Paris: cinema e imaginário da metrópole

Page 1



Cleyton Barbosa

PARIS CINEMA E IMAGINÁRIO DA METRÓPOLE

Orientação: Profa. Dra. Ane Shyrlei Araújo


NOTA PRÉVIA Relatório científico de Pesquisa de Iniciação Científica aprovada pelo Conselho de Ensino e Pesquisa da PUC-SP, subsidiado pelo PIBICCNPq e desenvolvido no período de agosto de 2012 a julho de 2013



Cleyton Barbosa


RESUMO

Os estudos de cinema têm em suas ambientações, narrativas, cenários, imagens, personagens de aspectos inusitados e mesmo emblemáticos da cidade, que se mostram apropriados para a construção da fabulação fílmica. A presente pesquisa analisa as adaptações pelas quais passa a cidade mediada, ao ser representada como cenário do cinema, a partir de um estudo de caso, voltado para análises referentes à cidade de Paris. Buscouse examinar a estética de Paris da década de 20 sob dois enfoques díspares: o cinema poético francês de vanguarda e a retomada da cidade da década de 20, em filmes de realização contemporânea. A partir de fundamentações dos assuntos envolvidos foi realizado um estudo inicial da cidade da década de 20, e sua representação no cinema, segundo um recorte vanguardista, comparado ao enfoque contemporâneo, visto que as produções indicadas, “Paris Adormecida” (René Clair, 1923) e “Meia Noite em Paris” (Woody Allen, 2011), a saber, conferem à cidade valores e significações únicos em medições do espaço representado nos filmes.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

7


8

Cleyton Barbosa


SUMÁRIO

1. Introdução ..................................................................................................11 2. Elementos da Análise Fílmica .................................................................14 3. Paris na década de 20 .................................................................................17 4. Sobre o Espaço ...........................................................................................21 5. Cinema e cidade .........................................................................................24 6. Experiências cinematográficas na cidade de Paris ..............................30 6.1. Paris Adormecida, de René Clair (1923) .................................31 6.2. Meia Noite em Paris, de Woody Allen (2011) ...........................44 7. Considerações Finais ................................................................................56 Referências Bibliográficas ...........................................................................64 Referências Fílmicas .....................................................................................67

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

9


10

Cleyton Barbosa


1. INTRODUÇÃO

Este trabalho objetivou, como foco de pesquisa, um estudo da relação entre as espacialidades urbanas e os cenários midiáticos audiovisuais, bem como a investigação do processo de passagem da cidade enquanto espaço real a objeto fílmico, a partir de um estudo de caso, voltado para análises referentes à cidade de Paris da década de 20, e sua representação no cinema segundo a abordagem vanguardista, em comparação à abordagem contemporânea. As produções indicadas, “Paris Adormecida” (René Clair, 1923) e “Meia Noite em Paris” (Woody Allen, 2011), exibem a cidade muito além de um mero objeto cênico e de ambientação; conferem-se valores e significações únicos na escolha e composição do espaço representado. Isto é, nota-se que a cidade de Paris é elemento fundamental para o desenvolvimento dos filmes selecionados, pois se referem, muito particularmente, a ênfase na visualidade de seus espaços que revelam estilo de vida experimentado ao longo da década de 20.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

11


Logo, o trabalho se torna pontual no tocante ao estudo de passagens ao analisar as espacialidades urbanas e seu processo de circunscrição à tela fílmica. O recorte apresentado versa sobre a hipótese de que os pontos da cidade transpostos ao filme serão abordados de modo díspares, influenciados pelo ritmo cotidiano da sociedade na qual são ambientados e que, esse direcionamento, também se valida se observada a época de sua realização. Ou seja, ainda que as obras selecionadas para estudo apresentem sequências adequadas a um mesmo período histórico, os enquadramentos das espacialidades tendem a ser diferenciados em razão das técnicas e vigências específicas a cada tempo de produção. Com sua proposta, a pesquisa estabelece um campo de análise das adaptações pelas quais passam a cidade ao ser reproduzida pelo cinema, bem como examinar a estética de Paris da década de 20 sob dois enfoques díspares, sendo eles o cinema francês de vanguarda e a retomada da cidade da década de 20 em filmes de realização contemporânea. A pesquisa buscou fundamentação em publicações que discorrem acerca das espacialidades urbanas levadas ao cinema, bem como outras que fornecem indicações acerca do cotidiano e vida parisiense na década de 20, de modo que se evidenciem os principais pontos urbanos

12

Cleyton Barbosa


efervescentes nessa época. A respeito de significações da obra fílmica, o embasamento se deu a partir de publicações que apresentam recursos, conceitos e exemplificações que possibilitam o processo de análise fílmica por intermédio de decupagem e leitura de imagens, necessárias para que se cumprissem as etapas propostas. Foram estudadas as obras selecionadas, a partir da decupagem dos recortes realizados de sequências que melhor demonstrassem a cidade circunscrita ao espaço fílmico. Foi feita, ainda, uma análise comparativa entre os dados obtidos, no encontro das similaridades e diferenças do enfoque dado à cidade, assim como a identificação do processo de passagem e inserção das espacialidades do produto fílmico.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

13


2. ELEMENTOS DA ANÁLISE FÍLMICA

A análise de uma produção fílmica pressupõe o esquadrinhamento dos elementos sintáticos que a compõem, por intermédio de decupagem que aponte os componentes da linguagem cinematográfica empregados em sua construção. Entre os elementos constituintes de um filme (e para esta classificação, não se levará em consideração a dimensão de um “fotograma”), o plano é a menor “porção”, ou unidade mínima, como destacam Julier e Marie (2009), estando, sempre, alocado entre dois pontos da montagem (que provocam um “corte” no olhar sob determinado ponto de vista). Ao longo dos estudos sobre a linguagem cinematográfica, pôdese visualizar a experimentação de novas formas de enquadramento e de outros elementos que contribuíssem para a fluidez da obra. Já o foco narrativo deve ser entendido como o ponto de vista (ou perspectiva) que direcionará a sequência e elementos apresentados em

14

Cleyton Barbosa


uma história, o modo a partir do qual será contada. Para isso, constitui-se um narrador que pode ou não, possuir informações totais a respeito das ações que compõem a história, sendo ele, portanto, a primeira “personagem” verificável na exposição de uma história por intermédio de narrativa, a primeira que um autor cria para contá-la. O espectador, ao assistir às obras do primeiro cinema dotadas de teatralidade e posicionamento estático da câmera, se assemelhava ao apreciador das obras renascentistas por possuírem, ambos, a visão da ação por intermédio de um plano geral. O olhar do espectador, nesse período, é, necessariamente, o olhar do narrador da história, da câmera que não apenas a registra, mas a direciona. Logo, o narrador cinematográfico se constituía como uma entidade invisível que lançava uma visão sobre toda a ação decorrente na cena. O ponto de vista é, basicamente, apresentado pela localização da câmera. É o ponto de observação da cena, de onde parte o olhar. Portanto, deve-se entender que nenhum ponto de vista é neutro. Todas as posições de câmera conduzem a uma série de conotações. ( JULIER; MARIE, 2009, p.22) Em dimensão de análise, podemos identificar variados momentos em que a câmera assume um ponto de vista específico. Muitas vezes,

