Bem Vindo a São Paulo: Cidade das Telas

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CLEYTON BARBOSA RITA

BEM VINDO A SÃO PAULO CIDADE DAS TELAS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito à obtenção do título de Bacharel em Comunicação e Multimeios. Orientadora: Profa. Dra. Ane Shyrlei Araújo

São Paulo 2014



‘A cidade sem nenhum caráter é aquela cuja imagem nunca está pronta, mas se apronta todos os dias”. (Lucrécia Ferrara)



RESUMO Desde o surgimento das experiências que deram origem ao dispositivo cinematográfico, as imagens da cidade se fixaram como pressupostos recorrentes de enquadramentos e reproduções. A delimitação do tema desta pesquisa se refere ao estudo de caso da representação dos espaços da cidade, numa produção fílmica de caráter antológico, composta de pequenas realizações que compreendem contextos distintos e específicos: Bem Vindo a São Paulo (2004). Objetivou-se um levantamento dos espaços da cidade, mediados e ressignificados pelo filme. Realizado o embasamento teórico sobre os temas pertinentes à pesquisa, as hipóteses foram retomadas, em procedimentos que buscaram sua verificação. Destacados os trechos fílmicos que melhor desmonstraram a cidade de São Paulo, como cidade das telas, se realizou a decupagem, com descrições organizadas num banco de dados que fundamentou uma análise comparativa/discriminativa. As inferências realizadas indicam enquadramentos que subvertem a representação dos espaços urbanos, em mediações audiovisuais, enquando visualidade. Revelam-se, ainda, experiências sensíveis que orientam uma percepção háptica, tátil, desses espaços. Palavras-chave: cidade, mediações audiovisuais, São Paulo



SUMÁRIO INTRODUÇÃO

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLOGIA

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1. DAS ESPACIALIDADES MEDIADAS

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1.1. As espacialidades da cidade

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1.2. Cenários audiovisuais

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2. SÃO PAULO EM MEDIAÇÕES AUDIOVISUAIS

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2.1. Cinema e cidade

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2.2. A cidade de São Paulo no cinema

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3. BEM VINDO A SÃO PAULO: ANÁLISES FÍLMICAS 44 3.1. Marco Zero, de Phillip Noyce

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3.2. Aquário, de Tsai Ming-Liang

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3.3. Novo Mundo, de Jim McBride

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3.4. Bem Vindo a São Paulo, de Wolfgang Becker

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4. CORRELAÇÕES POSSÍVEIS

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS

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Referências Bibliográficas

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Referências Filmográficas

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INTRODUÇÃO


Desde as primeiras experiências que deram origem ao cinema, a imagem da cidade se fixou como pressuposto recorrente de enquadramento e reprodução. Suas capturas habituais se reconfiguraram com base no novo mecanismo de projeção, destacando o espaço no qual as ações cotidianas ocorriam de modo regular. À medida que essas primeiras experimentações demonstravam sua relevância enquanto mídia, as imagens da cidade, retratadas nas telas, se transformavam em fenômenos de massa (os custos eram elevados, o que gerava demanda de alcançar um grande número de espectadores), aplicadas técnicas de reprodução que potencializaram sua difusão. Coube ao cinema selecionar os espaços da cidade, sua dimensão urbana, seus sistemas de transporte, conferindo novas visualidades a esses espaços, proporcionando, em contrapartida, a ocupação de lugares anteriormente limitados ou restritos. Criou-se, gradualmente, uma cidade das telas, a partir desses ambientes destacados, que se encontravam 1. BENJAMIN, 2012, p.97

limitados, em um “mundo encarceirado”. 1 No Brasil, a cinematografia nacional encontra em São Paulo um de seus centros de desenvolvimento. Os grandes estúdios que se instalaram na cidade, e permaneceram ativos até meados da década de 50, atendiam, apesar das críticas de uma forte influência hollywoodiana (tanto em métodos de produção quanto em estruturação da narrativa), o anseio de

2. Originado com base nessa vertente, e inspirado no movimento crítico/ cinematográfico da Nouvelle Vague, o Cinema Novo no Brasil surgiria, em meados da década de 60, como um contraponto a essas produções,

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um povo de ser visto por si mesmo. 2 Muito antes, os espaços e lugares da cidade em plena expansão industrial já eram referenciados. As novas contexturas do ambiente urbano, em uma sociedade que se tornava moderna, provocavam outras reflexões e modos de


vivenciá-lo, num movimento que assimilava suas próprias contradições e perspectivas. São Paulo, a sinfonia da metrópole (Rodolfo Lustig

cujas estruturas narrativas e temáticas, indicavam forte influência dos modelos americanos de produção.

e Adalberto Kemeni, 1929), inspirado na experiência de 1927 que retratava a cidade de Berlim, demonstra os desafios da metrópole que se estabelece como centro industrial e financeiro. A obra fílmica se constitui como um panorama dos triunfos e conflitos, ainda recorrentes, de uma grande cidade. Essa ode à cidade foi o prelúdio de uma série de produções posteriores, que retomariam esses espaços, reproduziriam essas imagens, numa afirmação contínua que estruturava, agora no cinema, a representação de sua grandiosidade. Interpretando a cidade enquanto “ambiente que se comunica como espaço social” (FERRARA, 2007, p.7) e analisando São Paulo, ao longo dos anos, como a importante megalópole nacional, centro de imigração e, consequentemente, espaço de convergência de culturas, uma vasta cartilha de realizadores audiovisuais a utilizaram como cenário de ambições criativas. Estes experimentavam as vertentes da linguagem cinematográfica e desenvolviam uma forma fílmica que traduzisse, nas telas, as noções realísticas ou poéticas que propunham como dimensão estética de seu olhar sobre a cidade, destacando aspectos em especificações técnicas próprias do dispositivo cinematográfico. O cinema promove leituras diversas dos espaços, diante das pluralidades que coexistem no cotidiano da megalópole, o que revela a possibilidade de modos distintos de vivenciar e de se fazer a cidade.

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Desse modo, parte-se do pressuposto que a produção seleciona os espaços da cidade, revelando-os em cenários das ações. O filme Bem Vindo a São Paulo (2004), indicado para o estudo de caso que compõe esta pesquisa, foi financiado pela Mostra Internacional de Cinema e se define para superposição de depoimentos fílmicos de variados diretores; traz à tona a dissociação entre as múltiplas cidades que parecem ocupar o território urbano de São Paulo, numa tônica predominante da diversidade. Constitui um produto que demonstra a pluralidade de visões e interpretações desses espaços, a partir da montagem de pesquenos curtasmetragens. Para isso, o filme faz uso de cortes e enquadramentos que resultam num estilo de representação de espaços selecionados, e conferem à sequência o ritmo e fluidez propriamente urbanos. Tornaram-se comuns os experimentos audiovisuais que adoram os registros de espaços da cidade em procedimentos que visam, a partir de aproximações particulares, descrevê-las e ressignificá-las. Se o cinema adota o espaço urbano como ambientação de seu projeto fílmico, a cidade se utiliza das imagens criadas pelo cinema como forma de revelar suas vivências cotidianas e apontar suas diversidades de identidades. Esse vínculo desencadeia um processo de passagens, mediações e transferências de espaços, em desdobramentos de uma nova gama de significações, ou seja, a cidade e o cinam firmam um pacto ao produzir, num outro elemento, a cidade mediada, interpretada como objeto fílmico.

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Um dos resultados possíveis desse processo pode ser avaliado nos traços das personagens urbanas, que carregam sinais característicos dos diferentes lugares da cidade, passíveis de adaptações para o modo de ação e/ou raciocínio do indivíduo ficcional. Em abordagem documental, percebese de que modo o cidadão interioriza os costumes do local em que vive, reforçando aquelas indícios superficialmente capturados do registro dos espaços da cidade. São Paulo é uma cidade descaracterizada3, o que reforça sua natureza plural, a partir da qual se obtém distintas mediações e se verificam os variados usos de suas espacialidades.

3. CAMPOS, Haroldo de. Expresso Brasil: São Paulo de Haroldo de Campos. São Paulo, TV Cultura, 1997. Documentário dirigido por Marcelo Gomes.

A extensão populacional e espacial da cidade de São Paulo resulta em experiências onde se identificam deversidades culturais, de hábitos e modos de se integrar, utilizar e conviver em espaços urbanos, numa dimensão de cidade. A proplemática que centra as propostas desta pesquisa, indaga de que modo tal diversidade de espaços é mediada no filme estudado. Qual o vínculo do cidadão narrado em obras fílmicas com o espaço em que vive? Como a pluralidade que (des)caracteriza São Paulo é mediada e remetida no produto audiovisual indicado? Quais serão, prioritariamente, os enquadramentos utilizados nesse processo? A aproximação do espectador com a cidade das telas se dará pela visualidade ou serão definidas sequências que possibilitem uma experência háptica desses espaços projetados? A proposta desta pesquisa se deimita numa análise de trechos da cidade a partir de sua mediação em recortes fílmicos.

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O filme selecionado para estudo, Bem Vindo a São Paulo, remete a uma cidade plural, cujas ações cênicas se expandem em áreas contíguas “aos centros” que se destinam a dadas finalidades (abandonam o centro enquanto Marco Zero da cidade e buscam novos eixos comerciais, encontrados na região da Avenida Paulista e Faria Lima, por exemplo). Desta forma, os espaços selecionados da cidade enfatizam o discurso fílmico, em motivações contínuas da dessemelhança de visualidades, promovendo, ao mesmo tempo, um esforço para que se construa um imaginário próprio de determinados bairros e regiões. Muitos dos personagens retratados nas telas se intensificam em uma instropecção que evidencia a disparidade com o fluxo e ritmo em que caminham todos os objetos que lhes são adjacentes, ou seja, estão escondidos em si mesmos tal como os espaços se reforçam “invisíveis’ em meio ao cotidiano da cidade, enquanto tantos outros demonstram semelhanças características com o recorte espacial em que estão inseridos. Os retratos dos espaços da cidade em tela cinematográfica está intimamente relacionado à aproximação do objeto representado e olhares lançados por seus realizadores. A experiência pessoal e crítica de cada autor influirá diretamente em sua obra. Tal hipótese se fundamenta na diversidade em que se firma o produto final de obras compostas por pequenos episódios, curtas-metragens, realizadas com foco em uma mesma temática, tendo os espaços da cidade como cenário predeterminado e em comum. Os enquadramentos recorrentes dimensionam a cidade

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de modo a superar o recorte espacial como mero cenário de ação fílmica. A cidade, muito constantemente em sua dimensão urbana, se torna personagem centrál dos filmes que a reproduzem. Os objetivos desta pesquisa se fixam na apresentação das vias pelas quais o modo de enquadrar os espaços da cidade estabelecem relação entre o contexto de realização do filme e os traços de representação espacial, restritos à obra audiovisual, em processos de mediação. Ainda, a inquisição dos reflexos do constante fluxo e efervescência cultural de São Paulo na estética e estrutura dos pequenos curtas metragens compõem a antologia selecionada para o estudo. Pretende-se uma decupagem dos recursos sintáticos adotados na composição das sequências, que colaborem com a visão de uma metrópole fragmentada e caracterizada por sua diversidade. Com a intenção d propor uma análise da cidade a partir da concepção cinematográfica e seu viés imagético, a delimitação do tema se refere ao estudo dos espaços da cidade de São Paulo, numa produção de caráter antológico, composta de pequenas realizações que compreendem contextos distintos e específicos de produção: Bem Vindo a São Paulo (2004). A obra se destaca por estabelecer um fluxo conexo com o cotidiano da cidade, em ressignificações de seus espaços. Os filmetes que a compõem regulam vínculos que permitem a ambientação comum de suas micro narrativas, salientando os ambientes e diversos usos demonstrados na tela. Neste sentido, este trabalho se pontua em investigar as esclas de reprodução e enquadramenTos dos lugares da cidade,

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contrapondo aproximações e direções, possibilitando o ensaio de um anorama cartográfico dos modos diferenciados de representação de uma mesma temática, face às pluralidades que determinam e caracterizam os espaços e indivíduos da cidade. Uma vez analisados os casos, a pesquisa estabeleceu um vínculo comparativo entre os estudos realizados, de modo a obter uma projeção específica dos enfoques da cidade de São Paulo, e os olhares particulares de cada realizador. O trabalho demonstra sua relevância necessária ao testar hipóteses para questões que buscam explicar a relação entre cidade e cinema, a partir da investigação das propostas de mediações de espaços, enquanto subsídios para realização do produto fílmico. O filme não apenas tem sua ambientação na cidade, mas a cidade assume papel fundamental a ponto de se tornar única e essencial para o projeto. Desse modo, os objetos se interferem, em processo contínuo de mútia influência e diálogo. A pesquisa se concretiza na análise das telações similares e disparidades avaliáveis no enquadramento dos espaços urbanos de uma cidade e sua reprodução no cinema, a partir de ambientações e temáticas distintas. Esse processo permitiu, como proposta extensiva, uma breve abordagem de São Paulo em outros contextos, possibilitando, ainda, uma série de novas correlações, a partir da aplicação de metodologia que dê suporte a uma coleta de dados mais ampla e referente a outras cidades em suas representações fílmicas.

