TODOS SOMOS AUTORES DE FICÇÕES: DA MANIPULAÇÃO FOTOGRÁFICA AOS DISTINTOS PONTOS DE VISTA

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TODOS SOMOS AUTORES DE FICÇÕES DA MANIPULAÇÃO FOTOGRÁFICA AOS DISTINTOS PONTOS DE VISTA Claudia Inês Hamerski RESUMO Desde que surge no homem o desejo de representar o mundo, mesmo que exista o esforço e a pretensão de interpretar fielmente o que se vê, existe um desvio entre percepção e representação. Somado a isso está certo grau de ficção que é adicionado às imagens através da manipulação. O presente artigo trata de questões que se referem à ficcionalização do referente fotográfico. Para isso o texto parte da consideração de que todos somos autores de ficções, fazendo uso de apontamentos de Joan Fontcuberta sobre a manipulação e os conceitos de verdade e realidade no uso da fotografia. Ao fazer referência à ficção no processo de criação de um trabalho artístico, é relatado o processo desenvolvido na realização desse trabalho, que utiliza a fotografia e o desenho enfocando a possibilidade de uma reflexão sobre a imagem com destaque à desdimensionalização da paisagem a partir do detalhe. PALAVRAS-CHAVE Ínfimo; Ficção; Manipulação; Verdade.

Todos somos autores de ficções. Pontos de vista distintos que apontam para recortes do mundo, dos fatos, do visível e do que se mostra. A todo tempo estamos ficcionalizando até no modo como vivemos. A princípio é possível afirmar que temos concepções e visões diferentes do mundo e da vivência do que convencionamos chamar de realidade. O mundo como o percebemos, o andamento da vida e dos acontecimentos é sentido de modos distintos entre os diversos habitantes do planeta. O que vejo, penso e como me relaciono com o mundo é diferente de como meu vizinho ou meu irmão percebem ou experienciam o mesmo mundo. Ao tratar de um fato ou apontar para detalhes, visões, recortes no fluxo do cotidiano lançamos apontamentos de nossa percepção, nesse sentido não podemos escapar ao fato de que perseguimos obsessivamente a mesma questão e que esta geralmente diz respeito a posturas muito pessoais, de certo modo autobiográficas. Compartilhando do pensamento de Fontcuberta (2010, p. 9) podemos nos ater ao modo como interpretamos os acontecimentos, um fato simples do cotidiano como um dia de chuva pode parecer a muitos uma visão de calmaria e é possível que se pense no som da chuva, na água correndo nas vidraças, ou nos boeiros colados às calçadas, a água que corre na terra e fará o solo úmido e propenso à vida, o brotar das sementes e a frescura da mata. A outro pode parecer um dia infernal, onde não

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há táxis disponíveis, guarda-chuvas abrem-se nas calçadas, cutucam os passantes, interrompem o fluxo, atrapalham a marcha ordenada e cronometrada da rotina, as águas turbulentas provocam enchentes, arrasam casas, ceifam vidas, interrompem sonhos, atrapalham. Que visão é a correta? O que diz respeito a realidade? Como tratar de realidade e direcionar ou deliberar a veracidade, o que é verdade aqui? Otimismo ou pessimismo, romantismo ou excesso de racionalidade? Não se pode dizer, nesse caso, onde se trata de uma visão condizente com o que se pode averiguar. De fato ambas as visões correspondem aos acontecimentos, no entanto o que torna uma visão mais eloquente do que a outra é a convicção com que se apresenta, ou ainda, a sujeição do olhar interpretativo do público. Quanto mais tentamos nos aproximar do real 1 , mais incertezas surgem, vemos gradualmente revelarem–se camadas de ficções que nos são apresentadas constantemente e nem sempre com o devido filtro ou ética. A ficção está em nosso modo de conduzir a fala, na imagem, na representação. Desde que surge no homem o desejo de representar o mundo, ao mesmo tempo surge a distorção entre o visto e o reproduzido, ainda que exista o esforço em apresentar fidedignamente o que se vê, existe um desvio entre a aparência e sua representação, uma espécie de intervalo, não capturado, que nos escapa e ao mesmo tempo distingue o real de sua representação. Contamos ainda com a intencionalidade no ato de selecionar um recorte sobre o visível. A propósito da discussão sobre o real convém apontarmos o texto de Maria O. R. Squeff (2003), que ao tratar da mimeses2 na arte, traz um enfoque entre arte e realidade, a autora observa que “a arte sempre mimetizou o real – seja um real apreendido a partir de paradigmas religiosos, científicos, etc., seja apreendido desde sua simples aparência sensível, ou transfigurado imaginariamente” (2003, p. 100). 1