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

15


a câmera cinematográfica se põe no nível do ator e faz de si mesma um aparelho de captação dos objetos e ações observadas pela personagem, de modo subjetivo, enquadrando toda a situação no eixo, ou seja, na altura das personagens. Em outras situações, a câmera assume um posicionamento peculiar, constituindo um ponto de vista que jamais poderia ser experimentado por um indivíduo comum (a exemplo do que ocorre em Paris Adormecida, nos planos constituintes da sequência de clímax, ambientados no topo da Tour Eiffel com enquadramento em câmera alta, muito acima do nível de visão de qualquer personagem ali presente).

16

Cleyton Barbosa


3. PARIS NA DÉCADA DE 20

O livro escrito por Hemingway, Paris é uma festa, constitui-se como um registro intimista e poético das experiências vividas em Paris, em um período que compreende os anos de 1921 a 1926. O texto tende a potencializar a aura atrativa pertencente à cidade. “[...] Paris era uma cidade muito antiga, nós éramos jovens e nada ali era simples, nem mesmo a pobreza, nem o dinheiro súbito, nem o luar, nem o bem e o mal, nem a respiração de alguém que, deitada ao nosso lado, dormisse ao luar”. (Hemingway, 2012 p.72)

A produção artística e vanguardista da década de 20 encontrou seu ponto de ebulição em Paris, com a conjunção de artistas europeus e expatriados americanos que, no famoso círculo de relacionamentos

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

17


de Gertrude Stein, encontravam um ambiente propenso à troca de experiências para discussões das mais diversas naturezas. A economia na capital francesa se tornou, ainda, um grande atrativo que faria com que artistas estadunidenses das mais variadas ordens e determinações optassem por viver lá, ainda que temporariamente. O câmbio entre moedas oferecia certa vantagem aos americanos. Com a desvalorização de sua moeda, o câmbio de um dólar equivalia a vinte e cinco francos, no período pós-guerra. A designação de Geração Perdida (génération perdue), cunhada por Gertrude Stein para caracterizar os artistas e intelectuais que, abrigados em Paris, se perdiam em noites de boemia e descomprometimento, surgiu de um episódio corriqueiro que vivenciou em uma oficina mecânica, narrado por Hemingway em “Paris é uma festa”. O rapaz que trabalhava na oficina mecânica e tinha combatido no último ano da guerra não se mostrara competente no conserto do Ford de Miss Stein, ou talvez não lhe tivesse dado prioridade sobre outros veículos. Seja como for, ele não tinha sido sérieux e fora severamente repreendido pelo

18

Cleyton Barbosa


patron da garagem, diante do protesto de Miss Stein. O patron dissera ao jovem: – Vocês todos são uma génération perdue. (Hemingway, 2012, p.43)

Para Stein, em suas considerações, essa geração, que havia servido a guerra e, como resultado das experiências do campo de batalha, se convencera da capacidade humana. Se em primeiro momento a guerra anunciava, em seu período de desenvolvimento, uma nova ordem de paz mundial, seu desfecho se provou questionável e contraditório. Aqueles artistas e/ou intelectuais, ou ainda os que desenvolveriam tais aptidões após a experiência de guerra, que retornaram intocados ou com marcas deixadas pelas atividades nas trincheiras, assumiam, agora, um posicionamento de descomprometimento pouco austero. – […] não têm respeito por coisa alguma. […] bebem até morrer… (Hemingway, 2012 p.43)

A vida boêmia e a forte produção artística que brotava dos cafés e bares

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

19


parisienses impulsionavam as propostas artísticas de vanguarda (cubismo, surrealismo e dadaísmo) encontrava na cidade um campo propenso à experimentação, onde seus adeptos podiam formular direcionamentos estéticos e estilísticos. A década de 20 em Paris constituiu o bloco denominado, por William Wiser, de “os anos loucos”. A imagem na literatura veio a se fundamentar, inicialmente, em O sol também se levanta de Ernest Hemingway, publicado em 1926. As saídas do personagem-narrador para seus passeios pelas ruas, cafés e bares da cidade contribuem para que se potencializem as visões de uma Paris efervescente. Ao longo desses anos, muito se produziu acerca da vida parisiense e sua efervescência artística no período pós-guerra. Turistas, inspirados por escritores e jornalistas, retomam a Paris do século 20 e buscam rastrear os trajetos percorridos por Hemingway, os Fitzgerald, Cummings, Stein e outros artistas e/ou boêmios abrigados na cidade. Como empecilho a esta atividade tão recorrente, muitos dos espaços e pontos fundamentais de reuniões entre os intelectuais da época já não existem tal como eram na época, sendo, hoje, consumidos pelos efeitos da especulação imobiliária.

20

Cleyton Barbosa


4. SOBRE O ESPAÇO

Com base na interpretação das publicações de Lucrécia Ferrara1, que se reportam aos espaços, espacialidades, comunicação e cultura, fundamentou-se um panorama a respeito das possibilidades de leitura e representação de espaços. Para tanto, tencionou-se distanciar as teorias e conceituações de espaço, muito embora não se intente uma desvinculação radical, segundo as teorias metafísicas ou com proposições filosóficas que vigoraram até a eclosão do iluminismo, do século XVIII. Neste procedimento, supera-se, portanto, o idealismo platônico (que, ao referir ao espaço a designação de “coisas criadas”, preenchido por formas, lhe confere a característica de impossibilidade de conhecimento _______________________________________________ 1. FERRARA, Lucrécia D’Alessio (org.). Espaços comunicantes. São Paulo: Annablume; Grupo ESPACC, 2007. _____________________. Os significados urbanos. São Paulo: Fapesp, 2000. _____________________. Comunicação Espaço Cultura. São Paulo: Annablume, 2008.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