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLOGIA


As publicações adotadas como subsídios para fundamentação teórica discorrem a respeito da natureza dos espaços urbanos e suas configurações enquanto mídia e espacialidade mediada, o que permite a estruturação de um panorama que vise à contextualização da realização fílmica. Estabelecem, ainda, um breve histórico a respeito da cidade enquanto cenário e sua inserção na tela fílmica, bem como um campo de referências de cenários relativo às espacialidades verificáveis no espaço urbano palpável. À medida que as imagens fílmicas reproduzem e ressignificam as espacialidades da cidade, em procedimentos que lhes associam novas visualidades, a partir de uma narrativa estabelecida, o espectador é levado a vivenciar e conhecer as estruturas e ambiências sob determinado enfoque selecionado. Recorrentes serão as delimitações que retomam as designações propostas por Lucrécia Ferrara, em texto que estabelece os parâmetros conceituais que definem espaço urbano e sua distinção de cidade. Espaço urbano e cidade não se confundem, mas se flexibilizam e se relacionam. O que caracteriza o espaço urbano é sua definição por meio de planos e traçados de avenidas e ruas sobre o território; a cidade, ao contrário, se define pelo uso, na relação entre moradores, em suas trocas e mediações.

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(Lucrécia Ferrara, 2010, p.168)

Pode-se inferir, portanto, que a cidade é uma dimensão que surge a partir da leitura e apropriação que os usuários fazem de determinado espaço urbano.

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As convenções acerca de termos e conceitos próprios à realização cinematográfica e seus elementos sintáticos se fundamentam em uma leitura das obras “Dicionário teórico

e crítico de cinema” (de Jacques Aumont e Michel Marie, 2003), “A estética do filme” (de Jacques Aumont e outros, 1995) e “A linguagem cinematográfica” (de Marcel Martin, 2005). Este conjunto estabelece uma base fundamental que sustenta os procedimentos de decupagem e análise das obras selecionadas. Os embasamentos necessários ao exercício de análise fílmica estão fundamentados nas publicações “Lendo as imagens do cinema” (de Laurent Jullier e Michel Marie, 2009) e “Ensaio sobre a análise fílmica” (de Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété, 1994), que descrevem as etapas e metodologias possíveis para a realização do processo de leitura da imagem cinematográfica, buscando, em sua forma e disposição, elementos que auxiliem o esquadrinhamento de dados que compõem a significação fílmica. A leitura de um filme, que casualmente alimenta o julgamento do seu valor, varia com frequência em função da distância na qual ela é praticada.

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(Laurent Julier; Michel Marie, 2009, p.20)

O ponto de vista é muitas das vezes definido pela localização da câmera, ou posicionamento a partir da qual a instância vidente se relaciona com o objeto visto, de onde parte o olhar. Portanto, deve-se entender que nenhum ponto de vista é neutro. Todas as posições de câmera conduzem a uma série de conotações. (JULIER; MARIE, 2009, p.22)

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As publicações “O significado urbano” e “Espaços

comunicantes” (ambas de Lucrécia D’Aléssio Ferrara, 2000 e 2007, respectivamente) são referenciadas por possibilitarem o levantamento de um conjunto de base de formulações críticas acerca das espacialidades urbanas e, posteriormente, seus vínculos com o espaço mediado. Tais publicações demonstram relevância nos procedimentos de conceituação e análise de resultados quanto à proposta deste trabalho. Essas publicações, que se reportam aos espaços, espacialidades, comunicação e cultura, fundamentam um panorama a respeito das possibilidades de leitura e representação de espaços. Para tanto, se tenciona o distanciamento das teorias e conceituações de espaço, muito embora não se intente uma desvinculação radical, segundo as teorias metafísicas ou com proposições filosóficas que vigoraram até a eclosão do iluminismo, do século XVIII. Neste procedimento, é superado, portanto, o idealismo platônico (que, ao referir ao espaço a designação de “coisas criadas”, preenchido por formas, lhe confere a característica de impossibilidade de conhecimento direto, uma vez que esse só poderia se concretizar por essas mesmas formas que o preenche). A percepção de espaço baseou-se na possibilidade de experiência concreta, como cenário de vivência, passível de manipulações e experimentações diretas. Definem-se espacialidades como dimensões comunicativas do espaço, em seu caráter multimidiático, verificadas no trânsito das variadas mídias nas quais se reproduzem enquanto mediação. Em sua abordagem teórica, cria uma leitura do espaço enquanto comunicação ideológica da cultura e exige o resgate das manifestações presentes nas

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suas constituições históricas. Deste modo, as espacialidades se conceituam a partir dos usos não planejados pelo urbanismo, atribuídos pelos cidadãos que ressignificam os lugares que ocupam. Relacionam-se, particularmente, ao convívio e apropriação real dos espaços urbanos redesenhados em sua dimensão de cidade. Ainda, “Cities and cinema” (de Barbara Caroline Mennel, 2008) e “A cidade imaginária” (organizado por Luiz Nazário, 2005), apresentam estudos de casos que discorrem acerca da cidade e sua representação em filmes nela ambientados, se fizeram úteis a essa pesquisa por apresentar parâmetros de correlações entre espacialidades urbanas e suas mediações audiovisuais, com destaque ao caráter imagético, visual e imaginário dos cenários. O presente trabalho tem por intento a realização de uma análise que identifique as espacialidades da cidade enquanto mediações em cenários fílmicos. Para tanto, em primeira etapa, fez-se necessária uma retomada de bibliografia já consultada e o rastreamento de novos títulos que atendessem às questões pontuais que surgiram ao longo das etapas de execução do trabalho, delimitadas aos recortes específicos realizados no objeto de pesquisa, oferecendo embasamento teórico mais amplo e consistente. Destacado o embasamento que permitiu as análises propostas, foi retomada a problemática central e suas hipóteses adjacentes, desenvolvidas como o fio condutor de outros pormenores circunscritos à pesquisa. Nesta etapa, consistente na correlação dos conceitos levantados com o objeto proposto para estudo, as aproximações

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entre as espacialidades na cidade e no cinema começaram a ser desvendadas a partir da investigação das imagens que se evidenciam com maior frequência nas produções audiovisuais, com base em enxertos fílmicos selecionados. Realizou-se um mapeamento específico que indicou as sequências mais significativas da cidade de São Paulo como cenário da ação fílmica. Uma investigação mais aproximada destes recortes se fundamentou em um procedimento de decupagem que considerou as questões de uso da linguagem fílmica, estética visual, disposição de elementos, abordagem da cidade e sua circunscrição à superfície da tela. Esta etapa metodológica se tornou responsável por estabelecer convenções que definem como sendo únicos o estilo e identidade a partir dos quais cada diretor/realizador dos filmes selecionados enquadraram as pluralidades defendidas como tradução da cidade. Concomitante a este procedimento, concretizou-se um levantamento relacionado às espacialidades urbanas observadas nos filmes e a reflexão acerca de sua visualidade e seus usos no cotidiano não ficcional da cidade, enquanto espaço físico e comunicação midiática. O domínio destes dados permitiu a análise de fins comparativos e discriminativos que demonstraram as equivalências e disparidades do espaço urbano da cidade como cenário fílmico. As correlações entre os resultados da análise das sequências do filme retomam, como embasamento prático de discussão, o artigo A Paisagem Urbana, de Wim Wenders, e as entrevistas concedidas por Haroldo de Campos e Paulo Mendes da Rocha para os programas televisivos Expresso

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Brasil (1997) e Roda Vida (2013), respectivamente. Do artigo, foram recortados enxertos que melhor definissem a relação entre cinema, arquitetura e cidade sob o ponto de vista de um diretor cinematográfico, cujas imagens fílmicas buscam e estabelecem, continuamente, essa correlação. Das entrevistas, foram retirados trechos em que se discutem o espaço urbano e a imagem, em constante construção, da cidade de São Paulo. Ao fim da execução das atividades listadas, tornou-se possível a conclusão das questões apresentadas ao longo do projeto e exposição de resultados interligados que facultaram a inferência das investigações, como medida conclusiva, por intermédio de um panorama meticuloso dos objetos analisados, dando início a discussões adjacentes, como desdobramento da pesquisa. As inferências apresentadas ao final deste trabalho se configuram pela produção de significados advindos de procedimentos comparativos e discriminativos, referentes à demarcação pontual deste estudo.

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1.

DAS ESPACIALIDADES MEDIADAS


1.1 AS ESPACIALIDADES DA CIDADE Ferrara (2008) discorre sobre a natureza do espaço ao partir de um contraponto com o conceito proposto pela filosofia antiga, que o definia como não sendo assimilado em sua existência, mas uma “forma transcendental da sensibilidade responsável pela percepção inata de dimensões ou localizações, sem considerar variações apreensíveis da experiência” (p.46). Posteriormente, considerou-se a construtibilidade desse espaço como elemento indicial que possibilitaria seu estudo. Era necessária sua dimensão concreta, à qual se poderia reconhecer e praticar. Sua percepção deveria produzir experiência sensível, “que se expande no corpo e se expressa na sua corporeidade como forma imprevista de apropriação e de uso do espaço” (p.47), definindo, ainda, extensão que lhe permitiria uma determinada representação. A representação é um duplo do objeto. [...] é mimese ou sombra do objeto e do mundo, ainda que aquelas representações sejam frágeis e parciais.

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(Lucrécia Ferrara, 2008, pp.47-48)

É nesse passo que Ferrara (2007, p.10) discorre a respeito das possibilidades de caracterização do espaço, segundo sua proporção (o espaço figurativo, geométrico), sua construção (hierarquização do espaço, a partir da qual se é possível distinguir o volume e movimento dos objetos que lhe pertencem) e sua reprodução (assumindo uma dimensão técnica de reprodutibilidade, ao desvincular-se de seu estado unitariamente físico).

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A espacialidade se define como a dimensão comunicativa do espaço, seu caráter multimidiático, ao passo que se verifica presente e transitiva nas variadas mídias a partir das quais poderá ser estudada. A espacialidade cria uma teoria do espaço enquanto representação e, em consequência, como comunicação e supõe o resgate das manifestações presentes nas suas constituições históricas.

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(Lucrécia Ferrara, 2008, p.47)

Deve, ainda, ser entendida como ambiente de produção de cultura, que sobre ela incide e o compõe. A espacialidade é entendida como a própria natureza daquela construção e é considerada a primeira e a primordial categoria de representação do espaço. Ao lado dela, a visualidade e a comunicabilidade que alimentam sua expressividade e significado, constituem as duas categorias subsequentes.

