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A segunda vida da revista Cinéfilo (1973-1974) Cinema, Cultura, Portugal e o ímpeto da Revolução Filipa Rosário Entre 4 de Outubro de 1973 e 22 de Junho de 1974, a revista semanal Cinéfilo voltou a funcionar, com uma identidade renovada, enquanto propriedade da Sociedade Nacional de Tipografia, o grupo que geria o jornal O Século, entre outras publicações. A primeira série da Cinéfilo funcionou entre 2 de Junho de 1928 e 15 de Setembro de 1939, enquanto suplemento de O Século, concentrando-se exclusivamente em informação sobre cinema. Trinta e quatro anos depois, os hoje históricos realizadores portugueses Fernando Lopes (1935-2012) e António-Pedro Vasconcelos (1939-...) reavivaram o periódico, respectivamente, enquanto seu director e chefe de redação, ao convocar uma equipa de jornalistas e colaboradores especializados nas artes e ofícios sobre os quais a revista versava. Os espectáculos que cobria, os artistas que entrevistava, as opiniões que publicava, tudo era expressão de um espírito crítico, reflexivo, cosmopolita e sofisticado, testemunho de como, sobretudo, a grande Lisboa – mas também o Porto e Coimbra – atentava às práticas e discursos artísticos mais relevantes da altura. Por esta razão, a Cinéfilo materializa, atestando, o espírito de dois momentos muito concretos e particulares da história cultural e política nacional: o período que antecedeu a Revolução dos Cravos, assim como o próprio 25 de Assim,Abril.
a segunda vida da revista comprova uma intenção de libertação e de diálogo livre cujo momento de concretização histórica ela, efectivamente, experiencia e retrata. Esta Cinéfilo surge, então, como espaço de expressão de “uma geração com vontade de, apesar de os problemas que havia com a censura, falar abertamente sobre cinema e promover um novo gosto, uma nova visão crítica do cinema”, afirma António-Pedro Vasconcelos1. Existiam na mesma altura três outras revistas semanais de espectáculos: a Plateia, a Rádio e Televisão e a Musicalíssimo. Contudo, estas punham em prática um tipo de escrita mais distanciado do ensaísmo e da crítica teórica, tipo esse mais ao estilo do Jornal de Letras e Artes, para onde escreveu António-Pedro Vasconcelos entre 1963 e 1970. Em todo o caso, a Cinéfilo tinha como público-alvo a comunidade em geral, não apenas críticos e académicos, como foi o caso do jornal. Adianta Jorge Silva Melo, encenador e actor da mesma geração e amigo pessoal de
3 grande parte da equipa da revista, “ao contrário de outras revistas de arte, esta fazia jornalismo, e não ensaísmo crítico, por ambicionar estender-se a toda a gente que emergiu durante o Marcelismo: distribuidoras cinematográficas novas, teatros marginais, etc..”
3. Fernando Lopes convida António-Pedro Vasconcelos para participar e, juntos, integram amigos mais próximos, entre os quais o realizador João César Monteiro (1939-2003), o professor universitário e autor Fernando Cabral Martins (1950-...), o jornalista, encenador e actor José Martins (1952-...), o poeta e jornalista Eduardo Guerra Carneiro (1942-2004) e a jornalista Teresa Figueira, a única mulher da redacção.
Fizeram parte do amplo conjunto de colaboradores dos 37 números da Cinéfilo os jornalistas Adelino Cardoso (1934-2014) e Roby Amorim (1927-2013), o realizador Alberto Seixas Santos (1936-2016), o professor universitário, ensaísta e autor Eduardo Prado Coelho (1944-2007), o historiador Vasco Pulido Valente (1941-2020), o realizador Carlos Saboga (1936-...), o compositor de jazz Manuel Jorge Veloso (1937-2019), o realizador Eduardo Geada (1945-...), o produtor e realizador de televisão e rádio José Nuno Martins (1948-…), o presidente da Academia Portuguesa de Cinema e produtor cinematográfico Paulo Trancoso (1945-…), entre outros. A equipa da redacção e de colaboradores transformou-se ao longo do tempo, incorporando novos nomes, deixando de integrar outros. Independentemente disso, a Cinéfilo reuniu sempre um grupo de notáveis que vieram a tornar-se referências nas áreas em que se moviam. Também por este motivo, a revista foi única em Portugal, no sentido em que fez parte da trajectória da formação de grupo de jovens profissionais e intelectuais de renome que, imprimindo a sua marca do periódico, influiu na definição da identidade deste. Neste contexto, o incomparável estilo de escrita de João César Monteiro – literário, reflexivo e analítico, subversivo pela forma como agrega o boçal ao refinado, a resultar por muitas vezes cómico –contribui de forma única para a qualidade generalizada da revista.
