MUZENZA: uma percepção sonora da dança cênica negro-brasileira.

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MUZENZA:umapercepçãosonoradadançacênicanegro-brasileira.

MUZENZA:asoundperceptionofblack-brazilianscenicdance.

MaicomSouzaeSilva 1

RESUMO: A partir da montagem do espetáculo dedançanegro-brasileiraMUZENZA dialogamos sobre as suas proposições sonoras e filosóficas que contribuíram para o processo criativo e dramatúrgico. Atravessado pelas mitologias dos orixás Ossaim e Oxóssi e suas relaçõescomasabedoriasdaservaseasraízesdaculturanegro-brasileira articulamos redutos quefomentamaenunciaçãodecorporeidadesnadançacênica.

Palavras-chave: Reduto;Corpo;Dançanegro-brasileira;Filosofiasafrodiaspóricas.

ABSTRACT: From the production of the black-brazilian dance show MUZENZA, we discussed the sound and philosophical propositions that they develop for the creative and dramaturgicalprocess.CrossedbythemythologiesoftheorixásOssaimandOxóssi and theirrelationshipswiththewisdomofherbsandtherootsofblack-brazilianculture, wearticulate redutos thatencouragetheenunciationofcorporeitiesinscenicdance.

Keywords:Reduto;Body;Black-braziliandance;Afrodiasporicphilosophies.

Introdução

Emumbailefunknoterreiro,muzenzassereúnemparacelebraroseuilá2 ao somdaDJIyálo Umeventoqueunepassado,presenteefuturo,umaviagem pelasraízesdaterraaossonsdostamboresedossaberesquecirculamnas ervas,nosbatuquesdecandomblés,nosamba, nofunkenocotidiano brasileiro (Sinopse MaicomSouza,2024)

Desde fevereiro de 2024, sou coreógrafo noespetáculoMUZENZAdoColetivo Emaranhado3 , grupo de pesquisa em arte afrorreferenciada na cidade de Vitória (ES). Com três artistas em cena, o trabalho aborda o corpo e o movimento a partir das mitologias dos orixás das matas e suas respectivas cosmopercepções na linguagem dos candomblésdenaçãoAngola.

O nome do espetáculo estabelece uma interlocução com a ordemhierárquicado Candomblé Angola, refere-se a um título atribuído aos iniciados no ilê. Função que configura um papel social e organizacional específico, em que os filhos-de-santo estão engajados no processo de aprendizagem sobre as sabedorias do terreiro e deste espaço socioreligiosoquepertenceaocotidianocandomblecista.

1 DoutorandoemestreemmetafísicapelaUniversidadedeBrasília(UnB).E-mail:maicomssouza@gmail.com

2 Grito característico de saudação de cada orixá, que ocorre no início, durante e no final das incorporações. (BARROS,2007)

3 https://www.coletivoemaranhado.com.br/

No caso da comunidade, o ser individual seintegracoletivamente,formando o corpo coletivo, a comunidade, ela própria, que se organiza e reorganiza pelas experiências vivenciadas no cotidiano do convívio socioreligioso E a participação dos membros dacomunidadenasfestasreligiosas"temquetero mesmopeso"daparticipaçãopolíticaesocial.(BARROS,2007,p.45)

A proposta, aqui, é descrever brevemente sobre um processo de composição sonora que reverbera na elaboração de estéticas da dança cênica negro-brasileira. O espetáculo possui como propósito apresentar um fluxo não linear de reflexões sobre as raízes que pertencem a ancestralidade negro-brasileira, dispondo enquanto epicentro criativo a vivência dos muzenzas para fundamentar, reunir e organizar conhecimentos queenunciamamanutençãodassabedoriasnegro-africanas.