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(Lucrécia Ferrara, 2008, p.49)

Uma aproximação prática da espacialidade enquanto categoria de análise exige, portanto, que se investiguem os meios e recursos pelos quais se representa, em projeções miméticas ou como registros especulares, e de que forma se comunicam. 1.2. CENÁRIOS AUDIOVISUAIS Enquanto mediação audiovisual, a espacialidade se revela em enquadramentos díspares que selecionam os espaços menos recorrentes e produções fílmicas ou, em

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outros casos, subvertem a criação de imagens já demarcadas, buscando novas angulações, ambientações e configurações que definam esses planos. Esses enquadramentos apontam um olhar diferenciado, que se manifestam em visualidades ou em dimensão narrativa. No filme selecionado, Bem Vindo a São

Paulo, o filmete “Odisseia”, que projeta o olhar de Daniela Thomas sobre o Elevado Costa e Silva (Minhocão), indicam determinadas características que possibilitam a leitura de seus quadros como reprodução de espacialidades mediadas, pois, como imagem projetada, assume outra extensão que supera sua função projetual. São eleitas representações que demonstram os variados usos ao qual se submete; a montagem do filmete, que concatena os planos capturados em momentos e dias distintos, lhes conferindo uma unidade de movimento fluido, retoma as definições linguísticas da obra de Homero, na qual se conjugam dialetos distintos de modo que se crie uma língua dissimulada, muito embora inteligível. A tradução audiovisual desse conceito conjuga diferentes temporalidades e usos desse mesmo espaço, promovendo a imagem mitológica de um Minhocão humanizado. A travessia do elevado em sua extensão demonstra como a superação de um percurso, uma odisseia por extensão de sentido, se constrói no encadeamento dos fragmentos que o constrói. Deste modo, essas espacialidades mediadas se definem não pela originalidade dos locais em que foram capturadas, muito menos pela ação corriqueira dos cidadãos que as vivenciam, mas pelo enquadramento que as tornam imagem

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audiovisual, em configurações distintas. Faz da cidade um pretexto para uma percepção de seus espaços. Apesar da arquitetura fílmica ser percebida como fragmentada, de maneira mediada, e do espaço real e do fílmico não necessariamente se corresponderem na totalidade, pois o que é contínuo no filme pode ser descontínuo enquanto cenário e vice-versa, a experiência real de um observador no espaço arquitetônico tem muito a ver com a percepção visual de uma sequência fílmica.

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(Fábio Allon dos Santos, 2005, pp.5-6)

A diversidade construtiva, que se tornou vigente a partir de meados do século XIX, potencializou o surgimento de novas espacialidades, caracterizando outras apropriações dos espaços anteriormente planejados em determinadas finalidades. À revelia da centralidade renascentista, que demandava a adequação a um modo de experimentar o mundo em suas reproduções miméticas – o que seria, posteriormente, retomado e reconfigurado no programa moderno –, as espacialidades se definem por essas alternativas que criam novos usos. A passagem do século foi marcada por uma expansão social e espacial, acompanhada pelo surgimento de uma nova ciência social da comunicação. Ao substituir o caráter da simples transmissão de mensagens lineares carregadas de relações de causa e efeito, promovem a circulação de repertórios, valores, hábitos locais e globais, coletivos e particulares sem uma clara segmentação ou divisa entre eles.

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(Lucrécia Ferrara, 2012, p.25)

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Essas novas configurações comunicativas demonstram influência direta nos modos de apropriação do espaço urbano por seus usuários. A divulgação de hábitos diferenciados, quando alternativos à funcionalidade programada dos espaços modernos, potencializam o surgimento dessas espacialidades, que, estabelecidas, não se oferecem como conceito acabado, mas se mostram como fluxo maleável de constante reconfiguração. Os usos alternativos superaram, em processo contínuo, o programa que definia as funcionalidades dos espaços urbanos estruturados. Essas espacialidades mediadas superam o domínio da simples “imagem espetáculo”, conceituadas pelo forte vínculo com a publicidade e o consumismo, que buscam promover determinadas leituras específicas dos espaços representados. Em projeções contínuas, as obras fílmicas que elegem a cidade de Paris como ambientação cênica, tendem a produzir imagens espetáculo. Os ícones da cidade são enaltecidos em sucessivos planos e as fábulas se formulam no entorno de padronização instrumental (Ferrara, 2012), que oferece ao consumo a imagem turística. Num contra fluxo, a cidade caminha para se tornar cada vez mais parecida com sua representação mediada pelas telas. Alternativas pictóricas, mediadas, indicariam uma desvinculação com essa finalidade mercadológica que satura ícones. Se o espetáculo, tomado sob o aspecto restrito dos ‘meios de comunicação de massa’, que são sua manifestação superficial mais esmagadora, dá a impressão de invadir a sociedade como simples instrumentação, tal instrumentação nada tem de neutra: ela convém ao

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automovimento total da sociedade.

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(Guy Debord, 1997, p.20, tese 24)

A imagem cinematográfica, como sombra da realidade que a possibilita, não substitui o objeto que representa. Eleger os espaços da cidade, em mediações audiovisuais, enquanto objeto de estudo, não indica uma leitura da cidade em sua dimensão real, sensível. Trata-se de uma representação. A imagem cinematográfica não é superponível ao mundo do qual seleciona recortes. Em sua definição especular, essa imagem produzida indica uma determinada semelhança com o espaço capturado, em um contexto único.

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2.

SÃO PAULO EM MEDIAÇÕES AUDIOVISUAIS


2.1. CINEMA E CIDADE O cinema nasceu como forma de entretenimento basicamente urbana e acompanhou a expansão dos espaços da cidade, o “ambiente que se comunica como espaço social” (Ferrara, 2007, p.7), na medida em que se desenvolvia, conduzida pelos avanços mecânicos e tecnológicos injetados pela atividade industrial. Em 1896, Alexander Promio, então encarregado de treinamento de operadores de câmeras a serem enviados a pontos internacionais, pelos irmãos Lumiére, requisitou autorização para a filmagem de um trecho de seu percurso por Veneza. A experiência resultou no filmete Panorama du Grand Canal vu d’un bateau, uma das obras embrionárias das experiências e formulação da sintaxe cinematográfica, ao passo que, traçando um percurso pelo Grand Canal de Veneza com a câmera fixa sobre um barco em movimento, permitiu a realização de um travelling horizontal. A técnica adaptada, com a utilização de trilhos para a criação do movimento, seria adotada, principalmente, pelos filmes de Western, em cenas de perseguições em espaços externos. Ao utilizar como objeto um local de exploração turística, o cinema, desde então, se mostrou como linguagem de mediação potencial para a recriação de um percurso, e movimento, que só poderia ser experimentado de forma direta e presencial. Os autores logo identificaram uma nova possibilidade de utilização dos espaços. As grandes cidades estrangeiras e seus marcos estruturais deixariam de comparecer como representações estáticas em postais, e ganhariam fluidez, novas leituras e interpretações ao serem

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adotas pelo cinema. […] se a experiência supõe conhecer o mundo no seu recorte fenomênico, a representação supõe estabiliza-lo para que seja possível um conhecimento, ainda que aquelas representações sejam frágeis e parciais. Conhece-se através de representações e o espaço é conhecido através das construtibilidades que o representam […]

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(Lucrécia Ferrara, 2007, p.12)

As experimentações com planos constituídos por panoramas seriam retomadas em 1900 por James White e Thomas Edison. Os autores viajaram a Paris e utilizaram como objeto de filmagem a Tour Eiffel, capturando sua extensão por intermédio da inclinação da câmera em uma panorâmica vertical. Em nível metafórico, a técnica se presta à indicação do que se tornaria a subjetivação do olhar pela câmera cinematográfica. O movimento panorâmico é intermediário ao registro dos passantes no Champs de Mars. Verifica-se que o cinema, por sua vez, já se mostrava como campo de experimentação capaz de potencializar, interferir e demonstrar camadas do trabalho humano e dos espaços urbanos. Foi na cidade que se realizaram as primeiras experimentações cinematográficas que tendiam à indicação dos avanços resultantes da Revolução Industrial. Em uma fase posterior às experimentações sintáticas do cinema e já consolidados os moldes da estrutura narrativa clássica (com obras lideradas, principalmente, por Griffith), os filmes selecionados como objetos de análise para esta pesquisa encontram relação com a produção hollywoodiana de Chaplin, Tempos Modernos, ao passo em

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que compartilham a semelhança de possuírem um ambiente urbano que será recorrente e decisivo para o desenvolvimento da narrativa. É verificável que, nos filmes citados, as ações das personagens são ratificadas pelos cenários em que são ambientadas. A desgraça de Carlitos, na obra de Chaplin, é não se adaptar aos novos regimentos impostos por sua função. Os espaços urbanos comuns a operários, as esquinas e avenidas frequentadas por uma classe mais elevada e a pacatez e idealização da vida no subúrbio, reforçam a marginalidade adquirida por Carlitos. O cinema adota o espaço urbano como espaço de ambientação de seu projeto fílmico, vez que, em contravia, a cidade se utiliza do cinema como modo de revelar suas espacialidades e fixar sua identidade. Trata-se, muito menos, de uma intencionalidade de demonstração de considerações prontas e acabadas. A cidade influencia não apenas o andamento da trama e sua narrativa, mas os personagens de modo isolado. As projeções cinematográficas, mediações visuais no primeiro cinema, descortinaram imagens inéditas a seus espectadores. “Pela primeira vez alguém podia ficar na cidade e ver o mundo no cinema da esquina” (WENDERS, 1994). Neste caminho, a publicação “Cidades invisíveis” (de Ítalo Calvino, 1990) se estabelece como um paralelo possível de referências, ainda que se conheçam as diferenças de linguagem. A narrativa que se desfia ao longo do livro demonstra de que modo o imperador Kublai Khan, aflito por não poder, por si mesmo, conhecer toda a extensão de seus domínios, delega a Marco Polo o trabalho de relatar as características

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particulares desses espaços. Uma breve comparação permite aproximar o desejo e aceitação do imperador ao espectador cinematográfico, que igualmente aceita os modos de representação dos espaços que comparecem nas telas (enquadrados segundo a necessidade ou proposta dos filmes dos quais fazem parte). Ambos reconhecem as cidades a partir de imagens e recortes mediados. 2.2. A CIDADE DE SÃO PAULO NO CINEMA Uma das primeiras aparições da cidade de São Paulo (em uma configuração que supera sua definição de cenário) ocorre em 1929, durante a execução do documentário dirigido pelos húngaros Rudolf Rex Lusting e Adalberto Kemeny, São Paulo: A Sinfonia da Metrópole, baseado na estrutura que consagrou, nas telas, a cidade de Berlim em sua dimensão urbana. Frames retirados de “São Paulo, Sinfonia da Metrópole” (Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, 1929)

A filmagem da cidade brasileira acompanha o período de 24 horas, nas quais se demonstram seus fluxos, seus picos e a velocidade que surge como símbolo consequente de seu crescimento industrial. São Paulo ganha força como protagonista das narrativas que nela se ambientam, assumindo a figura de personagem que se apresenta objetiva, flertando com certo

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caráter documental em suas representações, pois se pretende viva e real. A cidade não oferece ícones que a definam, mas, em sua dimensão urbana, se torna ícone de si mesma. Em São Paulo, Sociedade Anônima, de Luís Sérgio Person, são priorizadas as imagens que impulsionam o ideal de velocidade, pois a cidade crescia à medida que melhor se definiam suas características urbanas e eclodia o boom automobilístico. A cidade se torna prioritariamente industrial, contaminando-se por influências alemãs e norteamericanas. Frames retirados de “São Paulo, Sociedade Anônima” (Luís Sérgio Person, 1965)

A imagem cinematográfica da cidade em meio a um contexto industrial foi, anteriormente, apresentada por René Clair (Paris Adormecida, 1924) e Charlie Chaplin (Tempos Modernos, 1936), porém, Person desafia tais referências ao se negar o trabalho de criação de uma crítica romantizada da, então atual. Mercantilização. Muito pelo contrário, seu personagem central, Carlos, foge aos padrões de um herói que será facilmente assimilado pelo público; sua ascensão profissional expressa um desejo de superar o anonimato (implícito no jogo que compõe o título da obra), e preocupação individual em elevar seu nível de vida. Frames retirados de “São Paulo, Sociedade Anônima” (Luís Sérgio Person, 1965)

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Ainda, em 1929, o filme de média metragem, mudo,

Fragmentos da Vida, de José Medina, ambienta sua narrativa (formulada em moldes clássicos) em uma cidade de São Paulo que abandona suas memórias, indicando um crescimento urbanístico e industrial.