2 A nova Cinéfilo parte de um acordo entre o à época director de O Século, Manuel Figueira, e Fernando Lopes, para, conta António-Pedro Vasconcelos, “relançar a antiga revista, alargando, contudo, o seu escopo às outras disciplinas e artes, apresentando inclusivamente um cartaz de tudo aquilo que mais importante se passava – primeiro, de Lisboa e, depois, do Porto –, e com uma visão crítica muito afirmada, nada neutra. E aberta a outras opiniões, obviamente. Mas havia ali uma marca distinta que era muito típica da nossa geração”
A estrutura interna da revista sofreu poucas alterações durante a sua existência. Composta sobretudo por rubricas fixas, a Cinéfilo apresentava semanalmente Os Espectáculos da Semana (resumo dos conteúdos do número), Cartas na Mesa (cartas e excertos de cartas dos leitores), Cartas na Manga (anúncio de iniciativas culturais da revista, em parceria com outras instituições, que contemplavam a distribuição de convites para essas mesmas actividades), Campo/Contracampo (contraposição de duas opiniões divergentes sobre o mesmo evento), Sete Dias da Semana (destaque diário de um espectáculo), Os Ossos do Ofício (extensa entrevista com um artista sobre a sua prática e o pensamento por detrás dela), Cinefilia (informação sobre materialidades audiovisuais), assim como o cartaz semanal de programação semanal de cinema, teatro, televisão e música. Surgiram secções que permaneceram por alguns números, não tendo, no entanto, vingado até ao fim da série: A Hora e a Vez do Cinema Português e Uma Semana Noutra Cidade, por exemplo.
A revista publicava também dossiers temáticos, como o dossier sobre Cinema Russo ou sobre Strip-tease, números que ainda hoje têm valor monográfico, apesar da distância de tempo. Por vezes, acontecia também alguns deles serem repartidos por diferentes números, como o trabalho sobre a Fotografia em Portugal e sobre Cinema em Democracia, publicado já depois do 25 de Abril.
Por entre esta diversificada e ampla panóplia de tipos de textos, distinguese a entrevista, muito censurada4, que António-Pedro Vasconcelos, Eduardo
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A secção sobre a pré-publicação da biografia da actriz Marilyn Monroe escrita por Norman Mailer – Marilyn: A Biography (1973) – é surpreendente e única, no sentido em que foi um trabalho de grande fôlego, repartido por vários números também, que apresentava traduções de excertos e textos que contextualizavam o surgimento do livro, reforçando o estatuto de Marilyn enquanto estrela “para” a Cinéfilo. Portanto, era dado também destaque a acontecimentos pontuais de grande relevância cultural, como também foi o caso da primeira edição do Festival de Jazz de Cascais, da retrospectiva da obra de Roberto Rosselini na Fundação Calouste Gulbenkian, agregada a uma entrevista com o próprio; da abertura da companhia Teatro da Cornucópia; do 1.º Encontro da Canção Portuguesa e seus simulacros pós-25 de Abril, assim como a espera pela e a própria atribuição dos primeiros subsídios do Instituto Português de Cinema. A Cinéfilo publicou, ainda, o conteúdo de mesas-redondas sobre filmes, realizadores e ideias de cinema; reportagens e críticas sobre a MPB, música clássica, música popular e jazz, assim como crítica de rádio, televisão, bailado, banda desenhada e gastronómica.