Dependendo dos fundamentos de cada comunidade, após um determinado período, a noviça ou noviço, agora designados como muzenza, nos Candomblés Angola e iaô, nos Candomblés Queto, receberão um nome iniciático que não é o mesmo do batismo, podendo, entretanto, ter ligações lexicaisedesentidocomele (BARROS,2007,p 46)

Propomos neste artigo registrar, a partir das premissas do reduto, os nossos processosdetomadadedecisãoparaconstruçãosonora.Compartilhamosostrajetosque adotamos para esquematização da trilha que reverberam em características corporais que vão compor os personagens e a dramaturgia do espetáculo. A metodologia do reduto aborda a cartografia social, neste caso, especificamente, a da cultura negro-brasileira. Tomamos a diáspora negra como um fato histórico de resistência, coextensivo a um campo social brasileiro, no qual as representações de cultura negro-brasileiras e indígenas foram, por séculos, tratadas como inferiores, passando pelo processo epistemicídio. Dessa forma, este artigo visa a um engajamento para a emancipação da arte negra, tendo como aporte os nossos próprios discursos na contemporaneidade sobre a estética negra, saber que se revela em contramão às epistemologiasfixas,irrefutáveisecomviéseurocêntrico.

Assim, apresentamos algumas escolhas dramatúrgicas do processo criativo para elaboração da trilha, sinalizando as escolhas sonoras e alguns processos de estruturaçãodomovimentoquesurgeapartirdosom.

Figura1-TeaserMUZENZA

https://youtube/X2tV1YW2N o?si=lQFHxT871Jgbr sa

Reduto-Possibilidadesemtrajetos

Para alinhamento de nossa pesquisa, denominaremos este processo de articulação e registro de sabedorias sobre a dança cênica negro-brasileira como reduto. Trata-se de uma estrutura para o assentamento, a reflexão e o fomento da enunciação de poéticas e possíveis ontologias no campo das artes cênicas negro-brasileira. Pensamos o reduto como um conjunto de forças, articulações e informações para a enunciação de uma comunicação afrodiaspórica dentro da filosofia na dança. O conceito se alinha na união de possíveis agentes materiais e subjetivos para a construção de narrativas que se apetece das sabedorias na afrodiáspora: um encontro de saberes que confluem em prol de uma comunicação que visa ao engajamento, ao registro e à emancipação de caminhos e empreitadas que propõem um posicionamento afrorrefenciado no processo de montagem de trabalhoscênicos.

Temos o reduto como uma estratégia em demarcar a expressão de possíveis sabedorias criativas e coreográficas delineadas em mapas conceituais. Os mapas atuam como medulas espinhais que transmitem informaçõesparaqueoobservador elabore uma análise discursiva. É por meio desses signos, que são informações entendidasemediadaspelossentidos,queopesquisador estruturaumacoordenação visual e em seguida textual dos disparadores coreográficos, com uma atenção especial às motrizes que entrecruzam pensamentos, memórias e sensações cujo epicentroéaafrodiáspora.

Os desenhos, textos e iconografias do mapa conceitual formam um corpo enquanto epicentro da radiação de interpretações e sabedorias que tangenciam um espaço ancestral de enunciação, entrelaçando subjetividades e novasobjetividades: umcampodeinformação visual,sensorialeinterpretativaqueenviamensagens.

A partir dos mapas, tecemos informações sobre como o coreógrafo cria, informa, acentua e/ou indica o trabalho corporal do bailarino(a) dentro da dança

cênica negro-brasileira. Por meio deles identificamos as nascentes gnosiológicas que acionam o tônus muscular e criam movimentos que se desdobram em vocabulárioscoreográficos.

Então, no reduto, o pesquisador se colocanoepicentro dapesquisaedecide a sua trajetória a partir de duas possíveis caminhadas, que são o(i) autoregistro eo (ii) crivo. O primeiro abarca a elaboração auto-analítica-discursiva de possíveis caminhos dramatúrgicosemumaobracênicaafrorreferenciadanadança;osegundo, por sua vez, diz respeito a observar, registrar e tecer informações analítico-discursivas sobre um trabalho cênico de outrem que visa a ser uma obra afrorreferenciada na dança.Ambaspartemdaesquematizaçãodemapasconceituais, que em nosso caso serão representados por conexões a partir do Garfo de Èsù, elemento iconográfico do òrìsà que comumente é conhecido por sua potência de comunicação.