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3.

BEM VINDO A SÃO PAULO: ANÁLISES FÍLMICAS


A antologia Bem Vndo a São Paulo é composta pela junção de 17 curtas sequências. A proposta que a fundamenta sugere a reunião de olhares estrangeiros sobre os espaços da cidade, uma vez inseridos em sua vivencia. Organizado por Leon Cakoff e Renata de Almeida, o filme, exibido na Mostra Internacional de São Paulo, em 2004, foi idealizado como obra comemorativa dos 450 anos da cidade. Em 2007, retornou às salas, dessa vez em circuito comercial. É, antes de tudo, o registro de uma deambulação dos diretores que descobriram, na cidade, os objetos ou ruídos que, mediados, se conforma como uma franquia entre as fronteiras entre cinema e cidade. Na tela comparecem, por este motivo, o que, na cidade, causa estranhamento ao olhar estrangeiro ou os padrões que são eleitos por se ofertarem enquanto A autonomia criativa dada aos diretores convidados (13, no total), faz com que mostre uma diversidade significativa de imagens e motivações capturadas e documentadas nos percursos pela cidade. Maria de Medeiros recita Sampa (de Caetano Veloso), no cruzamento entre as Avenidas Ipiranga e São João; Max Lemcke filma os letreiros da cidade, ao passo que Andrea Vecchiato, no filmete Formas, demonstra interesse pela arquitetura da cidade. Os latino-americanos Mercedes Moncada e Franco de Peña, em Fartura, enxergam a cidade sob o prisma dos feirantes do CEAGESP, na Zone Oeste da cidade. A narração de Caetano Veloso, também responsável pela direção de um dos pequenos filmetes, interliga os distintos olhares sobre a cidade, tornando unidade a

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antologia que surgiu para ser diversa. 3.1. MARCO ZERO, DE PHILLIP NOYCE Sobre o diretor: Entre os diretores cujos filmes integram a seleção proposta para a análise neste trabalho, o australiano Phillip Noyce é o que se referencia por uma carreira de caráter mais comercial. Responsável pela direção de Jogos Patrióticos (1992), O Colecionador de Ossos (1999) e O Americano Tranquilo (2002). O caráter experimental de sua obra é bem menos significativo. O diretor, constantemente, se guia por uma construção de seus planos que respondem a uma visualidade clássica. Frames retirados de “Invasão de Privacidade” (Phillip Noyce, 1993)

Em sua obra, constantemente o personagem se infiltra na cidade e a experimenta em seu dia a dia. Muito além de uma captura imparcial, que parece não se envolver na vivência do espaço em que se encontra, a câmera integra os espaços percorridos, participa das ações mostradas e apresenta uma visão mais plana desses espaços. Em Invasão de Privacidade (Silver, de 1993), não são raros os planos que demonstram de que modo os personagens

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se infiltram na cidade. Os isolamentos ocasionais, verificáveis em sequências do filme, se fundamentarão por um receio contundente sobre o qual se criará a trama narrativa: um homem misterioso instalou câmeras em todos os apartamentos do prédio, palco de uma série não solucionada de assassinatos.

O diretor delimita esses espaços como ambientes nos quais se desenvolvem histórias privadas. Observar a cidade do alto é distanciar-se de sua composição. Análise da sequência: A sequência dirigida por Noyce é inaugural do filme, introduzindo a proposta de olhares estrangeiros sobre recortes selecionados da cidade. Sua introdução carrega pistas que indicam certa desproporção que se fixa nas variadas camadas desse ambiente, sendo sua definição um [des] caráter do descompasso que lhe é imanente. A definição se mostra redundante ao passo que comprova, em sucessivas leituras, seu viés contraditório: a imagem da cidade se fixa em não possuir uma imagem. A sequência se inicia com a resposta de uma entrevistada (.1.), que relata suas considerações particulares a

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respeito do que seria a cidade de São Paulo. “Você vê de tudo... Nordestinos... Você vê o pessoal do Sul, você vê os paulistas, e assim, numa convivência super harmônica, né? Essa miscigenação mesmo, cultural e racial... São Paulo é tudo isso. E acolhe muito bem todas as raças, todas as pessoas... E isso é muito... legal.”

.1.

.2.

O segundo entrevistado (.2.) problematiza o atual fluxo de sustentabilidade da cidade e seus espaços. Tem como argumento uma visão de temporalidades que podem ser lidas como imagens que se sobrepõem umas às outras, não deixando brechas para que o registro anterior fixe sua imagem. “[...] muita coisa se perdeu na memória, muita coisa foi derrubada para construir arranha-céu.” A articulação destas ideias demonstra de que forma São Paulo abre mão de sua memória em busca de uma virtualidade que se redesenha continuamente. A relevância dos relatos se fixa na experiência dos que vivenciam e experimentam a cidade enquanto tal. Superados seus clichês urbanos, muito além das camadas superficiais que os comunicam, se estabelecem significados implícitos, que se oferecem para ser vistos. Cabe ao observador a intenção de retirar-lhes do anonimato. Na Praça da Sé, um grupo de estudantes, em excursão

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escolar, consulta um mapa impresso da região central da cidade (.3. e .4.). Tem-se a imagem de uma cartografia do centro da cidade, em seu projeto original.

.3.

.4.

O diretor, em sua aproximação estrangeira, descobre a cidade junto com estes estudantes guiados até o Marco Zero e encontra, ali, o recorte definido para sua sequência. Os planos seguintes mostram o diretor acompanhando uma excursão escolar pelo centro da cidade, precisamente na Praça da Sé, onde visitarão o monumento ao Marco Zero da cidade. Uma instrutora, ao fundo, discorre a respeito da história da criação da cidade, estendendo-se, posteriormente, aos dados históricos que darão conta de explicitar os procedimentos de construção da Catedral da Sé. “Todas as direções de outras cidades e de outros estados, toda a quilometragem, é contada através do Marco Zero.”

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.5.

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Em indicação díspar da característica sintática recorrente em obras do diretor, a decupagem desta sequência abre mão de um rigor formal de construção dos planos. Os quadros elaborados são maleáveis, a câmera na mão permite um movimento de transição mais fluído entre os personagens urbanos selecionados. Percebe-se, ainda, uma maior proximidade da câmera com o que está sendo filmado, sem que se façam necessários usos de configurações técnicas do dispositivo. O corpo que sustenta essa câmera se aproxima da ação mostrada, interage com seus personagens.

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Os alunos prosseguem a visita, no interior da Catedral.

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Nos planos seguintes, o diretor demonstra como a praça se reconfigura em sua função primeira e se torna palanque para pregação religiosa. Uma extensão não confirmada e fundamentada em um discurso que, por oposição, não se pratica ali dentro. A ideia de coexistência se reforça pela exposição das múltiplas finalidades que levam os visitantes/passantes até o local.

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À revelia das idealizações medievais, de nada a Praça da Sé mantem-se em sua designação. Tais encargos se

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tornaram periféricos. Moldou-se como um determinado lugar desarticulado em seu projeto, cedendo espaço aos locais que asseguram uma rentabilidade que respondam à demanda da especulação imobiliária. Aqueles locais foram deixados à deriva da atenção pública do poder constituído ou da sua população e, atualmente, paga o preço da ilegibilidade e da fraqueza dos seus significados urbanos, ainda que sejam articulados esforços para resgatá-los como pontos turísticos.

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(Lucrécia Ferrara, [s.d.])

Do lado de fora, na praça limitada, em frente às escadarias da catedral, um pastor evangélico realiza pregações religiosas.

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O pregador evangélico brada na praça da Sé: “Imagina, Deus… Pela minha vontade eu estaria lá no inferno. Deus vela pra sua palavra se cumprir na terra. Se passarão o céu e a terra, mas a palavra de Deus, ela permanece para sempre. Bata palma e dê glória a Jesus.”.

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Seu discurso se prolonga em pregações messiânicas, acompanhadas por alguns poucos fiéis que formam grupos que se emancipam com a mesma espontaneidade com a qual se ordenam. O movimento transitório entre “fazer” e “desfazer” indica uma internalização do conceito de cidade que o usuário possui. A contradição abre espaço a uma oposição poética: o ponto de partida da cidade é o centro no qual se discursam as profecias sobre o fim.

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.30.

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Nos momentos de concentração popular, a Praça, antiga ou nova, transforma-se funcionalmente, e essa nova roupagem a torna outra, sem identificação com a primeira: a praça funcional dá lugar à praça simbólica, emblemática. À história das metamorfoses da Praça, soma-se essa outra imagem, a praça simbólica, porém com uma diferença ponderável; ela se individualiza.

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(Lucrécia Ferrara, 1997, p.46)

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Implantada em espaço retangular, a Praça fica contida entre ruas e não tem identidade visual que condiga com sua suposta ou real importância funcional: o coração da cidade.

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(Lucrécia Ferrara, 1997, p.43)

Aos poucos, sua imagem (já em plano de conjunto) se esmaece em uma fusão lenta com a imagem em ângulo plongée da praça à noite, inabitada. 3.2. AQUÁRIO, DE TSAI MING-LIANG Sobre o diretor: O malaio Tsai Ming-Liang é recorrentemente referenciado pelo caráter experimental de seus curtas e médias metragens, executados, sobretudo, ao longo das décadas de 1980 e 1990. Ming-Liang, além de Aquário, dirigiu, ainda, outros segmentos em obras antológicas, como o It’s a dream, integrante do comemorativo Cada um com seu cinema, de 2007, feito para a celebração da 60º edição do Festival de Cinema de Cannes. Um plano geral de sua obra possibilita reconhecer de que modos as construções das grandes cidades possuem um peso significativo, não apenas como cenários de ações fílmicas, mas como elemento fundamental que compõe e

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reforça a narrativa criada. O enquadramento sempre fixo, muita das vezes não se orienta pelo corpo humano e suas ações, mas pela dimensão dos corredores, das escadas, dos cômodos e das fachadas que se projetam cada vez mais distantes. Frames retirados de “Adeus, Dragon Inn” (Tsai MingLiang, 2003)

A concepção dos planos em Adeus, Dragon Inn (Bu San, de 2003) exemplifica de que modo o diretor articula a composição do cenário na intenção de potencializar os recursos narrativos dos quais se utiliza. O enredo gira em torna das horas em que se realiza a última projeção fílmica, antes que um tradicional cinema taiwanês encerre suas atividades. A exibição do aclamado

Dragon Inn, de Raymond Lee (1992) não atrai muitos espectadores e os poucos presentes se reuniram para fugir da chuva que cai do lado de fora. Os espaços vazios traduzem o estado psicológico dos personagens que se mostram insignificantes à medida que a vida se estende em sua cotidianidade. As portas, janelas e corredores são molduras que os aprisionam em determinada situação, que se arrasta em planos lentos, estes inseridos em