O real é utilizado aqui segundo a definição do Dicionário básico de filosofia: 1. Que existe, que diz respeito às coisas, aos fatos. Oposto a fictício, ilusório, aparente. JAPIASSU, Hilton. Dicionário básico de filosofia. 5. ed. Rio de Janeiro : J. Zahar, [2001]. Disponível online com acesso restrito à comunidade da UFRGS. Em: < http://sabi.ufrgs.br/ >.

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Partindo da análise etimológica de mimesis a autora destaca o “significado original de “representação”, “imitação” e , em especial, a partir de sua raiz indo-européia – o sentido de “mudança”, “transformação” que o termo conota”(2003, p. 100-101) [grifos da autora].

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Assim, através da mimese seria possível trazer algo à presença do outro, que não o próprio objeto, mas que, de algum modo, o presentifique como uma segunda presença. “Associado ao caráter ficcional, o mimético ganha foros artísticos. Vinculase à ficção e mimese/ transfiguração da realidade” (2003, p. 105). A obra de arte enquanto mimética teria o poder de ser um outro real, não simples cópia, reprodução ou representação. Ao ser movido pelo desejo de apontar no mundo aspectos que lhe são caros, o artista estaria produzindo algo novo no mundo, uma imagem, um desenho, uma pintura, que não o objeto de seu olhar, algo novo que aponta para o seu referente inicial mas que se manifesta como criação. Joan Fontcuberta, ao tratar da fotografia refere-se ao bom fotógrafo como aquele que mente bem a verdade (2010, p 13). A verdade que pretende apresentar, pois se decidirmos discorrer sobre a verdade, de início perceberemos que existem muitas verdades e a do artista consiste na busca incessante pela questão que move o seu trabalho. Segundo definição do Dicionário Básico de Filosofia (JAPIASSÚ, 2001)3 1. Classicamente, a verdade se define como adequação do intelecto ao real. Pode-se dizer, portanto, que a verdade é uma propriedade dos juízos, que podem ser verdadeiros ou falsos, dependendo da correspondência entre o que afirmam ou negam e a realidade de que falam. O que revelamos de uma imagem é o tanto de verdade que a ela atribuimos, uma relação de nossa projeção do perceptível. Nosso olhar está direcionado a pontos que nos interessam e ao realizarmos um trabalho de arte convidamos outros olhares a conhecer a nossa verdade. Nesse momento o trabalho está aberto aos juízos que se possa fazer dele. Novamente caímos no abismo que aponta para as inúmeras possibilidades de interpretações do que se entende por verdade. No texto em que trata de Vidência e Evidência, Fontcuberta (2010, p. 45) refere-se à certeza fotográfica como pura ilusão após trazer o filme Blow-up (1966) de Michelangelo Antonioni, referindo-se à cena final onde mímicos jogam tênis com uma bola inexistente e o personagem central do filme, Thomas, devolve a bola para 3

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Terceira edição revista e ampliada Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2001. Disponível em: < http://sabi.ufrgs.br >.