21


direto, uma vez que esse só poderia se concretizar por essas mesmas formas que o preenche). A percepção de espaço baseou-se na possibilidade de experiência concreta, como cenário de vivência, passível de manipulações e experimentações diretas. É nesse passo que Ferrara (2007, p.10) discorre a respeito das possibilidades de caracterização do espaço, segundo sua proporção (o espaço figurativo, geométrico), sua construção (hierarquização do espaço, a partir da qual se é possível distinguir o volume e movimento dos objetos que lhe pertencem) e sua reprodução (assumindo uma dimensão técnica de reprodutibilidade, ao desvincular-se de seu estado unitariamente físico). A espacialidade, por sua vez, deve ser entendida como a dimensão comunicativa do espaço, seu caráter multimidiático, ao passo que se verifica presente e transitiva nas variadas mídias a partir das quais poderá ser estudada. […] a espacialidade cria uma teoria do espaço enquanto comunicação ideológica da cultura e exige o resgate das manifestações presentes nas suas constituições históricas. (Ferrara, 2007, p.12)

22

Cleyton Barbosa


Deve, ainda, ser entendida como ambiente de produção de cultura, que sobre ela incide e o compõe. A espacialidade é entendida como a própria natureza daquela construção e é considerada a primeira e a primordial categoria de representação do espaço. Ao lado dela, a visualidade e a

comunicabilidade

que

alimentam

sua

expressividade e significado, constituem as duas categorias subsequentes. (Ferrara, 2008, p. 49)

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

23


5. CINEMA E CIDADE

O cinema nasceu como forma de entretenimento basicamente urbana e acompanhou a expansão dos espaços da cidade, o “ambiente que se comunica como espaço social” (Ferrara, 2007, p.7), na medida em que se desenvolvia, levada pelos avanços mecânicos e tecnológicos injetados pela atividade industrial. Em 1896, Alexander Promio, então encarregado de treinamento de operadores de câmeras a serem enviados a pontos internacionais, pelos irmãos Lumiére, requisitou autorização para a filmagem de um trecho de seu percurso por Veneza. A experiência resultou no filmete Panorama du Grand Canal vu d’un bateau, uma das obras embrionárias das experiências e formulação da sintaxe cinematográfica, ao passo que, traçando um percurso pelo Grand Canal de Veneza com a câmera fixa sobre um barco em movimento, permitiu a realização de um travelling horizontal. A técnica adaptada, com a utilização de trilhos para a criação

24

Cleyton Barbosa


do movimento, seria adotada, principalmente, pelos filmes de Western, em cenas de perseguições em espaços externos.

Ao utilizar como objeto um local de exploração turística, o cinema, desde então, se mostrou como linguagem de mediação potencial para a recriação de um percurso, e movimento, que só poderia ser experimentado de forma direta e presencial. Os autores logo identificaram uma nova forma de exploração dos espaços. As grandes cidades e seus marcos estruturais deixariam de comparecer como representações estáticas em postais, e ganhariam fluidez e novas interpretações ao serem adotas pelo cinema. […] se a experiência supõe conhecer o mundo no seu recorte fenomênico, a representação supõe estabilizá-lo para que seja possível um conhecimento, ainda que aquelas representações sejam frágeis e parciais. Conhece-se através de representações e o espaço é conhecido através das

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

25


construtibilidades que o representam […] (Ferrara, 2007, p.12)

Os planos constituídos por panoramas seriam retomadas em 1900 por James White e Thomas Edison. Os autores viajaram a Paris e utilizaram como objeto de filmagem a Tour Eiffel, capturando sua extensão por intermédio da inclinação da câmera em uma panorâmica vertical. Em nível metafórico, a técnica se presta à indicação do que se tornaria a subjetivação do olhar pela câmera cinematográfica. O movimento panorâmico é intermediário ao registro dos passantes no Champs de Mars.

26

Cleyton Barbosa


A obra Building up and demolishing the Star Theatre, realizada por Frederick Armitage em 1901, demonstra a habilidade de proposição metafórica de seu autor que, com uma câmera fixa, registrou, em plano aberto, com leve angulação diagonal em plongée, a construção do Teatro Star, em New York, em diferentes dias, mesclando os planos fixos, em montagem posterior, de modo que indicassem uma continuidade de ação. A projeção reversa, a partir da metade da obra, é encarregada de desfazer o trabalho já concluído, tendo como resultado o efeito, na tela, de uma edificação que se constrói a uma velocidade assustadora e se desmancha em ritmo semelhante, devorada pelos próprios trabalhadores que a ergueram.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

27


Verifica-se que o cinema, por sua vez, já se mostrava como campo de experimentação capaz de potencializar, interferir e demonstrar camadas do trabalho humano e dos espaços urbanos. Foi na cidade que se realizaram as primeiras experimentações cinematográficas que tendiam à indicação dos avanços resultantes da Revolução Industrial. Em uma fase posterior às experimentações sintáticas do cinema e já consolidados os moldes da estrutura narrativa clássica (com obras lideradas, principalmente, por Griffith), os filmes selecionados como objetos de análise para esta pesquisa encontram relação com a produção hollywoodiana de Chaplin, Tempos Modernos, ao passo em que compartilham a semelhança de possuírem um ambiente urbano que será recorrente e decisivo para o desenvolvimento da narrativa. É verificável que, nos filmes citados, as ações das personagens são ratificadas pelos cenários em que são ambientadas. A desgraça de Carlitos, na obra de Chaplin, é não se adaptar aos novos regimentos impostos por sua função. Os espaços urbanos comuns a operários, as esquinas e avenidas frequentadas por uma classe mais elevada e a pacatez e idealização da vida no subúrbio, reforçam a marginalidade adquirida por Carlitos. Do mesmo modo, é na cidade, em suas deambulações, que o personagem Gil, de Meia noite em

28

Cleyton Barbosa


Paris descobre a chave que o levará à década de 20, permitindo o encontro com muitos dos artistas que admira, revelando o mote principal de toda a trama. Ainda, é na cidade que serão constatados os efeitos resultantes da ação provocada pelos raios d’O Cientista, em Paris Adormecida. Nesta direção, pode-se afirmar que é na cidade que estão os conflitos e, muitas das vezes, a indicação do caminho necessário para enfoques sobre possíveis encaminhamentos dos mesmos. O cinema adota o espaço urbano como espaço de ambientação de seu projeto fílmico, vez que, em contravia, a cidade se utiliza do cinema como modo de revelar suas espacialidades e fixar sua identidade. Trata-se, muito menos, de uma intencionalidade de demonstração de considerações prontas e acabadas. A cidade influencia não apenas o andamento da trama e sua narrativa, mas os personagens de modo isolado.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