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sequências quase sem cortes. Há outras camadas de ação que não se revelam, mas constituem uma dimensão latente ainda maior que dá conta de um extracampo que busca ser explorado. Diante do caráter permanente e atemporal das paredes concretas, essas ações são meramente passageiras. O corpo que se arrasta por esses espaços se traduz em metáfora de uma solidão que afirma seu peso, a cada novo plano. A profundidade de câmera é o recurso sintático mais evidente na filmografia citada de Ming-Liang. O extracampo é expandido e se revela ao espectador. A composição dos quadros de O Buraco (Dong, de 1998) confirma essa tendência. O enquadramento próximo se mostra intencional no instante em que indica a presença de outras camadas de ação, planos secundários que possibilitam uma nova leitura. A transição entre fantasia musical e ação factual Ao espectador, caberá uma aproximação diferenciada. Ele observa a vida dessas pessoas, mas não pode se deixar envolver pela realidade em que vivem. As interferências musicais na narrativa permitem esse distanciamento. É um contexto de sonho que se manifesta como escape que torna mais palatável essa realidade iníqua; uma inserção que demonstra a possibilidade otimista de uma inversão que os salve desse contexto. Frames retirados de “O Buraco” (Tsai Ming-Liang, 1998)

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Frames retirados de “O Buraco” (Tsai Ming-Liang, 1998)

A figura do voyeur se edifica com maior força em O

Buraco. Os personagens, que inicialmente não se conhecem, passam a viver uma mesma realidade, mesmo que não estabeleçam um contato mais próximo um com o outro. Há uma epidemia que assola os moradores de um bairro que deverá ser evacuado a algumas semanas da virada do século. No ambiente precário e já quase abandonado, resistem alguns poucos moradores de um complexo habitacional que se recusam a sair de suas casas. Um encanador chamado para averiguar o vazamento de água em um dos apartamentos completa o serviço deixando um pequeno buraco no piso, revelando o andar inferior. À medida que o buraco entre os apartamentos se expande (não por acaso), revela um interesse díspar daquele que pretende observar e daquela que será seu objeto de desejo. Ao tratar desses temas como elementos estruturais de seus filmes, Ming-Liang acaba se voltando, constantemente, para o próprio cinema, em diálogos metalinguísticos. A exaltação da figura e ação do voyeur, dos espaços de exibição fílmica e da cidade como cenário primeiro, indica um esforço em aproximar essas narrativas de uma realidade tátil, porém anônima. O que a torna visível é um esforço distintivo para que seja vista, descoberta em seu contexto cotidiano, e para que dela sejam retiradas histórias; tal disposição narrativa que o cinema enquanto linguagem possui.

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Uma breve consideração permite afirmar que a visualidade da obra de Ming-Liang é a força que dá forma e carrega a construção de suas narrativas. Nesse sentido, as correspondências entre cinema e cidade, em uma leitura aprofundada, se mostram mais aparentes em sua obra do que, superficialmente, se evidencia no conjunto de seus planos e ambientações cênicas. Análise da sequência: A sequência se inicia ao traçar um paralelo entre um vendedor ambulante de espanadores – de tempos passados, registrado em fotografia – e vendedoras do mesmo produto que caminham pela cidade. O frame .1. é a base da metáfora visual que se confirma nos planos seguintes, .2., .3. e .4.. A câmera próxima ao corpo acompanha, em plano médio ou americano, as vendedoras em seus percursos pelas calçadas e esquinas da cidade. Em respectivas ações, representam uma vitrine que não espera ser contemplada, mas se fazem presentes em trânsitos que permeiam as ruas, indicando uma passagem que, reservada a seu propósito, parece não buscar um destino específico.

.1.

.2.

.3.

.4.

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A primeira proposta da sequência se revela nesse conjunto inicial de planos. Os paralelismos e simultaneidades presentes na cidade, que nela existem e a ela se integram, são postos em evidência, através da analogia que aproxima funções primeiramente tão semelhantes, praticadas em temporalidades distintas. A sequência caminha, definindo propostas que 4. Mostração, no período do primeiro cinema, se definia pela autonomia dos planos que eram exibidos em meio aos números de variedade. Cada rolo correspondia a um pequeno plano individual e a sequência na qual eram exibidos não respondia a uma estrutura de narração.

superaram os meros e aparentes eixos de “mostração”4, fundamentando na concatenação de seus planos, um discurso que se pretende criar. Se traz à tona os ambulantes, num primeiro instante, permite, em seguida, uma abertura em seu campo de visão que revelará as práticas do comércio de rua. Os planos da Ladeira da Constituição (.5. e .6.), que dá acesso à rua 25 de março, na região central da cidade, introduzem, agora, a inclinação a uma leitura que já não se contenta em um olhar distante. Em plano aberto e enquadramento fixo, a câmera ainda não elege unidades. Os cidadãos ali são massa homogênea; em sua aglomeração, constituem um conjunto único.

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A câmera convida, então, o espectador a olhar mais de perto e a pinçar as particularidades presentes no fluxo que se define pela cidade em sua dimensão dos usos, mais táteis. Porém não se aproxima; de longe, ainda é um olhar intruso. Sua presença não se revela e se utiliza do zoom para falsear um contato mais direto. Os ambulantes que improvisam uma bancada na calçada (.7.), a senhora que demonstra interesse nas fatias de abacaxi oferecidas para venda (.8.), o ambulante que carrega seu expositor (.9.) e o plaqueiro que, definindo uma imagem paródica de si mesmo, se esconde atrás de seu anúncio, que cumpre uma função peculiar de ofertas (.10.); todos, enfim, enquadrados à distância em planos que transitam do de conjunto ao médio, possíveis, somente, por uma proximidade mecânica oferecida pela câmera enquanto dispositivo.

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Nos planos seguintes (.11. e .12.), um travelling lateral curto percorre, em plano detalhe, os peixes ornamentais, individualizados em sacos plásticos, pendurados em um varal. Esses planos são a introdução ao que se segue e confirmarão o título que dá nome ao segmento. “Aquário” se fortalecerá

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como uma metáfora que correlaciona peixes com pessoas, retirados de um plano descritivo, mais amplo, sendo levados a um enquadramento de detalhes, de caráter narrativo.

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Em seguida, a câmera se afasta e a visão representada no filme se detém em avaliar a escala dos espaços urbanos (.13. e .14.). De longe, se fixa a imagem do Edifício São Vito, inaugurado em 1959. Em meados da década de 1980, começou a apresentar problemas estruturais, não sendo submetido a procedimentos periódicos de cuidados e manutenção que uma construção de seu porte demanda. O prédio se tornou a representação visual da decadência que já vinha caracterizando o centro da cidade. Uma nova aproximação (.15. e .16.), em zoom in, revela na fachada dessa construção os vestígios que o definem como moradia, o que irá revelar os costumes semelhantes de quem observa a cidade das janelas do edifício. Nos planos seguintes, a câmera assume um olhar intruso. Capta os detalhes particulares do que se protege em uma homogeneidade. Revelam-se grades (.17.), vazios

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(.18.), ornamentos (.19.), improvisos que respondem a uma necessidade (.20.), para a qual se buscam alternativas que dialoguem com os limites estruturais do espaço disponível.

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O frame .21. revela a câmera fixa em algum ponto do lado oposto, a uma distância na qual atravessa a Avenida do Estado (.22.). Ao lado está o Edifício Mercúrio, que parece anexado ao São Vito como uma edificação secundária que brota nos limites do primeiro. Não há respiro na lateral que os separe. Os planos .23. e .24. mostram o fluxo de entrada e saída dos moradores do prédio filmado. O movimento

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intenso em sua portaria se opõe ao silêncio pacato registrado nos planos seguintes.

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.26.

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A câmera é voyeur e as janelas são espaços atrativos, tal como eram para o espectador Jeff, de “Janela Indiscreta”. O diretor convida o espectador a fragmentar esses padrões urbanos, retirando-lhes as unidades que o estruturam o grande quadro de pequenas narrativas, que se descortinam diante de uma aproximação elaborada. No filme de Hitchcock, o voyeur se personifica na figura do personagem Jeff. Dele partem as motivações e dúvidas que farão com que seu olhar atento busquem ruídos no que seria o convívio habitual do conjunto no qual vive. O personagem está em uma posição privilegiada; as narrativas se mostram diante de seus olhos. Seu esforço reside num trabalho íntimo e particular de selecionar seus focos. Frames retirados de “Janela Indiscreta” (Alfred Hitchcock, 1954)

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Frames retirados de “Janela Indiscreta” (Alfred Hitchcock, 1954)

Os planos abertos de Hitchcock possuem a intenção de contextualizar, a todo momento, as ações que se desenvolvem, emolduradas, sempre, pelas janelas dos apartamentos. A medida em que as janelas parecem mais próximas, a medida em que Jeff se demora em uma força que o atrai, os planos se tornam mais descritivos; relatam uma história que se construirá ao longo da duração de seu projeto fílmico. Contudo, se Hitchcock pretende demonstrar uma variedade narrativa nas molduras que enquandra em seus planos, Ming-Liang conjuga as unidades aparentemente homegêneas e lhes retira uma singularidade sensível. Ming-Liang desafia o espectador a enxergar esses rumores que se mostram no dia a dia da cidade, mas não são vistos. A direção da câmera, como um curioso que olha para o alto, não os procura tendo um partido pré-estabelecido, mas se demora em separar as unidades, distingui-las do restante. É de ordem da montagem do filme apresentá-las como uma sequência de semelhanças ocasionais e deproporcionadas, mas que conversam entre si. A câmera, porém, é uma potência virtual e mecânica do olho nu. Eis uma aproximação preliminar ao conceito de kino-eye, de Dziga Vertov. A câmera é o olho maquínico que captura, registra, depreende a imagem e devolve uma leitura do mundo que só ele pode ver5. O ângulo em contra-plongée responde a um olhar

5. Trecho do “Conselho dos Três”, de 10/04/1923. Tradução de Marcelle Pithon, in A experiência do cinema, org. Ismail Xavier, Graal/ Embrafilme, 1983.

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diferenciado, procurando ruídos que destoam de uma paisagem unitária. Um olhar mais atento revelará, entretanto, uma infinidade de possibilidades díspares de leituras de objetos que, isolados, se destacam e se diferenciam por suas particularidades. Mas não se mostram gratuitamente. A câmera vasculha essas janelas – mas não as invade –, como que a fim de revelar suas unidades. Uma última analogia permite afirmar que em Jeff personifica um olhar desavergonhado, que não se constrange em desviar de seus focos iniciais e se demorar em intimidades alheias, sob o pretexto de que tenham se firmado em seu caminho. Contudo, de modo muito distinto às intencionalidades de Hitchcock, Ming-Liang não invade, não pretendendo enxergar além do que deve ser visto. Aqui, a câmera observa em segredo aqueles que, contraditoriamente, pretendem apenas observar. A janela é tela, moldura e quadro, dentro do qual irão se desfiar as cenas, imprevisíveis.

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.30.

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Em seus enquadramentos, não há sentimentalidades implícitas, e o que o diálogo entre os planos fixa é um estado

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de melancolia, que marca o conjunto da obra de Ming-Liang e que aqui se demonstra numa pacacidade que, partindo de si mesma, se mimetiza em um ordenamento redundante. As estratégias de montagem são fundamentais para a criação da narrativa. É como se definem as diferenças dentre a gama de homogeneidade. Ausentes, estaríamos diante de uma passagem morta. Como objeto recorrente na filmografia do diretor, a arquitetura se flexibiliza em fachadas e signos das construções urbanas de modo a induzir uma composição afinada entre elementos arquitetônicos e narrativas visuais. Desse modo, o Edifício São Vito é um pretexto para que Ming-Liang se debruce sobre o mesmo. Ele se desvincula da fachada, atinge uma camada mais interna. Nessa direção, a solidão dos que ali habitam só é vista porque está latente.

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.35.

.36.

A saturação visual, resultado da repetição massiva de determinados planos (.25. a .31.; .32., .33. e .35.; .34. e .36.), remete ao objeto filmado. Uma inclinação a repetições se comprovam na forma dos espaços urbanos e nos usos, com

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uma impactante homogeneidade. Ao passo que os prédios filmados se assentam como símbolo da degradação do centro, um enquadramento metonímico o elege enquanto partido da construção de uma crítica que se pretende extensiva.

.37.