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que o jogo continue. A propósito do uso feito por Fontcuberta nos interessa na trama de Antonioni, a visão apontada por um olhar de lupa do fotógrafo que acaba por descobrir indícios de um crime. Esse mesmo olhar de lupa relaciona-se ao meu atual processo de pesquisa e produção artística, o qual busca possibilidades de paisagem à margem em meio à cidade e a partir dessa aproximação criar ficções. Na ação de percorrer a cidade de Porto Alegre, inaugurada por volta do ano de 2005, quando tem início meu processo de trabalho como artista visual, sempre estive alerta para pontos que trouxessem vestígios da memória do local de nascimento (Seberi) onde, desde criança, convivi em um ambiente rural em contato com plantas, árvores e um ritmo de vida menos acelerado e mais saudável. No entanto o ritmo e a dinâmica de Porto Alegre não me desagradam. Muito pelo contrário, são propulsores do desejo de criação e encontro com essas lembranças a que recorro quando direciono o olhar para o céu e aí se destacam as árvores, suas tramas me remetem ao gráfico ao vislumbrar em troncos e galhos, desenhos no espaço aéreo da cidade, e, ao mesmo tempo, a miniaturização dessas edificações da natureza vistas em pequenas vegetações resistentes nos vãos e meio fio das calçadas, nas fachadas de muros e prédios. Ao destacar esses vestígios de paisagem através da fotografia manifesto o desejo de ficcionalizar o referente, no caso as gramíneas, e conduzir o olhar do espectador a universos imaginários que vislumbro e pretendo mostrar através da fotografia e do desenho. Ao entender ficção “em seu sentido filosófico, como uma construção elaborada pela imaginação graças à qual um indivíduo acredita poder resolver um problema real (metafísico, lógico, moral ou psicológico); do lat. fingere: fingir, imaginar”4 me vem o pensamento de que através da ficção nos apropriamos dos fatos e os controlamos. Seria esta a maneira pela qual temos o poder de dirigir o que nos rodeia e manipular a realidade de acordo com nosso desejo. No entanto, abrimos os olhos e tudo pulverizou-se e voltamos ao mundo dos sentidos. Mas até mesmo os sentidos nos podem enganar:

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Idem.

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Com efeito, tudo que admiti até agora como o que há mais verdadeiro, eu o recebi dos sentidos ou pelos sentidos. Ora, notei que os sentidos às vezes enganam e é prudente nunca confiar completamente nos que, seja uma vez, nos enganaram” (DESCARTES, 1641, p.18)5

Para muito além do visto ou sentido lidamos constantemente com o inventado, sonhado ou imaginado. Quanto de nossa vida pode ser considerado fiel ao realmente existente tal e qual uma soma matemática? Quantas vezes somos enganados pelos sonhos ou pela memória, não lembramos se determinado fato ocorreu ou se sonhamos. E daquilo que temos certeza seria possível duvidar? Como questionava-se Descartes sobre a real possibilidade de estar ali sentado com o papel na mão e não na cama deitado sob as cobertas (1641, p. 19) poderíamos nós nos questionar sobre o lugar onde estamos e o que estamos fazendo e das tantas vezes que nos imaginamos nessa situação que agora nos encontramos. Aí está o poder de imaginar e com isso ficcionalizar. Convém mencionar Fontcuberta, quando nos lembra que “vivemos em um mundo de imagens que precedem a realidade” (2010, p. 48). Frequentemente ao visitarmos um local pela primeira vez temos a sensação de já conhecê-lo, pois antes desse primeiro contato recorremos aos meios tecnológicos e fazemos nosso percurso virtual, assim estamos conhecendo o lugar pela segunda vez amparados por uma memória do visto porém, não vivenciado. Ou quiçá o tenhamos vivenciado através de uma ficção criada por nossa imaginação, a sensação que produzimos desse local. Ao estarmos nele de fato podemos inclusive, nos decepcionar. “A memória não é mais do que a ‘lembrança’ de um passado ilusório” (FONTCUBERTA, 2010, p. 71), e, pensado dessa forma, um passado produzido pela mente, uma lembrança criada, ficcionalizada. A memória pode ser considerada nosso elo com o que já fomos, ou o que pensamos e como vivíamos em outro tempo. Nesse sentido, cada vez que recorremos à memória vamos também subtraindo-lhe detalhes reais e atribuindo-lhe detalhes ficcionais, vamos tendo cada vez mais a lembrança de uma lembrança. 5

DESCARTES, René. Meditações sobre Filosofia Primeira. Edição em latim e português. Tradução, Nota Prévia e Revisão Fausto Castillo. Coleção Multilíngues de Filosofia UNICAMP. Cartesiana I. Editora UNICAMP. Descênio de 1990. Disponível em: < http://charlezine.com.br/ > Acesso em 14 agosto 2013.