29


6. EXPERIÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS NA CIDADE DE PARIS

Além da utilização do espaço urbano parisiense, com ambientação na década de 20, um fator que confere semelhança às duas produções selecionadas se configura na construção de um “diferencial narrativo”. Paris Adormecida retrata a cidade inteiramente congelada ao ser atingida por raios que paralisam os seus habitantes. A cidade é, então, cenário de um episódio improvável, assumindo um caráter imaginário. Em Meia Noite em Paris o personagem protagonista anseia a vivência nesse período como se estivesse nos anos 20, numa nostalgia de época. Trata-se, também, de uma espécie de congelamento, salvo suas configurações temporais. Ou seja, o protagonista retorna não precisamente aos espaços de Paris em vinte, onde se mantém intactas as edificações e as designações – bares, restaurantes, hotéis – de então, mas a seu ambiente. Ao longo desse processo, descobriu-se uma produção de 1988, de Alan Rudolph, com o título “The Moderns”. O filme, assim como Meia

30

Cleyton Barbosa


Noite em Paris, pretende retomar a ambiência da Paris da década de 20, e sua efervescência artística e cultural, muito embora se apresente mais como uma visão sombria e “desencantadora” sobre a Geração Perdida e seus hábitos. 6.1. PARIS ADORMECIDA, DE RENÉ CLAIR (1923) Em Paris de meados da década de 20, um cientista cria uma máquina de raios que é capaz de paralisar a cidade, mergulhando-a em estatismo profundo que congela as ações de seus habitantes e impulsos mecânicos no instante de 3:25. Naquele momento, no alto da Tour Eiffel, dormia Albert, o responsável pela vigilância da torre, seguro a uma altura suficiente para que não fosse atingido pelo raio. Sobrevoava, também, nos céus de Paris, um grupo de quatro viajantes caracterizados por denominações genéricas, num modelo de construção de personagens que remetem a uma conjectura típica do primeiro cinema: o piloto do avião, o detetive, o ladrão, uma mulher independente (surge a indicação de que estamos em Paris na década de 1920) e um magnata fanfarrão. Quando ambos descem aos espaços urbanos, preparados para o convívio da cidade, surpreendem-se com a constatação de que Paris está

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

31


dormindo, pressupondo termos e condições que os fizeram se salvar da total paralisia. Juntos, poderão usufruir de ambientes até então restritos e ocupar os espaços urbanos de Paris sem referências de ordem e limitações a respeito de suas condutas. De início, convivem reunidos fazendo uso dos recursos agora “disponíveis” na cidade, como comidas, bebidas e riquezas; mas logo são tomados por um extremo cansaço ao ponto de travarem batalha pela única mulher do grupo. São interrompidos, porém, por um telegrama. Há, na cidade, aparentemente, um outro sobrevivente. É a sobrinha de um cientista louco, responsável pela criação que conseguiu interromper toda a cidade de Paris, que pede ajuda para reverter a ação de seu tio. * A obra de René Clair carrega um viés de sutil referência dadaísta e/ ou surrealista. A imagem do relógio e dimensão do tempo tão amplamente abordados por estas vanguardas recebem, no filme, um tratamento que os encerram em oposições antagônicas, ao passo que indicam ordens de grande oposição em direcionamentos paradoxais. Paralelos a esses movimentos, corriam no cenário cinematográfico francês as experiências impressionistas, caracterizadas pelos efeitos sensórios das imagéticas

32

Cleyton Barbosa


provocados por seus autores, dispostos a firmar o cinema como uma forma de arte, a partir da qual, Clair realizou apenas uma produção. O diretor utilizou-se de referências estilísticas ainda em fase de consolidação para a composição de sua obra, criando um dos primeiros registros narrativos de ficção científica da história do cinema. O filme já não ressalta a imponência da cidade, que se ergue, suprime ou encanta os que nela habitam, mas não abandona um discurso baseado na deificação de seus espaços. Clair se destaca por integrar um tom satírico às características surrealistas de seus filmes, se utilizando de recursos sintáticos do cinema para compor um ambiente de realização plausível, que demonstre e justifique, por meio de enquadramentos estratégicos, movimento acelerado, câmera lenta, etc, a manipulação e domínio de um tempo precipitado que aterra seus contemporâneos. A ação fílmica ocorre no entorno da Tour Eiffel, incorporada como elemento diegético, e lança visões e enquadramentos angulares díspares da cidade. O narrador nos oferece representações de suas espacialidades em planos e níveis intermitentes (a primeira grande escala de registro dos espaços da cidade ocorre nas cenas iniciais do filme, que mostra o vigia da Tour em seu despertar matinal, espreguiçando-se na sacada de um dos

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

33


pontos mais altos da construção, em um nível que lhe ofereça a possibilidade de um olhar abrangente e diferenciado à cidade). Ainda, momentos depois, o vigia desce às ruas ao dar-se conta da aparente paralisação geral da cidade, possibilitando o percurso por uma Paris que esteja em um nível mais acessível, humano, sendo conhecida e desvendadas em doses menores, a despeito dos grandes planos gerais de contextualização de ações. Nesse passo, a variedade de enquadramentos e posicionamento de câmera, sejam eles frontais, baixos ou altos, permitem uma experiência de impressões diversificadas que contribuem para maior assimilação das espacialidades representadas. À época de sua realização, 1923, podia-se entender a metáfora visual pretendida por Clair, ao estagnar o fluxo e funcionamento da cidade enquanto ainda ecoavam os resquícios da Guerra, concentrando toda possibilidade de ação nas determinações da torre de aço. René Clair se viu motivado a pôr em cheque a vida cotidiana na modernidade, impelido pelo registro de constantes constrangimentos sociais e econômicos. Esse tipo de crítica é muito recorrente em suas produções, sendo sempre encenada nos espaços da cidade de Paris. * O enxerto selecionado para decupagem e análise se constitui como a

34

Cleyton Barbosa


sequência de abertura do filme. Responsável por introduzir os personagens e a problemática que norteará toda a narrativa, registra em 101 cortes a descoberta da cidade adormecida e o encontro entre os personagens não atingidos pelo raio. * Os seis primeiros intertítulos, intercalados com os vinte e um planos de ação do vigia no topo da torre, contextualizam sua saída para investigar o possível motivo de toda a estagnação da cidade e apresentam, de modo preliminar, o conflito narrativo ao qual se buscará solução ao longo de todo o filme. 1. Uma noite, Paris adormeceu / 2. e na manhã seguinte / 3. o vigia noturno da Tour Eiffel / 4. se pergunta por que, / 5. na cidade, nada se move / 6. e como ninguém vem.

Capturadas do alto da torre, as primeiras imagens dos espaços urbanos são registros de suas paisagens em larga escala, com enquadramento em câmera alta, reforçando a subjetivação de um “olhar de cima” (na decupagem, planos 1, 2 e 7, respectivamente).

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

35


36

.1 .

.2.

.3.

.4.

.5.