Deste modo, o autoregistro se debruça em propostas a partir das quais o pesquisador decide sistematizar suas práticas criativa, coreográficas e trabalhos cênicos por meio da estruturação de um conjunto de elementos iconográficos, gestuais, conceituais, materiais e imateriais em mapas conceituais que funcionam como disparadores e agenciadores do processo coreográfico sendo o mapa, por sua vez, a nascente do processo de pesquisa que, somado às orientações coreográficas alinhadas com a trajetória de pesquisa do coreógrafo, desdobram-se em trabalhos cênicos. Já no crivo, o pesquisador se coloca no epicentro de uma pesquisa e propõe observar e sistematizarinformaçõescartográficassobreumaobra afrorrefenciada de outrem. Trata-se de uma dinâmicanaqualopesquisadorobserva e registra possíveis noções de ancestralidade, mas principalmente os locais subjetivos que os coreógrafos emanam verbalmente para consolidar no corpo a gestualidade negra, pois neste processo de enunciação verbal de informações e analogias é que emerge uma possível arquitetura filosófico-cartográfica de subjetividades que comunicam um agenciamento das sabedorias negras. Reitero, ainda, que para além do que é escutado precisamos abrir a nossa percepção para o queévisto,sentido,experienciadoetc.

Para tanto, acentuamos que este texto se aproxima do autoregistro enquanto forma de agenciamento epistêmico, pois nos debruçamos em estabelecer espaços tangíveis e intangíveis para a elaboração e construções sonoras, e em seguida gestuais na dança negro-brasileira. Nossa intenção traz a voga como articulamos e reivindicamosredesdesabedoriasparaaconstruçãocênicaecoreográfica,criandoo

queacreditamosserum reduto cênico-ontológico.

Figura2-GarfodeÈsù Proposiçãodeumacartografianaencruzilhada

Fonte:MaicomSouza(2023).

Ensaio-prolegômenos

Queremos apresentar a partir do reduto o trajeto gnosiológico que, enquanto coreógrafo, criei para esquematização da sonoridade e para que obailarinoencontrasse um cenário para sistematização, construção e sensibilização corporal do seu personagem. Então, inicialmente apresento os prolegômenos4 que estabeleci para criaçãodatrilha,paraemseguidaapresentaromapaconceitualdapropostasonora.

Para tanto, ao esquematizar a concepção sonora, pensamos como prolegômenos os desdobramentos dotermoraizenquantoelementosdisparadoresnoprocessocriativo, adotando as seguintes percepções: (i) a raiz para além das ervas e (ii) asraízessonoras do povo negro-brasileiro, a interconexão entre os batuques de candomblés, o beat do funk,osambaeocotidianodosterreiros.

4 São elementos que apontamos como disparadores no processo criativo coreográfico/corporal do personagem, agentes que sinalizam um possível ambiente ancestral para a pulsão de corporeidades, constituindoosingredientesqueerguemo reduto cênico-ontológico doespetáculo/artista

Reduto-epicentrosancestrais

Figura3-Reduto Ambienteancestralparaapulsãocriativa

Fonte:MaicomSouza(2024)

Transbordando o conceito de raiz e incorporando as proposições que sereferem ao tempo enquanto uma concepção ancestral que une passado, presente e futuro, estabelecemos como reduto criativo da trilha, três ritmos para a proposta cênicas; o samba,funkeosbatuquesdecandomblés.

Iniciamos a pesquisa sonora estudando os hinos de escolas de samba capixaba.