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Para além do visível Para além do que se vê a fotografia é também manipulação e aqui tomado o termo a partir de Fontcuberta (2010) a manipulação é criação, tanto no modo de operação que diz respeito ao uso de efeitos gráficos, quanto a manipulação como a tomamos. Além do sentido dado pelo dicionário de preparar, acionar ou controlar com as mãos, manipular trata de influenciar para seguir comportamento e interesses que não são os próprios, controlar

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. O artista seria aquele que manipula as imagens e

consequentemente os fatos e porque não dizer o espectador. Através do que apresentamos e como o apresentamos estimulamos no público pensamentos, sensações e até mesmo reações. Que reações se poderia esperar da série Fantasia de Compensação (2004) 7 do artista Rodrigo Braga? Neste trabalho, o artista manipula imagens provocando a ilusão de um implante de uma prótese animal em seu corpo. Assim, a sua face e a de um cão se unem formando um ser híbrido, mistura de homem e cão. Os efeitos desse trabalho geraram polêmica até os dias atuais e movimentaram uma série de ativistas e pessoas “esclarecidas”, em defesa da ética na arte. O artista não é inocente. Não somos inocentes, consciente ou inconscientemente procuramos incitar determinadas reações. A escolha que fazemos no ato da captura da imagem é manipulação, o enquadramento, a luz, o foco, o tema fazem parte do conjunto de decisões que tomamos para servir a determinado propósito. Assim como manipulamos a imagem, manipulamos a mensagem. O que é dado a ver tem tanto poder quanto o que foi ocultado. Ao retomarmos Blow up podemos fixar a atenção ao momento em que o fotógrafo, Thomas, ao revelar a imagem em seu estúdio começa a dar-se conta de um detalhe no gramado que, no momento do registro fotográfico não era o foco de sua captura. A descoberta coloca o fotógrafo diante de uma busca pela revelação do suposto mistério, fazendo com que obstinadamente amplie e aproxime cada vez mais esse 6

Definição segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. HOUAISS, Antônio, VILLAR Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda.-2 ed. rev. e aum. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

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Imagens da série de trabalhos entitulada Fantasia de Compensação estão disponíveis no site do artista < http://www.rodrigobraga.com.br/ >. Acesso em 14 agosto 2013.

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detalhe. A ampliação permite a aproximação e a visão de minúcias que antes não eram percebidas. No caso de Thomas, esses pormenores revelam-se ao seu olhar assim como a imagem embebida no revelador. Por outra parte é interessante pensar que para onde eu olho há um direcionamento do meu olhar e do meu foco. Na fotografia onde eu direciono o foco é que se faz o foco. O foco é da câmera, que elege e clarifica o detalhe. Annateresa Fabris (2011) nos leva a pensar a fotografia a partir de suas especificidades, nos coloca diante do embate do fotopictorialismo, no que concerne ao olhar prático e ao olhar construído pela imagem. Desse modo, através da captura fotográfica, transformo esse modo de ver em uma imagem. Tendo como ponto de partida essas reflexões, convém agora fazer alguns apontamentos sobre o processo desenvolvido desde a concepção do trabalho até a criação de possíveis ficções a partir da fotografia e do desenho. Modo de operação Na pesquisa atual, registro imagens de pequenas plantas que nascem nos cantos das calçadas e fachadas, “nos rodapés”, para em seguida desdimensionar essas imagens através da ampliação fotográfica. O processo consiste em caminhar pela cidade procurando vestígios dessa vegetação que configurem uma possibilidade de visualização dessa paisagem que busco. Registro essas imagens, seleciono-as, trato-as e amplio-as através de impressões fotográficas. Com essas imagens ampliadas, o que pretendo é a ficcionalização do referente, através da alteração de suas escalas reais. Desse modo a imagem pode causar a sensação de dois movimentos no espectador: de amplitude ou de sentir-se diminuido diante da imagem. Faz parte da estratégia adotada realizar percursos investigativos, nem sempre com a função de fotografar, mas algumas vezes com o intuito de anotar e perceber possibilidades. Os trajetos rotineiros auxiliam nessa busca. Algumas vezes realizo caminhos diferentes dos habituais com essa intenção. São realizados inúmeros registros da mesma “paisagem”, sob ângulos, enquadramentos e regulagens diferentes da câmera, pois