.6.

.7.

.8.

.9.

.10.

.11.

.12.

Cleyton Barbosa


O primeiro estranhamento lhe ocorre ao não encontrar visitantes na Torre ou avistar os transeuntes corriqueiros de seus arredores. Os planos altos, com angulação de enquadramento em plongée (plano 7, por exemplo), surgem para reforçar um domínio ainda latente de uma cidade que lhe pertence . A câmera se posiciona um nível muito acima do vigilante (3 e 4), indicando sua onipresença que lhe permite prever o que virá a seguir, enquanto que, ao personagem, essa noção permanece externa. Há, inicialmente, certa preocupação muito menos dispendiosa com cenários internos, limitando-os a uma configuração símplice, dotada de objetos de cena que, necessariamente, desempenhem uma função à caracterização do ambiente. Os detalhes de iluminação que não pautam um risco lógico se constituem, porém, como evidências muito menores. Na imagem .5. percebe-se a forte indicação de um feixe de luz que delimita o espaço do personagem, em ordem que o plano seguinte, 6, desestabiliza tal representação. A porta, a princípio, estava fechada. O recorrente enfoque em relógios em planos de detalhe (7 e 12) ao longo da sequência (planos 9, 16, 18, 50 na decupagem), reafirma a emergência de um instante pontual (Albert certifica-se de que não há

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

37


qualquer problema de funcionamento com seu relógio – 8) que se estende e se encerra em sua incapacidade de mutação, reforçando seu vínculo com a narrativa. Nos primeiros instantes da montagem, a concatenação de planos recorre ao uso de raccord de olhar (9 e 10, 11 e 12), para estabelecer correlações de proximidade entre personagem x espectador, enquanto se estabelece o conflito da narrativa (ainda informação nova para ambos). Como um grande monumento, a torre deve ser percorrida em um travelling (13 e 14), panorâmicas verticais (15 a 20), que a revelará em pequenas doses, como um passar atento de olhos ao qual não é suficiente a visão de um plano em que essa se configure como uma unidade, que permita a ilusão de aproximação mais evidente. Os planos largos de breve duração (21 a 28) reforçam a ideia de um espaço cujos habitantes foram não apenas congelados, mas parecem não existir. Tal efeito cria a imagem, em grande escala, de uma cidade asséptica. Albert se precipita em direção à margem do Senna, (29 > 34) para impedir um aparente suicídio. Na mão do homem curvado na borda do rio, encontra um bilhete (35) que o identifica como Comissário de Polícia. A versão do filme disponibilizada em archive.org (sítio que se constitui como banco de consulta e download de arquivos - pinturas, fotografias,

38

Cleyton Barbosa


.13.

.14.

.15.

.16.

.17.

.18.

.19.

.20.

.21.

.22.

.23.

.24.

Paris: Cinema e imaginรกrio da Metrรณpole

39


filmes, músicas, etc. - de domínio público) registra o homem à beira do rio como suicida, carregando nas mãos um bilhete (que, em condições de vivência e sincronismo normal no cotidiano da cidade, nunca seria lido). “Foi o ritmo dessa vida moderna que me levou a isso. Eu não posso aguentar a pressa e o barulho da vida nessa cidade”. O intertítulo que alude ao bilhete deflagra o discurso de crítica e apelo sutil que permearão todo o filme, como a urgência de redução do ritmo da vida em uma cidade que já não se regula ou dimensiona a si própria. A imagem de perseguição, recorrente como movimento ágil nos pequenos filmes policiais da década de 1900, é subvertida (37 a 39) a uma inclinação que se limita a um “levar a crer que”. Sua incursão pela cidade desagua em fastio. Um novo quadro de um relógio (41) confirma a temporalidade suspensa em que Albert se encontra. Paralelamente, um grupo de viajantes pousa no aeroporto de Paris e fica intrigado com a paralisia incomum dos trabalhadores (43 a 44) . Se configurarão sempre como grupo (45 a 47), enquadrados em planos que variam de conjunto a americano, formando uma unidade

40

Cleyton Barbosa


.25.

.26.

.27.

.28.

.29.

.30.

.31.

.32.

.33.

.34.

.35.

.36.

Paris: Cinema e imaginรกrio da Metrรณpole

41


42

.37.

.38.

.39.

.40.

.41.

.42.

.43.

.44.

.45.

.46.

.47.

.48.

Cleyton Barbosa


simbólica em um espaço que, a partir de então, se revelará, em dimensão palpável, progressivamente excessivo. Dirigem pelas ruas da cidade, quando Albert os ouve (48 e 49). O enquadramento não muito bem definido no parachoque do veículo, acompanhado de um travelling retroativo, ressalta seu movimento contínuo que destoa do congelamento da cidade. Albert toma “emprestado” um carro estacionado em suas proximidades e os segue. Juntos podem refletir a respeito da paisagem incomum e do bloco inerte em que a cidade se tornou (50 e 51).

.49.

.50.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

.51.

43


6.2. MEIA NOITE EM PARIS, DE WOODY ALLEN (2011) O anseio de poder retomar os passos de grandes artistas da década de 1920 faz com que se torne cada vez maior o desejo de Gil Pender, roteirista de Hollywood em crise – que tenta escrever um romance, sem nunca haver se dedicado, realmente, à literatura –, em se mudar para Paris. De passagem pela cidade, possui uma visão romantizada, acreditando ter nascido tarde demais, uma vez que sonha em viver na Paris de 1920, “quando a chuva não era ácida”. Sua paixão não se demonstra como sendo somente pelos espaços, mas, principalmente, por sua carga histórica. * O filme de Woody Allen estabelece um vínculo que permite a ambientação de sua narrativa na cidade contemporânea de Paris e em seu espaço durante a década de 1920. Contudo, os espaços modificados em aparência e designações da época em questão, faz com que se crie um ambiente não apenas fictício, mas imaginário. A Paris representada não é um retrato fiel de seu passado, tampouco este é um objetivo que se pretende alcançar. É, muito pelo contrário, a materialização de uma visão poética do autor, que se vale de certa licença criativa e lança mão de suas

44

Cleyton Barbosa


próprias considerações a respeito de como seria viver em Paris durante a década de 20. “Minha geração não foi a primeira nem será a última a cultuar Paris como a capital mundial da modernidade, da criatividade sem compromissos e das relações sem preconceitos”. (Alan Rudolph apud Augusto, 2011, p.11)