Trouxemos para o trabalho o hino do G.R.E.S Unidos da Piedade5 , a escola de samba mais antiga do Espírito Santo, o hino do G.R.E.S Novo Império6 , a agremiação eleita como a melhor bateria de escola de samba do estado, conhecida como a “Orquestra

5 Herdeira de blocos carnavalescos como o “Amarra o Burro” e o “ChapéudeLado”,oseunomesurgiu do bairro Piedade, onde foi criada. Atualmente, a escola está localizada em Fonte Grande, no Centrode Vitória A Unidos da Piedade foi oficialmente fundada em 15 de janeiro de 1955 A escola foi15vezes campeãdocarnavalcapixaba

6 Fundada em 20 de dezembro de 1956, sediada no bairro de Caratoíra, na região de Santo Antônio em Vitória,éumadasmaisantigasetradicionaisescolasdesambadoEspíritoSanto

Capixaba de Percussão” e o hino do G.R.E.S Unidos de Jucutuquara7 , a escola possui como símbolo em seu estandarte a coruja, que em nossa percepção faz uma relação intersubjetiva com a proposta dramatúrgica doespetáculo,quepossuicomopesquisaos orixásdasmatas,danaturezaedasfolhas.

Destaco que optamos por incluir no processo criativo apenas os hinos das escolas de samba e não trecho de sambas enredos, pois consideramos que os hinos são raízes; estruturas da comunidade e da historicidade das agremiações, símbolo de exaltaçãoeorgulhoancestral.

No que tange aos grooves dos paredões de caixas de som, optamos em trazer para a composição os beats defunkscontemporâneos,queseinspiraramnasíncopedos anos 90 e 2000. A concepção da trilha é entrelaçada principalmente pelos beats do DJ

Sany Pitbull, Dj Edgar, Dj Karolla, Mano Tensão, Goes e Leo Justi. Os seus remixese faixas autorais possuem traços de abordagens estéticas inspiradas no funk dos anos 90/2000, espaço temporal que adotamos para construir a dramaturgia sonora dos beats quetransversalizamotrabalho.

Dentro da dramaturgia do espetáculo pensamos o funk como um fruto que germinou das raízes dos candomblés. Queremos, assim, transpor um possível imaginário social “romantizado” e desatualizado que relaciona os candomblése“dança afro-brasileira” apenas às sonoridades dos toques rituais rum, rumpi e lé8 . Na intençãoderefletirsobreasreverberaçõesdoscandomblésemnossocotidianosocial.

O Congo-de-Ouro é um ritmo tradicional afro-religioso e característico da musicalidade afro-brasileira, que está presente no Candomblé Angola e também na Umbanda e que auditivamente é associado ao Funk Os três tambores (Rum, Rumpi e Lé) são o ponto de partida para entender essa associaçãorítmicadoCongo-de-OurocomoFunk (OLIVEIRA,2021,p 11)

Defendemos que há um diálogo entre o funk e os toques de candomblés.

Portanto, esses ritmos podem interagir e compor a roupagem de um dramaturgia inspirada nos orixás. Por este fato, entrelaçamos asmitologiasdeOssaimeOxóssicom asonoridadedofunkedosamba.

Ossaim que na mitologia iorubana é conhecido como o detentor dos conhecimentos das ervas e das vegetações. “Todos os santos são raizeiros, porém o

7 Foi fundada em 29 de janeiro de 1972 como bloco. Venceu setevezesogrupoprincipaldocarnavalde Vitória

8 Os três atabaques utilizados nos rituais possuem dimensões e nomes diferentes e, por consequência, produzem sons cujas alturas variam de acordo com seu tamanho: o maior e mais grave é chamado de "rum"; o médio é denominado "rumpi"; e o menor, portanto mais agudo, é o "lé" (CARDOSO, 2006, p55)

dono incontestável das ervas, o médico, o botânico, é Ossaim.” (CABRERA, 2012, p. 86). Na comunidade dos matanceros, localizada na província de Matanzas, em Cuba, este orixá não tem pais, ele apenas surgiu das profundezas daterra,nãonasceu.Assim, quando querem conversar com o orixá dão três pancadas firmes no chão. Após seu surgimento, Ossaim recebeu deOlorumosegredodo ewé (plantas),damanipulaçãodas virtudes que surgem das ervas, assim como ele, as ervas não são filhas de ninguém, cresceram dasprofundezasdaterra.JáOxóssi,éocaçador,donodasmatas,dosanimais selvagens,bastanteunidoaOssaim(CABRERA,2012).