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não sei se terei outra oportunidade de registrá-los, visto que, por serem consideradas ervas daninhas, são arrancadas ou crescem e transformam-se rapidamente. Geralmente realizo os registros acompanhada por amigos, pois quando estou fotografando estou imersa na ação, de joelhos, na rua, às vezes deitada para conseguir a imagem desejada. Existe, de certa forma, um desejo de contato com o chão. A câmera é posicionada na calçada para obter a imagem esperada e geralmente não vejo a imagem que será registrada, somente após capturá-la ao olhar no visor da câmera. A reação das pessoas ao se depararem com minha ação é interessante: olham, param, comentam, mas não interferem. De certo modo, existe aí um ato performático na captura das imagens, o qual decorre da ação necessária para a obtenção do melhor enquadramento a partir do ângulo que permita o “engano” ou a “ilusão” que se pretende provocar. A seleção das imagens é cercada por um olhar imaginativo que vê paisagens ficcionais. Ao eleger uma imagem opto por recortes que possibilitem uma visão além do registro, que minha mente possa imaginar, que possa se imaginar diante de outros contextos e criar ficções. Depois da imagem ampliada coloco-a em exposição para estar em contato com ela por algum tempo para investigá-la através da percepção de novas visões, possíveis ficções, sempre atenta à qualidade da imagem, da fotografia e da ampliação para que auxiliam minha proposição. A partir da ampliação revelam-se camadas antes ocultas na penumbra do canto da calçada, ou do muro que agora projeta-se e deixa à mostra suas cisuras e inscrições. Os seus desenhos e suas cicatrizes, ampliados e redimensionados passam a compor a imagem com importância no todo.

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Fig.01 - Claudia Hamerski, Avenida Venâncio Aires, 989, fotografia, 60x80cm, 2013.

Nesse desejo de ficção está contida também uma memória que é acessada cada vez que as paisagens miniaturas se revelam na cidade. Uma memória da casa de infância e do contato com uma paisagem mais verde, uma paisagem de cidade pequena do campo, com mais céu, com mais vegetação e tempo de pausa. Um tempo que rememora o contato direto com as árvores, o céu e uma intimidade e, ao mesmo tempo, exposição que somente uma pequena cidade promove. De tardes imersa em excursões pela mata em busca de mistérios. Ato que é repetido na busca por mistérios no contexto urbano sobre o qual me debruço. Pontos que sejam capazes de desvelar paisagens ocultas no cotidiano da cidade. E que, ao ser tocada por essas imagens seja resgatada da apatia comum causada pela hipervisibilidade de um mundo repleto de imagens que a todo momento nos comunicam e reivindicam uma atenção da qual já não dispomos pois estamos saturados desses fantasmas de realidade. A paisagem mínima representa nesse contexto um momento propício à pausa. Onde se possa ver mais do que olhar, entendendo-se que no ato de ver está implicado o relacionar-se com e ao mesmo tempo estar presente, pois já não temos o privilégio da presença em um tempo de automação e um tempo no qual estamos com frequência “sem tempo”.

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Fig.02 - Claudia Hamerski, Rua Jacinto Gomes, 74, Fotografia, 60x80cm, 2013.

