ele vem, mãezinha! .......................................... 51

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