"Não existe santo" - orixá - "sem ewé" , nem nganga, nkiso ou feitiço sem vititi nfinda" Árvores e plantas são seres dotados de alma, de inteligência e de vontade, como tudo aquilo que nasce, cresce e vivedebaixodosol,como toda manifestação da natureza, como toda coisa existente. Pelomenosassim acreditam, de pésjuntos,meusnumerososconfidentes (CABRERA,2012,p 26)

Portanto, trouxemos para atrilha,canções,relatoseinstrumentaisqueinformam sobre as práticas do povo de terreiro nos candomblés, formando assim uma trilogia compostapeloshinosdasagremiações,osfunkseoscandomblés.

As músicas e áudios que tratam sobre as práticas sociais e ritualísticas do povo de terreiro foram masterizadas, editadas e equalizadas dentro de uma percepção afrofuristas. Realizamos a remoção e isolamento de vocais, ainda separamos instrumentos, vocais e percussão dentro de uma concepção estética robotizada, em que algumas vozes e canções se assemelham etransitamentreasonoridadedavoznaturale da voz de inteligência artificial. Foram canções e propostas sonoras que consideramos relevantes para compreensão da audiência sobre as cenas e demais propostas coreográficasdoespetáculo.

La musique du candomblé est presque toujours mesurée1, c’està-dire qu’on dénote la présence, matérialisée ou virtuelle, d’une pulsation isochrone qui régule le temps musical. Tous les chants (cantigas) sont accompagnés des formules rythmiques (toques) précédemment décrites La pulsation est souventmanifestedanscesformules,parfoiselledemeuresousentendue;elle est de toute façon toujours matérialisée dans les pas de danse. (XAVIER, 2005,p 168)9

Assim, estruturamos uma trilha que une três ritmos, cujo andamento é marcado por irregularidades, assim como a trajetória musical do funk, do samba e dos candomblés que são atravessadas por um percurso não linear, devido à construção

9 A música no candomblé é quase sempre medida, isto é, denota-se a presença, materializadaouvirtual, de uma pulsação isócrona como no original tempo musical Todas as cantigas são acompanhadas por fórmulas rítmicas, chamadas toques; a pulsação, frequentemente, é evidente; ela é de qualquer modo materializadanospassosdedança

histórica de opressão da arte negra no Brasil. Algumas canções são utilizadas sem os instrumentos, contendo apenas vozes com uma edição que remete a um inteligência artificial, na intenção que esta voz seja uma espécie de “legenda” da história que o espetáculo busca apresentar.Emoutrosmomentos,damosênfasesapulsaçãodosritmos negro-brasileiros que com o andamento da proposta musical vão se fundindo com vozes,receitaseensinamentosdocotidianodoterreiro.

Concepçãofilosóficaeestética:edição.

Levantada as canções, ritmos e paisagens sonoras que poderiam compor o trabalho, esquematizamos uma proposta estética que acompanhou todas as decisões de construção e finalização da trilha. Nesse exercício de relacionar e refletir sobre as sonoridades dos ritmos adotados, percebemos um histórico de trajetórias ceifadas. Os candomblés, o samba e o funk possuem um percurso não linear marcado por diversas interrupções.

Os artigos “Terreiro fora do Terreiro: candomblé do samba ao funk e o rito de passá” de Marcel Marques (2023) e “Guerra dos Graves: da quebra de Xangô ao funk na baixada santista” de Guilherme Martins (2017) dialogam como osterreirosebailes funks historicamente passaram por um processodereformulaçãodesuapráticasdevido questões sociais, políticas e culturais que anularam as sabedorias da cultura afrodiaspórica.