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.39.

.40.

Em 2004 (ano de lançamento do filme em sessão da Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo), a prefeitura municipal dá início à retirada dos moradores dos prédios São Vito e Mercúrio, os quais seriam demolidos entre 2010 e maio de 2011, deixando vazia uma área de, aproximadamente, 9,2 mil metros quadrados. O plano de revitalização da região central da capital prevê a ocupação do local, com a oferta de serviços destinados à comunidade. Recentemente a área na confluência das Avenidas do Estado e Mercúrio foi cedida, em caráter administrativo e pelo período inicial de 99 anos , ao Serviço Social do Comércio, onde está prevista a construção de uma unidade do SESC/SP.

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.41.

.42.

.43.

.44.

O percurso da sacola plástica (.37. a .40.), que parte do prédio e é levada pelo ar, dá conta de conduzir a exposição dos planos a uma nova sequência. Há um distanciamento temporal que afastam os planos anteriores, que demonstravam a cidade em seu cotidiano, a dinâmica de seu comércio informal, dos planos que captam as ruas sendo esvaziadas, os passantes buscando alternativas em marquises ou debaixo de outros suportes que os protejam da chuva. Em entrevistas concedidas, nas quais discorre sobre os elementos recorrentes na construção narrativa de seus filmes, Ming-Liang cita a utilização constante da água como metáfora de um desejo de purificação. Na seleção (anteriormente realizada) de sua filmografia, tanto em Adeus, Dragon Inn e em O Buraco, a chuva e a água são repetições massivas que permeiam ambos os filmes. Indicam, ainda, o limite da existência desses lugares ou contextos, que são eleitos como argumento central da narrativa. Nessa direção, ainda que Aquário não se componha, conscientemente, como um dos últimos registros do prédio São Vito, antes da determinação de sua demolição, ao menos

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indica uma saturação tão devastadora que não demonstrava outro desfecho senão a entropia, o caos. Na grande maioria dos planos que compõem o filmete, não há um contracampo, o que indica o hábito de um discurso unilateral, daquele que somente observa, mas não se deixa envolver.

.45.

.46.

.47.

.48.

Aquário é, portanto, muito mais uma leitura dos padrões dos espaços urbanos que se estruturam em similaridades e correspondências. Ultrapassa a apreensão dos espaços urbanos e atinge os elementos que configuram o ambiente enquanto cidade, revelando-lhe as espacialidades, ao se debruçar sobre vivências e usos cotidianos.

3.3. NOVO MUNDO, DE JIM MCBRIDE Sobre o diretor: O americano Jim McBride tem sua estreia como cineasta celebrada por sua inventividade temática, estrutural e narrativa. Sua carreira é marcada pela realização de filmes e episódios de séries para TV, tendo,

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posteriormente retomando aos documentários. Após a execução da sequência que integra a antologia Bem vindo

a São Paulo, dirigiu o documentário em curta-metragem My Son’s Wedding to My Sister-in-Law, o último em sua filmografia, desde então. Sua primeira obra, David Holzman’s Diary (1968) é referenciada como um dos primeiros exemplos de mockumentary – ou falso documentário –, estilo caracterizado por utilizar procedimentos narrativos e/ou estilísticos do gênero documental para desenvolver enredos fictícios. A produção, metalinguística, é o diário audiovisual de David Holzman, um cineasta que decide fazer um filme sobre sua vida. Frames retirados de “David Holzman’s Diary” (Jim McBride, 1968)

A introdução de seu filme, a qual se constitui como um passeio pelas ruas de Manhattan, em meados da década de 1960, indica a importância que o diretor dá às fachadas como superfícies preliminares que definem um determinado lugar.

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Análise da sequência: O diretor seleciona alguns trechos de ruas do Bairro do Bixiga e da Bela Vista como objeto de seu filmete. O enfoque no convívio de seus moradores e os modos com que se relacionam com o espaço destoa das leituras feitas em outras sequências decupadas. Demonstra aqui, de modo mais incisivo, como se estabelecem e se configuram as espacialidades que surgem pelos usos alternativos encontrados pelos usuários do espaço, contextualizandoas em um determinado espaço, onde os rastros de memória sobrevivem em contraste às configurações de sua reconstrução contínua. Os planos iniciais dão vistas às fachadas que introduzem o recorte da sequência. As faces dessas construções carregam em suas respectivas imagens, uma visualidade que as contextualiza pela história da arquitetura, que se exibem por seus estilos (variedades que se lançam do neoclássico ao neocolonial).

.1.

.2.

.3.

.4.

A câmera observa com certa distância (planos .1. a .4.), realizando uma varredura que pretende descrever os casarões,

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situando-os em um espaço determinado, dando indícios de uma possibilidade de leitura que se potencializará em frames seguintes. Eles não se erguem sozinhos; estão geminados com outras edificações que se reconstroem e se descaracterizam num fluxo contínuo que acompanha as necessidades pontuais, de serviços ou moradias, que os ocupam. As fachadas carregam as marcas e memórias dos usos que as consumiram e se fixam como seus resquícios. A cidade se mostra em meio à heterogeneidade urbana, revelando suas camadas, numa prevalência da verticalidade sobre reminiscências de casarões nostálgicos e mal conservados, provavelmente condenados à extinção.

.5.

.6.

.7.

.8.

Uma observação mais atenta revela uma distância que se expande para além das fachadas (planos .6. a .8.). Descortina-se um outro plano, sempre presente, que se estende na continuidade dos espaços urbanos, cujos fragmentos comparecem em uma moldura não intencional. A memória desses espaços enquadrados é mera virtualidade, narrada nos livros, artigos ou imagens que retomam um instante passado, mas restrito aos que a ele

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pretendem investigar. Não se solidifica enquanto elemento urbano e não se integra no convívio da cidade, pois estão anônimos. Os planos que constituem a sequência são muito mais que fragmentos que darão origem a uma malha de retalhos, como poderá concluir o espectador que não pretende desvendar as referências. Esses planos são, pelo contrário, unidades que se estruturam para conformar uma proposta narrativa consciente. O olhar é despido de qualquer ingenuidade. Há uma clara intencionalidade que motiva a busca de novos intervalos que ilustrem uma afirmação categórica: O que se destaca é justamente o elemento que incomoda.

.9.

.10.

.11.

.12.

Pela ilustração do frame .9., fica evidente o estado de deterioração em que se encontram as construções. Os casarões perdem seu valor à medida que a região se precariza, numa via de mão dupla que abre brechas para novas ocupações. Os planos seguintes se referem a uma São Paulo que não menciona a velocidade a qual costumam lhe remeter

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os registros poéticos. Há uma atmosfera de convívio quase etéreo, que não se afeta pelas precariedades que marcam muitos dos espaços representados. O enquadramento em plano de conjunto (.10. a .12.) permite uma aproximação quase íntima.

.13.

.14.

.15.

.16.

As pichações que ocupam os muros sufocam seus espaços vazios. (.13. e .14.). A saturação que se condena pelo excesso de diversidade de elementos visuais, não permite que se selecionem destaques. O muro se posiciona como um corpo estranho na cidade, ao mesmo tempo em que se define como uma tela pública. A contestação crítica que se fundamenta ao longo da sequência, se torna mais branda, ainda que permaneça implícita. Os planos que registram a pintura da fachada do Kibexiga Bar, na Avenida Nove de Julho (.17.), e o trabalho de manutenção do edifício Londres, localizado no cruzamento entre a Rua Santo Antônio (.18.), caminham numa direção oposta ao mostrar a intenção de preservação desses espaços. É como um contracampo que oferece vistas de uma outra face, distinta da apresentada anteriormente, mas

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que oferece sua contribuição pontual para a construção da história do bairro. Essas faces se distinguem, mas não se chocam. Mostram a natureza da diversidade dos elementos urbanos.

.17.

.18.

.19.

.20.

O plano .19. captura o trabalho do pintor que, debruçando-se nos contornos e cuidados exigidos pelos desenhos entalhados nas colunas frontais do Hotel Marajá, localizado na rua Avanhandava, no bairro da Bela Vista. Os grafismos (.20.) que ornam a fachada do hotel comparecem ainda hoje entalhados em sua fachada, muito embora seus arredores e a coloração de suas paredes tenham sido alteradas.

.21.

.22.

O usuário ocupa esse espaço ressignificando-o de acordo com suas necessidades tópicas, que se transformam de maneira orgânica. Sua história somente se revela ao

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sinal de um determinado interesse de ver, o que dará, ao sujeito que indaga a memória do lugar, a abertura para uma percepção convicta, um conhecimento mais específico do que se pretende.

.23.

.24.

À época da execução do projeto que daria origem ao filme em sua montagem final, funcionava, no encontro entre as ruas Treze de Maio e Santo Antônio (.22.), o Bar Café Soçaite (antiga Boate Igrejinha), referenciado pela localização tradicional e badalado nos anos que marcaram o ressurgimento dos cafés no Brasil (a partir do final de 1977), atraindo a clientela com sua variedade de bebidas e um característico apelo ao jazz, em apresentações ao vivo ou execuções de fitas cassetes, ornamentado ainda, em sua dimensão estética, com elementos que remetem às choperias alemãs e pubs londrinos da época. Hoje o endereço abriga o Boteco do Samba e não menciona qualquer alusão a um passado que lhe proporcionou fama entre seus frequentadores. A imagem do local também se desfaz à medida que seus usuários deixam de considerá-lo.

.25.

.26.

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.27.

.28.

A sequência carrega, em sua estrutura, um posicionamento íntimo que revela uma crítica à cidade que se desconstrói, que elimina os rastros, sob a defesa de uma busca constante da atualização de seus espaços. Talvez neste caminho esteja uma indicação que permita a leitura que tenciona São Paulo como uma cidade que dispensa sua memória, fundamentada em uma previsão virtual e constante do que se pretende tornar.

.29.

.30.

.31.

.32.

Os planos .29. e .30. mostram como as propagandas eram grandes painéis que concorrem com a verticalidade da escala urbana, em paredes cegas. A cidade se configurava como mídia e os anúncios se forçavam como superfícies a serem vistas. Os espaços vazios abaixo do Viaduto Júlio de Mesquita Filho (.31. e .32.) propiciam uma prática alternativa de

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comércio. Nesses locais, a câmera observa, procura, mas não se aproxima a ponto de interferir a ação. Aqui se demonstram fortes as alternativas encontradas para o uso de espaços determinados a certas finalidades.

.33.

.34.

.35.

.36.

Os planos seguintes vasculham os grafites que se estendem pelos muros da cidade e os texturizam, na criação de novas visualidades. Tais imagens, aqui classificadas enquanto manifestação artística, conflitam com os anúncios publicitários que aparecem como destoantes, nos planos capturados em região mais central da cidade. Cada um impõe sua mensagem, na tentativa de se sobrepor em meio às saturações. É de interesse ressaltar a efemeridade que é própria desses registros instáveis, estando suscetíveis às mais variadas ações sobre as quais não se tem controle. Os grafites poderão ser mudados, as propagandas se atualizarão com base em necessidades definidas de vendas e essas imagens se transfigurarão em novos registros que poderão ou não indiciar sua matriz anterior.