Allen se mostra hábil ao estabelecer, segundo seus próprios moldes, uma crítica ao saudosismo amplificado – verificado, hoje, por intermédio de recriações e retomadas dos percursos realizados pelos boêmios, como atividade de exploração turística – de uma geração. Como se chamasse a atenção para a falta sentida por alguns de um ambiente já não mais tátil, experimentado por uma geração que não a sua. A personagem fictícia, Adriana, por quem o protagonista de “Meia Noite em Paris” se apaixona, vive na cidade durante a década de 20, mas prefere, contudo, a belle époque. Livre de qualquer hermetismo, Woody Allen deixa clara as suas intenções ao postular que não existe, necessariamente, uma era de ouro em que possamos viver conscientes.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

45


Os anos da década de 20 em Paris seriam, posteriormente, referenciados como “anos loucos”, ambiente de grande efervescência artístico-criativa, mas seus contemporâneos não poderiam presumir a dimensão histórica que a época acabaria por assumir. * A sequência selecionada se inicia no minuto 15’52’’, estendendo-se até 28’58’’. Após uma sessão de degustação de vinhos, Gil recusa o convite de Paul e Carol (que vão a “um lugar para dançar”) e, sem Inez, sua noiva, decide voltar ao hotel caminhando. Em sua deambulação pelas ruas da cidade, após ouvir as badaladas da meia-noite, Gil é convidado por um grupo a entrar em um antigo Peugeot, que o levará à uma festa oferecida à Jean Cocteau, que marcará sua viagem aos anos 1920. * Gil deambula, perdido, pelas ruas de Paris, sem saber, com exatidão, a direção do Hotel para o qual deve ir. O plano inicial (1 e 2), com suas diferentes configurações de dimensão de enquadramento, garante o distanciamento necessário do personagem, confrontando-o a escala mais ou menos ampla das ruas pelas quais passa. A panorâmica lateral permite a

46

Cleyton Barbosa


.1 .

.2.

.3.

.4.

.5.

.6.

.7.

.8.

.9.

.10.

.11.

.12.

.13.

.14.

.15.

Paris: Cinema e imaginรกrio da Metrรณpole

47


presença de outros pontos de vista desse espaço, em detrimento do registro diagonal de pequenos trechos de ruelas por quais Gil irá percorrer, já em uma noite de Paris dos anos 1920. Ao pedir informações a um casal que passa, Gil não obtém êxito pela dificuldade de comunicação e não domínio do idioma francês (3) e se senta nos degraus da escadaria da Igreja de St. Etienne du Mont. A câmera o acompanha em uma panorâmica lateral, com ajustes de enquadramento em movimentos diagonais. Do fim da rua, surge um Peugeot antigo, que desacelera à medida que se aproxima de Gil. Um homem salta e o convida para entrar (4 a 6). “Sente-se aí. Vamos passear por Paris.” Nota-se, instantaneamente, a coexistência de duas temporalidades distintas, como indicado no plano (7), que contém a imagem do antigo Peugeot em partida, em direção a um modelo de carro contemporâneo. Entende-se, portanto, que as incursões do personagem às ambientações da década de 1920 pressupõem a vinda de um grupo aos dias atuais. O enquadramento frontal, com foco nos personagens, do quai de Bourboun, contribui para a contextualização da cena em espacialidades da cidade que se revelam em escala menor, mais próxima de suas ações. A música que acompanha essa primeira compilação de planos, Bistro

48

Cleyton Barbosa


Fada, de Stephane Wrembel, a conduzirá em um ritmo que caracteriza a admiração e surpresa de Gil, retornando ao fim da sequência. Marca a transição entre espacialidades em tempos distintos. A recepção a Gil por parte dos boêmios pode fundamentar-se em passagens escritas por Hemingway, em seu “Paris é uma festa”: Mas à noite, quando as luzes se acendiam, havia sempre pessoas muito simpáticas que eu não conhecia, correndo pelas ruas em busca de algum lugar onde pudessem beber e comer juntas para depois fazerem amor. Os frequentadores dos cafés principais poderiam estar fazendo a mesma coisa ou, então, bebendo, conversando e amando para serem vistos pelos outros. (Hemingway, 2012, p. 116)

Woody Allen retoma as considerações de Hemingway, elevando toda a euforia e espírito de boêmia em uma síntese fílmica que justifique o embarque de Gil a um carro de desconhecidos. Um travelling lateral acompanha a chegada de Gil a uma festa, onde demonstra grande estranhamento por tudo (10). Uma panorâmica

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

49


50

.16.

.17.

.18.

.19.

.20.

.21.

.22.

.23.

.24.

.25.

.26.

.27.

.28.

.29.

.30.

Cleyton Barbosa


transversal (11) revela um personagem tocando ao piano a conhecida Let’s Do It (Let’s Fall in Love). Gil não se convence de que a canção pudesse ter sido escrita pelo homem que a toca (Cole Porter), até que é abordado por Zelda (12). - Parece perdido. - Estou. Você é americana? - Tanto quanto o Alabama.

Gil acredita ser coincidência o fato de haver encontrado um casal cujos nomes, Scott e Zelda, fossem idênticos ao do casal americano, Fitzgerald (13 e 14). A sequência tem continuidade com um diálogo entre os personagens, dividos em planos concatenados em campo contracampo (7 planos de cada), até que decidem ir a outra festa, no Bricktop’s da rue Malebranche (15). A cena de sua chegada desencadeia um travelling lateral que percorre um salão onde Josephine Baker (16) interpreta sua icônica La Conga Blicoti. Estupefacto, ao se deparar com a naturalidade com que os demais convivem com o espetáculo, decide aceitar a possibilidade do que lhe parece improvável.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

51


O próximo corte corresponde à chegada do grupo ao Restaurant Polidor (17), onde Gil terá a oportunidade de conhecer Hemingway, cujo contato com a cidade de Paris aconteceu, inicialmente em 1918, à caminho da Primeira Guerra Mundial, quando foi conferir a decapitação da estátua de São Lucas pelos alemães, na Igreja de La Madeleine. Os efeitos da guerra parecem demarcar com maior definição o personagem. Gil demonstra grande admiração, sendo, prontamente, questionado por Hemingway: - Gostou do meu livro? - Se eu gostei? Adorei. Toda a sua obra. - Sim, é um bom livro porque é sincero. É o que a guerra faz aos homens. Não há nada de nobre em morrer na lama, a menos que morre com dignidade. E nesse caso é só nobreza, mas coragem.