Figura4-Comunidade Espaçoancestraldeepistemologias

O surgimento desses espaços-tempos (terreiros e bailes funk) que desestabilizam a ordem vigentedocontrole-sejaeladegestos,sensualidade, crenças ou ‘bom gosto’ - segue-se uma perseguição não apenas policial aos músicos, praticantes, sacerdotes e dançarinos, mas também uma guerra sônica e ideológica para neutralizar as vibrações que nutrem e fazem vibrar esses espaços e os corpos que os percorrem Ao emudecimento do som, segue-se um silenciamento dos fatos por parte de uma historiografia da dominação (MARTINS,2017,p 5)

Deste modo, trouxemos paraaconcepçãosonoradeMUZENZA,umatrilhaque

une o samba, candomblé e funk dentro de uma organização marcada por interrupções, criando um relação intersubjetivadessassonoridadescomapropostadoespetáculo,que perpassa pelas sabedorias das ervas e os ensinamentos dos muzenzas nos candomblés Angola.

Na proposta cênica, trazemos possíveis raízes ancestrais que retroalimentam as sabedorias do povo negro-brasileiro.Pensamosraízesenquantomotrizesquealimentam e sustentam assentamentos, fundamentos e espaços metafísicos entre o cotidiano e as sensações que nos proporcionam territórios de pertencimento. Os conhecimentos que circulam nos candomblés, nos funks, nos sambas e nas plantas foram os nossos epicentrosparaaenunciaçãodatrilha.

Enquanto as frequências graves do candomblé são emitidas pelo couro do atabaque, nosbailesfunknãosãopoupadosesforçosparamontarparedõesde alto-falantes e subwoofers, que garantem a disseminação massiva e tátil dos graves, criando ao seu redor um espaço-tempo de aglutinação Tanto o candomblé quanto o funk produzem, a partir de suas batidas graves, um território que possibilita a emergência de ritmos e corporalidades não hegemônicas,agregadasaoredordasfontesemissorasdesom Osbailesfunk e o candomblé constituem, sonoramente, espaços-tempos que escapam tanto à regulamentaçãodoruídourbanoquantoànormatizaçãodoscorpos,etalvez por isso seus festejos incomodem tanto determinados estratos da sociedade brasileira.(MARTINS,2017,p.16)

Estruturamos a composição pensando o corpo e a sonoridade afrodiaspóricas enquanto potências para a articulação de sabedorias e espaços não hegemônicas, motrizes que se unem para reivindicar o retorno em contínuo-fluxo das sabedorias que circulam na oralidade negra, fortalecendo a nossa relação com a natureza e com as nascentesancestraisqueotantooscandomblésquantoofunkeosambaanunciam.

O som cria uma dimensão nas culturas africanas, como uma forma de contar o tempo As músicas funcionam como meio para manter o senso comunitário, então, nas primeiras décadas do século XX os batuques e

cantos de samba se constituem como lugares de manifestações de resistência e permanência. Muniz Sodré (1998) diz que onde havia negro havia samba, desde o período escravocrata o gêneromusicalseressignificou e popularizou-se em rodas nas casas das tias negras, nos quintais e bares.(MARQUES,2023,p.111)

Os candomblés e sua relação com o som, traça uma trajetória cultural que foi extremamente interrompida pelos fluxos da colonização e da ocidentalização do pensamento. A vista de exemplo temos a Quebra de Xangô, evento de perseguição da milícia de Maceió/AL às casas de candomblé. Em 1912 houve uma destruição em massa dos terreiros de xangô capitaneada pela Liga dos Republicanos Combatentes, liderados pelo coronel reformado Manoel Luiz da Paz, veteranodaGuerradeCanudos. Essa ação marcou os rituais dessa prática religiosa que reverberam na atualidade (MARTINS,2017).