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Um dos trunfos não intencionais que marca a sequência, se revela no instante em que comprova, na prática e para quem pretende enxergar, as afirmações que lança ao longo de sua duração. No propósito de trazer à luz a solidez de uma história que caracteriza os lugares, expõe suas instabilidades, uma vez que, muitos dos casarões e estabelecimentos mostrados como resistentes, já não existem ou se reconfiguraram em suas formas ou finalidades, hoje desconexas com as que possuíam em outros tempos. Se o projeto propõe uma leitura objetiva das resistências, hoje elas se mostram cada vez mais superadas. Os enquadramentos seletivos do diretor indicam algo muito além de um olhar estrangeiro. São indícios de um posicionamento de quem já morou na cidade (Jim McBride esteve por aqui em meados da década de 1960) e que não reconhece em seus espaços a configuração de uma imagem que retoma o passado que lhe estruturou, uma vez que sua mutabilidade deixa poucos rastros. As memórias, progressivamente, vão se tornando cada vez mais maleáveis e se perdendo em reconstruções ou novas designações que as afastam de seu projeto original, das construções em suas configurações de origem. O que constrói, porém, a memória da cidade são justamente as edificações que são referenciais. Os quadros que revelam outros planos, as mensagens que se sobrepõem nos muros e resultam em entropia, tudo isso só vem à superfície quando investigado por um olhar que se admite atento na intenção de ver a cidade, o que lhe permite ir além da camada primeira que a define enquanto mera paisagem urbana. Os planos capturados indicam uma proximidade

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mais palpável do convívio da cidade, das manifestações no ambiente urbano e nos usos que subvertem alguns indícios funcionais definidos e se desdobram em estratégias alternativas de ocupação. Contudo, a paisagem e registro que resistem às desconstruções, reformulações, apropriações e ao anonimato imposto por aqueles que não tencionam vê-los, carregam as lembranças de um passado protegido, ainda que marcado por suas fragilidades. 3.4. BEM VINDO A SÃO PAULO, DE WOLFGANG BECKER Sobre o diretor: O alemão Wolfgang Becker, historiador de primeira formação, estrou como cineasta em 1987, sendo conhecido por obras como Borboletas (Schmetterlinge, de 1987) e A vida é tudo o que temos (Das Leben Ist Eine Baustelle, de 1997). Sua produção de maior alcance, Adeus, Lênin (Good Bye Lenin, de 2003), recebeu indicações internacionais que o colocavam entre os melhores filmes estrangeiros na temporada de premiações de 2004. Nos cinemas, superou os ganhos arrecadados por Corra Lola, Corra (Tom Tikwer, 1998), maior bilheteria de uma produção germânica, até então. O enredo se desenvolve entre os anos de 1989, marcado pela queda do muro de Berlim, e 1990 quando, para proteger a mãe, socialista, de um choque após um longo coma, Alex cria meios de fazê-la acreditar ainda viver em uma Berlim Oriental.

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A sequência inicial de seu filme é uma conjugação de pequenos planos animados que indicam o contraste entre o Ocidente e Oriente, de um país politica e economicamente dividido. Os recortes gráficos e animados do diretor (em Adeus, Lênin e em Bem Vindo a São Paulo) demonstram uma tendência visual que definirá um caráter estilístico. Frames retirados de “Adeus, Lênin” (Wolfgang Becker, 2003)

A inserção de outras mídias (vídeo, TV, etc) fazem de suas produções uma colagem bem estruturada de recursos diversos, buscando referências de linguagem nas inovações sintáticas apresentadas pela nouvelle vague francesa. Ainda, expressões de velocidade (carros em movimento, avenidas movimentadas, montagem métrica/atonal) e transição de temporalidades são elementos recorrentes em sequências que compõem a obra de Becker. Frames retirados de “Adeus, Lênin” (Wolfgang Becker, 2003)

O diretor parece narrar a vida da cidade de forma autônoma, ou seja, a transforma em uma personagem de suas obras, orgânica e impulsionada por motivações a fazem funcionar em seu cotidiano.

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Análise da sequência: O filmete “Bem vindo a São Paulo” é o último a ser exibido no ordenamento de concatenação do filme. A sequência se inicia em um grande plano geral do globo terrestre, visto do espaço. A aproximação constante contextualiza, espacialmente e através de mapas, o objeto filmado: a cidade de São Paulo. O espectador é convidado a observar os detalhes dessa área para a qual se propõe o recorte. (.1..plano espacial do globo terrestre; .2..mapa político da América do Sul; .3..mapa físico da região sudeste; .4..mapa híbrido da região metropolitana; .5..mapa do tipo satélite de uma região de São Paulo; .6. a .8.. plano alto total da área central da cidade, numa aproximação da Avenida Ipiranga, nas proximidades do Edifício Itália).

.1.

.2.

.3.

.4.

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.6.

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.7.

.8.

A introdução musical é um pequeno recorte instrumental da canção “Amanhecendo”, peça integrante da “Sinfonia Paulistana” de Billy Blanco, concluída em 1974. Ainda que não pretenda, declaradamente, estruturar sua sequência como uma constante menção às melodias paulistanas, Becker captura imagens capazes de ilustrar, a todo instante, a pressa e euforia que movimentam o cotidiano da cidade e são o mote temático dessas canções. A intenção da sequência se confirma em não pretender criar novas leituras a respeito do espaço demonstrado. O enxerto enaltece as visualidades consagradas da cidade de São Paulo, não buscando planos que apresentem, de modo diferenciado, os espaços não comuns e corriqueiros da cidade.

.9.

.10.

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.12.

A animação que simula um enquadramento do topo do Edifício Itália, de onde a câmera o percorrerá em sua

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extensão vertical, lembram os recursos utilizados em Adeus, Lênin, que potencializam o dinamismo pretendido nos trechos empregados. A aproximação vertiginosa, que parte de um alto superior e se fixa em um plano aéreo (.9. e .11.), permite distinguir os fluxos da cidade (.12.). Os grandes planos gerais, aos quais se regalavam as determinações de descrever os espaços urbanos, se tornam mais íntimos, restritos. Nesses últimos planos reside uma intenção de estabelecer um discurso de narração. A inventividade que diferencia a sequência e a composição de seus planos se estabelece ao passo que o realizador não nega estes lugares urbanos, mas subverte seus enquadramentos tradicionais, produzindo novos significados. Neste ponto, se tornam explícitas as ações provocadas para que se estruture uma cidade das telas. As mediações destes espaços promovem a leitura de outras camadas que se firmam além da superfície mais evidente.

.13.

.14.

.15.

.16.

A sequência se desenvolve, quase toda, como um videoclipe, cujas imagens se desfiam em uma linha melódica,

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intimamente relacionada ao tempo em que se executa a música conduzida por André Abujamra (Bem vindo a São

Paulo). Para o dinamismo de sua sequência, Becker recorre a uma montagem atonal, que conforma a duração do plano, a continuidade visual e as intenções em estabelecer certa característica emocional da cena, a fim de que se provoquem certo efeito desejado. O diretor, por poucos minutos, apresenta uma releitura própria do que seria sua Sinfonia da metrópole. Retoma as experiências que enalteceriam a passagem de um dia da cidade de Berlim (em 1927, por Walter Ruttman) e a própria São Paulo (em 1929, por Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig).

.17.

.18.

.19.

.20.

Os planos aéreos (.17. e .18.), reforçam as composições que enaltecem o movimento que impulsionam a cidade em fluxo contínuo. A malha viária remete a uma leitura metafórica que lhe permite a assimilação como artérias da cidade, o que a torna objeto vivo. Deve-se definir, porém, que os planos demonstram uma vivência prioritariamente urbana.

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.21.

.22.

.23.

.24.

No percurso que embasa seu trajeto pela cidade (.19. e .24.), a câmera está acoplada a um veículo. O olhar que oferece agora é o daquele que experimenta de perto os itens narrados: trânsito, a espera e a saturação de veículos são representadas a partir de um ponto de vista que se insere, diretamente, nestes contextos.

.25.

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.28.

Um avião que parte de Congonhas e voa pelos céus da cidade (.25.) marca a transição temática e rítmica da sequência. Um plano alto (.26.), quase um contracampo aéreo da imagem anterior, introduz uma loja de discos geminada entre duas casas.

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E se a câmera responde aos impulsos de seu condutor, a visita à loja de discos é inteiramente subjetiva e se firma como um passeio filmado do diretor que experimenta esses lugares. Alheio ao movimento que se estende do lado de fora, o personagem ensaia um determinado torpor incentivado pela mudança de ritmo.

.29.

.30.

.31.

.32.

O enxerto da loja de discos é o trecho de passagem que desacelera o filme. Os planos se tornam mais estáticos e prolongados. O diretor (a câmera em plano subjetivo) encontra o vinil de Caetano Veloso, Muito (.32.), e executa a canção Sampa.

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.33.

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.35.

.36.


A execução da música é acompanhada pelo efeito sonoro que simula as batidas de um coração. Uma inserção (.36.) mostra um movimento orgânico de pequenos vasos sanguíneos, como algo que contamina aquele corpo.

.37.

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.39.

.40.

De cima, a câmera registra imagens alternativas de um cotidiano anônimo, quase particular, pois pouco se mostra aos olhos comuns dos demais habitantes. Um homem pratica exercícios no terraço de seu prédio (.39.); outro caminha pela sacada de seu apartamento enquanto fuma um cigarro (.40.); uma mulher, da janela, ajeita um vazo de flores amarelas em um parapeito (.41. e .42.).

.41.

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Nos planos seguintes, o registro da velocidade industrial da cidade se transforma em uma leitura lírica de suas imagens alternativas. A padaria, enquadrada em plano plongée, aberta ainda durante a madrugada, porém pouco movimentada (.43.), indica que a cidade dorme, mas já se encontra na iminência de retomar seu funcionamento. As ruas voltam a ser ocupadas pelos veículos (.46. e .47.); nas calçadas, os passantes se tornam mais constantes (.45.). Retornam o comércio de rua e outras atividades alternativas. Os pontos de ônibus estão cheios novamente (.48.).

.45.

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A canção “Amanhecendo” enfatiza uma imagem cíclica da cidade de São Paulo, onde parece voltar a um ponto no qual já esteve anteriormente. A cidade não desperta, apenas acerta a sua posição. Porque tudo se repete, são sete, E às sete explode em multidão.

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(Billy Blanco, Amanhecendo)

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.49.

.50.

.51.

.52.

O ritmo urbano das cidades, a dinâmica de suas vias e transportes. Os motivos privilegiados nas antigas produções do primeiro cinema retornam reconfiguradas. Já não se pretende criar registros de projeções progressistas desses espaços, mas se demonstra uma saturação cada vez maior e massiva.

.53.

.54.

.55.

.56.

Os planos .51. e .52. constituem um dos poucos trechos, dentre as sequências selecionadas para análise, que mostram um contracampo. As anteriores imagens que acoplavam a câmera a um veículo, num percurso determinado, agora encontram um contraponto viável. A câmera agora é externa,

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mostra a ação em uma perspectiva central, como quem se insere como sujeito que não somente observa, mas vivencia o cotidiano da cidade.

.57.

.58.

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.60.

Nos planos seguintes, Becker demonstra os aparatos criados e difundidos na cidade, como cabines de vigilância, cercas elétricas, grades de proteção, indicando a insegurança que se manifesta em [determinados] momentos do cotidiano do paulistano. É o medo que, em partes, caracteriza e integra as histórias da vida urbana nas grandes cidades, de acordo com os debates amplamente discutidos do sociólogo Zygmunt 7. BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo nas cidades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.

Bauman7. Neste ponto, em meio à pressa que volta à tona como temática da sequência, as guaritas dos condomínios, em contrapartida, estão em silêncio. Não há movimento, não há alarde. A segurança ali se define como o partido de certa satisfação em estar de um “outro lado”, intocável. Os planos seguintes arrematam o paralelo lançado. Do lado de dentro de carros, pouco acima do volante, vemos imagens alternadas de São João Batista, Nossa Senhora

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Aparecida (.60.), São José e Nossa Senhora de Fátima. A ideia da fé como escudo protetor ajuda no exercício de compreensão do medo que acompanha habitante da grande cidade contemporânea.

.61.

.62.

.63.

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O plano seguinte (americano) corta para um plaqueiro que anuncia um cyber café nas proximidades. Ele olha para seu relógio (.61.). Uma vista aérea da cidade de São Paulo (.62.) e um travelling vertical que eleva o enquadramento até o céu (.63.); o disco para de tocar (.64.).

.65.

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.67.

.68.