A preferência pelos cafés estava no fato de serem suficientemente grandes para que se pudessem perder neles. “Ninguém as notava e, assim, podiam estar a sós e ao mesmo tempo acompanhadas” (Hemingway, 2012, p.116). As tensões entre Zelda e Hemingway (que não a considera uma boa

52

Cleyton Barbosa


companhia para Scott, já que, como escritor, deve deter seu tempo ao exercício de escrever, não à vida de boemia para a qual Zelda o arrasta) se demarcam em conflitos que se referem à sua investida em trabalhos literários, que Hemingway julga incompletos. Scott sai em busca de Zelda, que decidiu ir à Saint Germain com Juan Belmonte, o toureiro espanhol, evitando o convívio com Hemingway. Após recursar-se a ler o romance de Gil (“Minha opinião é que o odeio”), Hemingway avisa que poderá levá-lo para uma apreciação de Gertrude Stein, a quem confia seus próprios textos. As primeiras linhas de seu romance, que será avaliado por Stein, descrevem a natureza de uma loja de nostalgia: “‘Volta ao passado’ era o nome da loja e seus artigos eram lembranças. O que era prosaico e vulgar para uma geração, foi transformado por uma mera passagem dos anos, tornando-se, ao mesmo tempo, mágico e simples.”

Woody Allen conduz o diálogo entre os personagens em uma sucessão de campo contracampo que totalizam a concatenação de 24 planos.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

53


Parte sem olhar para trás, impressionado com sua experiência única e por haver conhecido Hemingway, Porter e os Fitzgerald. A câmera em plano próximo e baixa profundidade de campo não permitem uma visão dos espaços da cidade. Percebe-se uma mudança na iluminação de fundo e sua coloração, em tons mais frios. Gil decide retornar a fim de esclarecer um ponto referencial no qual deverá se encontrar com Hemingway, novamente. Ao se voltar, porém, não reencontra o restaurante, mas uma lavanderia em seu lugar (30). Tal determinação foi opcional ao autor, tendo em vista o funcionamento do local ainda nos dias atuais. Os enquadramentos de contexto (permitem maior espaço vazio acima e abaixo do personagem, mas apresentam um recorte bem selecionado do ambiente) se mostram cuidadosos ao não denunciarem intervenções pós-modernas e/ou contemporâneas no espaço. Em sequência posterior, Gil expõe sua vinda do futuro aos surrealistas Dali, Buñuel e Man Ray, que compreendem sua situação como estado de consciência de alguém que vive em dois mundos. Contudo, o fio que o conduz por entre essas espacialidades de temporalidades distintas não se revela de modo claro ao longo de todo o filme. Os trechos selecionados de The Moderns (A a C) , de Alan Rudolph, constituem o contraponto à Paris recriada por Woody Allen, no que se

54

Cleyton Barbosa


refere a seus espaços urbanos. A utilização de filmetes capturados durante a década de 20 como enxertos para contextualização da ação narrativa reafirmam a mensagem de uma cidade submetida aos efeitos da Revolução Industrial e suas consequências no convívio de seus habitantes. Seus personagens demonstram as inquietações ocasionadas por viverem em um tempo que parece lhes consumir – indicação que reafirma a crítica de René Clair ao citar a necessidade de uma cidade não de todo paralisada, mas desacelerada.

.A.

.B.

.C.

O movimento e sinuosidade também comparecerão na obra de Woody Allen, mas não responderão ao cotidiano e funcionamento da cidade. Ao contrário, estarão representados nas esquinas e ruelas em ambientação noturna, que indicarão que a desconjunção no espaço desencadeiam uma desconjunção no tempo, sustentando as viagens de Gil à década de 20.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

55


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A respeito dos estudos particulares desta pesquisa, as observações caminharam para a indicação de uma percepção alterada dos espaços urbanos pela influência de considerações próprias e pessoais dos autores que as retratam. A Paris de Clair é virtual (uma potência daquilo que poderia vir a ser) e expansiva. Os efeitos do raio são representados, principalmente, em dimensão pública. As escolhas de enquadramentos e ângulos de filmagem corroboram a ideia de que a cidade é de domínio do seleto grupo de cidadãos personagens que não sofreu paralisação. Em Paris Adormecida, os espaços urbanos comparecem como cenários fílmicos, de modo análogo aos cenários que ambientam cenas na escala da cidade. Entretanto, cria-se uma nova consciência que os modificam enquanto ambiente, índices de espacialidades. As relações resultantes deste processo serão diferenciadas.

56

Cleyton Barbosa


Pois essas espacialidades erguem-se à medida que seus personagens parecem dominá-las. Os planos altos não registram apenas o entorno da torre, mas ratificam o domínio que seus poucos habitantes agora possuem sobre as referidas espacialidades. Nos momentos em que se evidencia a desolação dos personagens, seja pela incerteza do ocorrido ou finalização de uma euforia momentânea, os espaços urbanos se tornam mais frontais. Suas configurações narrativas constituem brechas que propiciam a intervenção de um discurso crítico, ainda que dotado de particular subjetividade e poeticidade, onde a cidade paralisada se demarca como interface de uma representação imagética e irreal de um anseio coletivo que se direciona a um contraponto face às recentes atribulações da vida ocasionadas pelo ritmo industrial. Já na obra de Woody Allen, nos trechos ambientados na década de 20, confirma-se a representação de uma cidade recriada segundo os ideais e considerações lançadas por seu autor. Não há, portanto, uma estreita integralidade na representação da cidade como espaço físico. A intenção de Allen é retomar o ambiente parisiense na década do pós-guerra, tornando, assim, inevitável o direcionamento à representação dos espaços e arquiteturas modernos. Contudo, deve-se considerar que o faz sem ater-se à necessidade de uma representação fiel, realística, dado

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

57


à natureza irreal das cenas e circunstâncias, que constituem um retorno por parte do personagem protagonista aos anos loucos, sem que nos seja apresentado, em momento algum, uma explicação minimamente lógica (ainda que uma lógica questionável) sobre o que possibilita ao personagem esse passeio entre décadas. Essa “revisita” se dá de modo imaginário, com base em imagens arquetípicas alimentadas apoiadas em registros desse período. A imagem de Paris em 1920 é, nesse sentido, para Woody Allen, uma alusão inspiradora. Uma vez modificadas em estrutura e aparência e desvencilhadas de suas designações, as edificações se tornam recursos impossíveis de utilização para contextualização e cenários fílmicos. A Paris de Allen é, por este motivo, quase que de modo geral, reconstruída, em função dos cenários necessários à ambientação dos encontros de artistas, literatos e outros, bem como os lugares das festas e encontros da boêmia, em geral. Ao que se indica, este é um dos fatores essenciais que fazem com que a Paris de 20 apresentada pelo autor, tenha sua representação e enquadramento de modo mais “fechado”. Os grandes planos gerais ou de conjunto correspondem ao bloco de ação contemporânea do filme em questão.