As consequências desse ataque podem ser sentidas ainda hoje, mais de um século depois do evento, nas mutações sofridas pela liturgia das casas de Xangô em Alagoas, quando comparadas aos rituais afro-brasileiros que se desenrolam em outros estados do país. Depois da quebradesenvolveu-seum silenciamento profundo edefinitivonapaisagemsonoradoscultosaosorixás em Alagoas, fazendo surgir, numa espécie de acuamento irreversíveldeseus praticantes, uma modalidade única de culto, o “Xangô-rezado-baixo”. Nele os atabaques não são mais tocados, e quando se cala o somgravedotambor cessamtambémadançaeapossessão (MARTINS,2017,p 16)

Fatos como este, nos provocaramaelaborarpropostassonorasquetambémnão tivesse um “harmonia”, que elas fossem retalhos, costuras, porque estamos falando de uma cultura do enfrentamento, da resistência, da luta, uma motriz cultural que sofreu dezenas de fissuras. Assim, a trilha também é carregada de ranhuras, com o desenrolar do trabalho, quando relacionamos a dança, dramaturgia e o som a audiência consegue notar que as costuras que existem na sonoridade fazem parte de um posicionamento filosófico.

Sonoridade:pulsõescriativasdoreduto

Figura5-MapaConceitual,redutocênico-ontológico.

Fonte:MaicomSouza(2024)

A dramaturgia do MUZENZA foi dividida em quatrosets,nelesapresentamosa emergência de ritmos e espaços temporais que entrecruzam práticas culturais, sociais e políticas do candomblé, funk e samba. As estruturas das cenas ficaram elaboradas em quatros blocos musicais,tendoemmédia15minutoscadacomposição,apartirdaunião desses sets comunicamos a nossa dramaturgia. A faixas ficaram denominadas da seguinteforma: (i)Muzenza; (ii)Ossaim; (iii)Oxóssi; (iv)Ilá.

Figura6-Trilhafinal

https://onsoundcloudcom/rVxB6mcqzp9SBH7e6

O primeiro set é uma viagem pela pulsação do funk dos anos 90/2000, também tratamos sobre o cotidiano da curapelasplantasedosensinamentosaomuzenza.Como escolha dramatúrgica realizamos uma provocação ao público sobre a substituição da sabedoriadasplantaspelamedicinacientíficaocidental.

A segunda faixa é uma imersão pelas mitologias de Ossaim e sua cura pelas folhas. Destacamos a conexão do orixá com a sabedoria popular, o conhecimento transmitidopelaoralidadeeoensinamentopelaservas.

No terceiro bloco musical adentramos no território de Oxóssi, orixá das matas, da prosperidade e do sustento. Umasaudaçãoaotempo,paraquediasmelhorespossam surgir,noquetangeanossarelaçãocomanaturezaeossaberesancestrais.

O último set é um ilá, quando os muzenzas saúdam e dançam às ervas e suas raízes da afrodiáspora ao som do funk. Um destaque para o fechamento da proposta musical que foi mixada pela DJ Capixaba Karolla, ela apresenta nuances de um estilo único do funk capixaba, conhecido como beat fininho ou beatfino, uma batida hiper aguda e de som metálico. Para encerrar, Karolla, juntodeKaioFontesnamasterização, elaborou um time de 5 minutos que faz um review do espetáculo e sela a proposta sonorano beatfino.

Visualidadedascenas (i)Muzenza;

IgorMaia,2024.Vitória(ES).
(ii)Ossaim;
IgorMaia,2024 Vitória(ES)

(iii)Oxóssi;

IgorMaia,2024 Vitória(ES)
IgorMaia,2024 Vitória(ES)
IgorMaia,2024 Vitória(ES)

CONCLUSÃO

A raiz de uma nação, o aproximardesabedoriasquesãonascentes,informações fontes que disseminam outros fundamentos, pode ampliar as percepções daqueles que sentem a necessidade de viver a sua realidade a partir das experiências, signos e símbolos que possibilitem revisitar a história, memória e trajetórias que constituem o corpocoletivodasuaancestralidade.