Os reflexos dessa memória estão presentes nesse desejo de reapresentar uma imagem retirada de seu contexto através de um olhar de lupa, que seleciona e recorta o fragmento a ser revelado. A fotografia tomada como uma representação a partir do real promove uma realidade ficcional. A imagem é o que se vê, não há manipulação, ou alteração/criação de um cenário. Mas a pergunta é: o que se vê? O que cada um vê? Nesse instante estamos diante do apontamento de uma visão, somos convidados a compartilhar e interferir nesse olhar através de nosso modo de ver e interpretar o que estamos vendo. Ao tratar dos jogos de miniatura nos contos de fadas, Bachelard (2000) fala da representação como um “corpo de expressões para comunicar aos outros nossas próprias imagens” (2000, p. 159). Assim, nossa capacidade de possuir o mundo estaria ligada à capacidade de miniaturalizá-lo, em um processo inverso. Ao ampliar esses pequenos universos localizados em pontos à margem da paisagem habitual da cidade, há um desejo de criar uma possibilidade do que seja o mundo, um outro mundo, diferente do real e com entradas no ficcional. Um mundo disponível e distinto para cada observador. As visões são tantas quanto os olhares. Ao lidar com o campo da imaginação nos deparamos com a imagem existente e ao imaginar recriamos a mesma imagem com margem para a nossa invenção. A partir desta perspectiva, um pequeno arbusto no canto da escada pode tornar-se uma

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gigantesca planta que podemos inclusive escalar, ou nos banhar em cascatas de orvalho que desabam de suas folhas, ainda podemos descansar à sua sombra ou fazer um pique-nique embaixo de suas grandes folhas. Em se tratando de imaginar não estamos comprometidos com a exatidão do que é visto e sim em dirigir nosso desejo de visão através da mente. “Ante uma imagem que sonha, é preciso tomá-la como um convite para continuar o devaneio que a criou (BACHELARD, 1993, p 161).” Nesse momento não estamos diante do lógico e sim do que é subjetivo. A capacidade de imaginar é inerente a cada ser, o que pode ser medido é a permissão que nos damos a essa criação disparada pela imagem e capaz de capturar nossa percepção nos conduzindo ao inusitado da mente que investe livremente no sonho. Investimos em uma empreitada que nos aproxima de modo enfático do chão, automaticamente ao procurar por vegetações ínfimas, somos convocados a estar ligados ao local onde estas se desenvolvem. Geralmente se trata de locais úmidos, onde exista um pouco de terra ou similar que permita seu nascimento e desenvolvimento. Esses locais geralmente são as sargetas, onde prolifera todo tipo de inço, musgos e seres normalmente invisíveis aos olhos afoitos que transitam na cidade. Para onde olhamos afinal? Pensar os procedimentos de criação me faz pensar também nestas questões e no direcionamento dado às ações com o intuito de redimensionar as imagens registradas a partir do meu foco de atração. Uma primeira constatação está no fato de que quando caminho atenta ao chão, tenho a sensação de ser notada. Embora não esteja olhando para os passantes percebo que eles me olham. O olhar voltado para o chão geralmente procura algo e esse movimento é percebido por quem passa, em alguns casos o olhar do passante segue o meu, só não é possível afirmar que perceba o que estou vendo. O simples ato de buscar essas paisagens gera um movimento de atenção do olhar antes distraído, nesse ponto inicio a concretização de meu objetivo, apontar para detalhes antes não vistos, revelar uma outra paisagem na cidade coberta por prédios, concreto e grandes fachadas.