58

Cleyton Barbosa


Sua intenção, entretanto, não é mimetizar espaços urbanos tais quais foram, mas recriar cenários e paisagens que permitam a menção à dada espacialidade fundamentada em relações de trocas sociais determinadas. O autor de detém à representação de ambientes internos que se apresentam como espaços de convivência. O que se sobressaem são espacialidades em dimensões reduzidas e as experiências resultantes de relações provenientes de um contato mais vivo, que se desenvolvem em instantes circunstanciais, tendo maior enfoque em espaços internos de ateliês, restaurantes, bares, cafés, destacando o convívio entre personalidades. A cidade é, sobretudo, uma experiência comunicativa (Ferrara, 2008) no que se comunica por intermédio de imagens e processos de interações. O cinema intensificou os esforços da cidade enquanto objeto comunicacional, na transição ao século 20, em sua extensa promoção, em exercícios de colocação e definição de elementos simbólicos, pois enquanto mídia, a cidade preserva e propicia a incidência de uma gama de mediações. A cidade de Paris, em ambos os casos estudados, configura-se como imagem e plano que se reverberam em mediações, responsáveis pela

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

59


formulação de um modo de ver suas espacialidades. A imagem de Woody Allen é dotada de um saudosismo que a transforma em objeto referencial de um simbolismo consolidado. A interpretação que realiza da cidade durante a década de 1920 fundamentase em leituras formuladas muito antes de suas considerações. Suas espacialidades, recriadas, manipuladas, remetem às paisagens emblemáticas. Ainda que caminhe em sentido contrário à aplicação de “clichês” visuais, Woody Allen revisita paisagens padrões de Paris, como observado no estudo das espacialidades mais recorrentes como cenários fílmicos. Já para Rene Clair, espaços urbanos imaginários se estabelecem no usufruto de espacialidades concretas. Aos personagens, a imobilidade dos espaços de Paris Adormecida resulta na necessidade do convívio com o outro, que se torna urgência no momento em que isso lhes é privado. Ao passo que a cidade se dimensiona enquanto espaço de mediação e relações sociais, a Paris adormecida de René Clair firma sua configuração como um espaço urbano que se dissocia ocasionalmente não do conceito de cidade. É, portanto, um retrato figurativo de Paris como uma não cidade, onde já não se praticam trocas e interações reiteradas por seus habitantes.

60

Cleyton Barbosa


As espacialidades da cidade de Paris se propagam na repercussão de miniaturas imagéticas, sistematizadas com a intenção de tornar possíveis a serialização de sua reprodução, revelando, e não apenas na mídia cinematográfica, um posicionamento metonímico consensual. Estabelecese, a partir de então, um estatuto potencial que firma esse “modo de ver programado à distância” (Lucrécia, 2008). Desta forma, a exploração de novos eixos e espacialidades se torna ação mais virtual que palpável. Uma breve observação de suas espacialidades correspondentes confirma uma produção de significados que de algum modo se orientam para mediações circunscritas à cidade como cenário. No filme de René Clair uma cidade cenário dos efeitos de alterações tecnológicas no cotidiano dos cidadãos. No filme de Woody Allen, uma cidade cenário de lugares emblemáticos de um tempo, de grande efervescência cultural, sobretudo em seu aspecto emblemático. Se por um lado a cidade, enquanto meio, é vulnerável a impactos que tendem a alterá-la, enquanto mídia impulsiona a afixação dos ícones simbólicos que produz e a partir dos quais assevera sua visibilidade.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

61


62

Cleyton Barbosa


Paris: Cinema e imaginรกrio da Metrรณpole

63


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBRECHT, Donald. Designing Dreams: Modern Architecture in the movies. NY, Harper and Row: The Museum of Modern Art, 1987. AUGUSTO, Sérgio. E foram todos para Paris. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011. AUMONT, Jacques. e outros. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995. AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2003. CARLOS, Ana Fani Alessandri. A (re)produção do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1994. COSTA, Flávia Cesarino. Primeiro cinema In: MASCARELLO, Fernando. (org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006.

64

Cleyton Barbosa


FERRARA, Lucrécia D’Alessio (org.). Espaços comunicantes. São Paulo: Annablume; Grupo ESPACC, 2007. _____________________. Os significados urbanos. São Paulo: Fapesp, 2000. _____________________. Comunicação Espaço Cultura. São Paulo: Annablume, 2008. GOLIOT-LÉTE, Anne; VANOYE, Francis. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994. HEMINGWAY, Ernest. Paris é uma festa. São Paulo: Bertrand Brasil, 2012. JULLIER, Laurent; MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Editora SENAC, 2009. MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela. São Paulo: Paulus, 2007. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005. MARTINS, Fernanda A.C.. Impressionismo francês. In: MASCARELLO, Fernando. (org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

65


MULLER, Jurgen. Movies of the 20s and Early Cinema. Paris: Taschen, 2007. NAZARIO, Luiz (org.). A cidade imaginária. São Paulo: Perspectiva, 2005. PRYSTHON, Angela (org.). Imagens da cidade - Espaços urbanos na comunicação e cultura contemporâneas. Porto Alegre: Sulina, 2006. SEIGEL, Jerrold. Paris Boêmia – Cultura, política e os limites da vida burguesa: 1830-1930. Porto Alegre: L&PM Editores, 1992. WISER, William. Os anos loucos: Paris na década de 20. São Paulo: José Olympio, 1983.

66

Cleyton Barbosa


REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS

ALLEN, Woody (dir). Meia Noite em Paris. Produzido por Letty Aronson, Jaume Roures e Stephen Tenenbaum. Duração: 100 min. França: Mediapro / Versátil Cinema / Gravier Productions, 2011. ARMITAGE, Frederick (dir). Building up and demolishing the Star Theatre. Duração: 2 min. EUA: American Mutoscope & Biograph, 1901. CHAPLIN, Charles (dir.). Tempos Modernos. Produzido por Charles Chaplin. Duração: 87 min. EUA: Charles Chaplin Productions / United Artists, 1936. CLAIR, René (dir.). Paris Adormecida. Produzido por Henri DiamantBerger. Duração: 35 min. França: Films Diamant, 1923. PROMIO, Alexandre (dir). Panorama du Grand Canal Vu D’un Bateau.

Paris: Cinema e imaginário da Metrópole

67


Produzido por Louis Lumiére. Duração: 1 min. Itália: LUMIÉRE, 1986. RUDOLPH, Alan (dir.). The Moderns. Produzido por Carolyn Pfeiffer e David Blocker. Duração: 126 min. EUA, Nelson Entertainment, 1988. WHITE, James H.; EDISON, Thomas (dir). Panorama of Eiffel Tower. Produzido por por James H. White e Thomas Edison. Duração: 2 min. França: Edison Manufacturing Company, 1900.

68

Cleyton Barbosa




Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.