Ao pensarmos nas motrizes das cosmopercepções do corpo negro-brasileiro, entendemos que encontrar raizes e desvincular de saberes enraizados possuemsentidos peculiares, distintos. Se debruçar sobre as nossas raízes africanas no Brasil é um constante transcender rumo à trajetória de uma “outra étnica”. Um conjunto de sabedorias que interpretam as pluralidades das fontes gnosiológicas, na intenção de realizar um sincero trabalho sobre os conhecimentos que estão nas esquinas, quintais, terreiros,ruaseestradasdosolobrasileiro.

Este chão, do qual cresceu Ossaim e cresce a flora, carrega histórias que estão constantemente circulando pelo cosmo. Tal como èsú que nos apresenta a terra, a estrada, a encruzilhada como signo de tudo que tem vida, que respira, lugar do movimento. Ao procurar pornossasraízesafricanaspodemosassumirumcompromisso ancestral de manter em fruição as sabedorias queestãonamemóriadosmaisvelhos,na riqueza da oralidade, nos cuidados cotidianos, e se atentando que pensar o continente africano no Brasil é afastar-se dos conhecimentos fetichistas, folclóricos, uníssonos, exóticoseimutáveis.

Assim, em um fluxo de reflexões sobre as raízes que habitam a nossa ancestralidade, trazemos uma percepção da vivência dos muzenzas enquanto um possível reduto para reunir conhecimentos sobre o povo negro-brasileiro. Os laços iniciáticos dos muzenzas são forjados na oralidade, naobservação,napráticacotidiana, no aprendizado gradual. A saída do barco-de-muzenza é o manifesto social de um cotidiano. Sementes rumo à continuidade do conhecimento ancestral, corpos que germinam novas significações de uma vivência mediada sobre as sabedorias das ervas, dos orixás, das folhas e das matas. MUZENZA um diálogo com as sabedorias que antecedemoilá,umaconexãometaestéticanocontínuo-fluxodoayê.

Referências

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CABRERA,Lydia AMata:notassobreasReligiões,aMagia,asSuperstiçõeseoFolcloredosNegros CriolloseoPovodeCuba Tradução,CarlosEugênioMarcondesdeMoura-SãoPaulo:Editorada UniversidadedeSãoPaulo,2012.

CARDOSO,ÂngeloNonatoNatale Alinguagemdostambores.2006 (Tesededoutoradoemmúsica)–UniversidadeFederaldaBahia,Salvador,2006.

MAIA,Igor Muzenza,Vitória(ES)2024 22Fotografias 500x500pixels Disponívelem:https://flic.kr/s/aHBqjBE9YM.Acessoem20ago.2024.

MARQUES,Marcel.TerreiroforadoTerreiro:candomblédosambaaofunkeo“ritodepassá”. RevistaCalundu,[S l],v 7,n 1,2023

MARTINS,G.C.D..GuerradosGraves:daquebradeXangôaofunknabaixadasantista.SONORA, v 6,p 1,2017

OLIVEIRA,MaryanaCavalcantidoNascimentode.Congo-de-OuroeFunk:oterreironobaile. TrabalhodeconclusãodecursodaPós-graduaçãolatosensuPercussãoBrasileira:criação,produção musicaleperformance FaculdadeSantaMarcelina,SãoPaulo,2021

VATIN,Xavier RitesetmusiquesdepossessionàBahia.Paris,L'Harmattan 2005

O Espaço Cultural Emaranhado, nossa sede, localizado no Bairro de Lourdes, em Vitória (ES), foi inaugurado em 3 de outubro de 2022. Local onde realizamos nossas montagens de espetáculos, ensino de danças negro-brasileiras e o projeto Corpo Afro oficinas de variadas modalidades de danças ofertadas gratuitamente à comunidade.

Este projeto é realizado com patrocínio da Lei

Rubem Braga e Secretaria Municipal da Cultura da Prefeitura de Vitória, realização do Coletivo Emaranhado.

@coletivoemaranhado

27 3500-0906

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coletivoemaranhado@gmail.com

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