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Em seu livro A câmara de Pandora (2012), Joan Fontcuberta já mencionava que “o que o mundo veda aos olhos do fotógrafo é imensamente maior do que o que ele conseguiu reter” (2012, p. 54), de igual modo também a profusão de imagens e informações cada vez em maior número nos impede de atentar aos pequenos detalhes do mundo, os quais, na saturação de informações da cidade, espreitam nossa atenção. Aí podem revelar-se universos micro, capazes de instigar percepções além das convencionais e criar possíveis caminhos para outros lugares que, para além do real, do visível, habitam nossa fantasia pois são oriundos da capacidade de inventar, figurar. As imagens ampliadas colocam em evidência esses registros e convidam à imersão através da imaginação. Miniaturizar-se ou ampliar a imagem são os convites que a imagem faz. Como na história de Lewis Carroll (2006), basta beber o líquido e nos encontramos inseridos na imagem. No livro de Carroll as ações de encolher e esticar sofridas por Alice provocam na personagem a sensação de estranhamento, de não mais reconhecer-se: “Então quem eu sou? Primeiro me respondam, e depois, se eu não gostar de ser essa pessoa, eu subo; se eu gostar, fico aqui embaixo até virar outra pessoa.”(CARROLL, 2006, p. 27). Ímbuídos desse universo infantil utilizamos a miniaturização para nos apropriar de um fragmento de mundo que temos o poder de reinventar. Ao alcançarmos a escala das imagens, inúmeros convites se apresentam desafiadores e inusitados para o então comum mundo ao qual estamos familiarizados. Temos aí a oportunidade de não apenas visualizar a imagem mas estar inseridos na paisagem que ela propõe. Como menciona Fontcuberta “...talvez a fotografia não minta, mas os fotógrafos, definitivamente sim (2012, p 12).” Pela intervenção, que pode ocorrer de formas diversas apontamos para uma direção, solicitamos um foco e com isso criamos a nossa própria realidade. E, não satisfeitos, convidamos o espectador a acreditar em nossa mentira. Diante da imagem que oculta o local real de sua captura e insinua um novo lugar somos questionados a respeito de nossa capacidade de percepção e decodificação da imagem e ao mesmo tempo do poder da fotografia de inferir ao real ou mascará-lo, transformá-lo segundo o comando daquele que registra. Ângulo, cenário, iluminação, intensidade colaboram para essa validação da proposição.

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Ao final somos convidados a nos questionarmos sobre a nossa capacidade imaginativa diante de uma imagem e as camadas que a revestem. Tal qual Alice somos convidados a descer e nos miniaturarizar, adentrando nas “cavernas”, “buracos” e por entre “troncos de ervas-daninha” que nos fazem perder a indicação do referente inicial. Pensar de onde vem essa imagem e o universo ou local que pretende revelar. Apresentamos a superfície e lançamos um convite à imaginação. São convites inesgotáveis à dedução, à especulação e à fantasia, afinal todos somos autores de ficções.

REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. 1993.

A miniatura. In: A poética do espaço. São Paulo : Martins Fontes,

CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Título original em inglês: Alice in Wonderland (1866). Tradução da edição de 1999 da Nord-Süd Verlag, Zurique. Tradução Márcia Feriotti Meira. São Paulo: Martins Claret Ltda, 2006. DESCARTES, René. Meditações sobre Filosofia Primeira. Edição em latim e português. Tradução, Nota Prévia e Revisão Fausto Castillo. Coleção Multilíngues de Filosofia UNICAMP. Cartesiana I. Editora UNICAMP. Descênio de 1990. Disponível em: < http://charlezine.com.br/biblioteca-virtual/ > Charlezine Revista Eletrônica de Cultura, Opinião e Filosofia. FABRIS, Annateresa. O desafio do olhar : fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas. São Paulo, SP : WMF Martins Fontes, 2011. FONTCUBERTA, Joan. A câmara de pandora: a fotografi@ depois da fotografia. Tradução Maria Alzira Brum. São paulo: Editora G. Gilli, 2012. FONTCUBERTA, Joan. O beijo de Judas: fotografia e verdade. Titulo original: El beso de Judas. Fotografia y verdad. Tradução: Maria Alzira Brum Lemos. Edição: Flavio Coddou. Do texto: Joan Fontcuberta, 1997. Editorial Gustavo Gilli, SL, Barcelona, 2010. SQUEFF, Maria Ozomar Ramos. Mimeses na arte: os limites da crítica. In: Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios. Mônica Zielinsky (Org. e Introd.) et al.. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.

Claudia Inês Hamerski Bacharel em Artes Visuais Desenho (2006), História Teoria e Crítica de Arte (2010), Especialização e, Pedagogia da Arte (2012), mestranda em Poéticas Visuais (2012-2014) todas pela UFRGS. Artista Visual, desenvolve sua pesquisa nos temas: paisagem, processo de criação, desenho, fotografia, escala, ampliação e repetição.

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