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Ao retornar para o ponto do qual partiu, em caminho inverso (5.mapa do tipo satélite de uma região de São Paulo; 4.mapa híbrido da região metropolitana; 3.mapa físico da região sudeste; 2.mapa político da América do Sul; 1.plano espacial do globo terrestre) o diretor busca aplicar o fundamento encontrado em sua ode à cidade, na qual impulsos cíclicos confirmam um discurso que se repete e se satura, no decorrer dos dias.

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4.

CORRELAÇÕES POSSÍVEIS


“A beleza de São Paulo é muito angustiosa para quem a vê de fora”

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(Haroldo de Campos, 1997)

A antologia, composta por olhares, quase em sua maioria, estrangeiros, possibilita uma breve leitura das impressões da cidade em suas propagações mais superficiais. São olhares desacostumados, que se propõem a encontrar as passagens que, dadas as intenções particulares de cada realizador, possam revelar algo da natureza da cidade de São Paulo, como as definições de sua visualidade urbana e as vivências promovidas em sua dimensão de cidade. O filmete Bem vindo a São Paulo, de Wolfgang Becker, enaltece os clichês da cidade, que se percebem na vivência tátil da cidade e se propagam em mediações diversas. “A São Paulo dinâmica, o paulistano apressado […]. De fato existe este signo da velocidade.” (CAMPOS, 1997) O vazio, que vez ou outra, se retira da saturação não se oferece como imagem contrastante e dissociada, mas como um complemento. A cidade, nos planos em que se mostra adormecida, não se define, portanto, como um contraponto, mas um prelúdio que anuncia o cotidiano cíclico da cidade, onde tudo se desdobra como uma continuidade. Jim McBride, em seu filmete Novo Mundo, já demonstra um movimento muito mais ativo ao percorrer as ruas do bairro do Bixiga em busca das fachadas que carregam a memória de uma São Paulo de outros tempos. A cidade é vivenciada em outra dimensão.

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Mais do que apenas acumulação de objetos, a arquitetura fílmica é espaço pelo qual se circula, é imersão em algo mais amplo que ela mesma, é o ambiente todo que extrapola o enquadramento.

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(Fábio Allon dos Santos, 2005, p.6)

O espectador é, antes de tudo, habitante da [de uma] cidade. Sua experiência perceptiva permite reconhecer os conflitos e/ou narrativas que se mostram nas telas. Nesse sentido, as leituras serão diferenciadas, partindo do princípio de que cada experiência embasará um modo de aproximação com aquela mediação fílmica. Ou seja, o filme revelará um ou outro significado de acordo com o repertório acumulado de seu espectador, que pode se identificar enquanto personagem urbano ou depreender as imagens como capturas de um registro íntimo de outras pessoas. As sequências não apresentam, portanto, qualquer posicionamento metonímico que se indique consensual. Pelo contrário, a diversidade das imagens reproduzidas, reforça a pluralidade que define a cidade (definição essa, porém, paradoxal, uma vez que a cidade se caracteriza por uma crescente descaracterização). As “imagens espetáculo”, comerciais em suas designações, comparecem em determinados momentos, mas são restritas. Uma breve observação das espacialidades que se expandem, também, na cidade das telas, confirma uma produção de significados que de algum modo se orientam para mediações circunscritas à cidade como cenário. Contudo, revela-se, em outra dimensão, uma cidade, em seu caráter urbano, que ultrapassa sua finalidade cênica,

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tornando-se personagem protagonista. “São Paulo é uma cidade tipicamente urbana, no sentido de possuir uma vivência prioritariamente urbana.” (CAMPOS, 1997). Ao traçar um paralelo entre a imagem cinematográfica (influenciada pelo surgimento da televisão, que a torna mais fria e asséptica, pelo vídeo e, derradeiramente, pela publicidade) e as cidades, Wenders insinua uma correlação que se expande para além da superficialidade das telas. Cidade e cinema estabelecem vínculos mais profundos que as indicações que se mostram em visualidades. Nesse caminho, o diretor indica que “o que é pequeno desaparece” (p.184). As imagens propostas, publicitárias, espetaculares por extensão, tornam periféricas as representações desses lugares que se reforçam modestos, anteriormente classificados como espacialidades mediadas. Assim como o mundo das imagens que nos circunda é cada vez mais cacofônico, desarmônico, ruidoso, proteiforme e pretencioso, as cidades se tornaram por sua vez mais e mais complexas, discordes, ruidosas, confusas e massacrantes. Imagens e cidades vão bem juntas.

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(Wim Wenders, 1994, p.184)

São esses ruídos tão presentes na cidade de São Paulo, e tão recorrentes nas imagens fílmicas que se constroem nas sequências selecionadas e que indicam a descaracterização da cidade defendida por Haroldo de Campos. Neste sentido, Paulo Mendes aponta que as construções urbanas não parecem responder à edificação da cidade, mas a uma especulação que elimina os espaços vazios e projeta torres em um percurso de constante verticalização. As

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fachadas representadas em Novo Mundo comparecem como resquícios de uma memória que, progressivamente, parece ser consumida. São Paulo realmente não tem memória. Ela se caracteriza por uma espécie de desmemoria criativa, ela não tem dúvida. Derruba um velho edifício e faz um banco japonês em forma de pirâmide, ou uma coisa assim, desse tipo. Possui um caráter canibalesco, permanentemente metamórfico.

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(Haroldo de Campos, 1997)

Sua definição remete, metaforicamente, a um palimpsesto, cuja superfície é polida, apagando os registros anteriores, para dar lugar à escrita de um outro texto. Não temos outro recurso se não construir a cidade em cima dela mesma, sempre”. “Portanto, São Paulo não é um caso perdido, mas podia se dizer o contrário, é tudo o que temos; o que mais nós temos?

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(Paulo Mendes da Rocha, 2013)

A cidade “existe antes que você faça” (ROCHA, 2013). Sua pluralidade se fixa ao passo que é demandada por todos, em sua ampla diversidade de recursos, serviços e espaços ofertados. O cinema, na contravia, seleciona os espaços que compõem um ambiente narrativo que responderá a uma dada finalidade. ‘A imagem da cidade’ desenhada pelo cinema ao longo de sua história é algo bem diverso da imagem efetiva de nossas cidades contemporâneas. ‘As cidades sob o ângulo

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das imagens’... Tudo parece em movimento, em plena mudança.

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(Wim Wenders, 1994, p.181)

O reordenamento da cidade, sua reconstrução, para Paulo Mendes, “é um desejo com dificuldades de se

realizar”. Parte daí a motivação que sustenta a constante reconfiguração do cenário urbano, em reconstruções que se consomem e se projetam extensivamente.

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5.

CONSIDERAÇÕES FINAIS


A respeito dos estudos particulares desta pesquisa, as observações caminharam para a indicação de uma percepção dos espaços urbanos alterada pela influência de considerações próprias e pessoais dos autores que os retratam. Os diretores, nas três primeiras sequências analisadas, não demonstram pretensão em mimetizar a visualidade dos espaços urbanos, mas recriam cenários, paisagens e mediam a experiência de estar e caminhar pela cidade, revelando espacialidades fundamentas em relações espontâneas. O cinema intensificou os esforços da cidade enquanto objeto comunicacional, na transição para o século 20, em sua extensa promoção, em exercícios de colocação e definição de elementos simbólicos, pois enquanto mídia, a cidade preserva e propicia a incidência de uma gama de mediações. O cinema é uma forma de escrever o mundo, não mimetizá-lo. Suas imagens são representações especulares, não se superpõem ao mundo mediado, produzido em imagens. Os diretores estão na cidade; avançam por suas ruas, as percebem enquanto ambiente tátil. Suas imagens são registro de um olhar comprometido em ver, documentais em sua estrutura; Imagens mediadas que, em outra camada, mediam essas experiências que se mostrariam tão pessoais. Selecionam os ambientes e os retiram do anonimato. A leitura realizada não indica que tais espaços compareçam escondidos na cidade, mas necessitam de um determinado olhar que tencione enxergá-los. O destaque está na consideração que permite a observação de como os diretores, em sua diversidade de enquadramentos e intensões narrativas, conseguiram

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capturar aspectos da cidade tão interiorizados em seus espaços urbanos e habitantes. Os grandes planos aéreos ou enquadramentos diferenciados, como um olho que vasculha os elementos que se planificam acima do nível humano, se destacam em sua recorrência não pretendida. Wolfgang Becker propôs uma leitura visual da cidade, elegendo os clichês da cidade máquina, cíclica, veloz. Destaca a dimensão urbana de seus espaços, projetando edifícios, malhas viárias, equipamentos eletrônicos. Realiza, portanto, uma varredura das visualidades que se edificam na cidade. Sua produção possibilita, nessa direção, uma experiência óptica, estritamente visual, da cidade mediada. Essa percepção óptica não é suficiente para a representação da cidade. Enquanto proposta de imersão na cidade, o êxito se exemplifica nas sequências em que a percepção ótica se torna tátil, pelo hábito, e possibilita uma experimentação sensória. Parte-se da mera visualidade em direção a uma experiência háptica, que comporta a ideia de uma vivência tátil dos espaços visuais, mediados. Noyce se entregou, fielmente, ao acaso. Ao acompanhar, e integrar, a excursão de estudantes que desvendavam a Praça da Sé, o diretor percorreu um percurso guiado, muito embora não pudesse prever os personagens que surgiriam e integrariam o ambiente. Essa aproximação indicou um outro modo de registrar a cidade. A linguagem audiovisual se contamina pela vivência da cidade. Os planos se tornam mais orgânicos, as sequências franqueiam as fronteiras entre cinema e cidade. Essa convergência indica uma via de mão dupla:

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arquitetura, cidade e cinema dialogam entre si em experiências cada vez mais recorrentes, e, sobretudo, cada vez mais conscientes. Ming-Liang, nesse sentido, se diferencia dos demais diretores e afirma seu êxito: sua narrativa se discorre de modo a promover uma aproximação mais íntima entre a cidade observada, tátil e sensória em sua natureza, e a cidade das telas, que, neste caso, supera sua dimensão óptica e se torna, progressivamente, háptica. Essa indicação permite concluir que o filmete Aquário se destaca por sua força inventiva e sensível. Se em suas demais produções, Ming-Liang esticava a duração de seus planos com a intenção de anular a dinâmica temporal permitida pelo cinema, o aproximava do tempo real em que se discorre uma ação. As sequências selecionadas, na evidência de sua análise, apontam como a diversidade presente na cidade comparece como elemento disponível, patente, e ofertado para ser visto. Em suas diferentes regiões, se estabelecem modos de viver a cidade que serão únicos, indicarão costumes e possibilidades sensíveis próprias de seu espaço. Deste modo, as espacialidades que comparecem na tela demonstram uma profusão característica que as definem. O enfraquecimento de seu Marco Zero, em sua dimensão primeira, indicia a descentralidade dos espaços da cidade. Proliferam-se os centros em sua extensão. Suas transformações indicam, na cidade, uma deformidade, que a caracteriza, mas não a define. Sua imagem, portanto, nunca está acabada. Ela se refaz sempre (FERRARA, 2000).

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As exposições realizadas não se intencionam, aqui, leituras finalizadas. A cidade, cuja imagem se modifica continuamente, se reconstrói em ações cotidianas. As sequências analisadas, tampouco, oferecem subsídio para uma consideração impositiva, ainda que seus resultados possibilitem, de modo imediato, uma leitura das possibilidades perceptivas da cidade tela que se reproduz, cada vez mais, em projeções audiovisuais. Em suas sobreposições constantes, as pequenas imagens que se encontram na cidade são parcialidades líquidas. São Paulo vive no presente, e no presente se moldam e se transformam suas características, que se atualizam sempre. Trata-se, portanto, de ação constante e progressiva, uma vez que a cidade ainda se constrói no mundo inteiro, sendo (ROCHA, 2013), algo que não sabemos ou não temos sabido fazer. A cidade das telas, por sua vez, reafirma essa constante atualização.

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REFERÊNCIAS


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