Guerra Carneiro e James Anhenguera (pseudónimo de Sérgio Fernandes, que também assinava peças na revista) fizeram a José Afonso, em Novembro de 1973, imediatamente antes do lançamento de Venham Mais Cinco. Nestes [Os] Ossos do Ofício, José Afonso discorre sobre a génese e natureza da sua música, o amor à linguagem do quotidiano e ao surrealismo cantado pelo povo, e também sobre o poder de Grândola, canção que, afirma o cantautor, já não lhe pertencia, era habitualmente cantada em meios populares, por muitas centenas de pessoas5 No fundo, e regressando à organização e lógica interna da revista, ela publicava textos de naturezas diferentes, cobrindo tópicos e práticas muito variadas. De grande tiragem e com distribuição mundial, dava conta do fervor intelectual e artístico, característico do espírito da época. Daí que a Cinéfilo seja, simultaneamente, espaço de reflexão teórica e de discussão, periódico de referência, arquivo da actividade cultural de maior visibilidade no país e, de novo, sintoma de um momento histórico específico. Para além da rubrica Campo/Contra-campo, a revista publicou também outros contraditórios, mais ou menos polémicos. Aquilo que pode ser considerado o julgamento público do filme A Promessa (1973) de António de Macedo a par com uma grande entrevista feita ao realizador; os comentários de Vasco Pulido Valente à declaração feminista de Maria Teresa Horta sobre o facto de Eduardo Geada ter alterado o guião, supostamente conjunto, do filme Sofia e a Educação Sexual (1973), assim como a reacção de Eduardo Prado Coelho às palavras de Vasco Pulido Valente e a resposta que suscitaram por parte deste, entre outros episódios: desde o início da sua segunda vida, a Cinéfilo foi, programaticamente, um espaço de diálogo entre pares. Até Maio de 1974, este diálogo foi alvo de censura. Os últimos sete números da revista, já depois da revolução, debruçaram-se, precisamente, sobre este tópico, sempre de forma militante e apaixonada. A Cinéfilo divulgou como a Censura havia operado sobre os seus textos; apresentou estatísticas sobre práticas de censura ao cinema, teatro e televisão; registou uma conversa pública com membros da Comissão de Classificação Etária; discorreu sobre novas perspectivas do cinema e teatro amadores, agora a operar em liberdade; recolheu depoimentos de realizadores e distribuidores cinematográficos, assim como de encenadores e directores de companhias teatrais sobre arte, política e história; publicou comunicados de cine-clubes sobre o assunto. É editada também uma grande e muito lúcida entrevista sobre a censura e a prática dos
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2. Depoimento escrito por e-mail, 17.07.2019.
4. Informação confirmada por José Martins, membro da redação da Cinéfilo, 17.07.2019.
5. Cinéfilo n.º 8, 22.11.1973, pp. 36 e 39.
Alves Costa, o histórico cine-clubista portuense e grande dinamizador e divulgador do cinema no norte do país. Como referido anteriormente, de maneira geral, a equipa da revista era formada por pessoas ligadas a práticas artísticas. A partir do 25 de Abril, as mesmas pessoas participavam em iniciativas e ajuntamentos com os seus pares, encontros onde se discutia e questionava concretamente a realização dessas mesmas práticas, agora em liberdade. Inclusivamente, chegaram a ocupar o edifício da Comissão de Censura, legalmente ainda no activo, o que fez a capa dessa semana. Mais, na altura, Glauber Rocha estava em Portugal, e integrouse em todas estas movimentações. Os conteúdos dos números pós-revolução reflectem esse espírito engajado e incessante, característico do momento que se vivia, aproveitando o ímpeto da presença do histórico realizador brasileiro6 A revista termina com a decisão por parte da Sociedade Nacional de Tipografia de a extinguir. “O Cinéfilo é interrompido pelo 25 de Abril. Durou o tempo que tinha de durar.”, afirma António-Pedro Vasconcelos.7 Ela reportou e corporalizou a essência daqueles tempos em Portugal, ao mesmo tempo que comprova uma outra força, conceptual: mantendo o título do suplemento de O Século, mas abrindo a reflexão a todas as outras artes, a Cinéfilo certifica a natureza interartística da imagem em movimento, isto é, o cinema enquanto forma de arte que congrega, declinando, todas as outras. Neste sentido, um documento histórico, de grande valor político e estético, vibrante também nesta dimensão mais teórica.
3. Entrevista, 16.07.2019.
1. Entrevista 16.07.2019.
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7. Entrevista, cine-clubes16.07.2019.aHenrique
6. Cinéfilo n.º 32, 18.05.1974.